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Uma análise sobre a cultura popular medieval, especificamente sobre as cantigas de escárnio e maldizer e o papel do riso na sociedade daquela época. O texto discute a importância de estes textos na manutenção do laço social, sua interpretação e execução, além de sua relação com o clero e a igreja. O autor também destaca a riqueza documental desses textos e a importância de analisá-los dentro do contexto da cultura popular medieval.
O que você vai aprender
Tipologia: Exercícios
Compartilhado em 07/11/2022
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Subversion and laughter in the galician-portuguese satiric songs from the 13th century Bruna Santos de Camargo 12 Resumo: Neste estudo analisamos como as sátiras galego-portuguesas do século XIII evidenciam uma visão risível do mundo, com um riso que subvertia a seriedade dos princípios religiosos e cortesãos em bufonarias e gracejos. As estruturas e regras sociais e religiosas em vigor davam lugar ao riso dos trovadores e jograis que andavam de cidade em cidade, pelas cortes e praças públicas ridicularizando a sociedade e os seus valores, com vocabulário obsceno e histórias escandalosas. No entanto, observamos que tudo isto não implicava, necessariamente, na negação desses valores e princípios, mas que havia momentos e espaços onde o riso encontrava liberdade para ser manifestado em abundância, e dele participavam pessoas de diferentes camadas sociais. Palavras-chave: sexualidade; idade média; trovadorismo. Abstract: In this study we analyze how the Galician-Portuguese satires of the 13th century show a laughable view of the world, with a laugh that subverted the seriousness of religious and courtier principles in buffoonery and jokes. The social and religious structures and rules in force gave way to the laughter of troubadours and jongleurs, who walked from city to city, by palace courts and squares ridiculing society and its values, with obscene vocabulary and scandalous stories. However, we observed that all this did not necessarily imply the denial of these values and principles, but that there were moments and spaces where laughter had freedom to exist in abundance, and in which people from different social layers could participate. Keywords: sexuality; Middle Ages; troubadours. Na esteira do século XIII florescia na Europa com todo o vigor o movimento trovadoresco. Com raízes na cultura popular 3 dos povos nativos da Europa ocidental e, (^1) Mestre em História Social pela Universidade Estadual de Londrina (2020). Graduada em História (2017) pela mesma instituição. (^2) Este trabalho foi desenvolvido com a orientação de Angelita Marques Visalli (UEL) e contou com o fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). (^3) Entendida aqui pela proposição de Paul Zumthor, que concebe a cultura popular do medievo como uma “comodidade que permite o enquadramento dos fatos; refere-se a usos, não a uma essência” (1993, p.118) não tem relação com grupos sociais, uma vez que, o que torna essa cultura ‘popular’ é justamente a “tendência a alto grau de funcionalidade das formas, no interior de costumes ancorados na experiência cotidiana, com desígnios coletivos e em linguagem relativamente cristalizada” (ZUMTHOR, 1993, p.119). Cultura popular é entendida aqui, como uma cultura com ampla participação dos diferentes grupos e camadas sociais; é popular não em oposição à uma suposta cultura erudita, mas porque abarca uma diversidade de pessoas, e nela todos (ou pelo menos uma maioria) encontram algum tipo de identificação. Assim também, concordamos com Macedo, segundo qual, “Os elementos que hoje costumam ser rotulados como ‘cultura popular’ podiam ser encontrados nos diferentes setores da sociedade. Participantes de diferentes situações no plano social, político ou econômico, os grupos sociais não se encontravam completamente distanciados no plano das sensibilidades e comportamentos, participando de um modo de agir e de pensar partilhado por todos” (2000, p. 233).
também com elementos da cultura greco-romana, os trovadores, jograis, menestréis e soldadeiras eram artistas com múltiplas habilidades: cantores, poetas, recitadores, compositores, intérpretes, dançarinos... Sua arte consistia numa miscelânea muito bem sucedida de vida cotidiana, aspirações e imaginação. O resultado disso eram canções, contos, provérbios, poesias e prosas sobre amor, amizade, vida religiosa, natureza, política e diversos outros temas. José d’Assunção Barros define esses artistas como: [...] atores sociais que anunciaram um novo cenário na grande aventura medieval e que se contrapuseram àquelas já conhecidas figuras do monge em clausura, do servo da gleba, no nobre encastelado e de outras que tradicionalmente remetem à pesada estabilidade medieval (2007, p. 86). Figuras essas já evidenciadas pela historiografia. Por ser um grupo heterogêneo é difícil precisar sua posição. Poderiam ser clérigos errantes, membros da cavalaria, funcionários da corte ou o próprio monarca. Esse movimento teve seu desenvolvimento a partir do século XI e perdurou até o XIV. Embora esteja fortemente ligado à cultura agrária, foi nos centros urbanos em crescimento que o trovadorismo conheceu sua forma mais plena. Era nas praças públicas, nas cortes reais e nas festas populares que os artistas revelavam e exibiam seus talentos. A arte dos trovadores medievais foi expressa em diferentes gêneros, como dito anteriormente, como contos, canções, poesias etc. Para este estudo voltamo-nos para o gênero das cantigas de escárnio e maldizer galego-portuguesas. Optamos por fazer o recorte espacial em virtude das especificidades que podem ser observadas na literatura risível de cada região da Europa medieval. As fontes são analisadas aqui como estudo de caso e compõem um conjunto de três manuscritos: o Cancioneiro da Ajuda, Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Portugal e o Cancioneiro da Vaticana. Essas obras reúnem cantigas compostas por trovadores galego-portugueses no século XIII, onde encontram- se os gêneros de amor, amizade e escárnio e maldizer. O Cancioneiro da Ajuda, de acordo com Massini-Cagliari (2015), é o mais antigo dos três, e é o único contemporâneo aos trovadores. Nesse estudo são utilizadas duas edições críticas dos cancioneiros, uma de Graça Videira Lopes ( 2002 ) e a outra, de Manuel Rodrigues Lapa ( 1971 ). A diferença básica
uma ou mais vezes, de um estado virtual à atualidade e existiu na memória de certo número de indivíduos. O índice adquire valor de prova indiscutível quando consiste numa conotação musical, duplicando as frases do texto manuscrito (ZUMTHOR, 1993, p. 35). Assim, os índices de oralidade podem ser observados a partir de palavras que exigem certa entonação vocal, expressões que denotem posturas ou também gírias e acompanhamento musical. É importante discutir de antemão a inserção das cantigas em uma tradição de poesia oral porque esse fator não pode ser deixado de lado ao se fazer uma leitura dessa literatura como fonte histórica. Essa tradição estava, muitas vezes associada às festividades ou momentos de divertimento, e o que caracteriza as cantigas como jogralescas ou trovadorescas é justamente sua performance perante uma plateia. As sátiras trovadorescas precisam ser lidas e interpretadas a partir da noção de que faziam parte de um espetáculo público, e eram escritas para tal. Riso das Sátiras Trovadorescas A literatura medieval, como sabemos, é vasta e diversificada. Mas por que buscar respostas para nossas indagações acerca do passado nesta literatura? Porque a literatura é um produto de seu tempo, que comporta estruturas de valores e significados próprios do lugar e do período de sua concepção. Na poesia, existe um conteúdo social, que, de acordo com Antônio Cândido, [...] depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais (CÂNDIDO, 2006, p. 30). Além disso, as cantigas trovadorescas são fontes não oficiais, oriundas da cultura popular medieval, distante de toda a seriedade e formalidade dos ambientes religioso e político, o que proporciona ao historiador uma investigação a partir de outro ponto de vista, uma história contada não pelas autoridades oficiais, é uma perspectiva completamente diferente. Trata-se de uma história que nasce e floresce na praça, nas ruas,
nas festas e multidões, que é vivenciada na fala, nas trovas, nos ritmos e danças, nas palmas, nas brincadeiras, nas gargalhadas; é uma história que acontece no riso. Nesse extenso corpo poético, escolhemos as cantigas de escárnio e maldizer. Um gênero bastante rico, e que chama muita atenção pela natureza de seu conteúdo, bem como pela forma como os trovadores se expressavam. Diferentemente das cantigas de amor e de amigo, que apresentam uma linguagem própria do estilo cortesão, e que falam das coisas refinadas, as cantigas satíricas têm um vocabulário informal, obsceno, bruto, de riso livre, onde a presença do erótico é frequente, assim como referências ao baixo corporal, aos órgãos sexuais, às necessidades fisiológicas. E qualquer pessoa poderia ser alvo do humor pungente dos trovadores: camponeses, cavaleiros, reis, comerciantes, integrantes do clero, qualquer um: Os trovadores expunham nas cantigas de escárnio e maldizer a mesma visão galhofeira notada no domínio occitânico em relação ao gênero poético destinado às questões amorosas. Não pouparam os seus confrades, nem os nobres arrogantes ou demasiadamente avarentos. O vocabulário insultuoso preponderava em peças nas quais rivalizavam sobre suas potencialidades sexuais, difamando os fracos e os efeminados, os excessivamente castos e os que amavam em exagero (MACEDO, 2000, p. 160). A literatura satírica medieval contrapõe-se ao tom romântico das poesias amorosas, dos cantares de lamento ou ainda dos que celebram a amizade ou elementos da natureza, ela na verdade, transforma estes elementos em seus opostos. Mas acima de tudo, essas poesias são cômicas, não são sérias. As sátiras contrapõem-se à seriedade exigida para a vida religiosa do medievo e, justamente por isso, são subversivas. A Reforma Gregoriana (séculos XI-XIII), como resultado de movimentos em defesa da autoridade da Igreja, do combate à simonia e pelo aperfeiçoamento da espiritualidade cristã, teve papel importante na determinação de um rigor moral apurado para a vida eclesiástica, a superioridade espiritual do clero se assentaria na premissa de que os religiosos estariam mais próximos da perfeição cristã em razão de uma vida de renúncia aos prazeres do mundo, rigor esse que contava, entre outras coisas, com a instituição do celibato: Para Gregório VII, aquele que celebrava o sacrifício da missa devia ser a imagem do Cristo e a castidade do filho de Deus postulava do ministro do culto. Consagrado ao serviço permanente de louvor oferecido por Jesus ao Pai celeste,
De trobar: E[u] doutra Martin Colhar. Don Domingo, non podedes ............................................ Que com a pissatragedes ....................................... Mais como mo[o] a fodedes ..................................... E sobides e decedes, Quabrand’ i vossos colhões. Por aquesto, Don Domingo, Non digades que m’enfingo De trobar: E[u] doutra cinta me cingo e doutra Martin Colhar. Don Domingo, vossa vida É com pea, Pois Marinha jaz transida E sem cea, Per que vos aa sobida Cansou essa cordovea: Ficou-vo-lapissaespida, Que já xe vos [non] enfrea. Por aquesto Don Domingo, Non digades que m’enfingo De trobar: E[u] doutra cinta me cingo e doutra Martin Colhar. No texto, o autor satiriza o clérigo Domingo Caorinha, isto porque, de acordo com a cantiga ele teria dificuldades relacionadas ao seu desempenho sexual, e ainda cita
do clérigo não funciona, que sua vida anda para trás, tanto que a soldadeira tinha de se satisfazer com os dedos. Severando segue sua sátira afirmando que ao tentar satisfazer sua parceira, o clérigo perdia seu tempo, pois tudo o que conseguia era deixar exausto o órgão sexual da moça,
O autor não menciona a sexualidade do clérigo relacionando-a ao seu ofício religioso, nenhum tipo de confrontamento nesse sentido é observado, parece apenas a sátira pela sátira, a religiosidade parece ficar em segundo plano. O fato de o clérigo ter uma parceira sexual não é alvo do trovador, que se ocupa apenas da suposta incapacidade de Don Domingo. Este teor ácido e informal das sátiras trovadorescas, levantam questionamentos acerca da sociedade ibérica medieval, acerca dos limites e liberdades, acerca dos costumes. Como em um período tão marcado pelos ideais da cultura religiosa cortesã pôde florescer uma literatura tão informal, na contramão de tudo o que era idealizado como sublime? A própria literatura de cavalaria era um veículo para a instituição dos códigos de conduta reservados à aristocracia, com intenção de educar as pessoas para terem atitudes delicadas, serem habilidosas nos diálogos, perspicazes nos jogos de palavras, artificiosas nas sátiras e alusões, gentis no comportamento e refinadas nos gestos. E ainda assim, no seio dessa sociedade, floresceu uma poesia que apreciava o rompimento das regras de civilidade, a bufonaria, bebedeiras, fanfarronadas. E o que chama ainda mais a atenção é o fato desse humor alcançar membros do clero, e, também a existência de clérigos trovadores. Pela cantiga abaixo pode-se observar a rudeza e o despudor dos versos endereçados à uma abadessa: A vós, Dona abadessa, de min, Don Fernand'Esquio, estas doas vos envio, por que sei que sodes essa dona que as merecedes: quatro caralhos franceses e dous aa prioressa. Pois sodes amiga minha non quer 'a custa catar, quero-vos já esto dar ca non tenho al tanaginha: quatro caralhos de mesa que me deu ũa burguesa, dous e dousena bainha. Mui bem vos semelharan ca sequer levan cordões de senhos pares de colhões; agora vo-losdaran: quatro caralhos asnaes,
adepta de práticas de obtenção do prazer sexual. O tom desta cantiga é bastante cru, jocoso, e o autor não deixa nas entrelinhas aquilo que pretende dizer. A próxima cantiga 7 de nosso estudo foi composta por Afonso Gómez 8
. Ela começa, em ambos os códices, com a seguinte rubrica: “Aº Gomez, jograr de Sarria, fez esta cantiga a Martim Moxa”. O nome do autor está escrito, no Cancioneiro da Biblioteca Nacional e no Cancioneiro da Vaticana de forma abreviada, e geralmente esta abreviação aplicava-se aos nomes Afonso e Alvaro. Lapa (1965) e Lopes (2002) optam por Afonso. Lopes justifica que o nome era mais comum no período (1245). Martin Moxa, a mia alma se perca Polo foder, se vós pecado avedes, Nen por bõos filhos que fazedes; Mais avedes pecado pola erva Que comestes, que vos faz viver Tangran tempo, que podedes saber Mui bem quando naceuAdan e Eva. Nenoutrossi dos filhos barvados Non voa acho i por [gran] pecador, Se non dos tempos grandes traspassados, Que acordades, e sodes pastor. De que tempo podíades ser, Quand’ estragou ali o Almançor? De profaçar a gente sandia Non avedes por que vos embargar Nen por que filhardes em vós pesar, Ca non dizen se non com perfilha. Dizede-m’ ora, se Deus vos perdon Quando nascestes vós? Ant’ a sazon que encarnou Deus en Santa Maria? Nesta cantiga o trovador tem por alvo Martim Moxa (outra possibilidade é Moia), um clérigo e trovador. A cantiga é toda permeada de sarcasmo e ironia: na primeira parte o trovador diz, ironicamente, que o pecado de Moxa não era o de ter feito bons filhos, mas sim o de ter consumido uma erva cujas propriedades o proporcionavam longevidade, e o (^7) Lapa, 1965, p.93; CBN. 886; CV. 470. (^8) Jogral do qual pouco se sabe. Segundo LOPES; FERREIRA, et al (2011) ele teria nascido em Sarria, vivendo no período final do reinado de Afonso X, sendo esta cantiga a única trazida pelos códices italianos.
poder da erva seria tal que Moxa seria capaz até mesmo de saber quando nasceram Adão e Eva. O trovador continua a mencionar o fato de o clérigo ter uma vida sexual, dizendo que na verdade o que faz dele um grande pecador não é o fato de ter filhos já com barba (insinuando que o clérigo há muito tempo não atendia à exigência do celibato), e novamente zomba, alegando que seu grande pecado era o fato de há muito tempo ter consumido a erva que lhe deu longevidade. Além das práticas sexuais e de feitiços o autor ainda ironiza ao dizer que também não era seu grande pecado falar mal de pessoas loucas, que acusam-no disso por teimosa, e finaliza questionando sobre quando teria sido a encarnação de Deus em Santa Maria, ou seja ele seria tão velho que saberia contar com detalhes a história do menino Jesus. Ao longo de toda a cantiga o trovador satiriza o clérigo, escarnecendo do não cumprimento do celibato, do envolvimento com práticas de feitiçaria e ainda de cometer o pecado de maledicência, sendo os dois primeiros os mais enfatizados. O vocabulário aqui não é tão obsceno como nas cantigas anteriores, entretanto é evidente o forte tom de ironia utilizado pelo autor. Observa-se o tom forte de ridicularização, de escárnio, os trovadores não poupavam palavras indecorosas para compor suas cantigas, e valorizavam nas narrativas o rompimento dos valores morais e religiosos: [...] a subversão dos limites dessas estruturas é, entretanto, muito evidente e expõe com tolerância surpreendente relações até ousadas entre os envolvidos, de maneira muito mais imprevisível do que se podia imaginar numa sociedade em transformação, porém, concretamente hierarquizada numa estrutura estamental com predomínio ainda da nobreza de sangue (CESCHIN, 2010, p. 288).^9 A Igreja na Idade Média adotou uma postura séria em relação ao riso, na relação de fé entre o homem e Deus, de acordo com Macedo (2000, p. 53) “a busca da interiorização far-se-ía pelo controle da palavra e do gesto, pela educação do corpo, negação dos apetites carnais, contenção dos impulsos desordenados”, e o riso seria um desses impulsos (^9) Relações de poder nas cantigas galego-portuguesas. In: O Portugal Medieval: monarquia e sociedade. Carlos Nogueira (org). São Paulo: Almdeida, 2010.
rosto, tanto ao apresentar-se perante Deus, como frente aos fiéis, e durante as pregações “os franciscanos entregavam-se a verdadeiras palhaçadas durante seus sermões” (MINOIS, 2003, p. 216). Os pregadores mendicantes também incorporaram o riso à sua prática, lançando mão de pequenas histórias cômicas e contos, contendo ao final uma moral que deveria alertar os ouvintes quanto às suas práticas pecaminosas. As mulheres costumavam ser o alvo principal dessas histórias, que falavam de mentira, sedução, astúcia, brigas e outras práticas facilmente associadas, na época, ao comportamento feminino (MINOIS, 2003). O riso dos pregadores é um riso “de exclusão que recorre à cumplicidade do auditório para lançar a ovelha negra nas trevas eternas” (MINOIS, 2003, p. 218), e justamente por falar mais ao público feminino, é que este era maioria nos sermões, desenvolvendo grande poder de influência dos pregadores sobre as mulheres, para mantê- las obedientes aos seus pais, maridos e à Igreja. O desenvolvimento das cidades a partir dos séculos XI e XII possibilitava às mulheres novas oportunidades de comportamento, de trabalho, de lazer, de relacionamentos e isso não agradava ao poder eclesiástico, por isso o “riso do pregador procurava ridicularizar a imagem dessa mulher moderna emancipada” (MINOIS, 2003, p. 218). A ridicularização feminina na literatura medieval pode ser interpretada como resultado de um medo frequentemente cultivado por autoridades eclesiásticas e leigas. Jean Delumeau analisa uma variedade de sermões, tratados, provérbios e outros documentos em que homens relacionam uma diversidade de defeitos à figura da mulher. Desde a culpa pela queda no Paraíso até práticas de feitiçaria, a mulher era frequentemente associada ao maligno, uma inimiga em potencial da integridade espiritual do homem. Para o autor, “o medo da mulher não é uma invenção dos ascetas cristãos. Mas é verdade que o cristianismo muito cedo o integrou e em seguida agitou esse espantalho até o limiar do século XX (DELUMEAU, 1989, p. 468). Apesar da exaltação feminina promovida pelo culto mariano e pela literatura cortesã, o caráter até sagrado da mulher mãe, geradora de vida coexistia com o receio dessa figura que poderia levar os homens a ruína com sua sedução e aptidão para as os vícios da carne. Assim, fazer das mulheres alvo de escárnio poderia ser uma forma de exorcizar um medo fomentado por séculos, nas palavras de Minois: “diante do
grande medo, o grande riso” (2003, p.243). Não se pretende, contudo, fazer uma generalização, colocando este princípio como regra, uma vez que o riso dos trovadores poderia comportar o medo, mas também, e sobretudo, o espírito lúdico e festivo. Além das mulheres, o riso dos pregadores alcançava ainda os próprios membros do clero, de modo que através do humor eram criticados os desvios de comportamento, preparo musical e teológico insuficiente, corrupção política, a má gestão de recursos da Igreja e criticavam também sermões de eclesiásticos. Minois (2003) cita o exemplo de Jean Pauli que falava contra os longos sermões, como os dos Domingos de Ramos, os quais poderiam durar até oito horas, e cujo único efeito seria o de causar sono nos ouvintes e exaustão no próprio pregador. Outro exemplo elencado pelo mesmo autor é o da história de Étienne de Bourbon, no qual um clérigo de renome faz um discurso acalorado sobre pobreza e miséria, utilizando a imagem de Jesus montando um burro, ao final ele sai escoltado, bem vestido e em um belo cavalo. Uma senhora diz perante todos “ó mestre, dizei-me, foi desse burro e de tal cavaleiro que nos falastes? Ele se calou, confuso” (2003, p. 219). No fim das contas essas zombarias tinham por objetivo “restaurar a dignidade eclesiástica num clero decadente, cujas virtudes são degradadas pelos efeitos corruptores de uma sociedade urbana que multiplica as tentações” (2003, p. 221). O riso dos pregadores, diferente do riso dos trovadores por exemplo, é um recurso a serviço da moral cristã, combatendo a maldade e os vícios pela sua ridicularização, esse riso não é um fim em si mesmo, é um meio para um fim, um instrumento. A despeito do riso dos religiosos, elencamos o riso dos clérigos: trata-se de hinos e textos litúrgicos que contém tropos e interpolações onde prevalecem o burlesco e o cômico, entre canções piedosas e aspirações espirituais situavam-se gracejos indecorosos. Essas canções, de influência goliarda, eram compostas não necessariamente por clérigos importantes, e fundamentavam-se na paródia, misturando idiomas e relacionando sagrado e profano. E assim como no riso dos pregadores, nessas canções os clérigos satirizavam o próprio corpo eclesiástico, principalmente a cúria romana, e a política: esse riso atravessava a pesada e séria liturgia, sob as preces decoradas e recitadas sistematicamente surgiram
ligada não ao quanto ele reproduz de determinados contextos, mas ao modo pelo qual ele dialoga com o meio em que foi gerado (2000, p. 188). Na poesia satírica, os temas geralmente são relacionados à vida das pessoas, a elementos e situações do cotidiano, mas isto não significa que este cotidiano esteja descrito com exatidão nas narrativas poéticas, nem que os casos e acontecimento nelas citados tenham de fato ocorrido. E isto porque essa poesia reflete uma determinada perspectiva, através de uma forma bem específica, que é a via do riso e, então, lança-se mão na lírica trovadoresca de todo um caráter subversivo e autoderrisivo. Alfredo Bosi traz uma interessante reflexão sobre a questão: “qual fase da História foi vivida só de instantes, pura e abstrata contemporaneidade sem memória nem projeto, sem as sombras ou as luzes do passado, sem as sombras ou as luzes do futuro? (2000, p. 13). A composição poética promove o encontro das experiências do artista e sociedade com valores e experiências do seu presente, com as inquietações e expectativas do futuro, então existe uma relação que envolve autor, obra e público, onde cada um atua sobre o outro em diferentes medidas e em diferentes conjunturas. Ademais, as cantigas de escárnio e maldizer são entendidas aqui como o que Cândido denomina arte de agregação: “se inspira principalmente na experiência coletiva e visa a meios comunicativos acessíveis” (2006, p. 32), em contraponto à arte de segregação, que seria aquela que é direcionada a um público específico e busca novas formas de expressão. A veia satírica não é de cunho idealizador, mas possui os pés firmes naquilo que é palpável, “o humor, para se realizar, precisa de uma objectivação que lhe sirva de símbolo” (LAPA, 1965, p. 13). Isto não significa que os trovadores descreviam com precisão os acontecimentos, mas que se inspiravam neles, construíam uma imagem da vida a partir deles. As cantigas satíricas podem ainda, ser entendidas como dois fenômenos sociais diferentes: o primeiro é o fenômeno integrador, o qual reforça a participação naquilo que é comum a todos. O segundo é o fenômeno de diferenciação, onde as especificidades são ressaltadas, aquilo que as pessoas possuem de peculiar (CÂNDIDO, 2006). Para este estudo, analisando a poesia satírica dentro do contexto da cultura popular medieval, parte-se da
perspectiva do fenômeno integrador, em função, sobretudo, das formas e lugares de execução e interpretação das cantigas de escárnio e maldizer, e também do seu conteúdo, inspirado em experiências cotidianas e elementos que possuem algum valor para o coletivo. Segundo Minois (2003, p. 194), “o riso enraíza-se num contexto cultural do qual é, ao mesmo tempo, um componente e um elemento revelador” esta reflexão é fundamental para ler e pensar as cantigas analisadas este estudo. O que elas têm em comum é que em todas observamos um léxico informal, rústico e obsceno; o riso forte, escarnecedor, ácido; com forte tom derrisivo e de subversão; os alvos são eclesiásticos e o conteúdo das sátiras é justamente suas supostas vidas sexuais. Sabemos que aos membros do clero estavam vetadas atividades sexuais ou amorosas (FOREVILLE, p. 272), que o celibato deveria ser cumprido, em uma vida de santidade, purificação e dedicação exclusiva à vida religiosa, embora essa determinação nem sempre fosse cumprida. Não obstante esses religiosos acabavam por estar no centro de narrativas cuja principal temática era a prática sexual. À primeira vista as poesias parecem bastante ofensivas, com duras críticas ao comportamento desses homens e mulheres. Então, retomando o enunciado de Minois, que contexto é este ao qual se refere, ao qual o riso é um componente e um elemento revelador? Ora, este contexto é o da cultura popular, no qual poderiam participar pessoas de diferentes grupos sociais, pois promovia maior sensação de igualdade coletiva (ainda que não fosse plena) presente nas festividades e nas praças: justamente o palco do espetáculo trovadoresco. Este era um ambiente provido de liberdade, liberdade que permitia que as pessoas zombassem umas das outras, escarnecessem de qualquer um e satirizassem qualquer aspecto da vida cotidiana, que se tornava risível. A natureza do risível medieval está ligada ao jogo, à brincadeira, no francês temos
mencionados a inclinação é para a ideia de jogo, de brincadeira, e isto nos permite visualizar esta cultura em oposição ao sério, ao formal e ao oficial. Assim, quando nos voltamos para essas poesias vemo-las agora de outra perspectiva, diferente daquela da acusação, da ofensa, da crítica violenta. Quando elencamos diferentes tipos de riso no medievo,
bastante utilizado pelos compositores para dar o tom de escárnio as suas sátiras, fazendo citação de lugares, datas, acontecimentos, visando fazer com que o público a partir daí embarcasse nas narrativas, sendo comum o emprego de frases como “não mentirei em nenhuma palavra”, “esta é a pura verdade”, “segundo minha sincera intenção” (MACEDO, 2000, p. 148). Então, pensando nos religiosos retratados nas cantigas, podemos considerar que tivessem de fato uma vida sexual, que tivessem parceiros, e que isto pode ter sido usado como pano de fundo para a criação das narrativas, sendo incorporados a criatividade dos trovadores, “os escritores exploravam as possibilidades abertas pelo jogo da negação/revelação, saber/não saber, falar/fazer, ligado ao domínio do corpo e dos prazeres que ele suscita” (MINOIS, 2003, p. 201). Assim, ao interpretar esse corpo poético tomamos este cuidado de encontrar o equilíbrio, a linha entre fato e ficção pode ser bastante tênue, e de difícil identificação. Considerações Finais A arte das cantigas de escárnio e maldizer demandam um elevado grau de atenção, este caráter ambivalente do riso medieval pode, muitas vezes causar estranhamento ao pesquisador do século XXI. Porque o riso medieval não é o nosso riso. O riso do medievo é peculiar e comporta uma estrutura de princípios de risibilidade próprios, que não necessariamente podem ser identificados aos do riso da contemporaneidade. Neste corpo poético os limites entre seriedade e derrisão precisam ser investigados atentamente, podendo, muitas vezes estarem imbricados. A partir da análise das cantigas de escárnio e maldizer observamos que o riso dos trovadores medievais comporta um elevado grau de subversão, que era incompatível com as convenções da cavalaria e das normas de etiqueta, era também o oposto dos princípios da Igreja, não era um riso comedido, nem edificante. Isto é interessante de se pensar, pois muitos trovadores eram membros da cavalaria, da aristocracia e outros, membros do clero, o que nos permite refletir que este riso embora fosse intensamente degradante e subversivo
em relação aos valores estimados, aos códigos de conduta e princípios religiosos, não implicasse necessariamente na negação de tudo isso. O riso das cantigas de escárnio e maldizer faz parte de uma tradição risível (junto a das fábulas, contos e paródias) que possibilitava ao público viver, ainda que momentaneamente, um mundo não sério e não idealizado como o das cantigas de amor e de amigos, por exemplo. Mas no caso das cantigas trovadorescas nota-se uma preocupação maior em relação à estética, a exemplo da Arte de Trovar, manuscrito dedicado ao estabelecimento das regras para o bom trovar, e ainda, nos próprios cancioneiros ibéricos constam críticas aos considerados “maus- trovadores”. O riso das cantigas satíricas mostra que apesar das críticas ácidas direcionadas ao clero, havia também o momento para a renovação do espírito. Esse jogo do desfazer e fazer de novo, que rompe com todas as estruturas e as constrói novamente pela palavra, o rebaixamento que conduz, no final, à elevação, é uma característica do riso da festa pública, um riso marcadamente coletivo, da degradação mútua, do rebaixamento e do festejo. Ao pensar o tipo de imagem que são formadas por essas narrativas, singularmente e em conjunto, fazendo uma leitura com atenção e destacando os temas apresentados e as situações descritas é possível notar que as sátiras formam imagens ridículas e engraçadas. Perfeitamente compatíveis com o espírito burlesco e zombeteiro das festividades medievais. Um rompimento com a noção do medievo apenas sério, o medievo das guerras, da fome, das doenças, do predomínio dos princípios religiosos que exigiam uma postura mansa, pura, casta, humilde e comedida. Assim, o riso coexiste neste ambiente, e se faz extremamente necessário.