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Entendimentos de Tempo Livre em Mestrados Latino-Americanos: Análise Histórico-Social, Notas de aula de Metodologia

Este artigo apresenta as compreensões de tempo livre de participantes de mestrados latino-americanos, analisadas por país. O documento discute como o conceito de tempo livre emergiu na sociedade ocidental capitalista, sendo tomado como algo fora do tempo de trabalho e considerado como não obrigatório. Além disso, o texto explora as diferentes perspectivas sobre o tempo livre em contextos brasileiro, mexicano e costarriquenho.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Luiz_Felipe 🇧🇷

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Tempo livre: entendimentos enunciados por
participantes de mestrados latino-americanos
em lazer e recreación
Rodrigo Elizalde*
Christianne Luce Gomes**
Resumo: Este artigo integra uma pesquisa mais abrangente
e objetiva analisar os entendimentos de tempo livre de
professores, profissionais e estudantes vinculados a cinco
programas de mestrado em Lazer/Tempo Livre/Recreação
desenvolvidos em quatro países latino-americanos:
Brasil, Costa Rica, Equador e México. O texto busca,
também, identificar e discutir os fundamentos utilizados
pelos entrevistados para embasar seus entendimentos.
A metodologia contempla uma pesquisa bibliográfica e
entrevistas realizadas com 25 voluntários vinculados às cinco
instituições estudadas. Os resultados evidenciaram que o
chamado tempo livre, e também as compreensões de lazer
e de recreação muitas vezes a ele associado, geralmente
configuram-se como esferas contrárias ao trabalho. Embora
não tenha sido unânime, prevaleceu a compreensão de
tempo livre como aquele que resta após serem cumpridas as
atividades profissionais, obrigações e outros compromissos,
representando um tempo liberado para fazer o que se gosta
e se deseja. Alguns entrevistados explicitaram sua opção por
não utilizar o conceito de tempo livre, salientando as tensões
e contradições que permeiam essa expressão.
Palavras-chave: Atividades de lazer. Recreação. Estudantes.
__________________
*Grupo de Pesquisa OTIUM: Lazer, Brasil & América Latina; CNPq. Santiago, Chile. E-mail:
roelizalde@gmail.com
**Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer. Universidade Federal de
Minas Gerais. Minas Gerais. CNPq/Fapemig. Brasil. E-mail: chris@ufmg.br
1 Tema invesTigado, objeTivo e meTodologia:
conTexTualização da pesquisa
A expressão tempo livre emerge como uma categoria histórico-
social no seio das sociedades ocidentais capitalistas em decorrência,
sobretudo, das transformações geradas pelas revoluções industriais
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Tempo livre: entendimentos enunciados por

participantes de mestrados latino-americanos

em lazer e recreación

Rodrigo Elizalde* Christianne Luce Gomes** Resumo: Este artigo integra uma pesquisa mais abrangente e objetiva analisar os entendimentos de tempo livre de professores, profissionais e estudantes vinculados a cinco programas de mestrado em Lazer/Tempo Livre/Recreação desenvolvidos em quatro países latino-americanos: Brasil, Costa Rica, Equador e México. O texto busca, também, identificar e discutir os fundamentos utilizados pelos entrevistados para embasar seus entendimentos. A metodologia contempla uma pesquisa bibliográfica e entrevistas realizadas com 25 voluntários vinculados às cinco instituições estudadas. Os resultados evidenciaram que o chamado tempo livre, e também as compreensões de lazer e de recreação muitas vezes a ele associado, geralmente configuram-se como esferas contrárias ao trabalho. Embora não tenha sido unânime, prevaleceu a compreensão de tempo livre como aquele que resta após serem cumpridas as atividades profissionais, obrigações e outros compromissos, representando um tempo liberado para fazer o que se gosta e se deseja. Alguns entrevistados explicitaram sua opção por não utilizar o conceito de tempo livre, salientando as tensões e contradições que permeiam essa expressão. Palavras-chave: Atividades de lazer. Recreação. Estudantes.


*Grupo de Pesquisa OTIUM: Lazer, Brasil & América Latina; CNPq. Santiago, Chile. E-mail: roelizalde@gmail.com **Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer. Universidade Federal de Minas Gerais. Minas Gerais. CNPq/Fapemig. Brasil. E-mail: chris@ufmg.br

1 Tema invesTigado, objeTivo e meTodologia:

conTexTualização da pesquisa A expressão tempo livre emerge como uma categoria histórico- social no seio das sociedades ocidentais capitalistas em decorrência, sobretudo, das transformações geradas pelas revoluções industriais

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capitalistas deflagradas na Inglaterra no século XVIII. Segundo Dumazedier (1979) – um dos autores cujo pensamento teórico tem forte influência nos estudos sobre o lazer na América Latina

  • este processo foi verificado não somente nas sociedades urbano- industriais capitalistas, mas também na antiga URSS. Nesse contexto, o chamado tempo livre foi tomado como algo à parte do tempo de trabalho, destituído de finalidades utilitárias ou produtivas e considerado como não obrigatório. Tendo em vista essa compreensão, indaga-se: será esse o entendimento de tempo livre que prevalece entre estudiosos latino-americanos do lazer e da recreação? Essa foi a pergunta central que guiou as discussões empreendidas neste artigo, que é fruto de uma pesquisa mais abrangente e objetiva analisar os entendimentos de tempo livre de professores, profissionais e estudantes vinculados a cinco programas de mestrado em Lazer/Tempo Livre/Recreação desenvolvidos em quatro países latino-americanos: Brasil, Costa Rica, Equador e México. O texto busca, também, identificar e discutir os fundamentos utilizados pelos entrevistados para embasar seus entendimentos. Com relação à metodologia, a investigação realizada teve abordagem qualitativa (LAVILLE; DIONNE, 1999). Para fundamentá-la, foi desenvolvida uma pesquisa bibliográfica por meio do estudo de livros e também de outras publicações relacionadas às temáticas investigadas. A pesquisa foi enriquecida com entrevistas realizadas com 25 voluntários vinculados a cinco instituições que concederam anuência para participar do estudo: (a) Universidad Regional Miguel Hidalgo (URMH), México, que oferece desde 1997 a Maestría en Recreación y Administración del Tiempo Libre; (b) Universidad YMCA, México, que criou em 2004 a Maestría en Recreación; (c) Universidad de Costa Rica (UCR), com a Maestría Profesional en Recreación, que teve sua primeira turma em 2005; (d) Escuela Politécnica del Ejército (ESPE), Equador, que desde 2006 realiza a Maestría en Recreación

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visualizar possíveis aproximações e distanciamentos que marcam cada contexto. Como foi tratado anteriormente, é comum conceber o tempo livre como um tempo de não trabalho, que supostamente estaria isento de obrigações e permitiria a livre escolha, como sugere Dumazedier (1979). Essas ideias foram explicitadas no depoimento de alguns entrevistados das duas universidades mexicanas aqui estudadas, como pode ser verificado a seguir: El tiempo libre como ese número de horas, en la división del tiempo que tenemos todos los seres humanos. Bueno una fracción se refiere a ese tiempo libre, pero estamos hablando más en términos cuantitativos. (E.C.M2.) Entonces por ejemplo, tengo el tiempo libre después de desarrollar todas mis actividades. Es el tiempo que me sobra. (E.P1.M2.) Tiempo libre es una forma de calcular el tiempo liberado… de ocio. Me lo tengo que dar. Ya casi no hablo del tiempo libre. (E.P2.M2.) El ocio y la recreación se tienen que dar en un tiempo libre, libre de tensiones de lo que es la formalidad de un trabajo, la formalidad de estar en casa con los hijos, con la actividad que tú quieras. (E.E.M1.) [...] el tiempo libre pues es el tiempo en cuestión día o noche, el tiempo natural de día que nos queda fuera de todas las obligaciones para realizar algún tipo de actividad y ahí es cuando entra la recreación. (E.P2.M1.) Os depoimentos anteriores revelam que o tempo livre é concebido por entrevistados vinculados aos dois mestrados do México como aquele tempo que resta após o sujeito cumprir suas atividades obrigatórias, ou seja, um tempo liberado. Para configurar o tempo livre eles salientam a divisão temporal e o situam como um tempo que sobra depois das obrigações, incluindo o trabalho formal e toda sua tensão. Tal compreensão coincide com o que foi mencionado por Padilha (2004, p.220):

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Grande parte dos autores que estudam o lazer atribui ao tempo livre a idéia de um tempo em que não se faz nada por obrigação; é, então, um tempo liberto das obrigações no qual se pode optar por fazer alguma atividade prazerosa, descansar ou simplesmente não fazer nada. Entretanto, em outras entrevistas realizadas no México foram ressaltados diferentes elementos para explicitar as compreensões de tempo livre, situando-o para além de um tempo residual e vinculando-o com ocio e recreación. Tiempo libre lo identifico como un espacio, una situación en la cual se puede participar en la recreación. Pero no bajo un concepto residual como lo podríamos tener en lo cotidiano, un tiempo libre que me sobra después de haber cumplido con otras obligaciones. Yo lo quiero ver y quisiera aportar para que cualquier individuo lo identificara como un tiempo que se dedique a sí mismo, que se reserve para que pueda en primera instancia ocuparlo como esa persona quiera con su libre determinación, con autonomía y que no dependa de otras circunstancias más que de su propia decisión. (E.E.M2.) [...] para mí el tiempo libre es justamente, y es la percepción personal, es como yo me enfoco a leer mi libro, a escuchar mi música, a sentarme a ver el atardecer, a platicar con mi pareja. (E.EG.M2.) Esses entendimentos ressaltam o tempo livre como um tempo não residual, um tempo dedicado a si mesmo, com autonomia, visto como resultante da própria decisão e livre determinação do sujeito. Essa percepção qualifica o sentido habitual de tempo livre e pode ser complementada com os seguintes enunciados: Y en el caso del tiempo libre pues hoy en día con todo es el ritmo de vida que tenemos, muchas personas a mí me dicen “es que no tengo tiempo libre”. Yo creo que si todos tenemos. Tenemos que hacernos esos espacios. De qué depende de una administración de tiempo a nivel personal primero. Tenemos que tener claro que el trabajo no

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opor tempo livre e tempo de trabalho. Essa compreensão é bastante comum quando se leva em consideração os significados mais usuais para elucidar esta expressão. Tiempo libre es aquel tiempo que nos queda para disfrutar uno mismo como ser humano después de haber cumplido todos nuestros tiempos de trabajo o de dedicación a la familia, sociales, o sea que es algo que es uno, que es para uno mismo. Porque hay un montón de tiempos, ya analizando bien, entonces el tiempo que uno tiene para hacer cosas que a uno le gustan hacer. (E.EG.E.) Por tiempo libre me inclino más por la postura que un mexicano, Gonzalo Llacas, ha tomado de otros autores extranjeros, decía que el tiempo libre es el continente y el ocio es el contenido. (E.P2.E.) De acuerdo a muchos autores el tiempo libre esta dentro de los ámbitos hablemos laborales. Y también uno puede encontrar ocio en las actividades laborales. Pero el tiempo libre lo ven en cambio desde el otro lado como el término de las horas laborales, las horas de trabajo, las horas de estudio, entonces ahora es el tiempo libre. [...] Pero para nosotros, lo tomamos un poquito más filosófico desde la parte de que el hombre en todo el tiempo tiene un tiempo libre para sentirse crecer, para sentirse que él existe, para sentirse que es un hombre capaz en todos los aspectos y por tanto diríamos que estamos como… para separar, algo así, un poquito. (E.C.E.) Como indicam os comentários dos entrevistados no mestrado do Equador, o tempo livre é concebido como um tempo de “não trabalho”. Em alguns casos, amplia-se a ideia do tempo livre como aquele que fica depois das obrigações laborais e outros compromissos familiares ou sociais, representando um momento para fazer o que se gosta. Por isso, a compreensão de tempo livre vincula-se diretamente com ocio e recreación. O entendimento de tempo livre como uma fração de tempo específica também é comum no contexto do mestrado da Costa Rica, sendo um aspecto mencionado pelos cinco entrevistados:

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Tiempo libre, pues, [es la] porción de tiempo que no está dedicada al trabajo, o al estudio, o a obligaciones familiares o sociales, o de cuidado personal. (E.EG.CR.) Y lo de tiempo libre, con la división del tiempo. Que hay un tiempo para necesidades fisiológicas, otro tiempo para trabajo, estudio y demás, y el restante del tiempo, en donde no tengo que hacer nada obligado, ese sería como el tiempo que yo me dedico. El tiempo libre incluye a la recreación pero son diferentes. (E.E.CR.) [...] tiempo libre es todo aquel tiempo que yo tengo disponible en el cual no estoy realizando alguna actividad que es obligatoria [...]. Eso sería mi tiempo libre. Y es ese sentido este yo identifico al ocio como un tiempo libre. Aunque por ahí hay una conceptualización que se maneja que el tiempo de ocio sería el tiempo libre bien invertido. (E.P2.CR.) [...] el tiempo libre como lo dice es libre de compromisos de todo tipo, laboral, de estudio, sociales. O sea es el tiempo en el que yo decido qué puedo hacer, que actividad quiero hacer, actividad recreativa o actividad no recreativa, porque puede ser actividad de otra índole. Pero al final de cuentas tiempo libre de cualquier compromiso que se tenga. (E.P1.CR.) El tiempo libre es el tiempo que le sobra a la persona después de trabajar, después de la actividades familiares, después de todo. [...] La gente tiene que entender eso que el tiempo libre es el uso que yo le doy correcto, sano, positivo a ese tiempo para estar mejor. Pero después de todas las obligaciones familiares, de trabajo, etc. [...] Entonces nosotros le decimos a la gente que el tiempo libre lo use siempre positivamente para el bienestar propio. Si lo manejamos negativamente, todo mal. […] El tiempo libre negativo uno lo ve ahí en las cantinas, con toda esa gente que anda tomando todos los días de la semana. Están felices dicen ellos, porque hicieron una investigación:

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e para a sociedade podem ser facilmente identificados. Mas, em muitas práticas sociais, eles podem estar dissimulados e não se mostrarem como tal. Além disso, nem sempre existe clareza quanto ao processo de classificação de determinadas ações humanas, fazendo com que algumas sejam naturalizadas e aceitas e outras gerem perplexidade e rejeição. Rojek (2011) é um autor criticado por abordar temas polêmicos, por ele denominados de formas anormais ou desviantes de lazer. O autor argumenta que é no tempo livre que as pessoas, libertas de muitas das restrições que governam o comportamento, gozam de maior autonomia e flexibilidade para agir conforme suas escolhas. Por isso, muitas vezes se envolvem com práticas de lazer taxadas de negativas porque estão relacionadas com a transgressão de regras e de convenções sociais. Fundamentado em pesquisas que discutem a questão do uso de drogas e de álcool, por exemplo, o autor explicita que as pessoas que buscam esse caminho estão vulneráveis a desenvolver “culturas de dependência”, mas, possuem uma variedade de elementos que justificam a motivação subjetiva por fazê-lo. Tudo isso, frequentemente, relaciona-se com a necessidade de liberação de aspectos restritivos da vida cotidiana, o que expressa um forte senso do sujeito sobre si mesmo como diferente e afastado da sociedade (ROJEK, 2011). No presente artigo, reconhecemos que o envolvimento de pessoas com práticas ilícitas pode ser motivado pela busca de experiências novas, emoção, adrenalina, etc., e que muitas vezes elas estão conscientes dos riscos a que se expõem. Em alguns casos, isso pode representar uma estratégia de evasão, mas, em outros, pode significar uma atitude transgressora da ordem social vigente. Assim, consideramos que as diferentes ações humanas são complexas e não têm necessariamente uma causa única – por isso, nem sempre elas constituem atitudes alienadas e autodestrutivas. Temas como esses são polêmicos e geram contradições, mas, não se pode adotar uma postura simplista para tratá-los, o

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que demanda análises mais densas nos estudos sobre o assunto. Assim, as reflexões aqui apresentadas não pretendem esgotar o debate, tampouco fazer uma apologia de práticas comumente consideradas nocivas para a pessoa ou para a sociedade, como o uso de drogas (lícitas ou não) e o vandalismo, por exemplo. O que se almeja é evidenciar que a questão é muito mais complexa do que se supõe e, por isso, requer uma análise de suas causas mais profundas. Isso, seguramente, escapa ao binômio positivo/ negativo, uma visão que precisa ser problematizada, pois, ela pode estar invisibilizando interesses ocultos no chamado tempo livre, silenciando experiências e relações de poder. Os significados de tempo livre também foram discutidos pelos entrevistados brasileiros e instigam outras reflexões que, em alguns pontos, contrastam substancialmente com as compreensões dos entrevistados da Costa Rica, do Equador e do México. Primeiramente, podem ser ressaltada as incertezas e limitações quanto ao uso dessa expressão, como foi indicado no depoimento a seguir. [...] eu nem sei dizer o que é tempo livre para falar a verdade, porque é difícil eu falar o que é um tempo livre porque você sempre está ligado a um monte de coisa. Se o tempo livre for aquele tempo fora do tempo de trabalho, nem sempre você vai utilizar aquilo como lazer [...]. Então eu acho que é difícil diferenciar o que é isso. (E.E.B.) Cabe salientar que, em cada contexto, a vida coletiva frequentemente se organiza em “tempos sociais”, ou seja, em momentos determinados para a realização de atividades ligadas ao trabalho, à família, à educação, ao descanso, etc. A vida social é regida pela articulação desses momentos (PADILHA, 2004). Contudo, o dia a dia nas cidades urbanizadas da atualidade se diferencia de alguns contextos nos quais os tempos sociais são regidos por outras lógicas, muitas vezes conectadas aos ciclos da natureza, e não ao tempo artificial determinado pelo relógio. É assim que, em nossos dias, o principal sentido de tempo livre prevalece como um tempo de não trabalho (GOMES, ELIZALDE, 2009).

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Os entrevistados E.P2.B. e E.EG.B. procuram compreender o tempo livre indo além dessa categoria em termos quantitativos, instigando o repensar crítico sobre os entendimentos que o reduzem a um tempo residual, liberado do trabalho e de outras obrigações. Como já salientado, o tempo fora do trabalho nem sempre será disponibilizado integralmente para o lazer, uma vez que diversas atividades não profissionais são realizadas cotidianamente

  • tais como o trabalho doméstico, dedicação a crianças e adultos que requerem apoio, deslocamentos, necessidades fisiológicas e cuidados pessoais, participação política ou religiosa, entre outras. Assim, mesmo quando se considera que o tempo livre é um tempo que pode ser destinado a atividades prazerosas, tal perspectiva pode reforçar a crença de que se trata de um período neutro, vazio, abstrato e desvinculado de um contexto mais amplo. Uma das entrevistas realizadas no mestrado do Brasil procurou ampliar a compreensão de tempo livre ao enfatizá-lo como tempo disponível e também como tempo conquistado: [...] há um tempo livre sim, que a gente libera para o lazer, é o tempo disponível, porque realmente tudo é em função de normas de convívio social e é um tempo conquistado, porque na verdade, tem duas questões: é uma conquista pessoal e uma conquista para os trabalhadores organizados ao longo da história, dos trabalhos da sociedade. (E.C.B.) De fato, as expressões “tempo disponível” e “tempo conquistado” são utilizadas alternativamente por alguns estudiosos brasileiros devido às limitações que, em geral, estão associadas ao conceito de tempo livre. Quando se opta pela expressão tempo conquistado, geralmente se considera a possibilidade de escolha ou conquista pessoal, ou são feitas associações com as conquistas sociais no campo do trabalho que acabaram possibilitando, em vários países, a adoção de tempos institucionalizados para o lazer: fins de semana, férias e aposentadoria, havendo também os feriados religiosos ou civis. O problema é que os tempos institucionalizados

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não garantem que esses períodos serão, por princípio, destinados ao lazer, o que coloca em realce a importância de ampliar as possibilidades para a sua vivência. (GOMES, 2008) Quando se considera a expressão tempo disponível, na maioria das vezes o que se pretende evidenciar é a existência de um tempo estabelecido fora das obrigações que poderia ser dedicado exclusivamente ao lazer. Sobre esse aspecto, Dumazedier (1979) entende que o tempo de lazer é concedido pela sociedade ao indivíduo quando este se libera, segundo as normas sociais do momento, de múltiplas obrigações. Parafraseando o autor, trata-se de um tempo que a redução da jornada de trabalho e a diminuição das obrigações familiares, sociais e espirituais, assim como “a liberação das obrigações sócio-políticas tornam disponível. [...] Este tempo disponível não é o resultado de uma decisão do indivíduo; é, primeiramente, o resultado de uma evolução da economia e da sociedade.” (DUMAZEDIER, 1979, p.92) Mesmo que as expressões tempo disponível e tempo conquistado busquem superar as limitações que circundam o conceito de tempo livre, elas também são caracterizadas como um tempo fora de trabalho e das demais obrigações. Nesse sentido, todas essas compreensões (tempo livre, disponível ou conquistado) correm o risco de manter a fragmentação da própria noção de tempo na dinâmica social. Para não reforçarem uma visão abstrata do tempo (ELIAS, 1998), tais interpretações precisam ser problematizadas enquanto símbolos de uma instituição social. É necessário considerar, também, a realidade dos contextos hodiernos que não são regidos pelo cronômetro e pela noção de tempo linear. Lógicas distintas podem evidenciar diferentes facetas do tempo como uma construção histórico-social e, por isso, cada realidade singular tem sua própria contemporaneidade. Essas reflexões também são válidas para os contextos amplamente marcados pelas novas tecnologias, os quais desafiam as compreensões tradicionais de tempo de trabalho/tempo livre e alteram substancialmente nossas percepções de tempo e de espaço.

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de “não trabalho” que fica depois das atividades profissionais, obrigações e outros compromissos (familiares, sociais, etc.), constituindo um tempo liberado para fazer o que se gosta e se deseja. Embora essa compreensão não tenha sido unânime e apesar de cada mestrado apresentar peculiaridades no que se refere à abordagem da temática, pode-se dizer que os entendimentos enunciados pelos entrevistados do Brasil, da Costa Rica, do Equador e também do México confirmaram a pergunta central que guiou este artigo: o tempo livre foi majoritariamente concebido como uma fração temporal exterior ao tempo de trabalho, marcado pela não obrigatoriedade e destituído de finalidades utilitárias ou produtivas. Cabe ressaltar, contudo, que nem todos os entrevistados latino- americanos compreendem o tempo livre como um tempo residual do trabalho. Nessa direção, ele foi configurado como um tempo que, por ser vinculado à recreação e ao lazer, pode ser dedicado a si mesmo, com autonomia, sendo resultante da própria decisão e livre determinação do sujeito, como foi destacado principalmente por entrevistados mexicanos e equatorianos. Foi também constatada a ideia de que o tempo livre precisa ser administrado ou controlado para potencializar a sua utilização e, até mesmo, evitar problemas sociais e a ocorrência de vícios, combater o perigo da improdutividade, a preguiça, a vadiagem, a ociosidade e o ócio. Essas questões foram indicadas por alguns entrevistados latino-americanos, especialmente da Costa Rica, que chamaram a atenção para a necessidade de empregar positivamente o tempo livre, o que dependeria do seu uso “correto” e “adequado”. Entretanto, como foi discutido no presente artigo, o que pode ser considerado positivo por algumas pessoas ou em alguns contextos pode representar algo nocivo em outras realidades, o que demanda futuras problematizações e análises sobre o tema. Alguns entrevistados explicitaram sua opção por não utilizar o conceito de tempo livre, salientando as contradições

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que permeiam essa expressão. Essa compreensão foi mencionada somente no contexto do Brasil, onde foi sugerida a importância de repensar criticamente o entendimento que reduz o tempo livre a um tempo residual. Para esses sujeitos, o tempo fora do trabalho não é totalmente liberado e disponível para o lazer, sendo preciso levar em conta outras obrigações e responsabilidades a cumprir além daquelas vinculadas ao trabalho produtivo. Esses resultados evidenciam que o chamado tempo livre, e com isto também as compreensões de lazer e recreação muitas vezes a ele associado, geralmente configuram-se como esferas supostamente contrárias ao trabalho – que, paradoxalmente, são imprescindíveis para a manutenção da força produtiva, complementando-a. No entanto, como afirmou Adorno (2002, p.64), essa lógica que distingue o trabalho do tempo livre, e vice-versa, é permeada de contradições: [...] a distinção entre trabalho e tempo livre foi incutida como norma à consciência e inconsciência das pessoas. Como, segundo a moral do trabalho vigente, o tempo em que se está livre do trabalho tem por função restaurar a força de trabalho, o tempo livre do trabalho — precisamente porque é um mero apêndice do trabalho — vem a ser separado deste com zelo puritano. O autor prossegue: Por um lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer disparates; sobre essa base, repousou outrora o trabalho assalariado, e suas normas foram interiorizadas. Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em nada o trabalho. Esta é a razão da imbecilidade de muitas ocupações do tempo livre. Por baixo do pano, porém, são introduzidas, de contrabando, formas de comportamento próprias do trabalho, o qual não dá folga às pessoas. (ADORNO, 2002, p.64)

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o tempo livre, como um fenômeno social, também seja cheio de contradições”. Por isso, ele pode ser tanto um tempo de alienação e consumismo ou, em contrapartida, ser um tempo de reflexão e de práxis que possibilita o questionamento e a transformação da ordem social vigente, no sentido de alcançar uma existência mais justa e solidária. Considerações como essas colocam em evidência a relevância de lembrar as lutas pela redução das jornadas de trabalho e ampliação do chamado tempo livre. Especialmente nas sociedades que seguem a lógica capitalista e/ou de produtividade exacerbada (como China e outros países não capitalistas, sobretudo asiáticos), onde as jornadas de trabalho alcançam ou até mesmo superam 15 ou 17 horas por dia. A jornada de 8 horas diárias e 48 semanais, com um dia de folga por semana, foi efetivada em diversos países após a 1ª convenção realizada em 1919 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), mas, esses direitos trabalhistas estão sendo gradativamente perdidos (ELIZALDE, 2008). Assim, apesar dos avanços, em muitos casos se perdem conquistas geradas por meio de grandes lutas operárias, laborais e sindicais, as quais marcaram decisivamente muitos países nos séculos XIX-XX. Com isso, as reivindicações e conquistas decorrentes de muitas lutas vêm sendo deterioradas e perdidas em decorrência da precarização do trabalho, que é uma das consequências da tão aplaudida globalização econômica neoliberal. Em contextos de flexibilização laboral, já não se conta com a estabilidade almejada por milhões de trabalhadores e, em muitos casos, se evidencia a incerteza quanto à possibilidade de manter um emprego no futuro (WERNECK, STOPPA, ISAYAMA, 2001; GOMES; ELIZALDE, 2009; 2012). Considera-se fundamental reconhecer que o debate sobre o chamado tempo livre no contexto dos estudos do lazer coloca em evidência discussões tão relevantes como essas. Reconhecer essa importância não significa, contudo, que o chamado tempo livre tenha que ser limitado a um tempo residual do trabalho; que a visão

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dicotômica entre trabalho e lazer tenha que ser reforçada, tampouco que o lazer tenha que ser discutido exclusivamente no âmbito do trabalho. Afinal, o contexto do trabalho é uma das possibilidades para se analisar o lazer, mas, não é a única, sendo pertinentes e igualmente relevantes inúmeras outras abordagens que consideram diversas dimensões e múltiplos outros campos da vida social. Em suma, mesmo que a expressão tempo livre seja parcial e insuficiente para expressar as contradições, tensões e realidades difusas, multidimensionais e complexas existentes na vida social atual, esta pesquisa evidenciou que ela ainda é bastante empregada no contexto de cinco mestrados latino-americanos em Lazer e Recreação. Por isso, um dos desafios que se colocam para os estudiosos do tema é entender o tempo livre como uma instituição social, como indicado por Elias (1998). Ou seja, compreender o tempo livre como uma construção social resultante de um longo processo de coerção, autodisciplina e aprendizagem vinculado ao trabalho produtivo, que simboliza algumas das contraditórias representações socialmente incorporadas na vida cotidiana. Assim, embora as tensões e as contradições que permeiam o chamado tempo livre sejam recorrentes, considera-se essencial questionar e repensar sobre diferentes aspectos que envolvem sua discussão no âmbito dos estudos do lazer, bem como as possibilidades e impossibilidades de sua concretização na América Latina e em outras realidades.