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Este artigo analisa a tradução da frase bíblica 'vou chegar mais perto e ver esta coisa estranha' (êxodo 3,3) de acordo com a tradução da bíblia edição pastoral (1990). O texto examina o verbo 'ver' no contexto bíblico e seus reflexos para os dias atuais, justificando a opção da tradução de 'grande visão' por 'coisa estranha'. Além disso, o artigo explora as interpretações da expressão hebraica 'a grande visão' e sua relação com a experiência mística de moisés e outras vocações descritas na bíblia.
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Revista Caminhando v. 24, n. 2, p. 41-55-, jul./dez. 2019 41
Valmor da Silva* Joilson de Souza Toledo**
RESUMO O artigo analisa a frase bíblica “vou chegar mais perto e ver esta coisa estranha” (Ex 3,3), de acordo com a tradução da Bíblia Edição Pastoral (1990), em seu contexto bíblico e em seus reflexos para os dias atuais. A exclamação de Moisés situa-se na narrativa de seu encontro com Deus, diante da sarça que queimava, mas não se consumia (Ex 3,1-6). No âmbito dessa perícope, examina-se o predomínio do verbo “ver”, com seis citações e com intenso significado relacional. Segue-se com diversas opções de tradução da frase de Moisés, para as possibilidades da tradução como porta de entrada no texto. Conclui-se por justificar a opção da tradução de “grande visão” por “coisa estranha”. A “coisa estranha” é possível pelo significado original da expressão, enquanto apoia, igualmente, a estra- nheza na leitura de toda a Bíblia, bem como na situação de jovens na pós-modernidade. Palavras-chave: Êxodo 3,3; sarça ardente; visão. ABSTRACT The article analyzes the biblical phrase “I will come closer and see this strange thing” (Ex 3:3), according to the Bible Pastoral Edition , translation in Portuguese (1990), in its biblical context and in its repercussions for the present days. The exclamation of Moses is situated in the narrative of his encounter with God, before the bush that burned, but was not consumed (Ex 3:1-6). Within the scope of this pericope, we examine the pre- dominance of the verb “see”, with six citations and with intense relational meaning. It follows with several options of translation for the phrase of Moses, to the possibilities of the translation like door of entrance in the text. It concludes by justifying the option of translating “great vision” into “strange thing”. The “strange thing” is possible by the original meaning of the expression, while it also supports the strangeness in reading the whole Bible, as well as in the situation of young people in postmodernity. Keywords: Exodus 3:3; burning bush; vision.
42 “Vou chegar mais perto e ver esta coisa estranha” (Êxodo 3,3) ValmordaSIL V A; JoilsondeSouzaTOLEDO
RESUMEN El artículo analiza la frase bíblica “Me acercaré y veré esta cosa extraña” (Ex 3,3), según la traducción de la Biblia de la Edición Pastoral (1990), en su contexto bíblico y sus reflexiones hasta el día de hoy. La exclamación de Moisés radica en la narración de su encuentro con Dios ante la zarza ardiente que no fue consumida (Ex 3: 1-6). Dentro de este perícope, examinamos el predominio del verbo “ver”, con seis citas y con un significado relacional intenso. Las siguientes son varias opciones para traducir la frase de Moisés a las posibilidades de traducción como una puerta de entrada al texto. Concluimos justificando la opción de traducir “gran visión” por “cosa extraña”. La “cosa extraña” es posible gracias al significado original de la expresión, al tiempo que apoya la extrañeza en la lectura de toda la Biblia, así como en la situación de los jóvenes en la posmodernidad. Palabras clave: Éxodo 3.3; arbusto ardiente; visión.
A bíblia é uma obra literária que já foi traduzida em inúmeras línguas. Por se tratar de um texto considerado sagrado, por diversas tradições reli- giosas, seus processos de tradução ganham ainda maior relevância social. A aproximação ao texto bíblico dá-se a partir dos aportes de distintas áreas do saber: exegese, arqueologia, história, sociologia, linguística, entre outras. O presente artigo intenta olhar possibilidades de tradução da expressão hebraica “a grande visão”
(^1) E Moisés estava pastoreando o rebanho [de] Jetr [de] Midyan. E guiava o rebanho atrás do deserto e Elohim, ao Horeb.^2 E viu mensageiro [de] YHWH 4 fogo, do meio [da] sarça; e viu e eis [que] a sarça sarça ela não era consumida.^3 E disse Moisés: “me visão a grande este, porque não queima a sarça”. afastou para ver; e chamou a ele Elohim do meio [da Moisés”; e disse: “eis-me aqui”.^5 E disse: “nã desamarra sandália tua de sobre pés teus, pois o l sobre ele terra [de] santidade ele”.^6 E disse: “eu D [de] Abraão, Deus [de] Isaac, e Deus [de] Jacó. E e dele pois temeu fitar para o Elohim”.
( hammare’eh haggadol ) tomando por base as escolhas feitas por diversas Bíblias em português e também em outras línguas. Essas escolhas abrem possibilidades hermenêuticas para as atuais leituras, bem como para lideranças de diversas tradições que têm o Antigo Testamento ou a Bíblia Hebraica por referência.
O livro do Êxodo começa com cenas da opressão dos hebreus no Egito, em vista da libertação rumo à terra prometida. Em meio à opressão, um clamor popular chega aos ouvidos de Deus. “E Deus ouviu os seus gemidos; Deus lembrou-se de sua Aliança com Abraão, Isaac e Jacó. Deus viu os israelitas, e Deus se fez conhecer...” (Ex 2,24-25). Logo após essa escuta divina, o Êxodo apresenta a cena paradigmática da sarça ardente, em que Moisés encontra-se com Deus (Ex 3,1-6). Segue a tradução literal da passagem: 1
(^1) E Moisés estava pastoreando o rebanho [de] Jetro, sogro dele, sacerdote [de] Midyan. E guiava o rebanho atrás do deserto e veio para a Montanha do Elohim, ao Horeb.
(^1) A tradução literal busca fidelidade ao texto original hebraico ( Biblia Hebraica Stutt- gartensia ), inclusive com discordância gramatical com relação à língua portuguesa e mantendo entre colchetes expressões que, graficamente, não existem no hebraico.
44 “Vou chegar mais perto e ver esta coisa estranha” (Êxodo 3,3) ValmordaSIL V A; JoilsondeSouzaTOLEDO
diversas interpretações, refere-se à experiência mística de Moisés, caracte- rística do encontro com o Deus que se revela a ele (SILVA, 2004, p. 42). O estilo literário é reconhecido como um relato de vocação profética (SCHWANTES, 2012, p. 16). A vocação profética de Moisés, em vista de sua missão, como líder libertador de Israel, está inserida na teologia da eleição de Israel como povo escolhido. Em vista dessa eleição, estabelece- -se a aliança, um pacto bilateral de fidelidade entre Deus e Israel (OLMO LETE, 1973, p. 12). Nesse mesmo modelo de narrativa vocacional de Moisés, outras vo- cações são descritas na Bíblia, como as de Gedeão, de Saul e de Jeremias (KESSLER, 2013, p. 349). O relato clássico da vocação de Moisés, porém, distingue-se por ser ampliado com cinco convites e cinco objeções, que abrangem o texto de Ex 3,1-4,17 (ANDIÑACH, 2010, p. 52).
Dentre tantas dúvidas e desafios para a interpretação deste texto, a aten- ção se concentra sobre o verbo “ver”, por seu especial destaque na própria narrativa, reconhecido pela leitura de diversos autores. O destaque é dado por Alonso Schökel, que afirma: “Domina o verbo ‘ver’” ( Bíblia do Pere- grino , 2002, nota a Ex 3,1-6). Na leitura de Vogels (2003, p. 92): “O texto sublinha que esse encontro entre Deus e Moisés se situa no nível do ‘ver’”. No jogo de deslocamentos e encantamentos entre Moisés e Deus, existe algo que encanta Moisés, algo inesperado como o queimar da sarça. Toda a narrativa dá-se numa sucessão de imagens. Antes da voz, vem a imagem. Antes do ouvir, predomina o ver. Elohim e Moisés contemplam - -se. É possível reconhecer nessa relação um deixar-se seduzir pela visão. Ao analisar este capítulo 3 do Êxodo, comenta Chouraqui (1996), p. 50):
O verbo ver ra’a , aparece sete vezes nos nove primeiros versículos deste capítulo [...] As tradições hebraicas, cristãs e muçulmana veem neste episódio um dos apogeus místicos da Bíblia. A adesão do homem neste episódio acontece através do irresis- tível poder da visão, na contemplação de um misterioso mensageiro, intermediário transparente entre o profeta e o infinito que se lhe revela. Moshé, que soube ver a injustiça dos homens (2,11), verá agora o mensageiro de IHVH.
É surpreendente a maneira como a raiz do verbo “ver” רָָאה ( ra’ah ) repete-se nos versículos 2, 3 e 4, com duas ocorrências em cada um, num total de seis.
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No versículo 2, o verbo é precedido pela conjunção ַו ( waw ), denomi- nada waw conjuntivo, que tem o sentido original da aditiva “e”, mas pode significar a adversativa “mas”, ou a consecutiva “então”. No caso, esse “e” consecutivo estabelece a sequência narrativa nesta perícope como, em geral, em toda a prosa hebraica. No versículo 2, a primeira ocorrência do verbo “ver” está no grau niphal hebraico, dito pelos gramáticos imperfei- to ou incompleto, na terceira pessoa do singular, masculino. No mesmo versículo, ocorre o mesmo verbo, também precedido pela conjunção “e”, conjugado na mesma pessoa e gênero, porém no grau qal ou perfeito. A diferença de significado, no modo narrativo original, não é perceptível nas línguas modernas, de modo que a tradução resulta a mesma “e viu”. No versículo 3, o verbo “ver” aparece, também, com waw consecutivo, na primeira pessoa do singular, no qal. No mesmo versículo, a palavra “visão” tem a mesma raiz “ver”, com acréscimo do mem preformativo, com a função de substantivo feminino, e com o significado de visão, aparição e espelho. No versículo 4, igualmente ocorre a conjunção e o verbo no qal terceira pessoa masculino singular, idêntico à segunda ocorrência do ver - sículo 2. Por fim, o verbo aparece no infinitivo, precedido da preposição “para”. Constata-se, portanto, que o verbo ver conduz a narrativa e o jogo de olhares está no coração do enredo. Nos Dicionários Bíblicos o significado do verbo “ver” רָָאה ( ra’ah ) aparece dentro da lógica da cultura hebraica. Essa raiz (ver, olhar, ins- pecionar) bem como suas repercussões, abarcam expressões do ver que vão desde o olhar físico, o que vê, aparência, espelho, rosto, até visão profética ou vidente.
Os sentidos ampliados e metafóricos incluem: o qal, os de “considerar”, “perceber”, “sentir”, “entender”, “aprender”, “desfrutar”: no final, os de “ser visto” ou “revelar - -se”; no pual, o de “ser visto”; no hifil, os de “fazer ver”, “mostrar”, “levar a sentir/ conhecer/desfrutar”; no hofal, os de “ser feito ver”, “ser mostrado”, no hitpael, o de “olhar-se um ao outro”. O sentido literal do verbo não requer comentário especial, pois é a palavra costumeira para ver com os olhos (Gn 27, 1). Mas o verbo possui sentidos mais abrangentes e metafóricos (CULVER, 2001, p. 1383).
(^2) E viu וַּ֠יֵרָא ( wayyra’ ) mensageiro [de] YHWH a ele numa chama [de] fogo, do meio [da] sarça; e viu וַּיַ֗רְא ( wayyare’ ) e eis [que] a sarça queimava no fogo, e a sarça ela não era consumida.^3 E disse Moisés: “me afastarei agora e verei וְאֶרְאֶ֔ה ( we’ere’eh ) a visão ּמַרְאֶ֥ה ( mare^ ’eh ) a grande este, porque não queima a sarça”.^4 E viu וַּיַ֗רְא ( wayyare’ ) YHWH, pois se afastou para ver לרְאֹ֑ות ( lre’oth ). (Ex 3,2-4).
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A transliteração da frase, em caracteres latinos, soa dessa maneira: Wayy’omer Mosheh ‘asurah-na’ we’ere’eh ‘eth hammare’eh haggadol hazeh maddu´a lo’-yebh´ar hasseneh. As traduções variam bastante o sentido da frase e fazem opções her - menêuticas bem diversas ao interpretar a exclamação de Moisés. Alguns exemplos ilustram as versões de Bíblias editadas no Brasil. “Afastar-me-ei, agora, e verei a visão a grande”, Interlinear (FRAN- CISCO, 2013). “Vou chegar perto para ver esta grande visão” ( Bíblia Tradução Ecumênica , 1994). “Vou me dirigir até lá para ver essa grande visão” ( Bíblia Pastoral Nova , 2014). “Irei para lá e verei essa grande maravilha” ( Bíblia Sagrada Almeida , 1993). “Vou aproximar-me para admirar essa visão maravilhosa” ( Bíblia Sagrada CNBB , 2010). “Darei uma volta, e verei este fenômeno estranho” ( Bíblia de Jeru- salém , 2002; Bíblia do Peregrino , 2002). “Vou me aproximar para ver este espetáculo” ( Bíblia Católica do Jovem , 2012). “Vou me aproximar para contemplar esse extraordinário espetáculo” ( Bíblia Sagrada Ave Maria , 2014). “Vou chegar mais perto e ver essa coisa estranha” ( Bíblia Edição Pastoral , 1990). Esta última tradução vai nos interessar, pontualmente, neste estudo, com as justificativas que seguem.
As traduções mais próximas ao original hebraico mantêm “grande visão”, enquanto outras buscam vocabulário interpretativo como “fenômeno estranho” ou “espetáculo extraordinário”. A mais divergente e que, por isso mesmo, mais chama a atenção é a que traduz “grande visão” como “coisa estranha”. A contemplação de uma “coisa estranha” constitui um desafio e uma provocação. Um desafio porque instiga a pesquisar academicamente suas razões. A versão de uma “coisa estranha” serve, portanto, como elemento teórico instigador, e, ao mesmo tempo, como referencial de confronto
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com a realidade. A esse esforço interpretativo, chamado hermenêutica, dedicamo-nos agora, a fim de buscar a explicação dessa tradução. O ponto de partida é que o tradutor é o primeiro intérprete. Assim sendo, a tradução é porta de entrada, para um caminho ao qual se chegou. As possibilidades que a tradução abre – ou fecha – são pontos de vista que dão mais destaque ou tornam menos perceptíveis os fatos contados (TAMEZ, 2014, p. 25). Tamez (2014, p. 26) apresenta, na sequência, elementos significativos para contextualizar o processo interpretativo, ao afirmar que as traduções são
Como narrativas viventes em tantos seres marcados por histórias particulares, pes- soais e coletivas; com uma língua condicionada por seus corpos atravessados trans- versalmente por sua cultura, gênero, etnia, classe, localização histórico-contextual e ideológica; com uma apreensão do mundo ou marcos categoriais que diferem da língua e cultura que se propõe interpretar para traduzir. A identidade dos tradutores fica desvelada em seu produto, isto é a tradução.
Se, ao nos defrontarmos com a perícope, temos um “de trás” (o con- texto histórico que lhe deu origem) e um “na frente” (a realidade de seus leitores atuais), em relação aos tradutores, como narrativas vivas, também temos um detrás e um na frente (TAMEZ, 2014, p. 28). O tradutor, ao iniciar o diálogo com o texto-fonte, explorando seus sentidos, faz escolhas marcadas por seu lugar histórico. Neste caminho, Tamez oferece-nos uma base para, em sua originalida- de, entender a escolha feita pelo tradutor da Bíblia Edição Pastoral , quando afirma que “uma boa tradução é aquela que consegue que seus leitores se apropriem da mensagem” (2014, p. 30). E a mensagem aqui não seria que se está diante de algo surpreendente? Como dizer isso a pessoas simples? A língua materna do tradutor faz uma reapropriação do texto. Como essa narrativa deverá estar enquadrada nos parâmetros de uma cultura diferente da língua fonte, não poderá haver uma equivalência exata, algumas vezes nem sequer dinâmica (TAMEZ, 2014, p. 31). As provocações que se encontram neste binômio “chegar mais perto” e “coisa estranha” talvez construam mais possibilidades que empecilhos e, por isso, possam, dentro do estimado rigor crítico, ser levadas em consideração.
Por que igual ao texto-fonte despertará inúmeros sentidos no momento em que seus leitores, condicionados por sua cultura, se aproximem para interpretá-lo. Os sentidos do texto fechar-se-ão cada vez mais, à medida que derem sentido à vida de quem os lê, dependendo das circunstâncias (TAMEZ, 2014, p. 32).
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apresenta um elenco com termos que nos ajudam a pensar: “Tudo o que existe (cousa, ente, objeto, peça, ser, utensílio); Acontecimento: aconteci- mento, ação, ato, caso, circunstância, condição, empreendimento, empresa, episódio, estado, evento, fato, ocorrência, projeto, realidade, realização”. Por sua vez, o Dicionário Aurélio traz para a palavra “coisa” os seguintes significados: objeto ou ser inanimado; o que existe ou pode existir; negócio, fato; acontecimento; mistério. Nessa busca por nos aproximarmos da intencionalidade do tradutor, contextualizar suas escolhas e as colocar no horizonte do empenho de outros tradutores, vemos que todos narram algo que causa fascínio e admiração.
Num texto que celebra o número 100 da Revista Estudos Bíblicos, Júlio Zabatiero faz uma alusão à importância do ‘estranhamento’ no processo da exegese e da leitura popular da Bíblia. Esta abordagem pode sinalizar que a “coisa estranha” talvez possa abrir caminho para uma pesquisa mais “orto- doxa” do que é possível imaginar num primeiro momento. Segundo o autor:
Séculos de poeirenta exegese tiveram de ser limpados. Uma grande faxina se fez na casa da Palavra – por trás das palavras, uma flor sem defesa foi vislumbrada, a festa do povo foi reencontrada, portas emperradas e empenadas se abriram revelando aposentos convidativos, iluminados, cheios de vida, de uma vida que se perdera em meio às exigências acadêmicas, racionais, universitárias, clericais da ciência bíblica. Textos outrora esquecidos foram reencontrados, relidos, examinados desde quatro lados, seus conflitos revelados, os clamores antes silentes encontraram novamente ouvidos atentos, de parceiras e parceiros oprimidos, mas conscientizados, em novas saídas, pe- regrinações, êxodos do capital; cidades imponentes que impediam a visão se tornaram transparentes e a vida do campesinato mais uma vez se encontrou e os sons da utopia ressoaram em celebrações democráticas, ecumênicas, populares, militantes, reverentes em um grau até então desconhecido. Estranhas ideias, doutrinas, práticas se encontraram no texto outrora tão familiar das Escrituras. Estranhos que nos conquistaram e vieram a fazer parte de nossa família, fizeram entre nós seu lar (ZABATIERO, 2009, p. 21).
Na dinâmica de dar espaço a novos horizontes e novas questões, mas também de acolher o texto enquanto Palavra de Deus, sempre provocativa, o texto e a realidade mostram-se como “coisa estranha” que exigem rigor na exegese e abrem horizontes a novas possibilidades hermenêuticas. E ainda propõe:
Agora me parece necessário olharmos novamente para o texto em toda a sua estranhe- za, em sua peculiaridade, em sua distância de nós [...] a Bíblia toda é muito estranha
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[...] Para que o texto mantenha seu poder, sua beleza, seu encanto, seu charme, sua ousadia, é preciso que nos entreguemos à sua estranheza, à sua peculiaridade, à sua diferença, à sua outridade (ZABATIERO, 2009, p. 24).
Permanecemos, então, diante do desafio que é a aproximação do
olhar, este não está tão próximo da tradução da Bíblia Edição Pastoral “coisa estranha”. O termo “visão” fica muito mais harmonizado com o todo da perícope onde o “ver” aparece de forma insistente. Aqui estamos diante das escolhas que o tradutor, ao buscar a equivalência dinâmica, é desafiado a fazer (WEGNER, 1998, p. 28-32). Já que “traduzir é tentar estimular no novo leitor, na nova língua, a mesma reação ao texto que o autor original desejou estimular nos seus primeiros e imediatos leitores” (NIDA apud WEGNER, 1998, p. 30). Na tradução que Vogels faz da passagem Ex 3,1-6 para o seu livro, temos a interpretação mais aproximada da Bíblia Edição Pastoral já que escolhe dizer “Vou chegar mais perto e ver essa estranha visão (...)” (2003, p. 92). Permanece com o termo visão (que tem força no contexto da perícope), contudo, adota também a expressão estranha para adjetivar de que visão se trata. A mesma escolha é feita por Houtman que, em seu comentário sobre o livro do Êxodo, em língua inglesa, com a seguinte tradução a Ex 3,3: “So Moses thought, ‘I want to go there and see that strange sight (to find out) why the bush is not burned up” 3 (1993, p. 341). Luiz Alexandre Solano Rossi, na obra intitulada Nos Passos de Moi- sés (2013), utiliza para as citações a Bíblia Edição Pastoral , ou seja, a expressão “coisa estranha” (2013, p. 13). Na Bíblia de Jerusalém (2002) e na Bíblia do Peregrino (2002) encontramos a expressão “fenômeno estra- nho”. Na Bíblia Sagrada da Paulus, editada em Lisboa (2005), a escolha de tradução foi: “Vou aproximar-me mais para ver esta coisa estranha”. Na Biblia Edición Pastoral (1995) está: “Voy a dar una vuelta para mirar este fenómeno tan extraordinario”. 4 A Bíblia do Peregrino , ao comentar a narrativa, afirma que Moisés “é tomado de surpresa ante o fenômeno estranho. A surpresa provoca a curiosidade, a indagação temerária – não a reverência numinosa que se esperava” (2002, p. 110). A mesma tradução foi feita por Carlo Maria Martini, numa obra intitulada Vida de Moisés e a Vida de Jesus. Segundo ele, a tradução seria: “Então, disse Moisés:
(^3) “Então Moisés disse, eu quero ir lá e ver aquela estranha visão (descobrir) porque a sarça não está queimando”, tradução própria. (^4) “Vou dar uma volta para ver este fenômeno tão extraordinário”, tradução própria.
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nho para a expressão “coisa estranha”, apesar de o conjunto da perícope insistir em se conservar um termo que esteja mais próximo da expressão “visão”, próximo ao ato de ver, que marca este momento do relato da vo- cação de Moisés. Contudo, “coisa estranha” pode ser, de alguma maneira, mais popular (intencionalidade por trás da Bíblia Edição Pastoral ) para abordar uma grande visão, espetáculo ou maravilha, já que estes termos não ressaltam a dimensão incomum que Culver destaca. A apresentação da Bíblia Sagrada Edição Pastoral ressalta: “conservando a fidelidade aos textos originais, procuramos traduzi-los em linguagem corrente, evitando construções rebuscadas e palavras de uso menos comum” (1990, p. 5). A tentativa deste artigo foi exemplificar essa proposta numa expressão concreta.
As traduções da Bíblia nunca são irrelevantes. Ao escolher palavras e reforçar imagens, tradutores endossam, dificultam, possibilitam ou invisibi- lizam possibilidades hermenêuticas. Nosso artigo buscou apresentar como a Bíblia Edição Pastoral , obra marcada pelo foco em grupos populares e com tendência à interpretação bíblica libertadora, traduz a expressão
O artigo não teve a pretensão de esgotar o debate sobre as possibilida- des de tradução do termo, mas sim de dialogar em especial à comunidade acadêmica da área da teologia e ciências da religião e com aqueles que se dedicam à Leitura Popular da Bíblia sobre possibilidades hermenêuticas e pastorais presentem em traduções que se encontram nas mãos das pessoas das comunidade de fé.
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