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Uma médica residente em psiquiatria compartilha suas experiências na prática clínica, refletindo sobre a interconexão entre a psicanálise e a psiquiatria, e o papel da subjetividade humana na prática médica. Ela aborda a importância da formação na instituição lacaniana, a divisão da rotina em aulas teóricas, atendimentos e discussões de casos clínicos, e a evolução de sua perspectiva sobre o fazer médico.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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Não perca as partes importantes!
Maria Carolina de Araújo Marques
Esse texto surge de minha experiência como médica em um hospital psiquiátrico público, onde sou residente de psiquiatria há quase dois anos. Ao mesmo tempo em que cumpro as exigências formais da residência, pautadas em um discurso médico e universitário, me implico nos estudos da psicanálise em uma instituição lacaniana, na qual faço formação, em que os rigores que operam são de outra ordem.
A residência médica é uma pós-graduação em serviço, ou seja, o médico já graduado em Medicina atua no serviço sob a supervisão de preceptores especialistas. A minha rotina é dividida em aulas teóricas, atendimentos ambulatoriais, nas enfermarias e na emergência, além de discussões de casos clínicos e supervisões. Essa especialização dura três anos, e além de mim, há outros residentes, no meu serviço especificamente, são quatro por ano. Apesar de ali operar o discurso universitário, no qual o aluno é alienado e o conhecimento é apreendido de forma vertical, não me queixo de não ser ouvida nas minhas colocações que envolvem o saber que construí na psicanálise. Mesmo assim, encontro problemas que irei tratar aqui.
Conheci a psicanálise anos antes, quando ainda era estudante de medicina. Mal sabia que naquele momento eu já dava o primeiro e mais importante passo em direção à minha formação analítica: minha análise pessoal. A psiquiatria veio depois, como conseqüência de muita elaboração a respeito das minhas questões sobre o fazer médico e que caminho seguir depois da graduação. Quando comecei a freqüentar os estágios nos ambulatórios de clínica médica, ainda como acadêmica, uma coisa sempre se sustentava na minha escuta dos pacientes: o encantamento pela subjetividade humana. Já no estágio de psiquiatria, que se deu no mesmo hospital em que hoje sou residente, me deparei com a psicose, que sempre me foi um grande enigma, com pacientes institucionalizados, com o abandono, com a miséria humana e com o desconhecido absoluto. Aquilo me comovia e ao mesmo tempo eu percebia que tinha a oportunidade de operar ali. Sabia que mudar esse cenário era uma tarefa impossível, mas eu poderia mudar a vida de algumas pessoas. E esse era um dos motivos que tinha feito medicina para começo da história.
Embora haja um grande abismo entre psicanálise e psiquiatria não é possível dizer que essas “formações” se dão de forma paralela para mim. Posso afirmar que o saber psicanalítico é fundamental para a minha compreensão das ditas patologias da mente. Por outro lado, a experiência de estar em um hospital psiquiátrico é riquíssima do ponto de vista psicanalítico. Poder estar diante das mais diversas “loucuras”, das mais várias formas que a subjetividade pode se apresentar, e ser atravessado por essas questões é fundamental na minha formação.
Quando comecei os estudos da psiquiatria, portanto, já estava em análise e também já me aventurava nas leituras de Freud e Lacan. No início, eu tentava elaborar um saber que funcionasse como uma ponte entre a psiquiatria e a psicanálise. Compreender aqueles difíceis quadros clínicos era o que mais me interessava. A possibilidade de intervir farmacologicamente não me seduzia, apesar de considerá-la uma ferramenta importante. A minha questão com a psiquiatria desde o início foi poder ouvir e tratar dos casos mais complicados. Casos que dificilmente batem à porta dos consultórios de psicanálise. Muitas vezes, psicóticos graves, nos quais a medicação se torna indispensável para conter impulsos agressivos e autodestrutivos. E a referência para eles continua sendo o hospital psiquiátrico.
Porém, as diferenças entre a psiquiatria e a psicanálise não se resumem ao contraponto entre hospital e consultório. Seus paradigmas são completamente distintos e suas éticas opostas. A partir disso me vejo atravessada por diversos conflitos. Que ética deveria nortear os meus atendimentos? Com que objetivo eu deveria medicar os pacientes? De que lugar eu deveria escutar?
Por ser uma área da medicina, a psiquiatria é calcada em modelos médicos. A medicina parte do conceito de “saúde” e “normalidade” para estabelecer um tratamento e, desse modo, visa o re-estabelecimento de uma condição considerada “normal”. Ao considerar um sujeito “doente”, tira dele qualquer responsabilidade no que lhe acomete, sendo assim, o sujeito não pode fazer nada além de realizar as orientações e prescrições médicas de forma correta (1). A psicanálise, pelo contrário, considera o sintoma e não a doença, e principalmente a posição do sujeito frente ao sintoma, responsabilizando-o em seu mal-estar, sendo assim, uma clínica do singular.
Já a psiquiatria tem como objeto a “doença mental”. Esse é um termo que sempre foi muito controverso, uma vez que não se detinha conhecimento suficiente a respeito da etiologia, fisiopatologia, e curso clínico dessas doenças, portanto o próprio conceito de patologia não poderia ser aplicado. Porém, existia uma aposta na psiquiatria clássica de que, ao descrever a psicopatologia dos quadros clínicos o mais fielmente possível, recortando o que havia de essencial em cada um deles, a correlação orgânica viria depois, com
Freud, se dirigindo a médicos nas Conferências Introdutórias à Psicanálise, diz que o modo de pensar do médico, fundamentado no orgânico, no que é palpável e mensurável, limita a própria prática médica, uma vez que o que o paciente traz primeiro é sua fachada psíquica.
Esse é o grande problema de colocar o sofrimento humano em termos médicos: inevitavelmente ele passa pela subjetividade. Não é possível reduzir o que acomete o humano em alterações biológicas. É possível, sim, e necessário, o reducionismo biológico metodológico como modelos de entendimento e não explicação, do organismo e não do corpo, e é essencial para o avanço da psiquiatria como uma prática médica, mas é importante estar advertido que isso não resume o mal-estar do sujeito.
Longe de negar categoricamente a doença e advertida da subjetividade em questão, eu necessitava entender como se davam o mais variados sintomas e quadros clínicos. Que causalidade estaria envolvida nisso? Mas essa necessidade de entender me trouxe muito mais dúvidas do que respostas definitivas.
O psiquiatra, assim como qualquer médico, deve diagnosticar para poder eleger o tratamento correspondente. Porém a pertinência de tal diagnóstico já era questionada por Freud desde 1895, quando coloca que as dificuldades no tratamento da histeria o fizeram modificar tanto a técnica quanto suas concepções: “Foi-me necessário determinar o que caracteriza essencialmente a histeria e o que a diferenciava das outras neuroses”. “É muito difícil formar uma opinião exata de um caso de neurose antes de tê-lo submetido a uma análise aprofundada (...) Entretanto, é antes mesmo de conhecer o caso detalhadamente que nos vemos obrigados a estabelecer um diagnóstico e determinar o tratamento.”
Senti muito isso na residência, pois existe uma pressa muito grande em se traçar uma hipótese diagnóstica. É consensual entre os psiquiatras que essa hipótese pode mudar, e o tratamento medicamentoso, na maioria das vezes, se baseia na síndrome clínica, e não na hipótese em si. Mas o problema de se traçar uma hipótese precocemente é que isso compromete o olhar do investigador, pois como a lógica do diagnóstico é uma lógica classificatória, tudo que o paciente manifestar que puder ser enquadrado na sua hipótese inicial será considerado, e aquilo que não tiver relação com a mesma será descartado. Isso é um problema para a própria psiquiatria, dado o risco do erro.
Alguns pacientes que pude observar e ouvir, apesar dos delírios e das alucinações que apresentavam, mesmo completamente desorganizados e paralisados na vida, o que na maioria das vezes basta para ser considerado psicose, não me convenciam disso. “Qual sua hipótese, então?”, me perguntavam. E então eu ficava acometida de um “não saber” terrível. Eu até podia pensar em outras hipóteses, mas o simples fato de nomear uma delas
implicava em sustentá-las a partir da clínica. E o que eu podia saber do que o paciente ainda não manifestou? E, de novo, correndo o risco de me cegar para o que não corroborava com a minha hipótese. Pergunto-me, então: o que escuta o psiquiatra, quando ouve?
Em uma anamnese médica, dispositivo semiológico de entrevista do paciente, dá-se valor à “história da doença atual”, para depois investigar sobre os antecedentes incluindo a história de vida do paciente. Mas a história da doença é atrelada à história do sujeito. Fiquei muito tempo, e talvez ainda esteja em parte, vinculada a esse raciocínio médico, porém vez por outra me percebia numa imensa confusão.
O problema de levar em consideração a história da doença em detrimento da história do sujeito é correr o risco de, ao medicar, anular a questão do sujeito, na medida em que suprime o sintoma. Em outros casos, em que estamos lidando com estruturas muito complexas, se segue uma odisséia atrapalhada de revisões diagnósticas e mudanças nos esquemas medicamentosos, pois o paciente não melhora com nenhuma medicação disponível.
Depois que dei a liberdade para os pacientes contarem sua história, me senti livre para escutar o que viesse, e poder me surpreender com o que havia em cada um, que não encontrava nos livros, muito menos nos manuais. Além disso, pude enxergar a “doença” como uma crise subjetiva e a medicação entra aí por uma via completamente diferente, numa forma de ajudar o sujeito a atravessá-la.
Certa vez eu atendi uma paciente na presença de um supervisor. Era uma jovem de aproximadamente vinte anos que tinha sido levada pela mãe. Esta dizia que a mesma estava em “crise”, e que, antes dessa, ela tinha tido outras “crises”, mas não sabia dizer como eram. Essa paciente falava muito e não se deixava ser entrevistada. Além disso, apresentava um discurso pouco coeso e não era possível entender muito bem. Pois então a deixei que falasse. O preceptor me pedia para perguntar sobre a crise atual da paciente. Eu tentava fazer o que me pedia, ela dizia alguma coisa a respeito, mas logo mudava de assunto. Eu comecei a perguntar, então, onde nasceu, quem eram seus pais, onde cresceu, mas ela não respondia às perguntas, ou por desinteresse, ou por não poder responder. Ele insistia que eu deveria me concentrar na crise atual. Quando terminei, ele disse: “você está deixando a paciente conduzir a entrevista!”, em tom de crítica. Lacan coloca que a diferença do discurso do analista e do psiquiatra é justamente que o psiquiatra é quem conduz o paciente, e o analista é conduzido pelo paciente. Já que eu estava ali como psiquiatra, a crítica era cabível. Porém entendo que não é possível conduzir uma entrevista sem o efeito da sugestão. O que é
mínimo simplista de entender a complexidade humana, do qual não me conformo. O problema que se desencadeia é ético, pois se o paciente for um neurótico grave, está perdido, pois se encerra qualquer possibilidade de significação ao nomeá-lo psicótico. Isso envolve muitas vezes perícias médicas trabalhistas para aposentadoria por invalidez, e por isso sempre há pressa não só por parte do médico, como por parte do paciente e da família que o acolhe, para que se diga o “nome” da doença que o paciente tem.
Não estou querendo dizer que o diagnóstico em psiquiatria é anti-ético, e sim que as éticas que norteiam a psiquiatria e a psicanálise também são distintas. A ética da psiquiatria é a ética da medicina, que é a ética utilitarista. Essa ética visa uma normatização e identifica o Bem como o bem-estar. A psicanálise não supõe o bem do paciente como o seu bem-estar, pois entende que o sujeito pode se satisfazer na insatisfação. A ética da psicanálise, para Lacan, é a ética do desejo, considerando a incompatibilidade do desejo com a palavra.
Eu entendo que essa é uma demarcação clara da diferença entre o lugar que eu estaria frente a um analisando ou a um paciente para medicar. Portanto não poderia me valer da mesma ética em ambas as situações. Com que ética então eu deveria agir nos meus atendimentos psiquiátricos?
Seria contra a minha ética pessoal me alienar em um pacto que anula a subjetividade do paciente. E essa é uma das coisas que eu sempre levo à minha análise. Uma pessoa que faz análise não poderia nunca simplesmente medicar um mal-estar de alguém sem dar condições para que o sujeito se questione. Ela enxerga a doença mental em si também, e por isso sabe que tudo que um paciente traz nas suas queixas diz respeito a sua subjetividade e se ele não se apropriar disso, não haverá “cura”. A medicação serve apenas para possibilitar que alguns sintomas incapacitantes sejam mais suportáveis (e isso já é grande coisa). O problema de se exercer a psiquiatria sem estar advertido disso é não se dar conta que “melhorar o sintoma” não é o mesmo que melhorar a existência de alguém. Isso encerraria o sujeito numa nova alienação: a promessa de cura de si mesmo, como diz Roudinesco em ‘Por que a Psicanálise?’.
Ela prossegue dizendo que a “sociedade depressiva” não quer mais saber mais do desejo e do inconsciente, e não quer mais se interrogar sobre a origem de seus traumas. E ao mesmo tempo em que o profissional de saúde já não tem tempo para se ocupar da longa duração do psiquismo, surgindo assim uma ideologia medicamentosa em que a supressão do sintoma pode se dar sem lhes buscar qualquer significação. Isso é muito presente na clínica psiquiátrica: é imensa a demanda por medicações que resolvam sofrimentos e dramas cotidianos e é doloroso abrir mão da posição tranqüilizadora que
oferece o discurso médico, principalmente trabalhando em um serviço público em que a miséria faz parte do sofrimento psíquico.
Ana Cristina Figueiredo, no livro ‘Vastas Confusões e Atendimentos Imperfeitos’, defende que mesmo lidando com os impasses da psicanálise no serviço público, o profissional há de fazer o que convir. E só pode convir no tempo próprio das elaborações de sua análise, colocando que os mesmos impasses são material para sua análise pessoal e, portanto, para sua formação psicanalítica.
Sei que o que faço na residência não é psicanálise, mas lidar com o “não saber” e com esses elementos castradores na minha trajetória é fundamental na minha formação analítica. Essa experiência não pode ser compartilhada. Assim como um analista só se autoriza por si mesmo, o caminho percorrido na sua formação é ímpar. E minha formação passa pela psiquiatria, pelo hospital psiquiátrico e pelo serviço público, tentando fazer a ponte com a psicanálise. Mas a verdadeira ponte é o inconsciente. Como afirma Lacan: o inconsciente é a verdadeira doença mental do homem.
Referências Bibliográficas:
Figueiredo, Ana Cristina. Vastas Confusões e Atendimentos Imperfeitos: a clínica psicanalítica do ambulatório público. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 1997.
Freud, Sigmund. Obras Completas, Volume 13: Conferências Introdutórias à Psicanálise. 1ª edição. São Paulo. Companhia das Letras.
Dör, Joel. Estrutura e Perversões. Artes Médicas. 1991.
Lacan, Jacques. O Seminário, livro 3: As psicoses. 2.ed. revista. Rio de Janeiro: Zahar. 1988.
Associação Americana de Psiquiatria. 2013. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (5 ed.).
Leite, Marcio Peter de Souza. A negação da falta: cinco seminários sobre Lacan para analistas kleinianos. Rio de Janeiro: Relume- Dumará. 1992.
Jerusalinsky, Alfredo e Fendrik, Silvia. O livro negro da psicopatologia contemporânea. São Paulo: Via Lettera. 2011.