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Tempo e Dispositivo em Films de Cao Guimarães: Intersecção Doc-Arte Contemporânea, Notas de aula de Lógica

Este artigo explora como os filmes de cao guimarães representam a intersecção e circulação crescente entre documentário e arte contemporânea. O autor discute como cineastas que trabalham principalmente no documentário criam instalações para museus e galerias enquanto artistas expandem suas criações para o campo das imagens documentais. O artigo também examina os procedimentos por meios dos quais o artista mineiro se confronta com estéticas, éticas e metodologias do documentário para filmar personagens solitários, muitos deles à margem da modernidade capitalista. As construções temporais em seus filmes privilegiam a acuidade sensorial do espectador, oferecendo novas experiências sensíveis e imprimindo mudanças em nossa percepção do mundo.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Tempo e Dispositivo
nos Filmes de Cao Guimarães
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Tempo e Dispositivo

nos Filmes de Cao Guimarães

março 2014

Tempo e Dispositivo

nos Filmes de Cao Guimarães

por Consuelo Lins i

Os filmes de Cao Guimarães expressam de forma exemplar um cruzamento e uma circulação cada vez mais intensos entre documentário e arte contemporânea, domínios até pouco tempo distantes, e mesmo hostis entre si. Cineastas que trabalham prioritariamente no documentário criam instalações para serem expostas em museus e galerias ao mesmo tempo em que artistas expandem suas criações para o campo das imagens documentais. Os cinco longas metragens de Cao Guimarães são fortemente marcados pela fotografia, filmes experimentais e vídeos instalações que o artista realiza desde o início dos anos 90. O fato de Andarilho, seu documentário mais recente, ter sido escolhido para a abertura da 27a Bienal de São Paulo (2006) é mais um indício da fértil porosidade de fronteiras entre esses dois campos artísticos.

Dois aspectos se destacam na passagem do artista de um campo a outro: primeiro, a observação silenciosa do mundo praticada na fotografia e em filmes experimentais e tão bem retomada pelo cineasta ao filmar trabalhadores de ofícios em vias de extinção (O Fim do Sem Fim 2001), um ermitão (A Alma do Osso 2003), três andarilhos (Andarilho 2007) ou ainda o tempo que passa nas pequenas cidades mineiras (Acidente 2005); em seguida, a invenção de dispositivos para produzir uma obra, operação utilizada em certos curtas metragens e instalações e recuperada para realizar filmes como Acidente e Rua de Mão Dupla (2003).

É particularmente por meio desses procedimentos que o artista mineiro se confronta com estéticas, éticas e metodologias do documentário para

filmar personagens solitários, a maioria deles à margem da modernidade capitalista, mas atravessados por ela; em outras palavras, para filmar o “outro”, questão central da tradição documental. E encontra assim, a seu modo e por conta própria, um certo cinema contemporâneo feito de planos seqüências que duram, realizado por cineastas que acreditam que, mais do que de imagens, o cinema se constitui de blocos de espaço tempo (Gus Van Sant, Abbas Kiarostami, Alexandre Soukourov, Mercedes Alvarez, entre outros). As construções temporais contidas nesses filmes privilegiam a acuidade sensorial do espectador, propõem novas experiências sensíveis e imprimem mudanças em nossa percepção de mundo.

O tempo como matéria do filme

Em O Fim do Sem Fim, A Alma do Osso e Andarilho, Cao Guimarães fabrica, através de longos planos seqüências, imagens que perturbam as definições, habituais no cinema, de imagens “objetivas”, registradas do ponto de vista da câmera e portanto do diretor, e imagens “subjetivas”, atribuídas aos personagens. Alterações que o cineasta obtém a partir de enquadramentos fotográficos precisos nos quais ele insufla tempo; imagens de texturas diferente, fruto da mistura de suportes (vídeo, super 8, 16 mm) presente em quase todos os seus filmes. São planos menos ligados às temáticas do filme, mais poéticos, livres, frágeis.

Em Andarilho, por exemplo, o cineasta faz uso desse procedimento, levando o ao limite. Extrai das estradas pelas quais perambulam os

março 2014

imagens prontas, sem sucumbir nem ao caos nem aos clichês. Ou, como diria J. L. Comolli, “como fazer para que haja filme”^2? Cao Guimarães e Pablo Lobato decidem se apegar às palavras: criam um dispositivo poema e, de posse dele, começam a filmar. Mas não são palavras quaisquer retiradas do dicionário – poderia ser, mas seria outro filme.

São nomes de cidades mineiras cuja lista eles pesquisaram na internet. Selecionaram cem e as imprimiram. Espalharam os papeis sobre a mesa e começaram a brincar com as palavras. Sonoridades, sentidos, materialidades, ressonâncias: foi isso que contou para os cineastas e não um conhecimento prévio da realidade das cidades, das quais aliás eles ignoravam tudo. Chegam a um poema com 20 nomes que evoca uma fábula de amor e dor: Heliodora, Virgem da Lapa, Espera Feliz, Jacinto Olhos d’Água. Entre Folhas, Ferros, Palma, Caldas, Vazante, Passos. Pai Pedro Abre Campo, Fervedouro Descoberto, Tiros, Tombos, Planura, Águas Vermelhas, Dores de Campos.

O dispositivo poema torna se portanto uma máquina de produzir imagem e adquire, como todo dispositivo, um certo poder sobre os cineastas. Decide por eles onde vão filmar; retira deles o direito de recusar uma cidade caso não gostassem dela, porque nesse caso o poema deixaria de funcionar. Diminui o excesso de intencionalidade. É um jogo, que tem suas regras, às quais eles devem se submeter. Não se trata em absoluto de adaptar palavras às coisas, nomes às cidades, mas construir uma forma de se confrontar com o caos do mundo sem submergir, de imprimir uma direção inicial, abrindo ao mesmo tempo o filme aos acasos, imprevistos e imponderáveis do real.

Os documentários que resultaram desses dispositivos são profundamente distintos entre si.

Acidente possui traços em comum com os filmes constituídos de planos seqüências, mas não há propriamente personagens nem temas. São blocos de espaço tempo que capturam a duração, em várias camadas, nas cidades do interior de Minas, e nos fazem ver e sentir “um pouco de tempo em estado puro”^3 , à maneira de Ozu. Onde Acidente mais parece se aproximar da imagem estática da fotografia, é justamente onde mais se distancia, em função da duração. Na cidade de Entre Folhas, por exemplo, vemos o cair da tarde do balcão de um bar onde praticamente nada acontece, a não ser os movimentos infra ordinários do seu proprietário ou a rara circulação de carros e pessoas do lado de fora. Na cidade de Palma, o filme se atém a uma ladeira em que os tempos mortos se alternam com micro acontecimentos.

O filme inteiro é capturado por uma espécie de inação, que contamina personagens e cineastas. O espectador também é envolvido nesse circuito em que as conexões entre palavras e coisas, nomes e cidades, acontecimentos e personagens, são tênues, frágeis e, finalmente, de pouca importância. Trata se de um filme em que a dimensão propositiva se mistura à uma dimensão mais plástica, contemplativa e formal, mesclando em um só tempo dois movimentos que Cao Guimarães identifica em sua trajetória, em trabalhos diferentes.

Quanto à Rua de Mão Dupla, a grande invenção do filme, responsável pela solidez da proposta, é a solicitação do diretor de que os “outros” em questão, os participantes do filme, se interessem por outros e não por eles mesmos; atitude que redireciona o desejo da “besta da confissão”^4 em que nos transformamos a partir do momento em que uma câmera é postada diante de nós. Cao Guimarães não quer que eles se voltem para si, que falem de suas vidas, que se revelem para a câmera; pede, antes, que falem de pessoas desconhecidas e filmem casas alheias. A mudança

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do foco do “eu” para o “outro” faz com que os personagens fiquem menos atentos a autocontroles, censuras e filtros que normalmente acionamos para oferecer a imagem que desejamos de nós mesmos. A maneira como se relacionam com o espaço alheio, o que escolhem filmar, o que dizem, como falam, palavras, sintaxes, entonações que colocam em cena, tudo isso revela muito mais deles mesmos do que poderíamos esperar. São imagens do outro fortemente embebidas da visão de mundo e dos afetos daquele que filma.

O que o filme mostra de modo cristalino é o quão encharcado de memórias e afecções corporais é nosso olhar sobre o mundo, o quão arraigados somos a determinadas maneiras de ver e sentir, o tanto que ignoramos nossos preconceitos, o tanto de impossibilidade de nos colocarmos no lugar do outro, de aceitá lo na sua diferença e singularidade. Em suma, nos mostra que “estamos” onde menos esperamos, não especialmente no “conteúdo” do que dizemos ou pensamos de forma consciente, tampouco em uma “interioridade” prévia, já dada, mas em “toneladas de subjetividades”^5 que se constituem e se expressam na nossa relação com o mundo e com o outro. Através de um gesto à primeira vista pequeno alterar a direção do que se solicita aos personagens em grande parte dos documentários baseados em conversas – o cineasta imprime um estrondoso deslocamento em relação a todas as querelas em torno da "voz do outro" que atravessam a história do documentário.

i (^) Publicado no livro “Cao Guimarães, Edição Caja de Burgos, Espanha, 2007. (^1) Cao Guimarães, no texto na contracapa do vídeo Rua de Mão Dupla. (^2) “Sob o risco do real”, in Catálogo do 5o Festival do filme documentário e etnográfico. Belo Horizonte: novembro de 2001, pp. 99. (^3) Gilles Deleuze, referindo se ao cineasta japonês, em A Imagem Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2006. (^4) Expressão de Michel Foucault em História da Sexualidade 1, A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1984. (^5) Expressão de Peter Pál Pelbart, in Vida Capital, Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.20.