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Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII, 11.
I
E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe. Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que “saiu o prega- dor evangélico a semear” a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há ou- tros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes- ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare.
∗Pregado na Capela Real, no ano de 1655.
2 Pe António Vieira
Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou por- que os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho, que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: “Uma vez que iam, não tornavam”. As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto; mas esse es- pírito tinha impulsos para os levar, não tinha regresso para os tra- zer; porque sair para tornar, melhor é não sair. Assim arguís com muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos, que havia de fazer? Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experi- mentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca ventura. “Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos”: Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae suffocaverunt illud. “Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de humidade”: Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat hu- morem. “Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves”: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro géneros: cri- aturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensí- veis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insen- sível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensi- tiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pe- dras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens? Pisaram-no: Conculcatum est. (Ab hominibus – diz a Glossa).
4 Pe António Vieira
afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados. Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumen- tos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? – Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como di- zia o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, “quando iam não tornavam”: Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que “aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco”: Ibant et revertebantur in similitudinem fulguris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tor- nar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última parte do trigo se restauraram com van- tagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadure- ceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum. Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira, porque, ainda que se perderam os primeiros traba- lhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram as pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá tam- bém? Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os
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frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só es- sas são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? – Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.
II Semen est verbum Dei
O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a pa- lavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com rique- zas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desa- tendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que ´nse colhe cento por um˙z: Et fructum fecit centuplum. Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e con- fuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se
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os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam es- tas três? – A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pi- saram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordi- nariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? – Porque o sol e a chuva são as influências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amo- lecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos.^1 Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci?^2 – disse o mesmo Deus por Isaías. Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por
(^1) Que faz nascer o sol sobre os bons e os maus e chover sobre os justos e os injustos. S. Mateus, V, 45. (^2) Que tive eu de fazer à minha vida e não fiz? Isaías, V, 4
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falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer ne- nhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo. Os ouvintes, ou são maus ou são bons; se são bons, faz ne- les fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça ne- les fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffo- caverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum cen- tuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão fecunda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus, ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? – Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir subtilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou a vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mes- mos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais fa- cilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida:
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em qual consistirá esta culpa? – No pregador podem-se conside- rar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, a ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando esta causa. Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos, eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pre- gadores são eu e outros como eu? – Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que go- verna. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é acção; e as acções são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as acções, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor con- ceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? – É o conceito que de sua vida têm os ouvintes. Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não con- verte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de David der- rubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus.^5 As vozes da harpa de David lançavam fora os demónios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: Da- vid tollebat citharam, et percutiebat manu sua.^6 Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar, faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar
(^5) Uma pedra lhe acertou na cabeça. Reis I, XVII, 49. (^6) David levava a harpa e tocava-a com a sua mão. Reis I, XVI, 23.
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ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram cem palavras? – Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? – Man- dou ao Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum, non factum. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est. De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do Mundo. Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu e na Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra não? A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est; na terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que entra pelos ou- vidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam muito outros. Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pi- latos, conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que to- maram uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma aten- ção. Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por ceptro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspen- são nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina, aparece a
Sermão da Sexagésima 13
Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e, ainda depois de engolido e vomitado, iracundo, impaciente, pouco ca- ritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive e de a ver subverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo homem com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o maior reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios idóla- tras. Outra é logo a causa que buscamos. Qual será?
V
Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa ra- zão é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitectura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geo- metria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte, caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. “Caía o trigo nos espinhos e nascia”: Aliud ceci- dit inter spinas, et simul exortae spinae. “Caía o trigo nas pedras e nascia”: Aliud cecidit super petram, et ortum. “Caía o trigo na terra boa e nascia”: Aliud cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo e ia nascendo. Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as coisas e hão-de nas- cer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nas- cendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estira- dos, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: Cecidit. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda
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que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nas- cendo, há-de ter três modos de cair: há-de cair com queda, há-de cair com cadência, há-de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas, porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar; hão-de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão- de ser escabrosas nem dissonantes; hão-de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit. Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? – O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Fir- mamentum – diz David. Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum. E quais são estes sermões e estas palavras do céu? – As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra seme- ada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há-de estar branco, da outra há-de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão-de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão-de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão- de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As es- trelas são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto;
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tamanhos autores, posto que desejáramos, nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a causa de nossa queixa?
VI
Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa- se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos e quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há-de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos géneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? – Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste género. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há- de colher senão vento? O Baptista convertia muitos em Judeia; mas quantas matérias tomava? – Uma só matéria: Parate viam Domini; a preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas; mas quantos assuntos tomou? – Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur: a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto; e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora! Por isso não pregamos nenhum. O sermão há-de ser de uma só cor, há-de ter um só objecto, um só assunto, uma só matéria. Há-de tomar o pregador uma só matéria, há-de defini-la para que se conheça, há-de dividi-la para que se distinga, há-de prová- la com a Escritura, há-de declará-la com a razão, há-de confirmá- la com o exemplo, há-de amplificá-la com as causas, com os efei-
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tos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar, há-de respon- der às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades, há-de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto. Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter va- riedade de discursos, mas esses hão-de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede: Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fun- dado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diver- sos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos não hão-de ser secos, se- não cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são a re- preensão dos vícios; há-de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo isto, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver ramos, mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se tudo são fo- lhas, não é sermão, são verças. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, à que podemos chamar árvore da vida, há-de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nas- cido e formado de um só tronco, e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão-de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça frutos com eles.
Sermão da Sexagésima 19
suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com as armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja David. As armas de Saul só servem a Saul, e as de David a David; e mais aproveita um cajado e uma funda própria, que a espada e a lança alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que derribe gigante. Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, que foi ordená- los de pregadores; e que faziam os Apóstolos? – Diz o texto que estavam reficientes retia sua: “refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos, e não eram alheias. Notai: retia sua. Não diz que eram suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam; não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, se- não porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas; e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes alheias ou feitas por mãos alheias, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é porque nesta pesca de entendi- mentos só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma rede? – Do fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há-de fazer rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há-de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves; e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça. As razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento. Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois porque na cabeça e não na boca, que é o lugar da língua? – Porque o que há-de dizer o pre- gador, não lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca pára nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento. Ainda têm mais misté- rio estas línguas do Espírito Santo. Diz o texto que não se puseram
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todas as línguas sobre todos os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, sedit- que supra singulos eorum.^7 E porque cada uma sobre cada um, e não todas sobre todos? – Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E senão, vede-o no estilo de cada um dos Apóstolos, sobre que desceu o Espírito Santo. Só de cinco temos escrituras; mas a diferença com que escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas todas eram tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João miste- rioso, Pedro grave, Jacob forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco S. Lucas e S. Marcos, que também ali estavam, e achareis o número da- queles sete trovões que ouviu S. João no Apocalipse. Locuta sunt septem tonitrua voces suas. Eram trovões que falavam e desarti- culavam as vozes, mas essas vozes eram suas: Voces suas; “suas, e não alheias”, como notou Ansberto: Non alienas, sed suas. En- fim, pregar o alheio é pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa. Contudo eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Baptista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou S. Lucas, e não com outro nome, senão de sermões: Prae- dicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun Isaiae prophetae. Deixo o que to- mou Santo Ambrósio de S. Basílio, S. Próspero e Beda de Santo Agostinho, Teofilato e Eutímio de S. João Crisóstomo.
VIII
Será finalmente a causa, que há tanto buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje
(^7) Apareceram línguas dispersas como de fogo e assentou uma sobre cada discípulo. Actos dos Apóstolos, II, 3.