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Desvendando as Raízes do Fracasso Escolar: Um Novo Paradigma, Notas de aula de Psicologia

Este documento discute o problema do fracasso escolar e as dificuldades de aprendizagem, desmistificando conceitos hegemônicos e apontando para soluções mais eficazes. O autor analisa casos de crianças rotuladas de fracassadas escolares e demonstra como elas podem apresentar excelentes desempenhos em outras áreas de vida com condições adequadas. O texto critica a prática de diagnósticos e encaminhamentos escolares, além de questionar as concepções teóricas subjacentes ao termo 'dificuldades de aprendizagem'.

O que você vai aprender

  • Quais são as principais causas do fracasso escolar?
  • Qual é a importância da educação organizada pelas instituições escolares no processo de desenvolvimento humano?
  • O que é a zona de desenvolvimento proximal e como ela influencia o desenvolvimento cognitivo?
  • Quais são as implicações negativas da patologização do fracasso escolar?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Neilson89
Neilson89 🇧🇷

4.4

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MICHELE YENARA AGOSTINHO
“DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM”: UMA ANÁLISE A PARTIR DA TEORIA
HISTÓRICO-CULTURAL
São Carlos
2021
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Baixe Desvendando as Raízes do Fracasso Escolar: Um Novo Paradigma e outras Notas de aula em PDF para Psicologia, somente na Docsity!

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MICHELE YENARA AGOSTINHO

“DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM”: UMA ANÁLISE A PARTIR DA TEORIA

HISTÓRICO-CULTURAL

São Carlos 2021

MICHELE YENARA AGOSTINHO

“DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM”: UMA ANÁLISE A PARTIR DA TEORIA

HISTÓRICO-CULTURAL

Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientação: Prof.ª Drª. Maria Aparecida Mello São Carlos 2021

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

Centro de Educação e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Educação Folha de Aprovação Defesa de Dissertação de Mestrado da candidata Michele Yenara Agostinho, realizada em 03/08/2021. Comissão Julgadora: Profa. Dra. Maria Aparecida Mello (UFSCar) Profa. Dra. Eveline Tonelotto Barbosa Pott (UNIP) Profa. Dra. Jarina Rodrigues Fernandes (UFSCar) O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. O Relatório de Defesa assinado pelos membros da Comissão Julgadora encontra-se arquivado junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação.

Dedico este trabalho às crianças e adultos que ousaram e ousam desafiar as “certezas” construídas à base de discursos excludentes.

EPÍGRAFE

Dani é uma criança que não sabe andar de bicicleta. Todas as outras crianças do seu bairro já andam de bicicleta; os da sua escola já andam de bicicleta; os da sua idade já andam de bicicleta. Foi chamado um psicólogo para que estude seu caso. Fez uma investigação, realizou alguns testes (coordenação motora, força, equilíbrio e muitos outros; falou com seus pais, com seus professores, com seus vizinhos e com seus colegas de classe) e chegou a uma conclusão: esta criança tem um problema, tem dificuldades para andar de bicicleta. Dani é disbiciclético. Agora podemos ficar tranquilos, pois já temos um diagnóstico. Agora temos a explicação: o garoto não anda de bicicleta porque é disbiciclético e é disbiciclético porque não anda de bicicleta. Um círculo vicioso tranquilizador. Pesquisando no dicionário, diríamos que estamos diante de uma tautologia, uma definição circular. (...) Pouco importa, porque o diagnóstico, a classificação, exime de responsabilidade aqueles que rodeiam Dani. Todo o peso passa para as costas da criança. Pouco podemos fazer. O garoto é disbiciclético! O problema é dele. A culpa é dele. Nasceu assim. O que podemos fazer? Pouco importa se na casa de Dani seus pais não tivessem tempo para compartilhar com ele, ensinando-o a andar de bicicleta. Porque para aprender a andar de bicicleta é necessário tempo e auxílio de outras pessoas. Pouco importa que não tenham colocado rodinhas auxiliares ao começar a andar de bicicleta. Porque é preciso ajuda e adaptações quando se está começando. Pouco importa que não haja, nas redondezas de sua casa, clubes esportivos com ciclistas com quem ele pudesse se relacionar, ou amigos ciclistas no bairro que o motivassem. Porque, para aprender a andar de bicicleta não pode faltar motivação e vontade de aprender. E pessoas que incentivem! Pouco importa, enfim, que o garoto não tivesse bicicleta porque seus pais não puderam comprá-la. Porque para aprender a andar de bicicleta é preciso uma bicicleta. (Felizmente, os pais de Dani, prevendo a possibilidade de seu filho ser disbiciclético, preferiram não comprar uma bicicleta até consultar um psicólogo). Emilio Ruiz Psicólogo da fundação Down Cantabria

RESUMO

Esta pesquisa, de natureza teórica, teve como objetivo explicitar e analisar as bases conceituais da Teoria Histórico-Cultural que permitam apresentar uma explicação materialista histórico-dialética para o que se disseminou no contexto educacional como “dificuldades de aprendizagem”, contrapondo as concepções hegemônicas calcadas por um viés biologizante e individualizante. Este estudo é fundamentado teórico-metodologicamente na Teoria Histórico-Cultural que compreende o ser humano como um ser histórico, social e cultural e cuja constituição psicológica se estabelece a partir da indissociabilidade da relação do indivíduo com sua realidade social. Na natureza das fontes de dados configurou-se como uma pesquisa bibliográfica, utilizando as “ Obras Escogidas ” de Vygotski como fonte prioritária, com destaque para os Tomos III e V. Os procedimentos metodológicos basearam-se na leitura de reconhecimento das bibliografias, localização das informações pertinentes ao tema da pesquisa, escolha de bibliografias mais próximas ao objeto de estudo, realização de leituras críticas, buscando informações utilizadas para o aprofundamento conceitual e realização de síntese integradora apresentando o produto do processo de investigação. Os resultados demonstraram que ao empreendermos uma análise genética sobre o problema das chamadas “dificuldades de aprendizagem”, a partir da sua reconstrução histórica, é possível evidenciar os nexos dinâmico causais que estão na origem deste fenômeno e, por fim, compreendê-lo em sua totalidade. Dentre as concepções que estão na essência deste fenômeno, temos a relação estabelecida entre os processos de ensino, de aprendizagem e de desenvolvimento que, na visão hegemônica, partem de premissas que, inadvertidamente, caem no determinismo biológico. A Teoria Histórico-Cultural, por sua vez, ao oferecer uma interpretação materialista histórico-dialética para tais processos, permite inverter a lógica de análise pela qual o problema das “dificuldades de aprendizagem” é encarado. Nos resultados destacamos quatro proposições basilares da Teoria Histórico-Cultural que nos permitem construir outra interpretação teórica para o fenômeno das “dificuldades de aprendizagem”: 1) A concepção do ser humano como um ser histórico-social; 2) A natureza social do desenvolvimento das funções psicológicas superiores; 3) A relação dialética entre aprendizagem e desenvolvimento; e 4) O método de análise dos fenômenos pela Teoria Histórico- Cultural. A partir destes pressupostos a Teoria Histórico-Cultural permite desmistificar a visão que culpabiliza os alunos e suas famílias pelas dificuldades escolares e, consequentemente, colabora com a proposição de práticas pedagógicas mais efetivas para a superação desta problemática, dentre as quais destacamos que: 1) O ensino deve ser planejado para abarcar a zona de desenvolvimento proximal dos estudantes no conteúdo a ser aprendido; 2) A avaliação da aprendizagem e do desenvolvimento são primordiais para o planejamento do processo educativo e 3) Os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural possibilitam a mudança de concepção docente do que seria a limitação do aluno para sua potência transformadora da aprendizagem. Por fim, consideramos que este estudo apresentou uma análise inicial sobre as possíveis relações entre a Teoria Histórico-Cultural e os problemas encontrados ao longo do processo de escolarização, dentre eles o que a literatura tem identificado sob a terminologia “dificuldades de aprendizagem”, e que mais estudos nesta temática se fazem necessários, a partir de abordagens teóricas comprometidas com a transformação das instituições escolares, da educação e da sociedade. Palavras-chave: Dificuldades de Aprendizagem; Fracasso Escolar; Teoria Histórico-Cultural.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas ACLD Association for Children with Learning Disabilities (Associação para Crianças com Dificuldades de Aprendizagem) AEE Atendimento Educacional Especializado ANA Avaliação Nacional de Alfabetização APA American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria) APA American Psychological Association (Associação Americana de Psicologia) BNCC Base Nacional Comum Curricular CID Classificação Internacional de Doenças CIM Centro de Inclusão Municipal de Monte Alto DA Dificuldades de Aprendizagem DAE Dificuldade de Aprendizagem Específica DCM Disfunção Cerebral Mínima DSM- 5 Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) – 5ª edição EUA Estados Unidos da América IDA International Dyslexia Association (Associação Internacional de Dislexia) IDEA Individuals with Disabilities Education Act (Lei de Educação de Indivíduos com Deficiências) IDEB Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IDUM Instituto de Defesa de Usuários de Medicamentos INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira ITPA Illinois Test of Psycholinguistic Abilities (Teste Illinois de Habilidades Psicolinguísticas) LDA Learning Disabilities Association of America ( Associação de Dificuldades de Aprendizagem da América) NACHC National Advisory Committee on Handicapped Children (Comitê Consultivo Nacional para Crianças com Deficiência) NEEVY Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Escola de Vigotsky

NJCLD National Joint Committee on Learning Disabilities (Comitê Conjunto Nacional de Dificuldades de Aprendizagem) MEC Ministério da Educação OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OMS Organização Mundial de Saúde PISA Programme for International Student Assessment (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) PL Public Law (Lei Pública) PNE Plano Nacional de Educação QI Quociente de Inteligência SAEB Sistema de Avaliação da Educação Básica SAEEB Serviço de Apoio Especializado à Educação Básica TDAH Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade THC Teoria Histórico-Cultural UBS Unidades Básicas de Saúde UFSCar Universidade Federal de São Carlos USOE United States Office of Education (Escritório de Educação dos Estados Unidos) USP Universidade de São Paulo ZPD Zona de desenvolvimento proximal

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................... 14

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 21

2 FRACASSO ESCOLAR E DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM: DESVENDANDO

A HISTÓRIA POR TRÁS DAS APARÊNCIAS ....................................................................... 41

2.1 A PRÉ-HISTÓRIA DO DISCURSO CULPABILIZADOR ................................................. 42

2.1.1 O papel da medicina no fomento ao reducionismo biológico ....................................... 43 2.1.2 O papel da psicologia na classificação dos sujeitos ...................................................... 50 2.1.2.1 O nascimento da psicologia científica ................................................................... 50 2.1.2.2 A psicometria e o estudo das diferenças individuais: nascem os testes de inteligência ......................................................................................................................... 54 2.2 FRACASSO ESCOLAR: A HISTÓRIA DE UM FENÔMENO CONTROVERSO ............................. 65 2.2.1 As diferentes explicações para o fracasso escolar ......................................................... 66 2.3 DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM: REVISANDO A HISTÓRIA DE UM CONCEITO INCERTO ...................................................................................................................................... 80 2.3.1 Breve histórico sobre o campo de estudos das “dificuldades de aprendizagem”.......... 82 2.3.2 O problema da definição das dificuldades de aprendizagem: uma questão ainda não superada .................................................................................................................................. 99 3 PRESSUPOSTOS DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL............................................. 108 3.1 A CONCEPÇÃO DE SER HUMANO COMO UM SER HISTÓRICO-SOCIAL ............. 109 3.2 NATUREZA E CONSTITUIÇÃO DAS FUNÇÕES PSICOLÓGICAS SUPERIORES .... 113 3.3 A RELAÇÃO ENTRE ENSINO, DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM ............ 120 4 METODOLOGIA ................................................................................................................... 126 4.1 PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS NA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL ................. 128 4.1.1 O método materialista histórico-dialético ................................................................... 130 4.1.2 Aproximações da proposta metodológica de Vigotsky com o método materialista histórico-dialético ................................................................................................................. 136 4.1.3 O método genético de Vigotsky .................................................................................. 139 4.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA ............................................. 144 5 RESULTADOS E ANÁLISE: A TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL E AS “DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM” .......................................................................... 151 5 .1 DISCUSSÕES TEÓRICO-CONCEITUAIS DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL QUE SUBSIDIAM A INVERSÃO DA LÓGICA DE ANÁLISE DAS “DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM” ................................................................................................................ 152

5.2 PROPOSTA DE ANÁLISE DAS “DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM” A PARTIR

DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL ................................................................................ 160

5.2.1 Aspectos teórico-conceituais da Teoria Histórico-Cultural que permitem analisar as “dificuldades de aprendizagem” a partir de outra perspectiva ............................................. 160 5.2.2 As explicações hegemônicas sobre as “dificuldades de aprendizagem” desmistificadas a partir da Teoria Histórico-Cultural .................................................................................... 166 5.3 IMPLICAÇÕES PARA AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS ............................................... 171 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 178 7 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 181

ganha evidência e, além de estagiar na área, minha monografia apresenta como tema as dificuldades encontradas em disciplinas de cálculo matemático no ensino superior. Cerca de um ano e meio após formada, em 2014, acabo sendo aprovada em um concurso público para psicólogo em Monte Alto (cidade do interior de São Paulo, próxima à minha cidade natal) e, para minha satisfação, acabei sendo designada para atuar na educação. Foi aí que eu ingressei no SAEEB, “Serviço de Apoio Educacional Especializado à Educação Básica”, um serviço criado pela prefeitura da cidade que tinha como objetivo atender às crianças com necessidades educacionais especiais das escolas da rede municipal de ensino. É a partir daqui que minha história com o tema das “dificuldades de aprendizagem” passa a tomar uma maior dimensão. A proposta deste serviço surgiu em 2006 com a fundação do Centro de Inclusão Municipal (CIM) de Monte Alto, o qual dispunha de um espaço físico e de uma equipe multidisciplinar, formada principalmente por terapeutas da área de saúde (psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais) e que tinha como objetivo prestar serviços multidisciplinares na área terapêutica, complementando os serviços educacionais da rede municipal de ensino. Dois anos mais tarde, em 2008, o CIM transformou-se em SAEEB, sendo oficializada a criação do serviço pela promulgação de uma lei municipal. Quando eu ingressei no serviço, ele funcionava, basicamente, como um local que as crianças que apresentavam necessidades educacionais especiais da rede eram encaminhadas para receber atendimento clínico de terapeutas. O contato com pais era praticamente inexistente e com as escolas era feito a cada semestre, mas apenas para fornecer feedbacks sobre os atendimentos para as instituições. Em 2015, por razões diversas, a Secretaria Municipal de Educação anunciou que o serviço seria totalmente reestruturado e passaria, então, a se configurar como um serviço de caráter itinerante, isto é, com os profissionais indo até às escolas. No entanto, longe desta ser uma proposta inovadora, a princípio ela foi pensada para se suprir a falta de uma sede para o serviço (já que o local antigo, no interior de uma escola, foi desocupado para ser utilizado como salas de aula) e, assim, pensou-se que nós poderíamos realizar atendimentos clínicos no interior das escolas. Neste momento, eu, enquanto aspirante à psicóloga educacional, vi o quanto a realidade concreta estava distante do nosso ideal de atuação profissional e como o esclarecimento sobre o papel do psicólogo na educação se fazia tão necessário.

Felizmente, no nosso processo de reestruturação tivemos alguns aliados e conseguimos provocar mudanças na configuração do serviço e torná-lo mais próximo do que acreditamos ser essencial a um serviço de apoio à educação inclusiva. Para mais detalhes dessa história, recomendo a leitura de um capítulo de livro escrito por mim e minha coordenadora, em que contamos um pouco sobre a experiência de reestruturação do SAEEB (AGOSTINHO; VENTEU, 20 20). Com a reestruturação do SAEEB, a Secretaria da Educação passou a ser nossa sede e acabamos ficando mais próximo das escolas e dos educadores, já que somos constantemente chamados para avaliar e analisar casos de crianças com supostas dificuldades de aprendizagem ou problemas de comportamento. A partir daí passamos a ter acesso aos discursos mais comuns do meio educacional em primeira mão, dentre os quais está a incessante busca por diagnósticos que justifiquem as dificuldades destes alunos. Falas costumeiramente citadas como exemplos em artigos e dissertações que entrevistam professores sobre o problema das “dificuldades de aprendizagem” eram reproduzidas para nós cotidianamente: “essa criança deve ter algum tipo de atraso”, “ele não consegue gravar as letras”, “eu não sei o que ele tem, mas normal não deve ser”, “deve ser algo genético”, “esse aí foi criado no crack”, “essa criança não tem laudo ainda”, dentre tantas outras falas preconceituosas travestidas de preocupação. Assim, a partir da minha prática profissional e das minhas inquietações enquanto uma psicóloga tentando “remar contra a maré” dos discursos individualizantes e reducionistas, me ocorreu de ingressar em um curso de mestrado que me ajudasse a me dedicar a estudar tais questões, na busca por respostas mais satisfatórias a esta realidade. Encontrar uma linha de pesquisa com docentes mais próximos da Teoria Histórico-Cultural (THC) foi um diferencial, visto que eu já tinha interesse em conhecer mais sobre esta abordagem teórica que, a meu ver, poderia me fornecer um embasamento teórico mais condizente com minha postura profissional e algumas ideias que eu já esboçava, por exemplo, como a necessidade de se incluir as bases estruturais da sociedade nos estudos da psicologia e compreender mais a fundo de que forma as relações sociais interferem na nossa constituição enquanto indivíduos. Disso decorrem duas informações que considero essenciais para se compreender de qual lugar me posiciono enquanto pesquisadora. A primeira é que eu não me considero uma acadêmica. Apesar de sempre ter gostado de estudar e, de certa forma, nunca ter me distanciado totalmente da universidade, o que me motivou a fazer mestrado foi a minha prática profissional, a

uma teoria epistemológica que o fundamenta, mesmo que nem sempre estes alicerces estejam claros, às nossas vistas. Mas temos ainda um agravante a esta realidade, pois vivemos a “era do conhecimento”, em que nunca tivemos acesso a tantas informações de modo tão fácil. Todavia, com tanta informação e com tanto conhecimento acumulado pela humanidade surge um novo imperativo que é: como dar conta de processar tanta informação? Vemos surgir, então, a busca das pessoas, potencializada pela rapidez da internet, por um “conhecimento fast-food”, isto é, a busca por um conhecimento de rápido e fácil acesso, “mastigado”, que sintetize o mais importante sobre determinado assunto. Não que sínteses não sejam importantes, lógico que são, no entanto, a depender de como esta condensação é realizada temos como consequência a disseminação de falsas ideias ou em um nível de superficialidade que provoca o esvaziamento conceitual. A lógica produtivista da sociedade capitalista – que nos comprime o tempo e nos incute uma ansiedade por respostas prontas e soluções mágicas – faz com que deixemos de lado uma premissa fundamental na busca por qualquer conhecimento: o ato de questionar. E questionar o conhecimento envolve questionar a história desse conhecimento – quem o produziu? Em que contexto? Sob quais condições? Com quais propósitos? – e questionar as premissas sob as quais aquele conhecimento foi produzido. Longe de ser apenas um problema do senso comum, esta lógica produtivista do “conhecimento fast-food” também pode ser observada na academia. Programas de pesquisa condicionam a concessão de financiamento à produtividade científica, quase sempre baseada em critérios quantitativos em detrimento de critérios qualitativos; pesquisas passam a ser encaradas como etapas burocráticas na busca por uma titulação; a máquina institucional universitária para continuar girando precisa que os pós-graduandos concluam suas dissertações e teses num determinado tempo previsto, não importa se estamos passando por uma pandemia ou se você faça isso enquanto trabalha, já que ser bolsista e se dedicar integralmente à pesquisa é um “privilégio” para poucos, ainda mais em um país que não valoriza a ciência e não reconhece o trabalho acadêmico dos pós-graduandos como um trabalho, no sentido stricto da palavra. Como fazer caber toda complexidade e cuidado que o ato de pesquisar exige em um tempo pré-determinado diante de condições tão adversas? A resposta é que não fazemos, mas tentamos.

Rita Von Hunty 2 , no vídeo “Delivery de conhecimento” (TEMPERO DRAG, 20 20 ) aborda esta questão e diz que na lógica mercantil da sociedade capitalista o conhecimento também passou a ser um produto e que ao seguir a lógica do imediatismo o conhecimento se torna simplista. Não é à toa que vemos tantos artigos publicados fazendo uso massivo de ecletismos teóricos sem se atentar para o fato de que muitas vezes misturam teorias que partem de bases epistemológicas opostas. Já dizia a sabedoria popular: “a pressa é inimiga da perfeição”. Esta realidade é ainda mais proeminente quando estamos diante de áreas multidisciplinares do conhecimento, tal como é o caso da educação, que é tomada como campo de aplicação (e disputa) de tantas ciências. E, conforme aponta Rita no vídeo, conhecimento não é produto, mas é processo e um processo que demanda tempo e aprofundamento. Como é humanamente impossível desenvolver um pensamento teórico sobre todos os assuntos com a devida qualidade, nós precisamos de um trabalho coletivo em prol do avanço na construção do conhecimento científico e na sua disseminação. E é, justamente, na contradição deste lugar entre “promover sínteses” e “aprofundar o conhecimento” que este trabalho se situa. Por mais que a literatura diga que as “dificuldades de aprendizagem” são multideterminadas, a lista das causas prováveis, quase sempre, iniciará pelos itens que centralizam o problema nos indivíduos (causas orgânicas, problemas psicológicos, contexto familiar inadequado, atraso no desenvolvimento, etc.) e, entre os últimos itens estão as variáveis intraescolares. Todavia a ênfase nas primeiras supostas causas é tanta que os fatores intraescolares passam quase que despercebidos, como se fossem uma mera nota de rodapé, sem importância, citados por mera formalidade teórica, mas que na prática nunca são, de fato, levados em consideração. Incomodada com os discursos culpabilizadores começo, então, a ler mais sobre o tema das “dificuldades de aprendizagem” e percebo o quanto ele é abstrato, tratado conceitualmente como um consenso científico, sendo ao mesmo tempo extremamente controverso. A partir desta percepção vejo a necessidade de se escancarar essa divergência que, a meu ver, estava sendo (^2) Rita Von Hunty é o nome da persona drag queen de Guilherme Terreri, que é ator, professor e youtuber, formado em artes cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e letras pela Universidade de São Paulo. Guilherme aproveita sua persona para promover em seu canal no YouTube – “Tempero Drag”, que conta com mais de 8 50 mil inscritos – discussões sobre temas contemporâneos (fazendo uso de um vasto referencial da filosofia, sociologia e política), visando tornar o conhecimento científico mais acessível e criar um espaço para o desenvolvimento do pensamento crítico na internet.