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A Cidadania na Filosofia Política de Aristóteles: Origens e Evolução, Slides de Direito

Este texto explora a concepção de cidadania em aristóteles, enfatizando sua geograficidade no nascimento da polis e os grupos excluídos da cidadania. O documento também discute a evolução da cidadania na sociedade moderna, com a emergência do estado de direito e a noção de indivíduo autônomo.

Tipologia: Slides

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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UM CONCEITO
DE CIDADANIA PARA
SE TRABALHAR A CIDADE
MÁRCIO PIÑON DE OLIVEIRA
Universidade Federal Fluminense
A política surge no entre-os-homens;
portanto, totalmente fora dos homens.
Por conseguinte, não existe nenhuma
substância política original. A política surge
no intra-espaço e se estabelece
como relação.
(Hannah Arendt)
Como tratar a cidadania numa pesquisa em geografia, tema tão complexo e, até
recentemente, de rara abordagem em nossa disciplina? Como operar com este con-
ceito ao nível da escala territorial de uma cidade?
Embora a história do conceito e a trilha que estabelecemos através dos clássicos
da ciência política parecesse, a princípio, nos afastar da geografia, logo percebería-
mos, na obra A Política, de Aristóteles que, se o conceito de cidadania estava dis-
tante de nós enquanto ferramenta (ou veio temático) na pesquisa geográfica, sua
geograficidade está no próprio nascimento da polis, ou seja, no nexo político que
vincula a cidade, seus habitantes e o seu território, ao Estado ou sociedade política.
Ao longo da história do conceito, por mais que sua noção tenha se ampliado e
ganho um sentido abstrato e múltiplo, afastando-se da escala territorial da cidade, é
neste espaço, delimitado politicamente, e na rede de lugares que o compõem, que a
cidadania deixa de ser um em si e assume a sua dimensão mais concreta e cotidia-
na. É nas cidades e nos seus lugares, mais especificamente, que os direitos, sob a
forma de leis, aparecem de forma palpável e contraditória, decodificando-se em
normas e posturas que regem a vida urbana.
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UM CONCEITO

DE CIDADANIA PARA

SE TRABALHAR A CIDADE

M ÁRCIO P IÑON DE O LIVEIRA

Universidade Federal Fluminense

A política surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma substância política original. A política surge no intra-espaço e se estabelece como relação. (Hannah Arendt)

Como tratar a cidadania numa pesquisa em geografia, tema tão complexo e, até recentemente, de rara abordagem em nossa disciplina? Como operar com este con- ceito ao nível da escala territorial de uma cidade? Embora a história do conceito e a trilha que estabelecemos através dos clássicos da ciência política parecesse, a princípio, nos afastar da geografia, logo percebería- mos, na obra A Política , de Aristóteles que, se o conceito de cidadania estava dis- tante de nós enquanto ferramenta (ou veio temático) na pesquisa geográfica, sua geograficidade está no próprio nascimento da polis , ou seja, no nexo político que vincula a cidade, seus habitantes e o seu território, ao Estado ou sociedade política. Ao longo da história do conceito, por mais que sua noção tenha se ampliado e ganho um sentido abstrato e múltiplo, afastando-se da escala territorial da cidade, é neste espaço, delimitado politicamente, e na rede de lugares que o compõem, que a cidadania deixa de ser um em si e assume a sua dimensão mais concreta e cotidia- na. É nas cidades e nos seus lugares, mais especificamente, que os direitos, sob a forma de leis, aparecem de forma palpável e contraditória, decodificando-se em normas e posturas que regem a vida urbana.

Outro aspecto da geograficidade do conceito, importante a ressaltar, é o de sua escalaridade. A depender do país, da província ou região, da cidade, ou mesmo do bairro em que se mora, a cidadania assume, bem como entre as classes ou grupos sociais, graus diferenciados de existência. Assim, não é absurdo afirmar que somos mais ou menos cidadãos de acordo com o espaço em que estejamos inseridos. Os direitos civis, políticos e sociais passam necessariamente por uma mediação da geograficidade, isto é, dos atributos do espaço (instalações, infra-estruturas, redes etc.) ou dos seus “fixos sociais” (SANTOS, 1987: 43), numa relação na qual as determinações de diferentes escalas geográficas podem se superpor. O conceito de cidadania guarda, assim, uma concretude que possui íntima rela- ção com a cidade enquanto realidade histórica. Por isso, do ponto de vista de nossa análise, a cidadania só poderia ser entendida enquanto uma prática historicamente construída, delimitada por um poder de Estado que busca estabelecer os contornos de suas possibilidades de realização. Desse modo, procuramos orientar o trabalho no sentido de apontarmos para este nexo político da cidadania entre a população da cidade e o seu território. O território se impõe como uma condição continente ao conteúdo político da cidadania e ao nível de organização social, cultural e econômica existente. De modo que fora dele (território) a cidadania torna-se uma abstração contida nos arti- gos da lei, sem formato definido por práticas específicas. Para Milton Santos (1987: 5), a vida social requer um componente cívico que “supõe a definição pré- via de uma civilização que se quer, o modo de vida que se deseja para todos, uma visão comum do mundo e da sociedade, do indivíduo enquanto ser social e das suas regras de convivência”. Assim, pretendemos neste trabalho percorrer a diversidade histórica do conceito de cidadania, buscando assinalar a sua relação com a cidade enquanto fato geográ- fico, visando a sua (re)atualização face às transformações que se operam nas socie- dades contemporâneas.

Cidade e cidadania na polis grega

A cidadania na Grécia antiga surge de um encontro político entre a cidade e o seu território na polis ou Estado. A expressão polis , que daria origem à palavra política ( politikos : adjetivo que queria dizer “relativo à ‘ polis ” - BOBBIO, 1990: 954), designava ao mesmo tempo a Cidade, seu território, e o seu poder político, o Estado, de tal modo que um não era concebido sem o outro. Assim, na língua grega, polis é ao mesmo tempo uma expressão geográfica e uma expressão políti- ca, é a Cidade-Estado. Segundo Glotz (1928), em sua obra La cité grecque , as condições geográficas da Grécia contribuíram muito para lhe dar o seu aspecto histórico, ao facilitar a delimitação territorial entre as Cidades-Estados. Como ele mesmo descreve:

GEO graphia – Ano 1 – No^ 1 – 1999 Oliveira

mos hoje, quando “o simples nascer investe o indivíduo de uma soma de direitos, apenas pelo simples fato de ingressar na sociedade humana” (SANTOS, 1987: 7). No seu livro A Política , Aristóteles (1991) exemplificaria, assim, as virtudes que fazem o cidadão e o homem de bem:

Podemos comparar os cidadãos aos marinheiros: ambos são membros de uma comunida- de. Ora, embora os marinheiros tenham funções muito diferentes, um empurrando o remo, outro segurando o leme, um terceiro vigiando a proa ou desempenhando alguma outra função que também tem seu nome, é claro que as tarefas de cada um têm sua virtude própria, mas sempre há uma que é comum a todos, dado que todos têm por objetivo a segurança da nave- gação, à qual aspiram e concorrem, cada um à sua maneira. De igual modo, embora as fun- ções dos cidadãos sejam dessemelhantes, todos trabalham para a conservação de sua comuni- dade, ou seja, para a salvação do Estado. Por conseguinte, é a este interesse comum que deve relacionar-se a virtude do cidadão. (p. 41)

A cidadania, portanto, não implicava a homogeneidade de funções e a igualdade de virtudes, mas não podia existir sem a noção de pertencimento a uma comunida- de, o espírito de bem comum e a segurança do Estado. Para Aristóteles (1991: 1), o Estado representa a esperança de um bem que con- tém o princípio da sociedade e de toda associação, como regente e regulador da ação humana que tem por fim último a felicidade. E esta felicidade só alcançaria a sua plenitude no seio da Cidade.

As Cidades inicialmente foram, como ainda hoje o são algumas nações, submetidas ao governo real, formadas que eram de reuniões de pessoas que já viviam sob um monarca. Com efeito, toda família, sendo governada pelo mais velho como que por um rei continuava a viver sob a mesma autoridade, por causa da consangüinidade. (ARISTÓTELES 1991:3)

As Cidades proporcionam, portanto, a congregação de famílias dispersas (popu- lação) e o poder num mesmo território submetido à autoridade de um monarca (governo). De outro modo, as Cidades surgem como um produto da sociedade hie- rarquizada, da dominação pai-filho, homem-mulher, senhor-escravo, rei-súditos.

A sociedade que se formou da reunião de várias aldeias constitui a Cidade, que tem a faculdade de se bastar a si mesma, sendo organizada não apenas para conser- var a existência, mas também para buscar o bem-estar. Esta sociedade, portanto, também está nos desígnios da natureza, como todas as outras que são seus elemen- tos. Ora, a natureza de cada coisa é precisamente o seu fim. (ARISTÓTELES, 1991:3-4)

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A Cidade seria o desaguadouro inevitável do desenvolvimento natural do homem, como também projetar-se-ia sobre ela a realização de um ideal de bem- estar. Assim, passado e futuro se encontrariam na Cidade e a cidadania como um ideal de felicidade se confundiria com a própria vida no interior da polis , onde política e território encontravam-se indissoluvelmente ligados.

A cidadania rompe as fronteiras da cidade

Durante o Império Romano a noção de cidadania foi gradativamente adquirindo uma dimensão mais abstrata e autônoma em relação ao território da Cidade ( urbis ). A cidadania assume um valor simbólico que passa a ser incorporado pelo indiví- duo qualificado como cidadão. Assim, o cidadão de Roma era considerado e res- peitado como tal em todo o Império, para além do território da urbis. Perseguido por difundir os ideais cristãos, Paulo utilizou-se desta condição de cidadão romano para escapar algumas vezes da prisão e da morte em seu trabalho de peregrinação (CLARKE, 1994: 8). A cidadania, assim como as cidades, assumiria uma forma múltipla e extensiva a todo o Império, tendo como referência central a cidade de Roma.

O Império Romano, produto de um único centro urbano de poder em extensão, foi em si mesmo uma vasta empresa construtora de cidades: deixou a marca de Roma em todas as par- tes da Europa, da África do Norte e da Ásia Menor, alterando o modo de vida em cidades antigas e estabelecendo seu tipo especial de ordem, a partir do chão, em centenas de novos alicerces, cidades ‘coloniais’, cidades ‘livres’, cidades sob a lei municipal romana, cidades ‘- tributárias’: cada qual com uma condição diferente, senão uma forma diferente. (MUM- FORD, 1965: 269)

Roma, portanto, universaliza o modo urbano, transformando outras culturas, em toda a sua variedade de forma e conteúdo. Ao contrário da Grécia, onde cada Cidade correspondia a uma forma autônoma de poder político e cultural, corporifi- cada na polis , Roma encobre a diversidade com uma espécie de uniformidade polí- tico-cultural. Por outro lado, enquanto o conceito de cidadania na Grécia expressa- se de maneira rígida no par cidadão/não-cidadão, no Império Romano ele se des- dobra em mais de um tipo. Havia os cidadãos de primeira linha, os patrícios , portadores de uma cidadania ativa, que participavam diretamente do poder político e da administração do Estado, e os plebeus , não-proprietários, que detinham a cidadania de maneira pas- siva, incorporando-a apenas como um status (CLARKE, 1994: 8). Desse modo, a cidadania era, para a vasta maioria da população, uma condição que implicava alguns direitos e deveres mas que excluía do direito ou dever de participar da vida

Um Conceito de Cidadania para se Trabalhar a Cidade

Deus. A idéia de pessoa irá se sobrepor, então, à idéia de cidadão e, ao contrário da vida na Grécia e no Império Romano, onde a noção de homem de bem baseava-se no reconhecimento público de suas virtudes cívicas, passa a dominar a idéia de que o reconhecimento divino é o verdadeiramente importante e de que ele independe da sua condição e posição na sociedade (CLARKE, 1994: 9-12). Por esta via, o que importa é que cada pessoa, indiferentemente da cidade onde tenha nascido, da sua origem social ou do seu nível de participação política com- partilharia de uma mesma visão de “cidade divina”, rompendo-se, assim, o nexo político entre o território e seus habitantes que caracterizava a cidadania. A noção de pertencimento a uma comunidade era considerada como útil, até onde as regras de urbanidade não se chocassem com os preceitos da fé. Para Sennett (1997: 128), ao distinguir as “duas cidades” , Santo Agostinho ajustou-se “à regra de ouro da doutrina cristã, segundo a qual a Cidade de Deus não é um lugar”.

O retorno às cidades e a reconstituição do nexo político da cidadania

Após ter observado uma flagrante involução no seu desenvolvimento histórico, do século V ao século XII, as cidades européias retornariam à cena na Baixa Idade Média e o nexo político da cidadania entre a população, o Estado e o seu território, que fora deslocado para o plano divino, seria, gradativamente reconstituído, sendo que agora sob novas bases. O Humanismo (séc. XIV) e o Renascimento (séc. XV) reforçariam ainda mais esta tendência. Se na antiga Grécia e em Roma dava-se ênfase à vida pública, agora é a noção de vida privada, centrada no indivíduo, que se desenvolverá. É da normatização deste indivíduo e seus direitos que emergirá o novo modelo de cidadania junta- mente com o Estado Moderno. Nas cidades, os homens passam a ser vistos como indivíduos portadores de iniciativa e conhecimentos que, para serem exercitados, precisavam de liberdade para ir e vir e para expressar suas idéias. Nessa época, muitas cidades (burgos) se transformam em signo de liberdade. Max Weber (1947) já apontava a distinção entre a cidade medieval e a cidade antiga no Ocidente na sua característica de coletividade de produtores individuais. Enquanto a cidade antiga reunira mais atributos de consumidora e tivera seu papel definido por fins políticos e militares, a cidade medieval inaugura uma sociedade fundada sobre a associação livre de produtores. Estes homens criaram uma nova concepção e uma nova prática de legitimidade política baseada na associação de interesses econômicos da burguesia. A cidade tornou-se autônoma, possuindo seus próprios direito e governo, justiça, finanças e defesa organizadas por ela mesma. Nela, o cidadão é concebido em termos estritamente individuais. Segundo Le Goff (1990: 19), a cidade modifica o homem medieval. Ela restrin- ge o seu círculo familiar e amplia a rede de comunidades nas quais ele atua.

Um Conceito de Cidadania para se Trabalhar a Cidade

Surgem novas preocupações materiais, em cujo centro coloca-se o dinheiro e, à sua frente, a burguesia emergente.

As cidades são centros de irradiação na circulação dos homens, tão plenas de idéias como de mercadorias, lugares de trocas, mercados e encruzilhadas do comércio intelectual. ( LE GOFF, 1990:25).

O aumento da circulação monetária e a organização das redes comerciais for- çam os citadinos a construir uma medida de tempo mais de acordo com a organiza- ção dos negócios. Até então cabia ao poder eclesiástico a organização do calendá- rio e do tempo, impondo uma disciplina religiosa à vida cotidiana. A burguesia nascente se apropria do calendário e da medida do tempo a fim de organizar a população da cidade de acordo com uma disciplina laica de trabalho, recém desco- berta (LE GOFF, 1983: 19). O tempo deixa de ser um monopólio de Deus e da Igreja e pode ser agora mani- pulado pelo homem da cidade. O tempo “natural” ou rural é, aos poucos, substituí- do pelo tempo “artificial” ou urbano que rege o mundo dos negócios. A idéia de um tempo de vida linear ou contínuo, que se estende para além da morte, será tam- bém, gradativamente, posto em questão, na medida em que avançar o processo de laicização. Outra transformação importante, que contribui para redesenhar a natureza humana do homem medieval, é a que ocorre com a própria Igreja. A luta pelo con- trole do tempo, e dos símbolos de tudo aquilo que era considerado sagrado, gera também uma luta pelo controle do espaço, o que se traduz em uma competição pela cidade e pelos seus novos componentes sociais - burgueses, artesãos e intelec- tuais - possíveis fiéis ou mesmo aliados políticos. Portanto, a Igreja não ficará pas- siva diante de tais transformações históricas polarizadas ao redor das cidades. Segundo Sennett (1997: 136), juntamente com o renascimento das cidades há tam- bém um renascimento religioso. Ocorre nesse período um deslocamento de parte do corpo da Igreja para as cida- des. A catedral é a igreja do bispo e para cada bispo há uma cidade. Para Duby (1990: 29), a arte das catedrais significa “o despertar das cidades”, a exemplo de Paris que, nesse momento, se encontra no centro de todas essas transformações. A cidade, desde então, vai se constituindo em um espaço de contrastes sociais e a catedral se apresentará como a possibilidade de salvação, tanto para a população miserável quanto para os homens enriquecidos que, temendo, ainda, a justiça de Deus, queiram investir na sua construção em troca da salvação de sua alma. A catedral tinha presença expressiva na cidade, não só na sua paisagem, mas também na organização da sua vida cotidiana. No seu interior, burgueses se reu- niam nas suas confrarias, promovendo assembléias civis e vindo a ela também para rezar. A catedral é, assim, juntamente com o mercado, o local de convergência do

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do-se até que os próprios limites do feudalismo colocassem barreiras de outra ordem e escala, ao funcionamento do mercado e às ambições da burguesia. Do mosteiro à catedral, da catedral à praça, da praça ao palácio, este foi o cami- nho da dessacralização e da (re)montagem de um novo sistema de representações simbólicas, com feixes no mundo e prisma no indivíduo. Podemos notar que para cada momento histórico dessa trajetória há uma forma/objeto espacial ou lugar para onde convergem a competição simbólica entre as classes e os grupos da socie- dade. Uma espécie de “espaço amálgama”, que se constitui num palco privilegiado das disputas sociais, em nível de representações. Paradoxalmente, a valorização do indivíduo, numa escala social mais ampla, nasce junto com o Estado Moderno, com o absolutismo e com o despotismo. “Em toda parte, o que vemos são agentes individuais e seus atos, e o que se descreve são suas fraquezas e talentos pessoais”, menciona Elias (1993: 16) ao fazer alusão aos reis e príncipes que se notabilizaram nessa época. Se cabia já à burguesia comandar a economia, cabia ao príncipe ou ao Rei, por outro lado, ditar e reger o padrão das relações sociais e suas hierarquias através da centralização do poder. Se o prisma está sobre o indivíduo, o comportamento pessoal passa a ser algo importante, sobretudo quando este indivíduo está exposto à observação em “ambientes públicos”. O espaço público ou os espaços de exposição à observação pública passam a ser lugares de controle; controle dos movimentos, gestos, fala e emoções e onde as relações familiares, parentais e de vínculos aristocráticos se imbricavam com o desempenho social público do indivíduo. Este “jogo de representações” tende a levar o indivíduo, através das pressões exer- cidas sobre ele na sociedade, a uma racionalidade distintiva, uma tutela dos afetos, uma autodisciplina e um autocontrole. Segundo Elias, o modelo de autocontrole é:

... o gabarito pelo qual são moldadas as paixões e varia de acordo com a função e a posi- ção que o indivíduo ocupa no sistema de relações sociais. A estabilidade do “aparato de auto- controle mental” que emerge como traço decisivo, embutido nos hábitos de todo o ser humano “civilizado”, mantém a relação mais estreita possível com a monopolização da força física e a crescente estabilidade dos órgãos centrais da sociedade. Só com a formação desse tipo relati- vamente estável de monopólios é que as sociedades adquirem realmente estas características, em decorrência das quais os indivíduos que as compõem sintonizam-se, desde a infância, com um padrão altamente regulado e diferenciado de autocontrole; só em combinação com tais monopólios é que esse tipo de autolimitação requer um grau mais elevado de automatismo, e se forma, por assim dizer, uma “segunda natureza”. (p. 197).

Neste sentido é somente por meio do autocontrole que o indivíduo pode transla- dar-se da natureza mais instintiva e primitiva para o estado de homem “civilizado”. Assim, “civilizar” significa, de um lado, centralizar o poder, exercendo o monopó-

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lio da força física, e, de outro, submeter-se ao padrão social de conduta com base no autocontrole. Esse padrão de relações “suavizado”, “polido” e “civilizado” que chamou a atenção de Elias na sociedade de corte, contém, guardadas as devidas proporções, o gérmen do modelo de autocontrole, no que tange aos seus mecanismos sociais e psicológicos, que regula a conduta do indivíduo contemporâneo. O cidadão de hoje, no nosso entender, nada mais é do que a “civilização” do indivíduo ou sua normatização político-social, que se apresenta geograficamente diferenciada, aqui e ali, enquanto possibilidade histórica. Refletindo sobre a noção de modernidade, Alain Touraine (1995: 21) enfatiza que a imagem de um mundo guiado pela razão em que tradições, crenças e privilé- gios dão lugar aos valores universalistas da ciência e do direito é aquela que se impõe como dominante. A nova forma da cidade deveria expressar o moderno, o Estado de direito e a sua tradução em convívio cotidiano através de um savoir- vivre , de uma civilidade que os franceses chamam de citadinité para distinguir da cidadania vinculada à nacionalidade por eles denominada citoyenneté. A cidade será o pólo central para onde convergirá o Estado de direito devendo, portanto, espelhar a modernidade.

A cidadania como nacionalidade, a cidade como símbolo

O novo modelo de cidadania em gestação teve por base o surgimento do Estado Moderno e, por cimento, a noção de indivíduo que emergirá, como realidade histó- rica, a partir do século XII, com o renascimento das cidades e a entrada em cena do homo economicus. Segundo Sennett (1997), este homem

...vivia no espaço e não para o lugar. A corporação, desde que a Revolução Comercial propiciou maior prosperidade, identificou tempo e espaço na sua estrutura flexível - perma- nentemente mutável (...) Na sociedade moderna, o peso do individualismo é tão insustentável que afasta da imaginação o altruísmo e a piedade como essenciais à conduta humana. (pp. 175-6)

Contudo, este novo modelo de cidadania só se efetivará quando este homo eco- nomicus e demais indivíduos autônomos em associação se rebelarem contra o poder do Estado Absoluto e contra a tutela da Igreja, transformando-se em sujei- tos. Assim, foram as Revoluções Liberal Inglesa (séc. XVII) e Francesa (séc. XVIII) que firmaram na sociedade as estacas do contratualismo como uma nova forma de regulação da vida política e social dos homens.

Um Conceito de Cidadania para se Trabalhar a Cidade

pletamente”, ou seja, submete aos padrões coletivos todos os impulsos naturais da criatura individual, sendo tal submissão, porém,uma “condição igual para todos”.

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece con- tudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse, o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece. (...) Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o de república ou de corpo político , o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando com- parado a seus semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos , enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do Estado. (1973: 38-39)

Em suma, cidadão é aquele que confere a autoridade soberana e se submete às leis do Estado e sua normatização, em nome de um bem comum e uma promessa de felicidade. Para Rousseau, a natureza humana é livre e propensa à associação e é desta capacidade de livre associação que brota o sujeito na sua ação individual ou coletiva. Rousseau enfatiza o pólo da liberdade e da autonomia em relação ao futuro, ao passo que Hobbes o considera um risco à subversão, concedendo maior ênfase à ordem no presente. O debate acerca da liberdade e os seus limites para o indivíduo estaria na base da formulação liberal do Estado contratual e do seu cidadão. Locke, fundador do empirismo filosófico moderno e teórico da Revolução Liberal Inglesa (1689), observa que:

...o homem no estado natural está plenamente livre, mas sente a necessidade de colocar limites à sua própria liberdade (...) a fim de garantir a propriedade. (...) A relação entre pro- priedade e liberdade é extremamente evidente: o poder supremo não pode tirar do homem uma parte de suas propriedades sem o seu consentimento. Pois a finalidade de um governo e de todos os que entram em sociedade é a conservação da propriedade. (apud GRUPPI, 1980: 13-15)

A relação indissociável entre propriedade e liberdade seria uma das essências do liberalismo, trazendo à tona, novamente, a exemplo do que ocorrera na Roma anti- ga, a distinção entre cidadãos proprietários e cidadãos não-proprietários. Para Kant,

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...há cidadãos independentes e cidadãos não-independentes. Aqueles independentes - os que podem exprimir uma opinião política, que podem decidir da política do Estado - são cida- dãos que não dependem de outros, isto é, os proprietários. Não se pode pensar que sejam capazes de uma opinião independente os servos das fazendas, ou os aprendizes das oficinas artesanais. Por conseguinte, eles não podem ter o direito de voto, nem de serem eleitos. Os direitos políticos ativos cabem somente aos proprietários. (apud GRUPPI, 1980:16)

Esta polêmica entre esses dois tipos de cidadãos, o cidadão ativo e o cidadão passivo, se fez presente, de maneira crucial, na primeira fase da Revolução Francesa. A Revolução Francesa, e o cidadão que dela brotou, consagrará uma forma de encarar a vida, o indivíduo, a política e a cidade, que vai para além de um simples estatuto de direitos e deveres ou código de posturas. Emerge, então, uma concep- ção que se gestara ao longo do processo das lutas que levaram à subordinação de liberdades, imunidades e privilégios feudais de senhores e corporações. Estabelece-se uma definição de cidadania abstrata e formal, cujo núcleo é a idéia de um atributo geral, extensivo a todo membro pertencente à sociedade (STEWART, 1995: 65). Segundo Brubaker (apud Stewart, 1995: 65), a Revolução elevou ao nível nacional elementos que vinham se desenvolvendo durante o Antigo Regime, tais como as mediações que se introduziram na relação entre o indivíduo e o Estado, substituindo relações diretas e imediatas. Da mesma forma, ganham novo alcance, a partir daí, a racionalização legal e a distinção entre cidadãos e estrangeiros, bem como a articulação de uma doutrina de soberania nacional. O estabelecimento da igualdade civil, incluindo direitos e deveres partilhados e a institucionalização de direitos políticos são contribuições fundamentais para a nova face da cidadania desenhada pela mentalidade revolucionária. Após a Revolução, a palavra cidadão adquire dois significados. O primeiro deles identifica o indivíduo que nasceu ou que porta a nacionalidade de um deter- minado país. O segundo refere-se ao portador de direitos cívicos, tais como o direi- to de voto, a elegibilidade, funções públicas, porte de arma, funções de tutor, cura- dor, testemunha, etc. (LOCHAK, 1992: 11-12). Logicamente, esses dois significa- dos aparecem associados, ao mesmo tempo em que são atravessados pelos pressu- postos da liberdade e da igualdade. Apesar de suas origens longínquas, as noções de cidadão e de nação adquiriram um valor sob a Revolução Francesa que se impôs não só para a ideologia republi- cana francesa, mas como parte de um ideário assimilado pelos países ocidentais, inclusive as jovens nações do continente americano. Assumiram, entretanto, fei- ções que se moldaram à especificidade das diversas realidades histórico-geográfi- cas em que se inseriram.

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Robespierre, até a sua morte na guilhotina em 1794, seria um ferrenho opositor e crítico desta decisão. Segundo ele, tal sistema de votação negava a declaração e violava os direitos humanos. “A sociedade é um contrato entre o vivo, o morto e o que ainda não nasceu” e a Revolução estava quebrando este contrato (CLARKE, 1994: 16-17). Segundo Burke (apud CLARKE, 1994: 32), tal fato promoveu uma reviravolta no ideal de autonomia e um retorno à submissão política ao Estado como soberano, muito embora a Declaração apregoasse esta soberania ao povo. Um novo sistema de votação, com base no sufrágio universal, só seria alcança- do no século XIX, como conquista dos movimentos sociais e lutas dos trabalhado- res por emancipação política. Marx, em 1844, abordaria o complexo tema da emancipação política na socie- dade burguesa, em seu texto A questão judaica , analisando criticamente o caso dos judeus face ao Estado cristão na Alemanha. Para ele, os judeus não poderiam emancipar-se politicamente como cidadãos sem emancipar-se como homens, abrindo mão dos próprios preceitos do judaísmo. Ao colar a emancipação política à emancipação humana, Marx (1982: 28) o faz para distingui-las e mostrar a contradição que reside “na essência e na categoria da emancipação política”, ao conceber um cidadão abstrato, separado do homem real, o indivíduo egoísta.

Este homem, membro da sociedade burguesa, é agora a base, a premissa do Estado políti- co. E, como tal, é reconhecido nos direitos humanos. A liberdade do egoísta e o reconhecimento desta liberdade são a expressão do reconheci- mento do movimento desenfreado dos elementos espirituais e materiais que formam seu con- teúdo de vida. Por conseguinte, o homem não se libertou da religião; obteve, isto sim, liberdade religio- sa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial. A constituição do Estado político e a dissolução da sociedade burguesa nos indivíduos independentes - cuja relação se baseia no direito , ao passo que a relação entre os homens dos estamentos e dos grêmios se fundava no privilégio - se processa num só e mesmo ato. Assim sendo, o homem enquanto membro da sociedade civil, isto é, o homem não-político, surge como homem natural. Os droits de l’homme aparecem como droits naturels , pois a atividade consciente de si mesma se concentra no ato político (...) A revolução política dissolve a vida burguesa em suas partes integrantes sem revolucionar estas partes nem submetê-las à crítica. Conduz-se, em relação à sociedade burguesa, ao mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses particulares, do direito privado, como se estivesse frente à base de sua existência, diante de uma premissa que já não é possível funda- mentar e, portanto, como frente à sua base natural. Finalmente, o homem enquanto membro da sociedade burguesa, é considerado como o verdadeiro homem, como homme , distinto do citoyen por se tratar do homem em sua existência sensível e individual imediata, ao passo que o homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico, moral. O homem real só é reconhecido sob a forma do citoyen abstrato. (MARX, 1982: pp. 36-37)

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Assim, ao separar o indivíduo do cidadão, a sociedade burguesa separou tam- bém o seu corpo político (o Estado) da sociedade civil. Desse modo, a verdadeira idéia de cidadão é abstrata e falece no encontro com as necessidades humanas. Ao se tornar um dispositivo abstrato a cidadania se inclinou para qualidades jurídicas formais, presas à lei. Para Clarke (1994: 21), ao contrário do que se pensa, o grande desafio da cida- dania moderna não é produção das condições de igualdade, mas a convivência com identidades parciais exclusivas, a exemplo dos judeus. O nexo político da cidadania entre a população, o Estado e o seu território será reconstituído, nesta época, porém sob novas condições. Se no passado ele teve como referência a cidade ( polis ) ou Cidade-Estado, na democracia moderna (con- tratual), este deslocou-se para o Estado-nação. Sua qualidade passou a ser dada pela nacionalidade e os seus limites territoriais pelos contornos geográficos das fronteiras nacionais. A grande cidade será, então, o palco central da competição e (re)ordenamento simbólico dos valores e ideologia revolucionária. Nos primeiros anos da Revolução Francesa, tentou-se criar, em Paris, locais em que os novos cidadãos pudessem se sentir iguais e expressar sua liberdade.

O espaço total, sem obstrução nem limites, onde tudo fosse ‘transparente’ e nada escondi- do, definia a imaginação revolucionária da mais ampla liberdade, segundo o crítico Jean Starobinski. Assim, em 1791, o Conselho da cidade de Paris começou a derrubar as árvores e pavimentar os jardins da velha praça Luís XV, rebatizada de praça da Revolução (atual place de la Concorde). Todas as plantas desenhadas para o centro da cidade propunham um lugar sem vegetação ou quaisquer outros obstáculos, uma vasta plaza de superfície dura. De acordo com essa reforma, elaborada por Wailly, o enorme vazio central seria cercado por constru- ções, sem ruas ou calçadas que o atravessassem. O projeto de Bernard Poyet acabava com as pontes sobre o Sena, eliminando a ligação com pequenas edificações que dificultavam seus acessos. Também em outros lugares da cidade, como Champ de Mars, os urbanistas revolu- cionários procuraram extensões livres de tudo o que prejudicasse o movimento e a visão. (SENNETT, 1997: 241)

Décadas mais tarde, e em um outro contexto histórico, o urbanista Haussmann, a serviço de Napoleão III, levaria este espírito de cunhar sobre a cidade as marcas do novo cidadão ao seu extremo, voltando-o contra os próprios sujeitos da revolu- ção e seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Em suas Mémoires , Haussmann escreveria: “Rasgando a velha Paris, o bairro dos motins, das barrica- das (...) A abertura da rua Turbino fez desaparecer do mapa de Paris a rua Transnonain” (HAROUEL, 1990: 113) Em linhas gerais, o urbanismo de Haussmann se caracterizaria

Um Conceito de Cidadania para se Trabalhar a Cidade

...um terreno onde as exigências de civilidade - encarnadas pelo comportamento público, cosmopolita - são confrontadas com as exigências da natureza - encarnadas pela família. (...) As tensões entre as exigências de civilidade e os direitos da natureza, manifestadas na parti- lha entre vida pública e vida privada no centro cosmopolita, não apenas se espalharam pela alta cultura da época como também a esferas mais mundanas. Essas tensões transpareciam nos manuais sobre a criação dos filhos, nos folhetos sobre obrigações morais e crenças de senso comum sobre os direitos do homem. Juntos, o público e o privado criaram aquilo que chamaríamos um ‘universo’ de relações sociais. (pp. 33-34)

Viver sob essas exigências é a arte (e a tensão) de ser cidadão na cidade moder- na, pois representar o seu papel nesta geografia cosmopolita é uma tarefa, social e psicologicamente, nada fácil. Desse modo, o projeto de cidadania na grande cidade irá se superpor e, às vezes, se confundir, no cotidiano, com a própria civilidade requerida ao homem moderno. O cidadão na grande cidade capitalista deve orientar a sua conduta por um código de ética seletivo e segregador do espaço urbano. Para muitos, tal fato somente foi possível devido ao papel disciplinarizador e regulador que o trabalho fabril exer- ceu sobre os indivíduos. Na versão moderna de cidadania como nacionalidade, política, território e cultu- ra se fundem numa mesma matriz, tendo como referência o Estado-nação e por espaço privilegiado a cidade, sobretudo as grandes cidades, a exemplo de Londres e Paris, locus de poder econômico e civil, que são tomadas como símbolos ou modelos desta nova territorialidade. O cidadão como indivíduo politicamente emancipado representou um passo importante na conquista de direitos políticos anteriormente negados, porém insufi- ciente, uma vez que não supera o homem egoísta e o seu individualismo.

A cidadania na cidade: um direito social

Os marcos estabelecidos à cidadania na sociedade burguesa alargaram o fosso entre o cidadão, este ser político genérico, juridicamente formal, e o homem real, este “indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbi- trariedade privada e dissociada da comunidade” (MARX, 1982: 33). Nestes ter- mos, homo economicus e homo politicus são radicalmente separados. Este homem egoísta, ao qual alude Marx, será alimentado pelo individualismo, que historicamente vincular-se-ia ao nacionalismo. Segundo Dumont (1993: 35), “a nação é precisamente o tipo de sociedade global correspondente ao reino do individualismo como valor” e que se expressa por meio do nacionalismo. Desse

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modo, o nacionalismo é o correspondente do individualismo na escala geográfica da nação. Para Leca (1991: 189-190), o individualismo corrompe a cidadania, destruindo a vida em comum e os laços comunitários. “O individualismo atomiza, fragmenta e corrói todo grupo social, e transforma o indivíduo em juiz soberano de tudo”, conjugando-se na economia capitalista com os interesses privados da exploração e do mercado. O consumismo desenfreado dos dias atuais é um demiurgo do individualismo em larga escala. Este último refaz-se e nutre-se vorazmente do primeiro, a cada instante. Segundo Santos (1987),

A glorificação do consumo se acompanha da diminuição gradativa de outras sensibilida- des, como a noção de individualidade que, aliás, constitui um dos alicerces da cidadania. Enquanto constrói e alimenta um individualismo feroz e sem fronteiras, o consumo contribui ao aniquilamento da personalidade, sem a qual o homem não se reconhece como distinto, a partir da desigualdade entre todos. (p. 35)

No seu entender, o consumo exercerá sobre o indivíduo um papel aliena- dor funcionando como um “verdadeiro ópio, cujos templos modernos são os Shopping-centers e os supermercados (...), construídos à feição das cate- drais”. Assim, em lugar do cidadão tem-se “um consumidor , que aceita ser chamado de usuário ” (SANTOS, 1987:34 e 13). Em um ensaio pioneiro, Harold Laski, em 1928, abordaria os efeitos do consumo sobre a cidadania de maneira muito lúcida e precisa. Para ele,

O consumo é uma aceitação de alternativas impostas. O efeito disto é uma vida na qual não há contexto cívico. E também uma vida em que os “cidadãos” são tratados como objetos de utilidade, não estando engajados na autorealização. Se os homens não estão engajados na autorealização, se eles são um meio para um fim, mais do que finalidades em si mesmos, então eles são escravos, não verdadeiros cidadãos (...) Um mundo que olha o proveito e a competição como fonte de bem estar é um mundo inimi- go do projeto de cidadania. (apud CLARKE, 1994: 23-24).

Meio século mais tarde, Alasdair MacIntyre seria igualmente enfático em suas críticas ao consumo, como elemento deformador do projeto de cidadania.

O cidadão como consumidor é um cidadão divorciado de um concerto para o bem-estar geral, tendo atenção somente para os seus direitos e atividades de consumo e não para os deveres apropriados para o cidadão. (apud CLARKE, 1994:24)

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