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Introdução da Sistemática Filogenética no Brasil: Papavero e o Grupo de Zoólogos do MZUSP, Notas de aula de Sistemática

A história da introdução da sistemática filogenética no brasil, com ênfase na contribuição de nelson papavero e de um grupo de zoólogos do museu de zoologia da universidade de são paulo (mzusp). O texto aborda a importância de papavero e de sua abordagem evolutiva na área da taxonomia, além de sua influência na consolidação da biologia comparada no país. O documento também detalha a formação de papavero, sua dedicação à ampliação da coleção de diptera do mzusp e à elaboração de um catálogo do grupo, e sua liderança na criação da sociedade brasileira de zoologia (sbz) e do programa nacional de zoologia (pnz).

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Botafogo
Botafogo 🇧🇷

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Sobre a introdução da Sistemática Filogenética no Brasil: os primeiros sistematas
e sua influência na consolidação da biologia comparada no país
BRUNA KLASSA
*
e CHARLES MORPHY D. SANTOS
*
Introdução
Em linhas gerais, a ordenação e a classificação biológicas significam uma primeira
aproximação ao mundo natural (ZARUR, 1994), uma vez que praticamente tudo aquilo que é
observável na natureza pode ser catalogado. Dessa forma, o primeiro estágio para estudar e
conservar a diversidade é descrevê-la, mapeá-la e medi-la (LAMAS & MARQUES, 2006).
Tais atividades são atribuições específicas da taxonomia biológica desde antes dos sistemas
formais de classificação de Carolus Linnaeus no século XVIII (SANTOS, 2008), e é ainda
nesse contexto que a pesquisa zoológica brasileira se desenvolvia até meados do século XX.
De maneira geral, o desenvolvimento inicial da zoologia no Brasil se deu na perspectiva da
ciência aplicada e voltada ao entendimento de espécies e grupos de interesse médico, social
ou sanitário (ver, por exemplo, as obras completas de Adolpho Lutz, organizadas por Jaime
Benchimol e Magali Romero Sá em 2004).
No início do século XX, o desenvolvimento científico, tecnológico e educacional
brasileiro teve dois eixos principais e concomitantes: o desenvolvimento acadêmico baseado
nas noções europeias sobre o papel da ciência e da educação e a aplicação de princípios
científicos com resultados em curtos prazos para a nação (SCHWARTZMAN, 2001;
VERGARA, 2004). Isso fica bastante claro quando se analisa a história do conhecimento
zoológico e botânico no Brasil. Evidentemente que havia o interesse em se estudar e
conservar a imensa diversidade biológica encontrada em nosso país, mas os métodos pelos
quais esses objetivos se concretizariam eram aplicações da forma de fazer universitária vinda
do exterior.
A ideologia científica brasileira se difundiu a partir de alguns círculos intelectuais de
pesquisa isolados. Zarur (1994) compila os estudos zoológicos realizados no país,
*
Centro de Ciências Naturais e Humanas, Universidade Federal do ABC, Rua Santa Adélia, 166, Bairro Bangu,
CEP 09210-170 - Santo André, SP, Brasil. Charles Morphy D. Santos é doutor em Entomologia pela
Universidade de São Paulo e Bruna Klassa é mestranda em Ensino, História e Filosofia da Ciência e Matemática,
Universidade Federal do ABC. O trabalho foi financiado pela CAPES.
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Sobre a introdução da Sistemática Filogenética no Brasil: os primeiros sistematas

e sua influência na consolidação da biologia comparada no país

BRUNA KLASSA^ e CHARLES MORPHY D. SANTOS

Introdução

Em linhas gerais, a ordenação e a classificação biológicas significam uma primeira aproximação ao mundo natural (ZARUR, 1994), uma vez que praticamente tudo aquilo que é observável na natureza pode ser catalogado. Dessa forma, o primeiro estágio para estudar e conservar a diversidade é descrevê-la, mapeá-la e medi-la (LAMAS & MARQUES, 2006). Tais atividades são atribuições específicas da taxonomia biológica desde antes dos sistemas formais de classificação de Carolus Linnaeus no século XVIII (SANTOS, 2008), e é ainda nesse contexto que a pesquisa zoológica brasileira se desenvolvia até meados do século XX. De maneira geral, o desenvolvimento inicial da zoologia no Brasil se deu na perspectiva da ciência aplicada e voltada ao entendimento de espécies e grupos de interesse médico, social ou sanitário (ver, por exemplo, as obras completas de Adolpho Lutz, organizadas por Jaime Benchimol e Magali Romero Sá em 2004). No início do século XX, o desenvolvimento científico, tecnológico e educacional brasileiro teve dois eixos principais e concomitantes: o desenvolvimento acadêmico baseado nas noções europeias sobre o papel da ciência e da educação e a aplicação de princípios científicos com resultados em curtos prazos para a nação (SCHWARTZMAN, 2001; VERGARA, 2004). Isso fica bastante claro quando se analisa a história do conhecimento zoológico e botânico no Brasil. Evidentemente que havia o interesse em se estudar e conservar a imensa diversidade biológica encontrada em nosso país, mas os métodos pelos quais esses objetivos se concretizariam eram aplicações da forma de fazer universitária vinda do exterior. A ideologia científica brasileira se difundiu a partir de alguns círculos intelectuais de pesquisa isolados. Zarur (1994) compila os estudos zoológicos realizados no país,

  • (^) Centro de Ciências Naturais e Humanas, Universidade Federal do ABC, Rua Santa Adélia, 166, Bairro Bangu, CEP 09210-170 - Santo André, SP, Brasil. Charles Morphy D. Santos é doutor em Entomologia pela Universidade de São Paulo e Bruna Klassa é mestranda em Ensino, História e Filosofia da Ciência e Matemática, Universidade Federal do ABC. O trabalho foi financiado pela CAPES.

caracterizando-os em três fases ou três grandes influências: tradição naturalista, “escola de Manguinhos” e a expansão de São Paulo, enquanto polo de pesquisa. A tradição naturalista refere-se aos museus científicos como principais instituições de pesquisa e ensino entre os séculos XVIII e XIX, que reúnem as diversas áreas das ciências naturais (botânica, zoologia, arqueologia, geologia, entre outras) sob uma mesma visão, a de comparar, classificar e generalizar, tendo como sistema de aprendizagem longos estágios do estudante junto ao seu orientador e à coleção. O segundo cenário descrito por Zarur (1994), não necessariamente desconexo ao primeiro, diz respeito às atividades de importância para o Brasil. Há aí uma “dependência” da ciência em relação ao Estado no tocante ao estabelecimento de metas para as atividades científicas. Desde suas origens, o debate acerca da ciência no Brasil esteve vinculado aos projetos de adequar a nação à modernidade ocidental, como meio de superar o passado colonial (VERGARA, 2004). O anseio por esse aprimoramento nacional se mostra através da relevância dos estudos realizados em institutos de pesquisa como o Instituto Adolfo Lutz (antigo Instituto Bacteriológico), o Instituto Butantan, a “escola de Manguinhos”, o Instituto Oswaldo Cruz, entre outros. A zoologia médica, por exemplo, teve papel central nas pesquisas de Manguinhos, sempre associadas à execução de atividades tidas como de interesse nacional, principalmente no âmbito do sanitarismo enquanto uma ferramenta para políticas de desenvolvimento, aliadas à pesquisa científica de qualidade. As viagens de campo realizadas pelos pesquisadores propiciaram um melhor entendimento dos problemas relacionados à saúde pública, bem como fundamentaram investimentos em estudos de doenças tropicais. O conhecimento do ciclo das doenças tropicais, como a malária, verminoses e doença de Chagas, elevaram áreas como a parasitologia e a entomologia ao primeiro plano das preocupações desse instituto (ZARUR, 1994). O Instituto Adolfo Lutz também é exemplo de pesquisas em organismos de importância médica e veterinária, tais como alguns grupos de vírus, fungos, bactérias, protozoários, crustáceos e helmintos patogênicos. Nessa época, pode- se dizer que grande parte das ciências biológicas voltava-se para a biologia aplicada. Em 1934, com a criação da Universidade de São Paulo (USP), o estado paulista começou a se firmar como polo de pesquisa e a se diferenciar economicamente do restante do país, tornando o ambiente acadêmico paulista mais independente e mais propício para se trabalhar com a ciência básica. Nesse período, professores estrangeiros de várias áreas científicas foram trazidos para “romper” com o sistema tradicional de ensino. No departamento de zoologia da USP, instaurou-se a tradição alemã de pesquisa (ZARUR, 1994),

Segundo Zarur (1994:114), nesse momento tal modo de pesquisa reorientou toda a comunidade científico-acadêmica brasileira, substituindo o estilo europeu pelo norte- americano. Vanzolini, em entrevista dada para o site de Dráuzio Varela (no endereço: http://drauziovarella.com.br/wiki-saude/paulo-vanzolini/), comenta que “a escola científica europeia é baseada na pequena vantagem, na mesquinharia, o que a faz muito diferente da maneira de pensar do americano”. No entanto, mesmo adotando a postura científica americana, segundo ele baseada no compartilhamento do conhecimento e no esforço conjunto para o desenvolvimento científico, alunos e colegas de Vanzolini afirmam que ele nunca abandonou o gênio forte que, ora sim, ora sim, o mantinham na posição de professor catedrático. Assim, a partir da década de 1950, os pesquisadores do MZUSP entraram em contato com os conceitos da Nova Síntese Evolutiva (MAYR & PROVINE, 1980), ou como Vanzolini denominou, de Nova Sistemática. Para Mário de Vivo, ex-aluno de Vanzolini e atual diretor de Vertebrados e curador da Mastozoologia do MZUSP, “a ideia básica era estudar variação geográfica, pois era ela que levava a um entendimento da microevolução, da especiação, e daí em diante seria possível então se pensar em macroevolução”. Miguel Trefaut Rodrigues, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB/USP), conta que os trabalhos de Vanzolini contribuíram para mudanças na zoologia brasileira, apesar de ainda prevalecer até a década de 1990, em certos grupos taxonômicos, trabalhos voltados apenas à descrição pontual e isolada. Vanzolini foi quem passou a se preocupar com os mecanismos de especiação e com a perspectiva evolutiva, reunindo conhecimentos biológicos e geomorfológicos, além de avaliar aspectos da evolução dos animais em função das paisagens que habitavam (BICUDO, 2010). Além disso, Vanzolini era um dos grandes nomes em estudos evolutivos da fauna tropical, em parte devido ao seu trabalho, juntamente com Ernest Williams (VANZOLINI & WILLIAMS, 1970) e colaboração de Aziz Ab’Saber, sobre a teoria dos refúgios, publicado na esteira das pesquisas de Jürgen Haffer (1969) sobre aves da floresta Amazônica. Vanzolini e seus colaboradores procuraram explicar a diversificação biológica na Amazônia (multiplicação, extinção e migração de espécies) a partir de mudanças cíclicas climáticas e de vegetação ocorridas no final do período Pleistoceno (aproximadamente entre 2,5 milhão de anos e 11.500 anos atrás). Essa teoria admitia uma visão contrária àquela aceita por muito tempo, que estabelecia que o grande número de espécies encontrado nesse bioma florestal

fosse resultado de longos períodos de estabilidade climática e geológica, propícios para cruzamentos e reprodução (BICUDO, 2010). No começo da década de 70, Vanzolini já era um zoólogo respeitado dentro e fora do Brasil. Implantou no MZUSP um estilo americano de se trabalhar, na sua concepção baseado no compartilhamento de coleções biológicas, ideias e livros. Nesse período, ele aumentou e enriqueceu a coleção de répteis e anfíbios do museu (quando assumiu sua direção, havia no museu aproximadamente 1.200 exemplares apenas; ao final de sua gestão, a coleção contava com cerca de 200.000 exemplares) e de outros grupos taxonômicos relevantes, liderando uma equipe de zoólogos que construiu ao longo de décadas uma das maiores e mais importantes coleções zoológicas neotropicais do mundo.

Papavero e a sistemática de Willi Hennig

Nelson Papavero, aluno de doutorado de Vanzolini, era um entusiasta da abordagem evolutiva. Dipterista dedicado e estudioso inveterado, Papavero iniciou sua carreira como estagiário do MZUSP durante sua graduação (1961-67) e logo se tornou biologista da casa. Em sua tese de doutorado, Sistemática e evolução dos Megapodini (Diptera, Asilidae, Dasypogonini) do mundo (PAVAVERO, 1971a), começou a se dedicar à teoria sistemática. Foi quando conheceu o trabalho do também dipterista alemão Willi Hennig, entrando em contato com a sistemática filogenética. A proposta hennigiana, delineada e publicada inicialmente apenas em alemão (HENNIG, 1950), modificada e lançada em inglês dezesseis anos depois (HENNIG, 1966), tinha como base a ideia de que as classificações biológicas deveriam refletir as relações de parentesco entre os seres vivos, utilizando, para isso, o conceito de ancestralidade comum como fundamento para a identificação de quais seriam os grupos naturais ou monofiléticos (SANTOS, 2008). A sistemática filogenética partia da observação de atributos nos organismos seguida da formulação de hipóteses de homologia ou de origem comum dos mesmos (NELSON & PLATNICK, 1981; FARRIS, 1983), as quais serviriam para o estabelecimento das relações de parentesco. A proposta de Hennig discriminava caracteres considerados primitivos (também chamados plesiomórficos) daqueles modificados (ou apomórficos), e estabelecia as relações de parentesco somente a partir do compartilhamento das apomorfias (SANTOS, 2008). Dentro dessa concepção, um grupo natural (ou clado) é a reunião da espécie ancestral mais recente e de todos os seus descendentes, determinada pela

Conforme liam e estudavam os trabalhos de Hennig, Papavero e Bernardi começaram a ministrar aulas informais para os alunos sobre sistemática filogenética. Foram as primeiras tentativas de se explicar o trabalho de Hennig para a comunidade acadêmica. Ainda que o primeiro curso formal de sistemática filogenética no MZUSP tenha sido ministrado por Nelson Bernardi, o prestígio e a fama de Vanzolini e de Papavero como os pesquisadores mais eminentes do MZUSP transbordavam os limites nacionais e começaram a influenciar outros países da América Latina (JORGE LLORENTE-BOUSQUETS, comunicação pessoal). Paralelo a isso, Papavero se dedicava à ampliação da coleção de Diptera do MZUSP e à elaboração de um catálogo do grupo (PAPAVERO, 1971b, 1973). Foi durante a preparação do catálogo que Papavero trocou separatas com inúmeros dipteristas de todo o mundo, inclusive Willi Hennig.

Sociedade Brasileira de Zoologia

A necessidade da ciência e tecnologia aparece nas políticas públicas brasileiras ainda na década de 1970. Os Planos Básicos de Desenvolvimento Científico e Tecnológico I e II (PBDCT I e II, de 1972-1974 e 1975-1979, respectivamente) estabeleceram como objetivos centrais “captar, tratar e difundir, de forma sistemática e permanente, informações atualizadas na área de Ciência e Tecnologia, assim como os vários subsistemas que dele participariam, com suas respectivas áreas de atuação”, que se tornam elementos fundamentais de apoio para a formulação de políticas e estratégia do governo (VERGARA, 2004). Foi essa conjuntura que permitiu a Papavero, juntamente com um grupo de zoólogos, analisar a situação da Zoologia no Brasil (o que resultou em um documento conhecido como "Zoologia - Avaliação e Perspectivas"), e propor ao governo a criação da Sociedade Brasileira de Zoologia (SBZ) em 1978, e posteriormente do Programa Nacional de Zoologia (PNZ), em

  1. A ideia era reunir, sob uma mesma alcunha, os diversos grupos de estudos de zoologia do Brasil, dispersos nas faculdades e universidades do país, a fim de promover um avanço igualitário da ciência em todas as regiões brasileiras. Apesar de a zoologia ter sido uma das áreas pioneiras no cenário científico brasileiro, ela não possuía ainda uma representação societária. Em 1982, durante o IX Congresso Brasileiro de Zoologia, em Porto Alegre, Papavero foi eleito o terceiro presidente da Sociedade, ocasião em que também respondia junto ao CNPq, com Reimar Schaden, pela coordenação do PNZ.

Papavero liderou a SBZ por três mandatos consecutivos, entre 1982 e 1988. Durante sua gestão, deu início à publicação da Revista Brasileira de Zoologia e da série Manuais de Técnicas para Preparação de Coleções Zoológicas, e organizou um Congresso Brasileiro de Zoologia por ano. Nesses congressos, criou e difundiu mini-cursos com temas variados e que, apesar de importantes, não eram triviais para a formação zoológica dos estudantes brasileiros (tais como cursos de latim e grego). Ainda entre 1982 e 1984, organizou seis edições dos Cursos Especiais de Sistemática Zoológica, responsáveis pela orientação de vários pesquisadores para o estudo e aplicação das modernas teorias de sistemática à época. Sobre esses cursos, falou-se na época:

No segundo semestre do ano passado (1981) realizou-se na Universidade Federal de São Carlos importante curso de sistemática zoológica, dentro do Programa Nacional de Zoologia do CNPq. O curso contou com o apoio de varias instituições, mobilizou numerosos especialistas como participantes de seu corpo docente e teve alunos de muitos estados do Brasil, assim como de países estrangeiros. O que esta revista salientou foi a amplitude do curso, que não esqueceu os problemas filosóficos básicos e proporcionou ampla bibliografia aos estudantes. Tudo isso muito bem apresentado numa publicação que pode servir de modelo a cursos semelhantes em qualquer país adiantado do mundo. O êxito do Curso está registrado em relatório de 17 páginas, assinado pelo Prof. Nelson Papavero. (...) Curso tão bem organizado e de tão alto nível merece ser enfeixado em livro, o que parece que será providenciado pelo CNPq. Ciência e Cultura, 34(9), setembro de 1982.

No ano seguinte ao primeiro curso, Papavero publicou a primeira edição de Fundamentos práticos da taxonomia zoológica: coleções, bibliografia, nomenclatura (PAPAVERO, 1983), um manual para iniciantes, pensado para que o jovem zoólogo tivesse uma sólida formação básica a partir de uma série de conhecimentos absolutamente necessários, quaisquer que fossem as tendências teóricas ou escola de sistemática seguida pelo pesquisador. O livro foi escrito por ele e colaboradores os quais já vinham ministrando cursos de fundamentos práticos em várias universidades brasileiras, especialmente na USP, bem como promovendo os Cursos Especiais dentro do PNZ/CNPq. Já no prefácio à primeira edição, o livro salienta a necessidade de renovação do pensamento sistemático teórico: “A par do desenvolvimento da filosofia da ciência, surgiram

O primeiro trabalho “hennigiano”

Conforme citado anteriormente, pode-se entender a sistemática filogenética como um sistema geral de referências, um compilado de definições conceituais, que quando aplicados aos organismos refletem diretamente e com certo grau de confiança o processo evolutivo pelo qual passaram (HENNIG, 1966). Para Nelson Papavero (KLASSA & SANTOS, no prelo), Ângelo Pires do Prado, atualmente na Universidade Estadual de Campinas, foi o primeiro brasileiro a “entender direito” o modelo filogenético proposto por Hennig e aplicá-lo no estudo da evolução de um grupo taxonômico. Em sua tese de doutorado, no ano de 1969, intitulada “Syringogastridae: uma nova família de Dípteros Acalyptratae, com a descrição de oito espécies do gênero Syringogaster Cresson” (PRADO, 1969), ele fez um revisão e sugestão de nova família para esse gênero seguindo os fundamentos da sistemática filogenética, com a otimização dos caracteres conforme o princípio auxiliar de Hennig (i.e. parcimônia), segundo o qual não se deveriam assumir hipóteses de convergência para caracteres biológicos a não ser que estritamente necessário. O pioneirismo está presente em toda a tese, como o próprio Prado (1969:1) constata,

havia uma precariedade nos métodos de sistemática dos antigos autores, (...) o que permitia classificações incertas devido à falta de informações sobre fisiologia, morfologia e etc., constituindo grupos afins que, em realidade, à luz de um exame em bases mais seguras, (...) são formas independentes que devem ser separadas para uma melhor compreensão de sua filogenia.

À época, pensava-se que as famílias constituintes da então superfamília Nothybidae seriam Megamerinidae, Diopsidae, Somatiidae, Psilidae, Tanypezidae e Strongylophthalmydae, e que o gênero Syringogaster estaria incluído em Megamerinidae, devido à combinação de caracteres externos usados em chaves de classificação e que levavam por coincidência à referida família. Estudando e detalhando a morfologia externa e a estrutura do pós-abdômen e das genitálias em ambos os sexos, Prado verificou que a inclusão dos Syringogaster entre os Megamerinidae era insustentável. A figura 1 mostra o esquema filogenético apresentado na tese e a primeira lista de caracteres usando o raciocínio filogenético construída por um autor brasileiro. Após demonstrar a independência do gênero Syringogaster , Prado sugeriu então sua elevação ao nível de família, pois a seu ver essa seria

a única maneira de se ordenar um grupo com morfologia tão singular. A conclusão do trabalho remete ao entomólogo alemão criador da sistemática filogenética: “Seguindo o esquema proposto por Hennig (1958) para a filogenia dos Nothyboidea, os Syringogasteridae pela ordem de afinidades, se enquadra entre os Megamerinidae, Diopsidae e Nothybidae” (PRADO, 1969, p. 31).

Figura 1. Esquema filogenético da superfamília Nothyboidea, baseado em Hennig (1958), com modificações para incluir a família Syringogasteridae (PRADO, 1969).

Considerações finais

A disseminação da sistemática filogenética modificou profundamente as bases da zoologia brasileira e teve início com as linhas de pesquisa de Ângelo Pires do Prado, Nelson

Agradecimentos

Os autores agradecem sinceramente aos entrevistados Flávio Bockman (FFLCRP/USP), Jorge Llorente-Bousquets (UNAM/México), Mário de Vivo (MZUSP), Miguel Trefaut (MZUSP), Renato Capellari (FFCLRP/USP), Rita Mascarenhas (Associação Guajiru, Paraíba) e Sérgio Vanin (IB/USP).

Referências Bibliográficas

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