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Guias e Dicas
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Lima Barreto: Clara dos Anjos - Denúncia de Desigualdades Sociais e Racias no Brasil, Provas de Direito

Na obra 'clara dos anjos', lima barreto denuncia as disparidades sociais e raciais existentes no brasil no início do século xx, combate preconceitos raciais e retrata as figuras femininas e mulatas em seu universo ficcional. A obra aborda a história de clara dos anjos, uma jovem mulata pobre, e os estigmas da figura feminina no início do século xx. Lima barreto retrata a sociedade brasileira de maneira incisiva, mostrando as hipocrisias veladas e os valores morais adotados naquela época.

O que você vai aprender

  • Como Lima Barreto retrata as figuras femininas e mulatas em sua obra?
  • Qual é a importância de 'Clara dos Anjos' na literatura brasileira?
  • Como Lima Barreto denuncia as disparidades sociais e raciais no Brasil na obra 'Clara dos Anjos'?
  • Quais temas sociais e raciais aborda Lima Barreto na obra 'Clara dos Anjos'?
  • Quais personagens destacam-se em 'Clara dos Anjos' e como são retratados?

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

usuário desconhecido
usuário desconhecido 🇧🇷

4.5

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Dialogando com Clara dos Anjos:
Uma Análise Transdisciplinar da Ficção de Lima Barreto
VERDAN, Tauã Lima1
COELHO, Maria Rita Vieira2
Resumo:
O discurso de Lima Barreto foi, de modo robusto, delineado por um traço
pautado na denúncia contra as disparidade sociais e os preconceitos raciais
existentes em uma sociedade extremamente restritiva, cujos valores adotados ainda
suplantavam as camadas mais carentes, constituída em sua maioria por negros,
mulatos e brancos pobres. Pode-se frisar que Lima Barreto, de maneira rotunda, f ez
sua opção pelos pobres, oprimidos, negros, mulatos e afro-descendentes,
denunciando a sociedade, a corrupção, o literato empoado da belle époque e
aproveitadores de mulatas ingênuas. Infere-se na obra “Clara dos Anjos” adoção,
por parte de seu narrador, da materialização do romance pautado na denúncia, no
qual o autor aborda, de maneira enfática, as disparidades sociais existente no Brasil,
assim como combate aos preconceito raciais que vigiam. Ao lado disso, a
ambientação no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro traz à tona a premissa que
tais áreas eram os lugares que aninhavam uma classe social carente que,
diariamente, era devorada pelas demais. Trata-se de um refúgio aos desprovidos de
ambição, vencidos pela jornada, suplantados pelas dificuldades, frutos de uma
sociedade sufocante para os despidos de dinheiro, posse e influência. O subúrbio
segundo o próprio Lima Barreto é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o
emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam ou
nunca tiveram poder econômico vão se aninhar lá. É para este cenário que se dirige
o olhar deste texto, nascido e desenvolvido no início dos trabalhos desenvolvidos
nos encontros da linha de pesquisa “Direito e Literatura” do Grupo de Estudo e
Pesquisa “A Constitucionalização dos Direitos” do Curso de Direito cadastrada no
Centro Universitário São Camilo Espírito Santo, e sob a orientação dos
Professores Mestres Flaviano Quaglioz e Maria Rita Vieira Coelho.
1 Bacharel em Direito. Integrante do Grupo de Pesquisa e Estudos “A Constitucionalização dos
Direitos”, linha de pesquisa “Direito e Literatura, do Centro Universitário São Camilo-ES.
2 Professora Orientadora. Coordenadora da Linha de Pesquisa “Direito e Literatura” do Grupo de
Pesquisa e Estudos “A Constitucionalização dos Direitos” do Centro Universitário São Camilo-ES.
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Dialogando com Clara dos Anjos:

Uma Análise Transdisciplinar da Ficção de Lima Barreto

VERDAN, Tauã Lima^1 COELHO, Maria Rita Vieira^2 Resumo: O discurso de Lima Barreto foi, de modo robusto, delineado por um traço pautado na denúncia contra as disparidade sociais e os preconceitos raciais existentes em uma sociedade extremamente restritiva, cujos valores adotados ainda suplantavam as camadas mais carentes, constituída em sua maioria por negros, mulatos e brancos pobres. Pode-se frisar que Lima Barreto, de maneira rotunda, fez sua opção pelos pobres, oprimidos, negros, mulatos e afro-descendentes, denunciando a sociedade, a corrupção, o literato empoado da belle époque e aproveitadores de mulatas ingênuas. Infere-se na obra “Clara dos Anjos” adoção, por parte de seu narrador, da materialização do romance pautado na denúncia, no qual o autor aborda, de maneira enfática, as disparidades sociais existente no Brasil, assim como combate aos preconceito raciais que vigiam. Ao lado disso, a ambientação no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro traz à tona a premissa que tais áreas eram os lugares que aninhavam uma classe social carente que, diariamente, era devorada pelas demais. Trata-se de um refúgio aos desprovidos de ambição, vencidos pela jornada, suplantados pelas dificuldades, frutos de uma sociedade sufocante para os despidos de dinheiro, posse e influência. O subúrbio segundo o próprio Lima Barreto é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam ou nunca tiveram poder econômico vão se aninhar lá. É para este cenário que se dirige o olhar deste texto, nascido e desenvolvido no início dos trabalhos desenvolvidos nos encontros da linha de pesquisa “Direito e Literatura” do Grupo de Estudo e Pesquisa “A Constitucionalização dos Direitos” do Curso de Direito cadastrada no Centro Universitário São Camilo – Espírito Santo, e sob a orientação dos Professores Mestres Flaviano Quaglioz e Maria Rita Vieira Coelho. 1 Bacharel em Direito. Integrante do Grupo de Pesquisa e Estudos “A Constitucionalização dos Direitos”, linha de pesquisa “Direito e Literatura, do Centro Universitário São Camilo-ES. 2 Professora Orientadora. Coordenadora da Linha de Pesquisa “Direito e Literatura” do Grupo de Pesquisa e Estudos “A Constitucionalização dos Direitos” do Centro Universitário São Camilo-ES.

Palavras-chaves: Literatura. Direito. Hermenêutica. Sumário: 1 Clara dos Anjos: Localizando a Obra em seu contexto; 2 Clara dos Anjos e os estigmas da Figura Feminina no início do Século XX: Mulata, Mulher e Pobre; 3 Cassi Jones: Rediscutindo o Conceito de “Mulher Honesta” à luz do Ordenamento de 1.890; 4 D. Salustiana e Inês: Os arquétipos preconceituosos da Sociedade Brasileira nos séculos XIX e XX; 5 D. Engrácia: O Falseamento dos Valores Familiares Patriarcais no Ambiente Suburbano; 6 Comentário Final à Clara dos Anjos; 7 Referências

1 Clara dos Anjos: A Ambiência da História

Em uma primeira plana, cuida não esquecer de que Lima Barreto foi um escritor, mulato, de origem pobre, alcoólatra, dado a carraspanas, e entregue às atmosferas boêmias do Rio de Janeiro, do começo do século XX, e, maiormente, um amante da Literatura. Seu discurso foi, de modo robusto, delineado por um traço pautado na denúncia contra as disparidade sociais e os preconceitos raciais existentes em uma sociedade hipócrita, cujos valores adotados ainda suplantavam as camadas mais carente, constituída em sua maioria por negros, mulatos e brancos pobres. “ O escritor foi um dos poucos em nossa literatura que combateram o preconceito racial e a discriminação social do negro e do mulato ”^3. Ao lado disso, quadra anotar que, em razão de sua origem, assim como em decorrência da utilização de uma linguagem simples, comumente coloquial, sua obra foi alvo de muitos preconceitos. Tal fato se dava, gize-se, em razão da obra de Lima Barreto ter florescido em um período marcado pelos pomposos versos parnasianos, pautados em uma linguagem culta; a preocupação centrava-se na forma como as obras eram escritas, não com o conteúdo que apresentavam para o leitor. Pode-se frisar que Lima Barreto “ fez sua opção pelos pobres, oprimidos, negros, mulatos e afro-descendentes, denunciando a sociedade hipócrita, a corrupção, o literato empoado da belle époque e aproveitadores de mulatas ingênuas ”^4. Há que se assinalar que a adoção de uma postura combativa, avessa aos 3 CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Atual, 2000, p. 325. 4 SOUZA, Wagner de. Uma leitura da sociedade em Clara dos Anjos In: VIII Seminário Nacional de Literatura, História e Memória , 2008, p 01-14. Disponível em: http://www.literaturahistoriaememoria.com.br. Acesso em: 14 abr. 2012, p. 02.

e influência. O subúrbio segundo o próprio Lima Barreto é “ o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam [ou nunca tiveram poder econômico] vão se aninhar lá ”^7.

2 Clara dos Anjos e os estigmas da Figura Feminina no início do Século

XX: Mulata, Mulher e Pobre

Na obra em exame, Lima Barreto retrata a história da jovem mulata, Clara dos Anjos, proveniente de uma família simples do subúrbio carioca, filha de um carteiro e de uma dona de casa, Joaquim dos Anjos e Engrácia dos Anjos, sem grandes ambições na vida, a não ser contrair um matrimônio. Ao contrário do que a Literatura até então descrevia e narrava, consagrando em suas páginas mulatas sinuosas e sedutoras, com corpos que convidavam os homens ao prazer, Lima Barreto, ao estruturar a denúncia, coloca à mostra a realidade de uma sociedade preconceituosa, ranços do período imperial em que havia uma nítida distinção entre as camadas mais abastadas e as mais carentes, assim como a situação de inferioridade do negro e do mulato em relação ao branco. No caso da mulata, a redução de seu ser à corporalidade e à sexualidade obedece à economia que se herda do sistema escravista que, segundo historiadores e sociólogos, foi um contexto em que o exercício da sexualidade livre era tolerado, senão incentivado, por vários aspectos^8. A peculiaridade a ser observada está nos contrastes entre o título da obra e a personagem homônima, posto que Clara, na realidade, não é clara, mas sim uma mulata; ao lado disso, o nome dos Anjos que transparece a concepção de pureza, de inocência também será colocado em contradição, quando é seduzida por Cassi Jones. “ A contradição do nome também serve para reafirmar a crítica à fatalidade sócio-racial na obra. Dessa forma, o nome Clara dos Anjos e as referências evocadas assumem o papel de polo contraditório da denúncia ”^9. Trata-se de uma ironia estruturada, com o escopo de despertar a reflexão no leitor. A personagem central da obra se apresenta como uma jovem pálida, 7 BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Clara dos Anjos. São Paulo: Saraiva, 2002., p. 74. 8 BORGES, Luciana. Personagens femininas e mulatas no universo ficcional de Lima Barreto In: II Simpósio Nacional de Letras e Linguística , p. 561-580. Disponível em: <www2.catalao.ufg.br>. Acesso em: 14 abr. 2012, p. 569. 9 FURTADO, Fabiana Câmara. Perfis da Belle Époque brasileira. Uma análise das figuras femininas de Lima Barreto. 132 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2003. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br. Acesso em: 14 abr. 2012, p. 82.

inexpressiva e que reunia os estigmas próprios do início do século XX, notadamente o de ser uma pobre mulata. A falta de expressão de Clara dos Anjos retrata, cabalmente, a ausência de voz dos excluídos, marginalizados e da população da classe menos abastada, que se aninhava nos subúrbios, sufocados e achatados pela exploração da elite. Neste diapasão, cuida trazer à tona a descrição ofertada pelo autor acerca de sua personagem, havendo que se destacar a forma expressiva com que estrutura críticas à formação de Clara dos Anjos: Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor. Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa condição e o nosso sexo. Cada um de nós, por mais humilde que seja, tem que meditar, durante a sua vida, sobre o angustioso mistério da Morte, para poder responder cabalmente, se o tivermos que o fazer, sobre o emprego que demos a nossa existência. Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mas aproximada de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação. A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitir meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação que recebera, tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida^10. Em um exame acurado, infere-se que Lima Barreto, ao traçar os aspectos característicos de sua personagem, aborda a educação e a proteção exacerbada da família que atalha a inteligência, cerra a visão para a vida e os perigos existentes. Além disso, o emprego dos adjetivos “amorfa” e “pastosa” são comumente utilizados para descrever mulheres no início do século XX, transparecendo a necessidade de um homem, com mãos fortes, para moldá-las, adequá-las à vida. Sem dúvidas, Clara dos Anjos reúne em sua estrutura o arquétipo da mulher, sob o ângulo de uma sociedade machista, agravado, de maneira rotunda, por ser mulata e pobre, desprovida de grande inteligência. “ Clara não possui uma ideia transparente sobre a sua situação dentro da sociedade, em parte pela educação que recebera de seus pais ”^11. 10 BARRETO, 2002., p. 90. 11 GILENO, Carlos Henrique. Clara dos Anjos: Uma Reflexão sobre o status da mulata no Brasil do início do século XX In: Ciência & Trópico , Recife, nº. 01, v. 29, jan. - jul. 2001, p. 124-.

moradora do subúrbio pobre carioca, de ruas de terra batida e a moradora de uma rua calçada, localizada em ponto tido como elegante num mesmo subúrbio; a mulher apática, deflorada e sem quaisquer expectativas e a mulher imponente, enérgica, símbolo dos ranços imperiais. Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que tinha presenciado e no vexame que sofrera. Agora é que tinha a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos nos conceitos de todos. Bem fazia adivinhar isso, seu padrinho! Coitado... A educação que recebera, de mimos e vigilância, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tido todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente... O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres... Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que ela o admitiam...^13 Clara dos Anjos alberga em seu âmago, enquanto romance pautado na denúncia, os aspectos mais rotundos de uma sociedade preconceituosa, na qual os corpos de negras e mulatas eram condicionados à situação de objetos, à disposição para fruição dos homens, principalmente os brancos das camadas mais abastadas. Trata-se se um narração seca e expressiva que põe em xeque valores morais adotados pela sociedade do início do século XX.

3 Cassi Jones: Rediscutindo o Conceito de “Mulher Honesta” à luz do

Ordenamento de 1.

Ao se analisar a obra Clara dos Anjos, constata-se que Lima Barreto, de maneira contundente e incisiva, traz à tona as hipocrisias veladas existentes na sociedade brasileira. Os preconceitos raciais e sociais que vigoravam, assim como os valores, tidos na atualidade como arcaicos, adotados no início do século XX, período que a obra foi concebida, são pilares estruturantes do romance. Neste passo, conquanto o folhetim alicerce o seu título na mulata inocente que foi seduzida e abandonada por Cassi Jones, o pretenso namorado branco, infere-se que a este o 13 BARRETO, 2002, p. 132-133.

escritor concede substancial destaque, permitindo-se que, por vezes, indague-se sobre a personagem central, que poderia não ser Clara dos Anjos, mas sim o seu algoz. Com efeito, utilizando-se de uma descrição direta e consistente, Lima Barreto apresenta, ao leitor, Cassi Jones como: […] um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido consumado “modinhoso”, além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas da virtuose do violão, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo “Brandão”, das margens da Central, que lhe talhava roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio – a famosa “pastinha”. Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz damas com seu irresistível violão^14. Pelo cotejo da descrição de Cassi Jones, salta aos olhos que, ao elaborar a figura, busca o autor, com uma linguagem pautada no vocabulário coloquial, sem as pompas e finezas dos habitantes que residiam nos bairros tradicionalmente elitistas, traz à baila uma situação recorrente nos subúrbios dos grandes centros. A personagem em comento se reveste de um sucedâneo carácter de cunho pejorativo, sendo, inclusive, considerado como um contumaz deflorador de donzelas honestas e sedutor de mulheres casadas. Ao lado disso, cuida trazer à colação, com efeito, que “ é, a um tempo, um herdeiro do sinhozinho perverso e poderoso, que dispõe da vida e dos corpos dos escravos à sua disposição e igualmente o sujeito que mobiliza todos os recursos e energias para os fins de acumular capital simbólico”^15. Nas páginas da obra, Lima Barreto resgata e coloca à mostra o senhorzinho de escravos, desta vez como um homem da classe burguesa, que, mesmo após o advento da libertação dos negros, continua a suplantá-los, banqueteia-se dos corpos das mulatas e, em decorrência de influência e poder, vê-se livrado das reprimendas contidas no Ordenamento que então vigorava, qual seja: o Código Penal de 1890. Ora, conquanto não mais subsistisse uma sociedade imperial, vigoravam, de maneira plena e sedimentada, os valores nela constantes, notadamente a colocação do negro como inferior ao homem branco dotado de posses, influência e dinheiro, 14 BARRETO, 2002, p. 23. 15 SOUZA, 2008, p. 09.

dispunha: “ Art. 267. Deflorar mulher de menor idade, empregando seducção, engano ou fraude: Pena – de prisão cellular por um a quatro annos ”^18. Há que se assinalar que a sociedade do século XIX e até meados do século XX buscava dispensar proteção ao mínimo ético que se fundava pela experiência social em torno dos fatos sexuais, salvaguardava-se a moral pública sexual. No mais, pode-se realçar que o bem jurídico resguardado pelo dispositivo em tela busca salvaguardar a “ virgindade da mulher aliada à inexperiência, que lhe é própria em nosso meio, como também a confiança que, por sua condição bio-sociológica, vem quase sempre depositar no homem, em quem espera encontrar apoio e proteção ”^19. Neste passo, impõe salientar que a locução mulher honesta , implícita na rubrica em que o crime se encontrava alocada, albergava, em seu bojo, a concepção vigorante para a sociedade, na qual a figura feminina era despida de iniciativa ou conhecimento. Neste sentido: Na mulher solteira, constituía-se uma verdadeira transgressão social da perda da virgindade, pois, enquanto símbolo de pureza e virtude, a virgindade deveria ser guardada pela mulher e zelada pela família. O dano físico provocado pela perda do hímen revelava plenamente o seu significado no plano moral, marcando a vítima sob o estigma de desonra^20 Ao lado disso, a expressão mulher honesta deve ser interpretada à luz do contexto sócio-cultural em que foi acinzelada, logo, enquanto sujeito passivo da conduta em testilha, pode-se gizar que tal locução alude à mulher que detém certa dignidade e decência, conservando os valores elementares do pudor. “A expressão “mulher honesta” restringia-se às mulheres virgens ou casadas: qualquer mulher fora desses grupos, portanto, não poderia ser vítima”^21. Para que uma mulher fosse considerada desonesta , era preciso que ser dedicada à vida sexual por "mera depravação ou interesse" , a exemplo das prostitutas ou mulheres públicas, consideradas como dissolutas e devassas, não estando amparadas, com a mesma 18 BRASIL. Decreto nº. 847, de 11 de Outubro de 1890. Promulga o Código Penal. Disponível em: http://www6.senado.gov.br. Acesso em: 14 abr. 2012. 19 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. 08. Rio de Janeiro: Editora Revista Forense, 1947, p. 150. 20 CARELI, Sandra da Silva. Texto e Contexto: virtude e comportamento sexual adequado ás mulheres na visão da imprensa porto-alegrense da segunda metade do século XIX. 303 f. Dissertado (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1997, p. 142. 21 SANKIEVICZ, Alexandre. Desafios ao Princípio da Legalidade ante a Imprecisão da Linguagem Jurídica In: Teorias e Estudos Científicos , nº. 23, set. - out. 2008, p. 166-189. Disponível em: http://www.direitopublico.idp.edu.br. Acesso em: 14 abr. 2012, p. 176.

ênfase, pelo Diploma Penal de 1.890, já que suas condutas atentavam contra os valores morais que orientavam a sociedade brasileira da época, minando-os e enfraquecendo-os. No mais, cite-se, por oportuno, que: A fundamentação do conceito de honestidade da mulher estava intimamente ligada a um padrão de procedimento amoroso e de comportamento, no que diz respeito às relações íntimas. De modo geral, entendia-se como honesta a mulher que tivesse pouca ou nenhuma experiência na relação de par antes do casamento ou que, se desfeito este, permanecesse só, sem ter eventuais ligações, ou até uma outra experiência amorosa^22. Nessa senda, prima realçar que a expressão mulher honesta é empregada como um juízo de valor que, de acordo com os ditames morais da época da redação do Código, restringia a proteção a determinadas mulheres em relação aos crimes de estupro, sedução e rapto. Destarte, tanto as prostitutas, quanto as mulheres consideradas promíscuas não eram abarcadas pela tutela do Direito daquele século, dando-se pouca relevância ao coito fraudulento com tais pessoas^23. Repreendia-se, com efeito, o comportamento promíscuo, ofensivo à sociedade em que o Diploma vigia, combatendo, por conseguinte, sua disseminação e proliferação, eis que poderia contaminar os valores, sobretudo os de índole moral e religiosa, salvaguardados pelo Ordenamento Jurídico. A proteção à mulher virgem e à mulher honesta, expressamente burilada no Ordenamento Pátrio, estavam alicerçadas na imperiosidade de dispensar às mulheres de famílias distintas e importantes tratamento legislativo. “ O legislador da época não conseguia ver a possibilidade de uma mulher ser possuidora de iniciativa e ser mais astuta do que um homem ”^24. Deste modo, o fato de estar uma mulher a ceder aos subterfúgios empregados pelo sedutor para lograr êxito em seu intento, atribuía-se ao homem a responsabilidade, já que subsistia a visão de ingenuidade em relação à vítima. Repita-se, que o contexto de tal conduta é uma sociedade machista, na qual as mulheres estavam condicionadas a um segundo patamar, de inferioridade e desprovidas de inteligência. 22 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº. 117, de 2003. Modifica os artigos 216 e 231, do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 — Código Penal, para suprimir o termo “mulher honesta”. Parecer de 03 de Junho de 2003. Relator: Darci Coelho. Disponível em: http://www.camara.gov.br. Acesso em: 14 abr. 2012, p. 02. 23 Neste sentido: MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: volume 2. São Paulo: Editora Atlas, 1998. p. 416. 24 SCHIEFFELBEIN, Flamarion Santos. Crimes contra a Liberdade Sexual e a Lei Nº. 11.106/. Disponível em: http://www.unidavi.edu.br. Acesso em : 14 abr. 2012, p. 05.

apenas as donzelas honestas possuiriam. Com efeito, a mulher inexperiente era aquela que se mostrava incapaz de formular um juízo ético sobre o ato sexual e as consequências oriundas de sua realização. Vigia uma ignorância crassa acerca do tema sexo na sociedade do início do século XX, maiormente para as moças. É preciso lembrar, porém, que a sedução era considerada como uma medida dotada de grande perversidade, porquanto o agente delituoso se utilizava da inexperiência da vítima para deflorá-la. Caso o pai ou o juiz não autorizasse o casamento com o sedutor, este poderia ser condenado à pena de um a quatro anos de prisão. Quanto à deflorada, esta teria de enfrentar a desonra e dificuldades futuras para contrair matrimônio. Provavelmente, em muitos outros casos, a temeridade em ter uma filha desonrada e deflorada, culminava na concessão do matrimônio entre o sedutor e sua vítima. Nesse tocante, o Estatuto de 1.890, refletindo a temeridade quanto à desonra que a vítima seria sujeitada, bem como a situação de vergonha que a família seria submetida, impunha que, em contraindo o casamento, ao sujeito passivo não seria aplicada a pena, conforme se extrai do artigo 276: Art. 276. Nos casos de defloramento, como nos de estupro de mulher honesta, a sentença que condemnar o criminoso o obrigará a dotar a offendida. Paragrapho unico. Não haverá logar imposição de pena si seguir-se o casamento a aprazimento do representante legal da offendida, ou do juiz dos orphãos, nos casos em que lhe compete dar ou supprir o consentimento, ou a aprazimento da offendida, si for maior^27. Em exame aos dispositivos apresentados, conjugando tal análise com o cenário ofertado por Lima Barreto, em “Clara dos Anjos”, verifica-se que a evolução da sociedade foi elemento preponderante para que o Ordenamento Jurídico caminhasse, de maneira a abarcar as necessidades e os valores apresentados pela coletividade. Ao lado disso, a realidade social é o verdadeiro movimento que contribui para a contínua e progressiva validação dos textos, modificando-os, quando necessário, com o escopo primevo de concatená-lo com ao cena histórica e cultural de específico grupamento de indivíduos. Como ensinam as lições de Direito, a sua interpretação não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à 27 BRASIL. Decreto nº. 847, de 11 de Outubro de 1890. Promulga o Código Penal. Disponível em: http://www6.senado.gov.br. Acesso em: 14 abr. 2012.

realidade e seus conflitos. “ O direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza ”^28. Conquanto o crime disposto no artigo 267 do Código Penal de 1.890 se revele como uma conduta arraigada de valores há muito, em certa medida, superados pela sociedade atual, há que se salientar que a sua compreensão revela-se mister, notadamente para os Operadores do Direito, já que traz à baila um arquétipo intrínseco à Ciência Jurídica, qual seja: a constante evolução dos ordenamento pátrio, em razão da interdependência mantida com a sociedade.

4 D. Salustiana e Inês: Os arquétipos preconceituosos da Sociedade

Brasileira nos séculos XIX e XX

O romance “Clara dos Anjos”, conquanto apresente personagens inexpressivos e pálidos, a exemplo da própria personagem central, traz também figuras enérgicas, imponentes. Dentre estas, D. Salustiana, a genitora de Cassi Jones, afigura-se como um claro exemplo de uma integrante da sociedade brasileira do início do século. Como o próprio autor anota, D. Salustiana tentava ser uma pomposa senhora da elite, apresentando ares de uma dama da corte, superior às demais pessoas que moravam em sua vinhança, bem como àqueles com quem mantinha conhecimento. “O seu orgulho provinha de duas fontes: a primeira por ter um irmão médico do Exército, com o posto de capitão; e a segunda, por ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade”^29. A mencionada personagem, refletindo o pensamento vigente, valorizava a raça branca, esta superior aos negros e mulatos, sendo, de outro turno, avessa à miscigenação, eis que representavam a degeneração da nação. Lima Barreto, com 28 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão proferida na ADPF 46/DF. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Empresa Pública de Correios e Telégrafos. Privilégio de Entrega de Correspondências. Serviço Postal. Controvérsia referente à Lei Federal 6.538, de 22 de Junho de 1978. Ato Normativo que regula direitos e obrigações concernentes ao Serviço Postal. Previsão de Sanções nas Hipóteses de Violação do Privilégio Postal. Compatibilidade com o Sistema Constitucional Vigente. Alegação de afronta ao disposto nos artigos 1º, inciso IV; 5º, inciso XIII, 170, caput, inciso IV e parágrafo único, e 173 da Constituição do Brasil. Violação dos Princípios da Livre Concorrência e Livre Iniciativa. Não-Caracterização. Arguição Julgada Improcedente. Interpretação conforme à Constituição conferida ao artigo 42 da Lei N. 6.538, que estabelece sanção, se configurada a violação do privilégio postal da União. Aplicação às atividades postais descritas no artigo 9º, da lei. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgado em 05.08.2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 14 abr. 2012 29 BARRETO, 2002, p. 25

personagens que compunham a camada mais carente da sociedade do início do século XX, negando-lhe, tal como ocorria, um papel ativo. Em certo momento, o narrador, como forma de outorgar voz aos explorados, despidos de expectativas, permite que Inês, a primeira vítima de Cassi Jones, desonrada, prostituta e mãe solteira, em um encontro delineado de angústia e raiva, tenha voz ao expor as agruras que vivenciou após o seu defloramento. Trata-se do momento em que os excluídos da sociedade brasileira do início do século XX têm o direito de se rebelarem e se manifestarem contra os sofrimentos vivenciados diuturnamente. A fim de ilustrar o expendido, quadra transcrever o seguinte excerto: Cassi Jones ia atravessando aquele bairro singular e escuro, quando do fundo de uma tasca, lhe gritaram:

  • Olá! Olá! “Seu” Cassi! Ó “Seu” Cassi! Insensivelmente, ele parou, para verificar quem o chamava. De dentro da taverna, com passo apressado, veio ao seu encontro uma negra suja, carapinha desgrenhada, com um caco de pente atravessado no alto da cabeça, calçando umas remendadas chinelas de tapete. Estava meio embriagada. Cassi espantou-se com aquele conhecimento; fazendo um ar de contrariedade, perguntou amuado:
  • Que é que você quer? A negra, bamboleando, pôs as mãos na cadeira e fez com olhar de desafio:
  • Então, você não me conhece mais, “seu canaia”? Então você não “si” lembras da Inês, aquela crioulinha que sua mãe criou e você... Lembrou-se, então, Cassi, de quem se tratava. Era a sua primeira vítima, que sua mãe, sem nenhuma consideração, tinha expulsado de casa em adiantado estado de gravidez. Reconhecendo-a e se lembrando disso, Cassi quis fugir. A rapariga pegou-o pelo braço:
  • Não fuja, não, “seu” patife! Você tem que “ouvi” uma pouca mas de “sustança”. A esse tempo, já os frequentadores habituais do lugar tinham acorridos das tascas e hospedarias e formavam roda, em torno dos dois. Havia homens e mulheres, que perguntavam:
  • O que há, Inês?
  • O que te fez esse moço? Cassi estava atarantado no meio daquelas caras antipáticas de sujeitos afeitos a briga e assassinato. Quis falar:
  • Eu não conheço essa mulher. Juro...
  • “Muié”, não! - fez a tal Inês , gingando. – Quando você “mi” fazia “festa”, “mi” beijava e “mi” abraçava, eu não era “muié”, era outra coisa, seu “cosa” ruim!^34 Lima Barreto, ao estruturar “Clara dos Anjos”, traz à baila a predominância dos arquétipos preconceituosos da marca na sociedade brasileira; quando alguém não é marcado, isto é, não provém de uma família branca, detentora de dinheiro, posses ou influência, é colocado à margem da sociedade. Inês, no romance, personifica, de maneira categórica, a mulher negra desonrada e abandonada pelo 34 BARRETO, 2002, p. 115.

homem branco, que, em razão do defloramento e da gravidez, não tem outra alternativa para sobreviver senão se prostituir. “ Representa uma infinidade de tantas outras jovens da sua mesma condição social que sonhadoras e apaixonadas tornavam-se presas fáceis nas mãos de homens inescrupulosos ”^35 Infere-se que o preconceito de raça e gênero se entrecruzam na construção de Inês, desamparada de todas as formas, passa a ser um objeto sexual, cujo habitat são os prostíbulos numerosos especialmente na parte central da antiga corte carioca. Inexiste a dadivosa presença da mulata faceira, sedutora e que transpira sensualidade, mas sim uma mulher suja e embriagada que, não tendo outro caminho, deita-se com qualquer espécie de homem para obter dinheiro. É a criação da sociedade que confronta o seu criador. “ Negras e mestiças eram desprezadas por uma sociedade altamente racista ”^36. Lima Barreto expõe a ferida social em sua obra, maiormente quando pontua que o defloramento das jovens vinha acompanhado de expulsão de suas casas, em razão da vergonha dos pais em manter no âmbito familiar um símbolo evidente da impureza moral, passando a integrar os bordéis e casas de meretrício existentes. “ Naquele contexto urbano e republicano, a permanência das marcas da escravidão colonial e imperial eram bem mais visíveis nas trajetórias das mulheres negras, mulheres-objetos sexuais, 'peças' ”^37. O confronto entre Inês e Cassi Jones reapresenta, ao leitor, as sequelas dos lugares sociais do poder, ou seja, o local de dominação tem feição e corpos nítidos: é masculino e branco. O autor oferta, por um momento, voz àqueles que são diariamente calados, suplantados e explorados. É a camada mais carente, através de Inês, podendo lançar à tona os sofrimentos vivenciados, os traumas a que foram submetidos. Denota-se que a ideologia escravagista, existente do século XIX, mesmo após a abolição, continuou a influir no comportamento da sociedade, precisamente a que florescia no início do século XX. A elite ainda ressoava os valores que perduraram durante todo o período áureo do Brasil Império. Os arquétipos de 35 FURTADO, 2003, p. 82 36 SILVA, Silvane Aparecida da. Racismo e Sexualidade nas Representações de Negras e Mestiças no Final do Século XIX e Início do XX. 94f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2008. Disponível em: http://www.sapientia.pucsp.br. Acesso em: 14 abr. 2012, p. 27-28. 37 FREITAS, Celi Silva de. Representações de Gênero e Raça em Discursos Masculinos – Tensões e Intenções no Rio de Janeiro da Primeira República. Disponível em: <www.rj.anpuh.org>. Acesso em: 14 abr. 2012.

verduras, quem os organizava era o marido, especificando tudo por escrito e deixando o dinheiro para o quitandeiro, todas as manhãs, quando ia para o trabalho^38. É possível dizer que, no universo da família patriarcal, existente precipuamente na camada elitizada da sociedade, o homem era a figura principal, ao redor da qual orbitavam os demais integrantes. Assim, crianças e mulheres eram seres insignificantes e amedrontados, tendo como maior escopo as boas graças do patriarca. Nesse cenário essencialmente masculino, os filhos mais velhos também possuíam grandes privilégios, notadamente em relação a seus irmãos, o que fica aparente. Quando se aborda “Clara dos Anjos”, verifica-se que Cassi Jones, neste particular reproduzindo o pensamento patriarcal, gozava de grande proteção de sua genitora em detrimento de suas irmãs. Como traço caracterizador, pode-se salientar que os homens eram detentores de grandes privilégios, sendo algo comum as aventuras com criadas e ex-escravas, observando-se, por necessário, discrição em seus atos. Não era admitido, pelo menos publicamente, que os valores vigentes fossem atentados e colocados em xeque. De outra banda, às mulheres tudo era proibido, sendo-lhes destinada tão somente a função de procriar e tomar conta da casa, lugar em que o patriarcado florescia. Ao lado disso, quadra anotar, com bastante ênfase e destaque, que: No romance Clara dos Anjos percebe-se que as mulheres eram educadas apenas para o casamento. A liberdade de pensar e agir era restrita ao domínio do lar, pois o espaço da ação/rua era reservado apenas aos homens. A elas restava, na maioria das vezes ficar à sombra do marido, do pai, e quando sozinhas, a imagem de mulher honesta. Assim, a partir das personagens do romance, percebe-se que o lugar da mulher na moderna sociedade brasileira já estava previamente demarcado, sendo difícil para ela se libertar dessa dinâmica social e conquistar o espaço da rua, assumindo funções consideradas tipicamente masculina^39. O demasiado desvelo de D. Engrácia em relação à jovem Clara, procurando protegê-la e colocá-la acima de sua posição acarreta consequência contrária às expectativas existentes e traz à baila, através da figura da genitora, os resquícios inaproveitados da pseudo-elevação social fomentada pelos pais. Conquanto D. Engrácia tivesse nascido filha de escravos, sua condição passou a ser de 38 BARRETO, 2002, p. 52. 39 SILVEIRA, Christiane. Imagens da mulher na construção da modernidade republicana In: Caderno Espaço Feminino , v. 10, nº. 12/13, jan. - dez. 2003. Disponível em: http://www.ieg.ufsc.br. Acesso em: 14 abr. 2012, p. 227.

agregada, em decorrência da mudança do campo para a cidade “ levando-a a ser educada quase do mesmo modo que os filhos dos antigos senhores, privilégio talvez devido à possibilidade de ser filha bastarda de algum dos filhos brancos da casa ”^40. No mais, a crítica erigida por Lima Barreto, no que se refere à D. Engrácia, está jungida no fato de ter estendido à sua filha educação semelhante a que tivera, quando criança. Por necessário, a mera imitação alicerçada pela genitora, no que concerne à aplicação dos modos da família patriarcal branca, não foram suficientes, porquanto faltou conscientizar Clara dos Anjos de sua posição particular na vida, a fim de que evitasse situações indesejáveis, notadamente as cenas finais de humilhação e vergonha infligida a ela por D. Salustiana. Verifica-se, com efeito, que D. Engrácia, enquanto arquétipo da típica mulher do início do século XX, busca, a todo momento, conciliar o legado de instrução e formação recebida da família branca em que foi educada, precipuamente os valores senhoriais e patriarcais, olvidando-se, propositalmente, que a realidade dos antigos senhores nunca foi exatamente a sua. Ao reverso, “ Engrácia recebeu boa instrução, para a sua condição e sexo; mas, logo que se casou – como em geral acontece com as nossas moças -, tratou de esquecer o que tinha estudado ”^41. Além disso, conquanto a condição social e econômica, a todo momento, negasse os valores disseminados por D. Engrácia, absorveu tão apenas os valores ornamentais, eis que a adequação ao protótipo da família burguesa mostra-se poroso e deficiente. Trata-se da dicotomia entre a dona de casa e da mãe, “porque o que possui de esposa exemplar ocupando-se como os afazeres domésticos é posto a perder com seu deficiente papel de mãe conselheira”^42. Ao lado disso, a canina vigilância, como bem descreve Lima Barreto, para a mãe seria o suficiente para evitar possíveis aborrecimentos. Aliás, o aludido escritor transparece que “ D. Engrácia, mãe de Clara, tinha medo do que poderia acontecer com a filha, por isso a mantinha sob restrita vigilância. Não deixar Clara sozinha e não permiti-la sair com outras amigas fazia parte da disciplina familiar ”^43. Neste 40 LIMA, p. 06. 41 BARRETO, 2002, p. 53. 42 LIMA, p. 07. 43 SILVA, Jomar Ricardo da; CAVALCANTE, Polyana Santos; SANTANA, Ajanayr Michelly Sobral. As Representações de Gêneros e Formação de Costumes Familiares no Início do Século XX In: IV Colóquio Internacional Cidadania Cultural: diálogos de gerações. ANAIS , p. 01-10, 2009. Disponível em: http://pos-graduacao.uepb.edu.br/. Acesso em: 14 abr. 2012, p. 07