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Estudo de Caso: Conceito de True Self e False Self de Winnicott, Notas de aula de Psicologia

Reflexões sobre os conceitos de true self e false self postulados por donald winnicott, baseados em um estudo de caso clínico de uma paciente chamada clara. O artigo discute as experiências pessoais e ambientais que contribuem para a localização da psique no corpo e a elaboração imaginativa das funções corporais. Além disso, ele explora a importância dos cuidados maternos na conquista da unidade entre psique e soma, e as consequências de falhas ambientais na relação entre eles.

O que você vai aprender

  • O que é o verdadeiro self e o false self, de acordo com Donald Winnicott?
  • Qual é a relação entre o verdadeiro self e o false self na história clínica de Clara?
  • Qual é a importância dos cuidados maternos na conquista da unidade entre psique e soma, de acordo com Donald Winnicott?
  • Como a falta de cuidados ambientais pode afetar a localização da psique no corpo?
  • Como as falhas ambientais podem influenciar a organização subjetiva?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Sobre os conceitos de verdadeiro self e falso self:
reflexões a partir de um caso clínico
The concepts of true self and false self:
reflections based on a case study
Gustavo Vieira da Silva*
Andrea de Alvarenga Lima**
Nadja Nara Barbosa Pinheiro***
Resumo: O artigo parte de uma história clínica para apresentar algumas reflexões sobre os concei-
tos de verdadeiro self e falso self postulados por Donald Winnicott. Primeiramente, discutem-se as
relações entre falhas ambientais no início do desenvolvimento emocional, a desordem psicosso-
mática e o falso self. Na sequência, considera-se o lugar do verdadeiro self no decorrer dos atendi-
mentos, vinculando-o à sensação de “sentir-se real”. Por fim, levantam-se algumas questões sobre
a instrumentalidade dos conceitos de verdadeiro self e falso self no caso exposto.
Palavras-chave: Verdadeiro self, falso self, psique-soma, Winnicott.
Abstract: Based on a clinical history, this paper presents some reflections on Winnicott’s
concepts of true self and false self. First, the relations between environmental failures in
early emotional development, psycho-somatic disorder and false self are discussed. Then,
the place of true self throughout the treatment in its association to the sense of ‘feeling
real’ is considered. At last, some questions are raised regarding the clinical value of the
concepts of true self and false self.
Keywords: True self, false self, psyche-soma, Winnicott.
* Psicólogo, mestrando em Psicologia/UFPR (Curitiba-PR-Brasil), integrante do Laboratório de
Psicanálise/UFPR (Curitiba-PR-Brasil).
** Psicóloga, mestre em Psicologia/UFPR (Curitiba-PR-Brasil).
*** Profa. Programa de pós-graduação em Psicologia/UFPR (Curitiba-PR-Brasil), doutora em
Psicologia Clínica/ PUC-RJ, coordenadora Laboratório de Psicanálise/UFPR (Curitiba-PR-Brasil).
Cad. Psicanál.-CPRJ, Rio de Janeiro, v. 36, n. 30, p. 113-127, jan./jun. 2014
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113

Sobre os conceitos de verdadeiro self e falso self:

reflexões a partir de um caso clínico

The concepts of true self and false self:

reflections based on a case study

Gustavo Vieira da Silva*

Andrea de Alvarenga Lima**

Nadja Nara Barbosa Pinheiro***

Resumo: O artigo parte de uma história clínica para apresentar algumas reflexões sobre os concei- tos de verdadeiro self e falso self postulados por Donald Winnicott. Primeiramente, discutem-se as relações entre falhas ambientais no início do desenvolvimento emocional, a desordem psicosso- mática e o falso self. Na sequência, considera-se o lugar do verdadeiro self no decorrer dos atendi- mentos, vinculando-o à sensação de “sentir-se real”. Por fim, levantam-se algumas questões sobre a instrumentalidade dos conceitos de verdadeiro self e falso self no caso exposto. Palavras-chave: Verdadeiro self, falso self, psique-soma, Winnicott.

Abstract: Based on a clinical history, this paper presents some reflections on Winnicott’s concepts of true self and false self. First, the relations between environmental failures in early emotional development, psycho-somatic disorder and false self are discussed. Then, the place of true self throughout the treatment in its association to the sense of ‘feeling real’ is considered. At last, some questions are raised regarding the clinical value of the concepts of true self and false self. Keywords: True self, false self, psyche-soma, Winnicott.

  • Psicólogo, mestrando em Psicologia/UFPR (Curitiba-PR-Brasil), integrante do Laboratório de Psicanálise/UFPR (Curitiba-PR-Brasil). ** Psicóloga, mestre em Psicologia/UFPR (Curitiba-PR-Brasil). *** Profa. Programa de pós-graduação em Psicologia/UFPR (Curitiba-PR-Brasil), doutora em Psicologia Clínica/ PUC-RJ, coordenadora Laboratório de Psicanálise/UFPR (Curitiba-PR-Brasil).

mutações Artigos em temA Livre

Introdução

Os conceitos de verdadeiro self e falso self estão entre as contribuições mais importantes de Donald Woods Winnicott para a clínica psicanalítica. Através da noção de verdadeiro self, o autor discutiu o lugar da criatividade, do gesto espontâneo e do “sentir-se real” em análise. O falso self, por sua vez, é um conceito utilizado por Winnicott para abordar a mediação entre o verdadeiro self e o ambiente no qual o sujeito se desenvolve (WiNNiCOtt, 1960/1983). Neste artigo, apresentamos uma articulação entre um caso clínico e o pen- samento de Winnicott. Na medida em que abordamos algumas dimensões do caso clínico, introduzimos elementos teóricos sobre os cuidados maternos, o psique-soma e as suas relações, os conceitos de verdadeiro self e falso self. Por fim, apresentamos algumas reflexões sobre estes conceitos, a partir de questio- namentos que o caso clínico suscitou. O atendimento clínico abordado neste trabalho foi realizado em um ser- viço de psicologia de uma universidade, tendo duração aproximada de oito meses.

1. Caracterização da história clínica

“Me colaram no tempo, me puseram uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo, a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação [...]”**** Murilo Mendes ¹

Clara² tem 32 anos, é casada, mãe de três filhos pequenos e estudante uni- versitária. Ela procura o atendimento clínico com a queixa de estar “fisicamen- te exausta e desanimada”. Ela relata se sentir sem forças físicas para seguir com as suas tarefas domésticas e ter o rendimento que gostaria na faculdade. ***** Nas primeiras sessões, Clara aborda alguns aspectos de sua história fami- liar, especialmente de sua infância. inicialmente, a paciente fala de sua mãe,

¹ Neste artigo são destacados três excertos do poema “Mapa” de Murilo Mendes (2000). Esta obra alude, de forma artística, a alguns conflitos abordados no decorrer da história clínica apresentada. Ressalta-se que, para Winnicott (1964b/1999, p. 54), os poetas sempre se ocuparam da temática do verdadeiro e do falso self: “Vocês poderiam apontar qualquer poeta importante e mostrar que esse [o falso self] é um tema predileto das pessoas que vivem intensamente seus sentimentos”. ² O nome da paciente e algumas informações biográficas foram alterados a fim de garantir o sigilo.

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período bastante precoce, sentidos como violência e falta de cuidados. Depois de algumas sessões, Clara afirma ter pensado em deixar os atendimentos. Ela decla- ra que as sessões estavam trazendo à tona “lembranças escondidas em um baú” e tem receio de que estas memórias possam desorganizá-la demasiadamente. Assim, a paciente indica querer “fechar este baú” novamente. Este momento das sessões é importante para que Clara possa passar a confiar no setting clínico. Para Winnicott (1954/2000) a confiabilidade no set- ting clínico é decorrente de uma consistência do analista: a frequência estável, em uma hora marcada, na qual o analista está vivo, presente e interessado pelo sofrimento do paciente. Segundo o autor, estes elementos que compõe o ma- nejo analítico podem ser considerados como equivalentes a um manejo con- sistente dos pais às necessidades de seus bebês. Desta forma, consideramos que o setting clínico pôde servir como um continente para as memórias e afetos de Clara, permitindo que o seu “baú de lembranças” se mantivesse aberto.

3. A mãe de todos

A partir da construção gradual da confiança no setting clínico, Clara traz o seu sentimento de responsabilidade em relação à sua família de origem e ao seu casamento. E, à medida que esta confiança ganhava mais solidez, algumas pon- tuações acerca das associações da paciente eram realizadas, tecendo relações so- bre a posição subjetiva que ela assumia em diferentes âmbitos de sua vida. Em várias sessões, a paciente relata a sua preocupação quanto ao estilo de vida de sua mãe. Clara se preocupa com os namorados da mãe, acreditando que deve evitar que estes a explorem. Além disso, a paciente interpõe-se na relação da mãe com as suas irmãs, buscando ocupar, em relação a estas, um lugar de orientação e cuidado. Neste contexto, a paciente traz falas como “fui mãe das minhas irmãs”, “sou mãe de minha própria mãe” e “desde muito cedo tive de me tornar mãe de mim mesma”. Além disso, Clara, progressivamente, se abre para abordar os sentimentos de seu matrimônio, declarando se sentir “o pilar que sustenta o casamento”. Embora a paciente relate, através das sessões, as dificuldades de relacionamen- to com o seu marido, ela declara estar decidida em manter a união conjugal. Ela estabelece regras sobre as tarefas cotidianas da família e sobre a frequência de seu marido e filhos à igreja. Clara afirma que a manutenção destas regras é sentida como um peso e, ao mesmo tempo, uma necessidade. Além disso, no decorrer das sessões, a paciente percebe que estabelece várias normas para o marido, tratando-o de forma muito semelhante aos seus filhos.

Sobre oS conceitoS de verdadeiro Self e falSo Self

Assim, embora Clara tente assumir o papel de “mãe” de toda a sua família

  • inclusive de si mesma – alguma coisa falha em termos afetivos e somáticos. Sem condições físicas para cumprir as tarefas acadêmicas e domésticas, a pa- ciente buscava auxílio no atendimento clínico.

a) Os cuidados maternos e o psique-soma

A procura pelo atendimento clínico, em um momento de exaustão física e o relato da paciente sentir ter vivido uma infância marcada pela falta de cuida- dos, levou-nos a considerar a relação estabelecida por Winnicott entre a con- quista de um psique-soma e os cuidados maternos³. ****** Para Winnicott (1988/1990), a unidade entre psique e soma não pode ser tomada como um dado natural no recém-nascido, pois a localização da psique no corpo é uma conquista que se realiza – ou não – durante o processo de ama- durecimento da criança. Para este autor, a psique se localiza no corpo da criança a partir de suas experiências pessoais (impulsos, motricidade e excitações) e am- bientais (cuidados oferecidos pela mãe ao seu corpo). Ambas as experiências possibilitam à criança uma elaboração imaginativa das funções corporais (p.ex. ingestão, excreção, excitação), no sentido das fronteiras da psique se estenderem às mesmas fronteiras do corpo. Este processo é chamado pelo autor de conquis- ta de um psique-soma²¹ ou integração psicossomática.******* Segundo Winnicott (1949/2000), o bebê, inicialmente, tem uma depen- dência absoluta dos cuidados maternos. Neste contexto, o ambiente deve se adaptar ativamente às necessidades da criança. Durante o início da vida do infante, as falhas podem ser sentidas como uma intrusão em sua “continuidade de ser”. A condição de dependência absoluta do bebê torna-se progressiva- mente uma dependência relativa, na qual a mãe, gradualmente, insere falhas em sua relação com a criança. Desta forma, quando a mãe é “suficientemente boa”, ela permite falhas ambientais, na medida em que a criança tem condições de lidar com as mesmas. Diante das falhas graduais de adaptação entre uma mãe “suficientemente boa” e o bebê, Winnicott afirma que é função da mente

  • distinta da psique – possibilitar à criança uma compreensão destas falhas.

³ Ressalta-se que no pensamento de Winnicott os cuidados maternos durante o período de dependência do bebê são realizados por uma função materna, que pode ou não ser a genitora da criança. Logo, abre-se a possibilidade para outras pessoas (tanto do sexo feminino como do masculino) ocuparem a função materna em relação ao bebê. ⁴ O termo original inglês é “psyche-soma” – conforme indica Abram (2000). Algumas traduções brasileiras apresentam o termo “psicossoma”.

Sobre oS conceitoS de verdadeiro Self e falSo Self

Para Winnicott (1960/1983), o funcionamento exacerbado da mente e a desordem psicossomática estão relacionados à organização de um falso self. Para compreender o lugar deste conceito no estudo do caso de Clara, apresen- taremos algumas considerações sobre a distinção entre o verdadeiro e o falso self no pensamento de Winnicott.

b) O verdadeiro e o falso self

Segundo Winnicott (1960/1983), o verdadeiro self surge assim que há qualquer organização psíquica na pessoa. Logo, o conceito de verdadeiro self remeteria aos rudimentos – antes de haver uma separação entre interior e ex- terior – do que posteriormente constitui a realidade interna da criança⁷. ******** O verdadeiro self refere-se ao gesto espontâneo da criança, ou seja, o con- junto de expressões criativas do bebê desde o início da vida. Uma “mãe sufi- cientemente boa” buscaria, em certa medida, se adaptar a estes “gestos” a partir de sua sensibilidade aos movimentos (físicos e afetivos) da criança (WiNNi- COtt, 1960/1983). O falso self, por sua vez, aludiria a uma organização decorrente das ameaças ao verdadeiro self. Quando a função materna não é suficientemente boa, o gesto espontâneo do bebê não é continuado, sendo este submetido à necessidade de se adaptar ao ambiente (WiNNiCOtt, 1960/1983). O autor afirma: “No caso da mãe não se adaptar suficientemente bem ao bebê, o lactente é seduzido à submis- são, e um falso self submisso reage às exigências do meio e o lactente parece aceitá-las” (WiNNiCOtt, 1960/1983, p. 134). Assim, diante de um ambiente que não é suficientemente bom, o falso self constitui uma defesa – e ao mesmo tempo uma proteção necessária – para a sobrevivência do verdadeiro self. Nestes casos, o falso self cuida e garante a existência do verdadeiro self. Podemos compreender que o verdadeiro self inclui aspectos dos primór- dios da organização subjetiva, enquanto o falso self é decorrente da relação do sujeito com a realidade compartilhada. Embora o ambiente possa acolher o gesto espontâneo e responder aos impulsos instintuais da criança, estes nunca serão efetivados em totalidade. Neste sentido, Winnicott (1960/1983, p. 137) afirma:

⁷ É importante assinalar que estamos utilizando como principal referência para o conceito de verdadeiro self as considerações do autor em Distorção do ego em termos de verdadeiro e falso self (WiNNiCOtt, 1960/1983). De acordo com Rodman (2003), em diferentes trabalhos de Winnicott encontram-se nuances teóricas diferentes sobre a origem do verdadeiro self. Contudo, este é um tema que extrapola os objetivos de nosso artigo.

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Há um aspecto submisso do self verdadeiro no viver normal, uma habilidade do lactente de se submeter e de não se expor. A habilidade de conciliação é uma conquista. O equivalente ao self verdadeiro no desenvolvimento normal é aquele que se pode desenvolver na criança no sentido das boas maneiras sociais, algo que é adaptável. Na normalidade essas boas maneiras so- ciais representam uma conciliação.

Assim, o autor apresenta a conquista da habilidade de conciliação entre o verdadeiro self e a realidade compartilhada como parte do processo de desen- volvimento subjetivo. Compreendemos que, para Winnicott, os termos verdadeiro e falso não equivalem a “certo” e “errado”, mas indicam a existência de dois modos diferen- tes de sentir o si-mesmo (self): (1) como verdadeiro, expressão do gesto espontâ- neo e dos impulsos instintuais mais primitivos; e (2) como falso, imposto para que o sujeito responda e se adapte à exterioridade. Assim, as vivências do sujeito podem ser sentidas como pertencentes ou não ao si-mesmo (self). Segundo Winnicott (1960/1983), pode haver casos em que a organização do falso self se torna prevalente, apoiando-se na capacidade intelectual do bebê. Ele afirma: Quando um falso self se torna organizado em um indivíduo que tem um grande potencial intelectual, há uma forte tendência para a mente se tornar o lugar do falso self, e neste caso se desenvolve uma dissociação entre a atividade intelectual e a existência psicossomática (WiNNiCOtt, 1960/1983, p. 132). Assim, para o autor, a desordem psicossomática poderia se relacionar com um excesso de funcionamento mental e com a primazia do falso self sobre o verdadeiro self. A partir do exposto sobre o psique-soma, o verdadeiro e o falso self, volta- mo-nos agora a alguns desdobramentos da história clínica de Clara.

4. Um corpo sentido

“[...] Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado, gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar, alguém da terra me faz sinais [...]” Murilo Mendes

Através dos atendimentos clínicos, Clara progressivamente fala mais so- bre o seu corpo. Para tratar deste tema, abordamos aspectos que se relacionam ao erógeno, ao adoecimento e ao “sentir-se real”. Esta é uma forma didática de

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b) Um corpo que adoece

Já tratamos anteriormente do sentimento de exaustão física de Clara, o que a leva a procurar o atendimento clínico. Além disso, a paciente aborda, no decor- rer das sessões, episódios de dificuldades respiratórias em diferentes momentos de sua vida. inicialmente, ela se refere a estes episódios ao falar de sua dificulda- de em estar fisicamente próxima de sua mãe, porque esta teria “fedor de cigarro”. Logo, a proximidade da mãe impõe o risco de uma crise respiratória. Clara relata também ter sofrido fortes crises respiratórias antes de com- pletar dois anos idade, tendo de ser internada algumas vezes neste período. Estes episódios, nos quais sua mãe a acompanhava ao hospital, são apresenta- dos pela paciente como momentos de cuidado. Clara também destaca a neces- sidade de ser internada devido à sensação de “falta de ar” no período final da gestação de cada um de seus filhos. Nestas crises, a paciente não se mantinha na posição de “pilar que sustenta” a família, recebendo cuidados de familiares e da equipe hospitalar. Acreditamos que a dificuldade em respirar pode ser compreendida na his- tória de Clara como uma desordem psicossomática⁸. Assim, estes episódios de adoecimento através de sua vida indicariam a fragilidade das relações entre psique e soma, em uma organização subjetiva marcada pelo excesso de funcio- namento mental. ******** É interessante notar que Clara indica a ocorrência de crises respiratórias em duas circunstâncias diferentes de sua vida, sobre as quais se pode estabele- cer uma relação: as primeiras crises aconteceram em um momento precoce de sua organização subjetiva, enquanto novas crises se deram na iminência do nascimento de seus próprios filhos. Desta forma, levantamos como hipótese a possibilidade destas últimas crises serem a atualização – via corpo – de agonias primitivas vividas pela paciente no início de sua vida⁹. Estas agonias (re)surgi- riam diante do nascimento de seus filhos, evento que remeteria a paciente à sua condição de dependência no início da vida. ********

⁸ Ao considerar as dificuldades respiratórias da paciente como uma “desordem psicossomática” não estamos desconsiderando a possibilidade de a medicina somática detectar uma origem e propor um tratamento para este adoecimento. Contudo, seguindo a lógica paradoxal do pensamento de Winnicott, consideramos a possibilidade destes adoecimentos não se reduzirem ao somático, ocupando um lugar na fronteira entre psique e soma. ⁹ Uma discussão mais detalhada sobre a relação entre as agonias primitivas (ou angústias impensáveis) e os fenômenos psicossomáticos pode ser encontrada em Vieira da Silva e Pinheiro (2010).

Sobre oS conceitoS de verdadeiro Self e falSo Self

Consideramos que os transtornos respiratórios no caso de Clara marcam a existência de um “corpo” para além do funcionamento intelectual e convocam cuidados ambientais, permitindo que novos arranjos subjetivos sejam possíveis.

c) Um corpo que se sente real

No decorrer dos atendimentos, Clara pode sentir e falar sobre um corpo que deseja e que sofre. E ao utilizar o setting clínico de forma criativa, sente-se progressivamente mais real e verdadeira. No transcurso do tratamento, a paciente produz alguns movimentos im- portantes. Decide separar-se do marido e estabelecer novas relações amorosas. Este movimento parece aos seus amigos e parentes um descompasso, já que Clara perde a estabilidade do casamento, tem de voltar a trabalhar para se sus- tentar, corta relações com seus sogros e com alguns amigos da igreja. A pacien- te traz, para muitas sessões, relatos difíceis sobre a inserção profissional e a instabilidade financeira e emocional. No entanto, em meio a estas dificuldades, a paciente pode falar de algo muito importante que é conquistado: ela passa a se sentir “dona de seus próprios sentimentos” e “deixa de viver uma vida de mentira”. Com relação ao “sentir-se real”, Winnicott (1967 / 1999, p. 18) afirma:

Ser e se sentir real dizem respeito essencialmente à saúde, e só se garantirmos o ser é que poderemos partir para coisas mais obje- tivas. Sustento que isso não é apenas um julgamento de valor, mas que há um vínculo entre a saúde emocional individual e o sentimento de se sentir real.

Desta forma, relacionando o “sentir-se real” com a saúde emocional, con- sideramos que Clara pôde então, mais próxima de si mesma (self), enfrentar os desafios que as suas novas escolhas lhe impuseram.

5. Considerações finais

“[...] nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando, sempre em transformação” Murilo Mendes

O estudo da história clínica de Clara possibilita algumas reflexões e ques- tionamentos. Primeiramente, a sua história clínica indica a importância do falso self na preservação do verdadeiro self diante de um ambiente inconsis-

Sobre oS conceitoS de verdadeiro Self e falSo Self

Esta condição clínica só pode ocorrer caso o verdadeiro self seja uma realidade viva a partir de algum nível de adaptação dispensado pelo am- biente à dependência absoluta do bebê. É interessante notar que Clara trou- xe, no decorrer dos atendimentos, alguns relatos sobre a dedicação de sua avó em seus primeiros anos de vida. Através da figura da avó, a paciente aludiu para a possibilidade de parte de seu ambiente ter buscado se adaptar ao seu gesto espontâneo, ainda que em meio a uma situação familiar de grande precariedade. Estes elementos do caso de Clara parecem nos indicar que o seu potencial criativo se preservou em uma dinâmica em que o falso self ocultou e protegeu o verdadeiro self. Outro aspecto importante no caso clínico é a relação entre o verdadeiro self, o falso self e a sexualidade. Embora a paciente tenha declarado no início dos atendimentos que estava determinada a manter o seu casamento, se- guindo as orientações de seu grupo religioso e um propósito de organização familiar, o contato físico com seu marido era vivido como mal-estar. A se- xualidade sob a égide de um falso self era sentida como desprazer. No de- correr das sessões, Clara começou a considerar outras possibilidades de relacionamento amoroso e a sexualidade passou a ser vivida como a potên- cia de um gesto criativo e de busca de prazer. A história clínica de Clara abre um campo de reflexão: quais são as possíveis relações entre o verdadeiro self e a sexualidade? Por fim, ressalta-se que aos olhos de muitos familiares e amigos de Cla- ra, a sua vida, depois dos atendimentos, estava piorando muito. A partir do divórcio, a paciente teve de enfrentar muitos desafios afetivos, profissionais e financeiros. Neste sentido, Winnicott (1950-55/2000, p. 297-298) declara sobre o falso self e a sociedade: O falso eu [self]¹⁰ pode estar convenientemente em sintonia com a so- ciedade, mas a falta de um eu [self] verdadeiro acarreta uma instabilidade que se torna mais evidente quanto maior for o engano da sociedade em pensar que o falso eu [self] é verdadeiro. A queixa do paciente é de um sen- timento de inutilidade. ******** Assim, embora anteriormente Clara estivesse em maior sintonia com os interesses de seus familiares e amigos, a paciente padecia de um de afas- tamento de si mesmo (verdadeiro self), perdendo contato com seus afetos e com a possibilidade de vivenciar sua condição psicossomática de forma in-

¹⁰ Embora o tradutor brasileiro tenha optado nesta obra pelo termo “eu”, o vocábulo utilizado no original inglês é “self” (WiNNiCOtt, 1950-55 / 1975).

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tegrada e viva. A partir da história de Clara, podemos ratificar a proposição de que o atendimento clínico, orientado pela psicanálise, não é um processo adaptativo, mas balizado pela possibilidade do sujeito resgatar a sua criati- vidade e de sentir-se real.

Gustavo Vieira da Silva gustavovs.psicologia@gmail.com Curitiba-PR-Brasil

Andrea de Alvarenga Lima alvarenga.lima@gmail.com Curitiba-PR-Brasil

Nadja Nara Barbosa Pinheiro nadjanbp@ufpr.br Curitiba-PR-Brasil

Tramitação: Recebido em 21/11/ Aprovado em 09/02/

Referências

ABRAM, J. Psique-soma. in: ______. A linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, 2000. p. 187-196.

MENDES, M. Mapa. in: StEgAgNO, L. (Org). Os melhores poemas de Murilo Mendes. São Paulo: global, 2000. p. 24-26.

RODMAN, F. R. The true and false self and “the right not to communicate”. in: ______. Winnicott: life and work. Cambridge, US: Da Capo, 2003. p. 264-283.

ViEiRA DA SiLVA, g.; PiNHEiRO, N. N. B. “Antes do nome”: articulações entre a angústia e os fenômenos psicossomáticos em Freud e Winnicott. Mental, Barbacena, v. 8, n. 15, p. 2010.

WiNNiCOtt, D. W. (1949). A mente e sua relação com o psicossoma. in: ______. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: imago, 2000. p. 332-246.