




























































































Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Sobrevivendo no inferno é um álbum clássico do grupo racionais mc's, formado por mano brown, ice blue, edi rock e kl jay. Neste documento, aprenda sobre a história do grupo, suas origens, influências e a importância social de suas letras. O título 'sobrevivendo no inferno' é significativo da missão social que o racionais mc's assumiu, subvertendo a lógica do mercado artístico. O documento também aborda a evolução do discurso dos evangélicos no álbum, que tem um espírito e vocabulário bélico semelhante ao do crime.
Tipologia: Notas de estudo
1 / 100
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
RACIONAIS MC’ S
contrariava o status quo , que entendia que esses grupos sociais deviam se enxergar e se manter como inferiores. O hip hop , assim, assumiu uma postura contestadora, natural nos jovens.
1.2. O rap
Com uma batida marcante, repetitiva, a lembrar o ambiente de trabalho opressivo em que se manifestavam as work songs 2 norte- americanas, o rap , por ser canção, modalidade artística que tem como base o texto, o discurso, assume papel vital para a divulgação da cultura hip hop.
Na verdade, a origem do rap é multifacetada. Parte dela está em Kingston, capital da Jamaica, onde músicos usavam os sound systems , carros de som que, guardadas as devidas proporções, assemelhavam-se aos trios elétricos baianos. Em razão da crise econômica, alguns desses artistas, tanto os DJ’s quanto os cantores, migraram para os Estados Unidos, levando consigo o costume de executar música nas ruas. No entanto, acabou havendo no novo ambiente a troca do ritmo jamaicano, o reggae , pelo estadunidense, o funk.
No início, o rap era apenas a declamação de um texto com acompanhamento musical. Com o tempo, abandonou esse caráter de leitura dramatizada, passando a ser poesia cantada em velocidade superior ao padrão. Hoje, consagrou-se pelas frases longas e ritmadas, o que estreitou sua relação com a música, ganhando, assim, uma identidade própria, separada do funk.
Há que se destacar que o rap tem como característica intrínseca a ligação fortíssima com o seu contexto social. De uma forma ou de outra, direta ou indiretamente, explícita ou implicitamente, qualquer obra de arte reflete a conjuntura em que está inserida. O rap , no entanto, realiza essa conexão de forma vital, já que na sua essência é um canto de revolta contra o status quo , o que faz do rapper um porta-voz e conscientizador de sua comunidade.
(^2) Canção executada a capella (sem instrumentação musical) enquanto era realizado um trabalho baseado em tarefa repetitiva.
2.1. Origens
O movimento negro recente no Brasil tem um forte viés transnacional, pois boa parte de sua orientação teórica veio dos Estados Unidos. Suas bases estão na luta pelos Direitos Civis dos Negros nos EUA^3 , assim como nos postulados do Black Power^4 e dos Black Panthers^5. Mas, como o Brasil não foi marcado por uma legislação segregacionista (o que não impediu que a discriminação existisse por aqui, mesmo que de forma tácita), o que ocorreu em nossa terra foi o espírito de valorização de uma identidade negra por meio dos “bailes black” 6. Tal contexto marcou a infância de muitos dos artistas do hip hop nacional, o que contribuiu para criar neles uma estética negra. Mais tarde, já adolescentes, é nesse mesmo ambiente que estreiam. Foi o que aconteceu com os membros dos Racionais MC’s.
Mas o movimento hip hop iniciou-se de fato na década de 1980, mais precisamente em 1982, com a chegada do break dance. Seu berço foi a cidade de São Paulo, inicialmente na região da estação São Bento do metrô e depois na da rua 24 de Maio, ambas as localidades no centro do município. Era nelas que jovens, que não encontravam valorização social nem na escola, nem no trabalho, passaram a se sentir importantes, pois tornaram-se
(^3) Movimento social ocorrido principalmente no sul dos Estados Unidos entre 1955 e 1968. Visava inicialmente abolir as leis segregacionistas raciais e acabou se transformando na luta pela dignidade étnica negra. (^4) Slogan político que englobou várias orientações que visavam a valorização da autoestima dos afrodescendentes. (^5) Organização revolucionária criada nos Estados Unidos em 1966 com a intenção de reunir membros armados para monitorar a atuação de policiais, coibindo as rotineiras ações opressivas contra a população negra. Mais tarde, já como partido político, assumiu uma postura assistencialista. Fortalecido, com células espalhadas não só dentro, mas também fora dos Estados Unidos, passou a confrontar a polícia, havendo até conflitos mortais. Sofre então forte contra-ataque do governo, principalmente do departamento de inteligência FBI, que mina o movimento por meio de uma extensão campanha de difamação. Contribuiu também para esse enfraquecimento as lutas internas da agremiação. (^6) Festas realizadas inicialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo e que eram frequentadas pela classe média baixa. Nelas, tocavam-se discos de estilos norte-americanos como funk e soul que serviram para aumentar a autoestima dos afrodescendentes brasileiros na década de 1970. Verdadeiro hino desse espírito é “Negro é lindo” (1971), de Jorge Ben Jor: “Negro é lindo / Negro é lindo / Negro é amigo / Negro também é / Filho de Deus” (disponível em http://www.letras.mus.br/jorge-ben-jor/86412/ - Acesso em 22 set. 2019).
SOBREVIVENDO NO INFERNO
em nossa cultura, pois não seguia as raízes da música brasileira, fincadas no samba, bossa nova e MPB. Conquistado seu espaço, passou a ser atacado por alguns setores de nossa intelectualidade, que alegavam que esse estilo não estava conectado com realidade do país, já que era importado dos Estados Unidos; era pejorativamente rotulado como “pobrismo” (isto é, obcecado pela pobreza); e acusado de apologia ao crime. Visões preconceituosas que aos poucos foram superadas por boa parte do público
2.2.2. Funk x Rap : Rio x São Paulo
Outro fato que pôde ter constituído uma dificuldade para a aceitação do rap foi a índole de explícito confronto social assumida por seus autores. Opõe-se, assim, ao funk carioca, que teve, durante a sua implantação, uma postura de não enfrentamento, como numa espécie de negociação para ser aceito 9 , encaixando-se, portanto, na tradição que o senso comum já associava ao samba^10 e à bossa nova. Esse contraste ajudava a configurar mais uma vez a suposta rivalidade bairrista entre São Paulo e Rio de Janeiro.
2.2.3. São Paulo: túmulo do samba, berço do rap
De fato, a cidade de São Paulo já carregava uma fama de avessa ao que havia de mais famoso (e presumidamente melhor) na cultura brasileira, como a alegria da música popular típica do Rio de Janeiro, mais condizente com uma estereotipada identidade nacional exportável, útil para a indústria turística. Nesse sentido, é bastante sintomática a frase, atribuída a Vinicius de Moraes (1913-1980), de que a capital paulista era o túmulo do samba. A crer nessa rotulação (que peca pela generalização indevida), a cidade mais rica do país era, na década de 1980, o berço ideal para o rap. A implantação de políticas neoliberais mudava o mercado de trabalho, pois o desenvolvimento tecnológico exigia uma mão de obra em menor quantidade e mais qualificada. Nesse contexto, grande número de jovens se via em um universo de desemprego crescente. Além disso, desconfiavam de entidades governamentais, como segurança pública e setor judiciário, que os
(^9) Curiosamente, nos Estados Unidos, o rap originou-se do funk. Não havia no berço da cultura hip hop , portanto, a oposição que se configurou aqui no Brasil. (^10) Trata-se, obviamente, de uma visão bastante redutora e simplista, pois o samba teve momentos de insubordinação, como o samba-rock de Tim Maia, que se opôs à padronização musical que o regime militar tentava impor nos anos de 1970.
SOBREVIVENDO NO INFERNO
RACIONAIS MC’ S
oprimiam, assim como do sistema educacional, que não garantia uma formação eficiente, para o mundo do emprego. Estavam em uma situação semelhante à que viu florescer o hip hop nos Estados Unidos. Abriu-se, portanto, caminho para uma musicalidade que não celebraria a alegria de viver, mas que enfrentaria as injustiças sociais.
2.2.4. As gerações do rap
A título de curiosidade, vale a pena ter em mente que o rap não apresentou, desde sua implantação no Brasil, um caráter único. Esse estilo passou por mudanças que refletem as alterações pelas quais a periferia urbana foi sofrendo. Basta lembrar que nos seus primórdios, no início da década de 1980, quando servia de acompanhamento para o break , a sonoridade desse gênero musical era constituída apenas pelo bater de latas, de palmas e, quando muito, pelo beatbox^11. Bem diferente, pois, da forma com que se consagrou.
Enfim, o rap teve uma primeira geração, conhecida como tagarela, em que havia a preocupação ingênua de narrar o cotidiano do povo da periferia, como as idas aos bailes e a conquista das “minas”. Era o “ rap estorinha”, do qual se destacam Pepeu e Ndee Naldinho (José Carlos Souza Silva).
A segunda geração é a “gangsta”, marcada pelo abandono da inocência do estágio anterior. Busca-se uma maior conscientização quanto às questões ligadas à negritude. Politizado, o rap adota uma postura de enfrentamento dos problemas sociais, o que o leva a assumir uma índole arredia ou até mesmo agressiva contra os que são vistos como responsáveis pelas injustiças sociais em que a periferia está mergulhada. Representam essa vertente os pioneiros Thaíde (Altair Gonçalves) e DJ Hum (Humberto Martins Arruda), seguidos por Racionais MC’s, DMN, RZO e GOG.
A terceira geração é vista como de transição, já que nela ainda há uma forte crítica social, mas a postura arredia foi abandonada, o que se comprova pela inserção desses artistas na mídia. Outra característica que os marca é a sua conscientização ser fruto das posses. Alguns dos integrantes dessa etapa
(^11) O beatbox consiste na percussão vocal do hip hop. Manifesta-se na técnica de utilizar a voz, a boca e o nariz para reproduzir sons que imitam tanto instrumentos musicais como bateria, cornetas, cordas, quanto efeitos sonoros de DJ’s.
RACIONAIS MC’ S
2.2.6. O rap e os manos: a fratria
Tanto a face democratizante quanto a de guerra do rap acabaram criando a noção de fratria, ou seja, de um conjunto de pessoas que têm o mesmo modo de vida: são os herdeiros da diáspora africana, vítimas de um extenso e marcante histórico escravista que ainda se mostra presente no Brasil. Esses membros constituem uma pátria, uma nação que é a periferia urbana. Seus integrantes se chamam não apenas como manos, mas também como “sangue bom”, “truta”, “firmeza”, “firmão”, “aliado”, “parceiro”. Cria-se até mesmo uma etnia, com suas marcas de linguagem (a gíria), de gesto e até de vestuário: o boné, as roupas largas, as correntes, o tênis Nike, Adidas ou Puma. Estabelece-se inclusive uma rede de solidariedade e assistencialismo. Assim, esse estilo musical, além de ser a voz da favela, além de fazer parte dessa localidade, destaca-se não por configurar uma força de exclusão – por separar, em sua visão bélica, o povo pobre do resto da cidade –, mas por se tornar força de inclusão, pois faz os seus integrantes não se sentirem apenas um número indiferenciado na multidão. Esse processo muitas vezes tem como resultado o resgate social do rapper, que sai da marginalidade e até da criminalidade graças à conscientização advinda da arte hip hop. Tal ideia, lugar comum entre os integrantes desse estilo, foi muito bem expressa por Projota em “Pode pá” (2010):
O rap salvou minha vida, Pra que hoje eu salve outra vida.^12
2.2.7. O caráter multifacetado do rap brasileiro
Já deve estar bastante claro que o rap tem uma importância inquestionável na cultura brasileira e muito desse trabalho se deve ao seu caráter multifacetado. Um dos lados desse gênero é o performático, marcado pelo aspecto lúdico, prazeroso da música, o primeiro a tomar o público, como afirma o rapper Gog (Genival Oliveira Gonçalves):
a música é o maior instrumento de universalização, ela bate em todas as portas, entra em todas as casas, convive com você e é democrática.^13
(^12) Projota. “Pode pá”. Disponível em: http://m.letras.mus.br/projota/1755040. Acesso em: 01 out. 2019. (^13) Apud SILVA, Rogério de Souza. A periferia pede passagem: trajetória social e intelectual
de Mano Brown (tese de doutorado). Campinas: UNICAMP, 2012, p. 76.
Mano Brown chegava a reclamar que a maioria dos receptores de sua obra ficavam apenas nesse campo, seduzidos pela sonoridade das composições. Mas é por meio desse impacto auditivo, do poder envolvente da música, que o rap deixa de ser mero entretenimento, pois abre as portas para a matéria discursiva, textual, veículo do conhecimento ligado à conscientização social.
Nesse ponto, o rap mostra sua segunda faceta, a política. Na variedade de temas presentes em cada música, esse gênero, como uma crônica da periferia, é caixa de ressonância de sua comunidade, servindo de arma de guerra para a expressão do desespero diante da violência a que o povo pobre é exposto. Além disso, ajuda a contextualizar esse universo do crime – sem o defender. Por fim, contribui para a construção de uma identidade positiva dos afrodescendentes brasileiros.
O resultado dessa luta em nome da dignidade da negritude faz o rap assumir a sua terceira faceta, que é a espiritual. Suas composições, amplamente difundidas entre o gueto, mostram que há uma saída para o contexto massacrante em que o povo da periferia está mergulhado. Tal não está na criminalidade, tampouco na alienação – encontra-se na salvação individual, no fortalecimento de uma paz individual resultado de não se deixar seduzir pelo caminho aparentemente mais fácil.
2.2.8. As limitações do rap brasileiro
O rap , tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, tornou-se eficiente na luta contra a desigualdade social. No entanto, tem apresentado em nosso país certas limitações. Mano Brown foi um dos que detectou uma dessas deficiências, pois percebeu que esse estilo musical trouxe muito mais benefício econômico aos negros norte-americanos do que aos brasileiros.
Outro senão foi precisamente detectado pelo hip hopper Paulo Shetara, que notou uma incoerência nesse movimento: seus integrantes atacam a marginalidade, mas alguns deles se drogam; são contra o imperialismo, mas seu estilo vem dos Estados Unidos; condenam o consumismo, mas usam Nike a Adidas^14.
(^14) Apud BEZERRA, Lucina Rocha. Ativismo x entretenimento: tensões vivenciadas no discurso e nas práticas do Hip-Hop (dissertação de mestrado). Rio de Janeiro: UFRJ, 2009, p. 91.
SOBREVIVENDO NO INFERNO
as reuniões do santuário do break, a estação São Bento do metrô, criam a dupla BBBoys (Black Bad Boys), que confessadamente admirava Edi Rock e KL Jay, tidos como mais cultos. Nessa era primordial as duas duplas participam de um álbum de 1988, Coletânea Black vol. 1 , do qual foram os destaques o single “Pânico na Zona Sul”, da primeira dupla, e “Beco sem Saída”, da segunda dupla.
Os dois duetos, além de motivados por Milton Sales^16 , inspiraram-se na figura do DJ Thaíde, que acompanhavam em programas de televisão. E foi por meio desse veículo de informação que conheceram grupos como Public Enemy e Run DMC. O contato com esse último foi marcante, pois permitiu que percebessem o empoderamento do negro dos Estados Unidos, que, com o trabalho planejado de gestos e vestimentas, constituía o fortalecimento de uma identidade étnica. Criam, então, o grupo Racionais MC’s.
A explicação para esse nome é ao mesmo tempo complexa e interessante. A palavra “racionais” anuncia a intenção de se afastar do rap da geração precedente, que, por ser de “estorinha”, passou a ser visto como bobo, frívolo, superficial. Além disso, constituiu uma referência ao disco Racional (1975), de Tim Maia (1942-1998), grande ídolo do universo afro- brasileiro. E o “MC” vinha de Run DMC.
O primeiro álbum do grupo é Holocausto urbano (1990), que obtém o prodígio de 200 mil cópias vendidas, tornando os músicos bastante conhecidos e respeitados na periferia paulistana. O resultado consagrador é o Racionais MC’s abrir, em 1991, o famoso show do Public Enemy no Ibirapuera, em São Paulo.
Em 1993, o sucesso se amplia. É o ano em que o grupo integra, com outro grupo de rap, DMN, o programa “Rap... ensando a Educação”, da prefeitura paulistana. É também quando lança Raio-X do Brasil , que emplaca duas músicas de sucesso: “Fim de semana no parque” e “Homem na estrada”. A primeira conseguiu o feito de ser tocada em emissoras de FM fora do circuito do rap. Chegou até a ser várias vezes reproduzida no
(^16) Os rappers daquela época estavam sob a influência de Milton Sales, que, além de produtor musical, era ativista político – acreditava que a música poderia mobilizar sem dar um tiro. Ele é, portanto, um dos responsáveis pela ampliação e politização do hip hop , o que conseguiu quando contribuiu para que esse movimento deixasse de estar circunscrito à estação São Bento do metrô.
SOBREVIVENDO NO INFERNO
RACIONAIS MC’ S
programa do radialista bastante popular Eli Correia, que a comentava enquanto a executava. A segunda canção fez com que o grupo ganhasse em 1994 o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). E em tal ano, por causa dessa mesma música, executada no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, durante o evento “Rap no Vale”, os Racionais MC’s foram presos por incitação à violência.
Em 1997, a consagração máxima: vem a público Sobrevivendo no inferno. O álbum alcançou a proeza de mais de 1,5 milhão de cópias vendidas até hoje, o que é notável ainda mais por se tratar de um lançamento por selo próprio, o Cosa Nostra – o Racionais MC’s não confiava nas gravadoras. Receio justificável, pois a obra levou mais de seis meses para chegar às rádios. Quando conseguiu, tornou-se um marco divisório no gênero, a ponto de se dizer que o rap brasileiro tem um período anterior e posterior a esse disco.
A consagração não parou. Em 1998, os videoclipes “Mágico de Oz” e “Diário de um detento”, de Sobrevivendo no inferno, são lançados. O último foi eleito o melhor clipe de rap pelo VMB da MTV Brasil. Além disso, o grupo recebeu o prêmio de “melhor escolha da audiência” pelo mesmo evento.
Em 2002, é lançado Nada como um dia após o outro , CD duplo com faixas de sucesso como “Vida loka”, “Jesus chorou”, “Estilo cachorro” e “Negro drama”. Essa última ganhou o prêmio “música do ano” do Hútuz. Os artistas são ainda agraciados na categoria “grupo ou artista solo”.
O Racionais MC’s é entrevistado em 2003 pela TV Cultura, de São Paulo, o que indica não só a consagração pela intelectualidade, como também uma inclinação do grupo a se mostrar disponível para a grande mídia. Mas parece que a valorização que os rappers mais prestigiaram viria em 2005, com o I Prêmio Cooperifa, que reconhecia o papel dos músicos como ativadores de mudanças no contexto social da periferia.
Ainda assim, os problemas com o stablishment não acabariam. Em 2007, durante a Virada Cultural, na Praça da Sé, o show do Racionais MC’s se transformou num campo de batalha entre o público e a polícia. Essa relação explosiva está presente até os dias de hoje.
RACIONAIS MC’ S Assim, o Racionais MC’s tomou para si uma postura bastante firme, que subverte a lógica estreita do mercado artístico. Mesmo sendo vistos como celebridades, os integrantes desse grupo não se deixam seduzir pela mídia. É por isso que não se comportam como popstars. Nem da sua comunidade saíram. Ademais, evitam contato com a grande imprensa, que veem como a responsável pela difusão de uma visão de mundo que aliena e prejudica o povo da periferia. E só estabelecem parceria social com empresas que não buscam propostas paternalistas e que não tenham ligações com atitudes que possam ser vistas como resquícios do escravismo que por anos marcou e ainda tem marcado a identidade brasileira.
4. OBRAS
1988 – Músicas “Beco sem saída”, de Edi Rock e KL Jay, e “Pânico da Zona Sul”, de Mano Brown e Ice Blue, saem na coletânea Consciência Black vol. 1.
1990 – Holocausto urbano (álbum), já como Racionais MC’s. 1992 – Escolha seu caminho (EP 18 ). 1993 – Raio-X do Brasil (álbum). 1997 – Sobrevivendo no inferno (álbum). 2002 – Nada como um dia após o outro (CD duplo). 2006 – 1000 trutas e 1000 tretas (DVD). 2008 – O jogo é hoje ( mixtape^19 com a Nike). 2009 – Tá na chuva (álbum). 2010 – “Umbabarauma” (com Jorge Ben Jor)^20.
(^18) EP (extended play) é uma gravação longa demais para ser considerada single, mas curta para ser considerada um álbum. No caso de Escolha seu caminho , trata-se de três versões da música “Voz ativa”: a primeira, mais breve, tocava nas rádios; a segunda, mais extensa, era executada em bailes; a terceira é a capela (ou seja, apenas com a parte vocal), para ser usada como sample por outros rappers e DJ’s. (^19) “Mixtape” é uma compilação de músicas que não foi criada em estúdio e geralmente é disponibilizada na internet em nome de alguma campanha beneficente. O presente caso foi para atrair fundos para atividades esportivas na periferia de São Paulo. (^20) Esta música, também conhecida como “Ponta de lança africano”, aparecera originalmente no álbum África Brasil (1976), de Jorge Ben Jor. A nova versão fora gravada por esse músico e por Mano Brown para comemorar a Copa do Mundo FIFA de 2010.
5.1. As origens
Figura central do Racionais MC’s, Mano Brown nasceu em São Paulo, em 22 de abril de 1970. Sua mãe, Ana Soares Pereira (falecida em 2016), era negra e trabalhava como empregada doméstica. Seu pai, branco, abandonou o lar quando a esposa estava com um mês de gravidez de Mano Brown. Desse fato – que no fundo era a realidade de muitos rappers – surgem várias consequências. A primeira é esse artista nunca ter feito questão de conhecer aquele que o gerou. Além disso, provocou nele um ressentimento contra o branco, transformado no ódio expresso em muitas de suas composições. Some-se ainda que essa união o fez nascer pardo, um tipo que, na visão de Mano Brown, seria invisível histórica e socialmente: em geral, esse elemento étnico era filho da escrava com o dono dela – assim, não era negro como o cativo, nem branco como o senhor. Estariam unidas aqui duas realidades, a pessoal e a histórico-social: filho rejeitado pelo pai a filho rejeitado pelo patrão – em resumo: o marginalizado.
5.2. A família que se deu
Dentro das adversidades de sua origem, Mano Brown conseguiu construir relações familiares positivas. A primeira foi com a mãe, que, por sempre ter batalhado por sustentá-lo, foi vista como seu porto seguro. A outra se estabeleceu com seu primo, Ice Blue. Ocorreu também com Isac Santa Rita, pai de santo que ajudava muitas vezes ao não cobrar o aluguel da casa em que Dona Ana e filho moravam. Acabou de certa forma assumindo o posto de pai, já que era o rosto masculino que Mano Brown se acostumou a beijar. A outra figura que incorporou por algum tempo a função de pai foi o produtor musical Milton Sales, que descobriu o artista nos eventos na estação São Bento do metrô, pelos idos dos anos de 1980, na pré-história do rap. Além de ter ajudado a criar o Racionais MC’s, unindo os seus integrantes, foi quem iniciou Mano Brown no conhecimento tanto das questões políticas quanto da cultura hip hop.
Hoje, faz parte de sua família a esposa, Eliane Dias, batalhadora como ele, pois libertou-se das limitações da periferia e conseguiu se tornar advogada. Integram também os filhos Jorge Dias e Domênica Dias. Moram no Campo Limpo, bairro próximo ao Capão Redondo.
SOBREVIVENDO NO INFERNO
pardos e filhos de pai branco ausente.
Outros mentores de Mano Brown são Martin Luther King (1929- 1968), Nelson Mandela (1918-2013), James Brown (1933-2006) – de quem assumiu o sobrenome artístico 23 – e Malcolm X. A descoberta dos ideais deste último, que defendia não a submissão do negro em relação ao branco, mas o confronto inclusive bélico, quase tumultuou a mente de Mano Brown. O rapper mais de uma vez confessou que quase virou um terrorista 24. O contato com a cultura hip hop , forte fonte de socialização, e principalmente com o rap , ajudou-o a apaziguar-se e a compreender melhor sua individualidade, o que o fez deixar de ser um rebelde sem causa.
5.5. O estigma e o outsider
Mano Brown carrega em sua carreira alguns estigmas. O primeiro deles é o de ser o típico representante da periferia. Além disso, porta a marca de ser o indivíduo que foi resgatado graças ao rap. Esses dois atributos dão à sua arte uma representatividade autêntica, pois fazem com que encarne a periferia. No entanto, esse sucesso põe à tona um outro estigma: o líder do Racionais MC’s acaba se tornando um gauche : para os de dentro da periferia, ele é o que outrora fora semelhante a eles, mas que subiu na vida e se tornou diferente; para os de fora, ele nunca deixou de ser o típico representante dos bairros pobres.
Para complicar sua situação, o sucesso, se por um lado trouxe benefícios – em 1994, com R$ 7.000 reais obtidos pelos rap , compra um apartamento na COHAB Adventista –, por outro trouxe desgostos, como ter seu carro riscado por vizinhos. É por isso que se mudou para um bairro próximo, Campo Limpo — mas continuou integrado às questões sociais do Capão Redondo.
Outro dissabor foi a relação complicada com a polícia. Ele carrega uma vasta experiência – aliás, como muitos moradores de periferia – da intervenção violenta e ilegal dos membros dessa instituição de segurança. Basta lembrar o que Edi Rock afirma em “Mágico de Oz”:
(^23) No início de sua carreira, era chamado de Pedrinho Brown. (^24) Um pouco desse espírito aguerrido pode inclusive ser notado em letras como “Capítulo 4, versículo 3”, de Sobrevivendo no inferno.
SOBREVIVENDO NO INFERNO
RACIONAIS MC’ S A polícia sempre dá o mal exemplo Lava minha rua de sangue, leva o ódio pra dentro Pra dentro de cada canto da cidade^25
Por canalizar essa visão crítica, Mano Brown sempre se viu perseguido pelos policiais. Daí, por exemplo, a sua prisão (junto com o seu grupo) no referido episódio de 1994, no Vale do Anhangabaú, por incitação à violência em razão de estarem cantando “Homem na Estrada”. Em 2004, foi detido por desacato à autoridade por discutir e tentar agredir policiais que encontraram uma ponta de cigarro de maconha na roupa dele. Em 2009, foi novamente preso após uma confusão provocada pela torcida do Santos durante um jogo contra o Corinthians no estádio do Pacaembu (São Paulo), sendo depois liberado após a análise de imagens o inocentarem. Em 2015 foi mais uma vez preso por desacato após policiais militares pararem o carro que ele dirigia e por eles ter sido “levemente agredido”^26
5.6. O estigma antimídia
Mano Brown assumiu uma postura antissocial. No entanto, essa atitude arredia não pode ser confundida com a praticada por muitos popstars. É inquestionável que o mais famoso grupo de rap no Brasil se tornou celebridade artística. Mas essa condição não fez os autores de Sobrevivendo no inferno abandonarem sua fratria, seus manos. Na verdade, sua conduta arisca mostra-se coerente com a disposição de quebrar o mito, bastante arraigado em nossa cultura, de que haveria uma democracia racial no nosso país, imperando uma harmonia entre as diferentes etnias aqui presentes. Dessa presumida configuração social resultaria a índole submissa dos negros em relação ao brancos. Mano Brown adota, portanto, uma intenção de confrontar esse conjunto de valores.
Um fato que comprova o feitio arisco de Mano Brown pôde ser visto em 1998, quando ignorou propositalmente Carlinhos Brown, que aparecera para entregar o troféu do VMB da MTV Brasil. Gerou-se então o maior
(^25) Edi Rock, “Mágico de Oz”, In: Racionais MC’s. Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 117. (^26) Informações do Portal G1 São Paulo disponíveis em http://g1.globo.com/sao- paulo/noticia/2015/04/mano-brown-e-detido-em-sao-paulo.html - Acesso em 29 set 2019.