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Análise dos Tratamentos de Auxiliares: Sintaxe Formal e Ensino de Língua Portuguesa, Notas de estudo de Língua Portuguesa

Este documento analisa o relacionamento entre sintaxe formal e ensino de língua portuguesa, com ênfase nos auxiliares. O autor examina diferentes perspectivas históricas, incluindo a gramática tradicional e a gramática estrutural, e mostra como as tendências atuais da gramática gerativa explicam as intuições dessas escolas diferentes. Além disso, o documento discute as implicações desse conhecimento para o ensino de língua portuguesa.

O que você vai aprender

  • Quais são as diferentes perspectivas históricas sobre os auxiliares na gramática portuguesa?
  • Qual é a importância dos critérios semânticos, morfológicos, sintáticos e funcionais na classificação de auxiliares?
  • Qual é a importância do relacionamento entre sintaxe formal e ensino de língua portuguesa?
  • Quais são as implicações desse conhecimento para o ensino de língua portuguesa?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

EmiliaCuca
EmiliaCuca 🇧🇷

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SINTAXE FORMAL E ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA:
UM EXEMPLO DE SEU
RELACIONAMENTO*1
Lucia Maria Pinh eiro Lobato**2| universidade de br asíLia
RESUMO
Análise de diferentes tratamentos dos auxiliares com vistas ao exame do relacionamento
entre sintaxe formal e ensino de língua portuguesa.
1 LINGUÍSTICA, TEORIA FORMAL E ENSINO
Existem duas atitudes opostas a respeito da relação entre linguística e ensino da língua
materna: uma atitude de grande expectativa e otimismo, segundo a qual caberia à linguística
a renovação desse ensino, e uma atitude de grande temor e pessimismo, segundo a qual a
linguística é a culpada pelo baixo rendimento desse ensino. Segundo os que tomam essa
segunda atitude, a linguística gostaria de ver instaurado o “caos linguístico”, em virtude de
preconizar a queda da primazia da escrita, a queda da primazia da diacronia e a queda do
privilegiamento da variedade dita culta, e em virtude de levar à ênfase na criatividade em
detrimento da correção. Evidentemente, nenhuma dessas posições é racional e defensável.
De um lado, a melhoria e a renovação do ensino não estão na dependência exclusiva
de análises linguísticas mais adequadas, sendo, antes, dependentes de uma interação
de fatores, tais como as próprias questões de saúde e nutrição, de melhoria do padrão
econômico e cultural das famílias, além de questões psicológicas, sociológicas e linguísticas,
entre outras. De outro lado, a linguística, em si mesma, não pode ser responsabilizada nem
pelo baixo rendimento dos alunos, nem pela evasão escolar. Na procura das causas do
baixo rendimento e da evasão escolares, tem-se de levar em conta tanto a ação interagente
dos fatores acima citados, quanto a atitude dos professores e autores de livros didáticos
em relação aos ensinamentos da linguística. Isto é, pode ser, efetivamente, que a linguística
esteja sendo mal compreendida, e que dela se esteja fazendo mau uso em sala de aula. Como
já ressaltei em outro lugar (LOBATO, 1978, p. 14-15), a linguística propõe análises científicas
* Conferência proferida no âmbito do I Seminári o de Linguística e Ensino de Língua Portuguesa. Goiânia, UFG,
Instituto de Ciências Humanas e Letras, outubro d e 1984 .
** Nota dos editores: Ao reproduzir o manuscrito de Lobato neste Caderno, optamos por fazer mínimas
interferências no texto or iginal, restringindo-nos a realiz ar alterações de formatação (em citações e referências ,
por exemplo) e pequenas correções gramatic ais.
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SINTAXE FORMAL E ENSINO DE

LÍNGUA PORTUGUESA:

UM EXEMPLO DE SEU

RELACIONAMENTO* 1

L ucia M aria P inheiro L obato**^2 |^ universidade de brasíLia

RESUMO

Análise de diferentes tratamentos dos auxiliares com vistas ao exame do relacionamento entre sintaxe formal e ensino de língua portuguesa.

1 LINGUÍSTICA, TEORIA FORMAL E ENSINO

Existem duas atitudes opostas a respeito da relação entre linguística e ensino da língua materna: uma atitude de grande expectativa e otimismo, segundo a qual caberia à linguística a renovação desse ensino, e uma atitude de grande temor e pessimismo, segundo a qual a linguística é a culpada pelo baixo rendimento desse ensino. Segundo os que tomam essa segunda atitude, a linguística gostaria de ver instaurado o “caos linguístico”, em virtude de preconizar a queda da primazia da escrita, a queda da primazia da diacronia e a queda do privilegiamento da variedade dita culta, e em virtude de levar à ênfase na criatividade em detrimento da correção. Evidentemente, nenhuma dessas posições é racional e defensável. De um lado, a melhoria e a renovação do ensino não estão na dependência exclusiva de análises linguísticas mais adequadas, sendo, antes, dependentes de uma interação de fatores, tais como as próprias questões de saúde e nutrição, de melhoria do padrão econômico e cultural das famílias, além de questões psicológicas, sociológicas e linguísticas, entre outras. De outro lado, a linguística, em si mesma, não pode ser responsabilizada nem pelo baixo rendimento dos alunos, nem pela evasão escolar. Na procura das causas do baixo rendimento e da evasão escolares, tem-se de levar em conta tanto a ação interagente dos fatores acima citados, quanto a atitude dos professores e autores de livros didáticos em relação aos ensinamentos da linguística. Isto é, pode ser, efetivamente, que a linguística esteja sendo mal compreendida, e que dela se esteja fazendo mau uso em sala de aula. Como já ressaltei em outro lugar (LOBATO, 1978, p. 14-15), a linguística propõe análises científicas

  • Conferência proferida no âmbito do I Seminário de Linguística e Ensino de Língua Portuguesa. Goiânia, UFG, Instituto de Ciências Humanas e Letras, outubro de 1984.

** Nota dos editores: Ao reproduzir o manuscrito de Lobato neste Caderno, optamos por fazer mínimas interferências no texto original, restringindo-nos a realizar alterações de formatação (em citações e referências, por exemplo) e pequenas correções gramaticais.

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Sintaxe formal e enSino de língua portugueSa: um exemplo de Seu relacionamento

para os dados das línguas, sem se preocupar com a questão do ensino, e uma gramática escolar, que tem fins eminentemente pedagógicos, só pode fazer uso dessas análises e de seus pressupostos teóricos se disso não resultar prejuízo para o ensino/aprendizagem. Por exemplo, os princípios estruturalistas da primazia da fala sobre a escrita, e do sincrônico sobre o diacrônico,

não podem ser tomados ao pé da letra no que se refere ao ensino. De um lado, o ensino da língua materna visa à utilização oral e escrita da língua, e não somente à oral, e, como a clientela, no caso, é de falantes-ouvintes nativos, a ênfase não poderia recair sobre o oral. Por outro lado, a formação universitária de estudantes da área de letras só será completa se incluir informação sobre a evolução da língua. O que é importante é distinguirmos a fala da escrita, e o sincrônico do diacrônico. As modalidades falada e escrita têm características particulares suas, apesar de se interseccionarem. A sincronia e a diacronia também se interseccionam, não sendo possível estabelecer uma barreira nítida entre os diferentes estados da evolução de uma língua, mas existem fatos linguísticos que pertencem inequivocamente a estados anteriores e não ao atual. O que não seria mais cabível no ensino em nossos dias é a inobservância dessas distinções, e o retorno à época em que só o que era atestado em autores clássicos é que era aceito.^1

Quanto à questão da queda do privilegiamento da variedade dita culta, a atitude do professor e do autor de livros didáticos também deve ser de equilíbrio. A esse propósito, retomo um trecho meu de 1978 (LOBATO, 1978, p. 27):

A ênfase dada pelo estruturalismo à descrição veio se opor ao normativismo existente nas gramáticas tradicionais. Estas partiam do pressuposto de que só as formas consagradas pelos autores clássicos eram boas e consideravam como corrupções e deturpações as formas divergentes encontradas na fala do povo. A ênfase à descrição está, então, em paralelo com a primazia dada à fala. Teria o ensino de ser descritivo ou normativo? O próprio fato de se ter de escolher formas da língua que serão ensinadas e outras que não o serão pode ser visto como uma forma de prescritivismo no ensino. A atitude do professor, sobre esse aspecto, deve ser a de uma pessoa esclarecida a respeito de preconceitos linguísticos, a fim de evitar falar em “regras de bem falar e escrever” ou em “bom português”, que implicam preconceito a respeito de outros usos da língua que não o culto. Tendo em vista que a língua é um conglomerado de variantes que se interseccionam, deve ele evitar julgamentos de valor sobre uma ou outra variante, sobretudo tendo em vista que o objetivo da escola não é substituir uma variante (a que o aluno já possui) por outra (a ensinada na escola), mas sim acrescentar mais uma a seu repertório de variantes (que é constituído por uma só variante no início da escolarização) e capacitar o aluno a usar apropriadamente essas diferentes variantes em situações específicas. 2

Finalmente, quanto à ênfase na criatividade, em detrimento da correção, observe-se que essa é uma atitude pedagógica somente “inspirada” no gerativismo, sem que o gerativismo seja responsável por sua adoção no ensino, uma vez que o gerativismo é uma teoria científica e não uma teoria pedagógica. Além disso, observe-se que o que é pregado por alguns

1 Apud Lobato (1978, p. 24). 2 Apud Lobato (1978, p. 27).

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Sintaxe formal e enSino de língua portugueSa: um exemplo de Seu relacionamento

em si [das gramáticas formais] que deve ser aproveitado no ensino”, mas sim “os resultados de um tal tipo de pesquisa”. Neste momento, ao voltar a essa questão, quero reafirmar que:

(1º) a gramática escolar não pode aceitar o formalismo técnico de modelos linguísticos formais; (2º) a gramática escolar não pode estar sujeita a modismos teóricos; (3º) a gramática escolar deve levar em conta o resultado da pesquisa científica, mas desde que esse resultado esteja suficientemente comprovado por diferentes correntes e não sujeito a dúvidas ou divergências.

Não me deterei na demonstração da minha primeira afirmativa, segundo a qual o ensino não deve usar o aparato formal das teorias sintáticas contemporâneas. Antes, remeto o leitor a Lobato (1978, p. 31-35), onde procurei indicar os inconvenientes do uso do formalismo das regras transformacionais no ensino de língua, mesmo que para alunos mais avançados.

Meu propósito é demonstrar a segunda afirmação, de que a gramática pedagógica não pode estar sujeita a modismos teóricos, e explicitar meu pensamento a respeito da terceira afirmação, de que os resultados incontestes e consagrados da pesquisa linguística têm de ser considerados pela gramática escolar. Para ilustrar o perigo que representam para o ensino as adesões apressadas a resultados de análises formais, tratarei dos verbos auxiliares em português. Inicialmente, farei um resumo do pensamento da gramática tradicional a respeito, tomando por base algumas de nossas gramáticas escolares, além da gramática de Soares Barbosa. Em segundo lugar, mostrarei o pensamento de Benveniste a respeito da questão, como exemplo da ótica estruturalista. Finalmente, exporei os tratamentos formais de tais verbos no modelo padrão da teoria gerativa, no modelo da semântica gerativa, e no modelo padrão estendido. Nesse ponto, terei mostrado que a gramática formal, em uma de suas tendências atuais, mas não em outras tendências, explica tecnicamente as intuições, aparentemente inconsistentes, expressas nos tratamentos tradicional e estrutural dos auxiliares. Em outras palavras, terei mostrado que a evolução da análise teórica dos auxiliares levou à convergência de pontos de vista entre propostas de escolas diferentes — de um lado, a proposta da gramática tradicional (tal como apresentada por Bechara e Kury) e do estruturalismo (tal como apresentada por Benveniste) e de outro a proposta do modelo padrão estendido da gramática gerativa em uma de suas tendências atuais. Terei, então, evidenciado que, mesmo no âmbito das gramáticas formais contemporâneas, persiste a divergência entre os estudiosos quanto ao inventário dos auxiliares. Concluirei, então, que, se o ensino tivesse feito uso dos resultados no âmbito do modelo padrão, deixando de lado a proposta tradicional de análise dos auxiliares, o próprio ensino da questão é que teria sido prejudicado.

Nesse ponto, estarei, então, em condições de dizer quais são os resultados da pesquisa científica, a respeito dos auxiliares, que devem ser levados em conta pela gramática escolar, tratando, assim, da minha terceira afirmação acerca do relacionamento entre linguística formal e ensino de língua.

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Lucia Maria Pinheiro Lobato

2 OS AUXILIARES NA GRAMÁTICA TRADICIONAL Como se vê do Quadro 1 (extraído de LOBATO, 1975, p. 28), sobre o inventário dos auxiliares segundo diferentes gramáticas do português, não há uniformidade, na gramática tradicional, no entendimento do que seja um verbo auxiliar. Por outro lado, o que leva à determinação de inventários diferentes é (1) o uso de critérios diferentes, (2) a continuidade que existe entre a noção de verbo principal e de verbo auxiliar.

QUADRO 1^5

Soares Barbosa Said Ali Mattoso Câmara Chaves de Melo Bechara e Kury ser + pp (passiva) ser + pp (passiva) ser + pp (passiva) ser + pp (passiva) ser + pp (concluso) ser + pp (concluso) ficar + pp estar + ger estar + ger ouestar a + inf estar + ger ouestar a + inf estar + ger ouestar a + inf estar + ger ter + pp (concluso) ter + pp (concluso) ter + pp (concluso) ter + pp (concluso) ter + pp (concluso) ter + pp (iterativo) haver + pp haver + pp haver + pp haver + pp ter de + inf ter de + inf (^) ter que + infter de + inf ter de + inf ter de + inf haver de + inf haver de + inf haver de + inf haver de + inf haver de + inf ir + ger ir + ger ir + ger ouir a + inf ir + ger ir + ger vir + ger vir + ger vir + ger vir + ger ir + inf ir + inf ir + inf ir + inf ir + inf

andar + ger andar + ger andar + ger andar + ger ouandar a + inf andar + ger ouandar a + inf tornar a + inf tornar a + inf vir de + inf vir de + inf acertar de + inf dever de + inf dever + inf dever + inf poder + inf poder + inf precisar (de) + inf querer + inf desejar + inf odiar + inf tentar + inf continuar a + inf continuar a + inf acabar de + inf acabar de + inf fazer + inf deixar + inf mandar + inf

5 Nota dos editores: No Quadro apresentado pela autora, as siglas utilizadas são as seguintes: pp = particípio passado, ger = gerúndio e inf = infinitivo. Além disso, no manuscrito de Lobato, não havia indicação, no Quadro, das obras dos autores mencionados. Acreditamos, contudo, que a autora estivesse fazendo menção às seguintes obras, constantes nas referências bibliográficas presentes no texto original: Barbosa (1803), Ali (1908, 1965a, 1965b), Câmara Jr. (1970), Melo (1970), Bechara (1963) e Kury (1960).

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Lucia Maria Pinheiro Lobato

Benveniste (1965) distingue duas classes modais:

(1) modalizantes de função: são os verbos sempre empregados como auxiliantes modais (como exemplos são citados devoir e pouvoir); (2) modalizantes de assunção: são os verbos que não são exclusivamente auxiliantes modais (como exemplos são citados vouloir, aller, falloir, désirer, espérer, savoir, faire, ...).

Logo, a proposta de Benveniste se assemelha às de Bechara e Kury.

4 OS AUXILIARES NO MODELO PADRÃO DA GRAMÁTICA GERATIVA

De acordo com as análises feitas para o português no âmbito do modelo padrão da gramática gerativa, seriam auxiliares verbos como ter (tenho lido, tinha lido), haver (havia lido), estar (está lendo), e muito provavelmente ir (vai ler), mas não os modais (querer, crer, dever, poder, etc.) ou os aspectuais (começou lendo / a ler / por ler; continuou lendo / a ler; terminou lendo / de ler; etc.). Tampouco o verbo ser da passiva (foi lido) seria um auxiliar nessa perspectiva, pois só seriam auxiliares os elementos inseridos pela regra de expansão de Auxiliar: 6

Aux  ... (te + - do) (esta + - ndo ) (i + - r)

O elemento se + -do que forma a passiva:^7

Esse livro foi lido por muitas pessoas.   se(r) - do

seria inserido pela regra do modelo gerativo padrão intitulada “transformação de Apassivação”.

Evidentemente, tal abordagem tem vários defeitos, como o de não captar o estreito relacionamento entre, por exemplo, estar quando seguido de gerúndio (está lendo), quando seguido de adjetivo (está triste) e quando seguido de advérbio (está aqui). Só no caso de ser seguido de gerúndio, estar seria classificado como auxiliar; quando seguido de adjetivo, seria um verbo de ligação ou cópula; e, quando seguido de advérbio, seria um verbo principal. Além dessa diversidade de tratamento sintático para um único verbo, há também o fato complicador de ter ele, então, de ser tratado como ambíguo. Isto é, haveria três verbos estar diferentes no português. É lógico que até do ponto de vista psicológico é indesejável essa proliferação de ambiguidades na língua: é mais plausível, do ponto de

6 Nota dos editores: Na regra de Aux, há os seguintes elementos: te = verbo auxiliar ter, - do = particípio passado selecionado por ter, esta = auxiliar estar, - ndo = gerúndio selecionado por estar, i = auxiliar ir,

  • r = infinitivo selecionado por ir. 7 Nota dos editores: A transformação de Apassivação opera sobre os seguintes elementos: se = auxiliar ser,
  • do = particípio passado / particípio passivo selecionado por ser.

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Sintaxe formal e enSino de língua portugueSa: um exemplo de Seu relacionamento

vista da aquisição da língua, que haja um só, e não três verbos estar. E isso porque explicaria a facilidade com que as crianças aprendem sua língua: uma criança de 3, 4 anos já dominou esses diferentes empregos de estar. Uma proposta atraente é a de se considerar que há um só “sentido núcleo” (ing.: core sense) para esse verbo, e diferentes regras construtivas (ing.: construal rules) para derivar suas diversas interpretações a partir desse sentido núcleo (cf. MILLER, 1978). Ou, alternativamente, haveria uma única função estar, caracterizadora de um estado, para qualquer emprego de estar, residindo sua diferença na diferente escolha do campo semântico a que se aplica essa função: locativo ou circunstancial, podendo ainda o campo circunstancial se referir a uma propriedade ou um evento. Para João está em Paris, João está feliz e João está lendo, teríamos, respectivamente, a função estar referente a uma localização (Paris), a uma circunstância relativa a uma propriedade (feliz), e a uma circunstância relativa a um evento (lendo) (cf. JACKENDOFF, 1983, p. 171, 195 e 199).

Um outro inconveniente do modelo padrão é que exige um corte arbitrário no continuum em que se colocam os verbos auxiliares, não captando, portanto, o fato de tais verbos se situarem num eixo contínuo em relação aos verbos principais (cf. LOBATO, 1975).

5 OS AUXILIARES NO MODELO DA SEMÂNTICA GERATIVA

A proposta de Ross (1970), no âmbito da semântica gerativa, foi de agrupar verbos principais e auxiliares numa única classe, sendo os auxiliares tratados como verbos principais. O uso do traço [auxiliar] diferenciaria auxiliares de verbos principais.

6 OS AUXILIARES NO MODELO PADRÃO ESTENDIDO

No modelo padrão estendido, pelo menos duas tendências têm se delineado com relação aos auxiliares. Uma delas, exemplificada em Steele (1981), se insere numa perspectiva em que se procuram identificar universais linguísticos. Por essa perspectiva, postula-se a existência da categoria sintática do auxiliar, definida como a classe de constituintes formada por um número específico (i.e., fixo e pequeno) de elementos que necessariamente marcam pelo menos tempo e/ou modalidade. Dada essa conceituação, a análise de diferentes línguas leva a um conjunto de características identificadoras da classe do auxiliar para qualquer língua que seja:^8

a. Cada membro da classe é um constituinte. b. A classe contém um número específico (i.e., fixo e pequeno) de elementos. c. Esses elementos ocorrem numa ordem fixa. d. A classe inclui elementos que marcam tempo e/ou modalidade. e. A classe pode incluir elementos que indicam marcação de sujeito, concordância com o sujeito, interrogação, ênfase, aspecto, marcação do objeto, concordância com o objeto, e negação.

8 Em Steele (1981) encontram-se ainda outras características.

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Sintaxe formal e enSino de língua portugueSa: um exemplo de Seu relacionamento

A versão chomskiana de X propõe, ainda, que cada categoria N, V, A, P seja o resultado de diferente combinação dos traços N (Nominal) e V (Verbal):

[±N] [±V] [+n]^ [–n] [–V] N P [+V] A V

Com relação aos auxiliares, a teoria X, nessa versão que adota os traços sintáticos básicos, permite traduzir suas similitudes e diferenças pelo simples uso dos traços V, N, Aux. Teríamos os seguintes agrupamentos:

a) +V b) +V c) +V −N −N −N +AUX −AUX

Com (a), estaríamos fazendo referência exclusiva aos auxiliares; com (b) aos verbos não auxiliares; e com (c) à classe geral dos verbos, incluindo os auxiliares.

Outra característica da teoria padrão estendida, na sua versão atual, foi o esvaziamento do componente sintagmático, em virtude de sua redundância com o léxico (cf. capítulo 12 de Lobato (a sair)).^10 Nessa versão da teoria, não mais existe regra de expansão de Aux como:^11

Aux  Tp (te + - do) (esta + - ndo ) (i + - r)

uma vez que as exigências combinatórias de te + -do, esta + -ndo e i + -r já estão enumeradas no léxico. Em consequência, não existe mais a exigência de se ter de chegar a uma lista de verbos que sejam auxiliares a fim de incluí-los na expansão de Aux.

Além de ter adotado a sintaxe X, e de ter eliminado a redundância entre léxico e regras sintagmáticas em detrimento destas, a teoria padrão estendida passou a postular a existência de regras de reestruturação (ou reanálise, ou reajustamento, ou rearranjo). O que seria uma regra de reestruturação para os auxiliares? Esse tipo de regra (estudada extensivamente para o italiano por Rizzi (1978, 1982)) consiste na reestruturação opcional de uma estrutura sintagmática com duas orações em uma estrutura com um única oração, sendo essa reestruturação dependente de o verbo da oração matriz ser um aspectual ou modal.^12 Rizzi justificou de diferentes modos a postulação de tal tipo de regra, e não me

10 Nota dos editores: A obra à qual a autora se refere e que, à época deste artigo, estava a sair, com título diferente, é o seu conhecido livro Sintaxe Gerativa do Português: da Teoria Padrão à Teoria da Regência e Ligação, publicado em 1986 pela editora Vigília, de Belo Horizonte. 11 Nota dos editores: Na regra em questão, Tp é o símbolo correspondente a Tempo, um dos componentes de Aux juntamente com os auxiliares e as formas morfológicas associadas a eles. 12 Rizzi considera ainda, para o italiano, os verbos de movimento. Para maiores detalhes sobre essas regras de reajustamento e sobre a sintaxe X, v. Lobato (a sair).

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Lucia Maria Pinheiro Lobato

cabe aqui examinar essa motivação teórica. O ponto chave, para mim neste momento, é o fato de essa proposta levar a se considerar, para uma única e mesma frase com modal ou aspectual, dois níveis de representação diferentes, um nível em que esse modal ou aspectual formaria com o verbo principal uma estrutura bi-oracional, e outro nível em que o modal ou aspectual formaria com o verbo principal uma estrutura uni-oracional. Por exemplo, para João quer vir mais cedo teríamos:

S [João quer^ S [PRO vir mais cedo]]

e

S [João^ SV [quer vir] mais cedo] Essa proposta de reestruturação capta, perfeitamente, a intuição de que querer possui características de auxiliar, e, ao mesmo tempo, permite tratá-lo como verbo principal (uma vez que não conterá o traço [auxiliar]). Isto é, só no nível pós-reestruturação é que querer seria interpretado como auxiliar, sendo, portanto, um “auxiliar de assunção”.

Esta última tendência de análise para os auxiliares no âmbito da gramática gerativa tem nítidas vantagens sobre o tratamento padrão: não leva a diferenciar totalmente, do ponto de vista semântico, os verbos auxiliares das formas correspondentes em função de verbo de ligação ou verbo principal; não obriga a um corte arbitrário no continuum que liga auxiliares a verbos principais; permite captar as similitudes e diferenças entre auxiliar e verbo principal; permite captar a intuição de que verbos como querer se comportam como auxiliares diante de infinitivo.

7 CONCLUSÕES PARCIAIS

Esse breve exame de diferentes tratamentos dos auxiliares mostrou que:

(1) uma das tendências atuais de análise dos auxiliares, no âmbito da teoria gerativa, explica, por meio do uso do traço sintático básico [auxiliar] e de regras de reestruturação, as intuições do estruturalismo (representado em Benveniste (1965)) e da gramática tradicional (representada em Bechara (1963) e Kury (1959)) acerca dessa classe de elementos; (2) ainda hoje, a análise dos auxiliares é assunto controvertido na gramática gerativa.

Logo, se a gramática escolar tivesse adotado, com relação aos auxiliares, o ponto de vista da gramática gerativa no seu modelo padrão, teria tomado uma atitude apressada.

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Lucia Maria Pinheiro Lobato

REFERÊNCIAS

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13 Nota dos editores: A obra a que se refere a autora foi impressa sob outro título, conforme consta na seguinte referência: LOBATO, Lucia M. P. Sintaxe Gerativa do Português: da Teoria Padrão à Teoria da Regência e Ligação. Belo Horizonte: Ed.Vigília, 1986.