Baixe Semiologia do Sistema Urinário em Animais: Anatomia e Fisiologia e outras Exercícios em PDF para Semiologia, somente na Docsity!
Semiologia do
Sistema Urinário
MARILEDA BONAFIM CARVALHO
"NÃO SEJA IMPACIENTE COM OS SEUS PACIENTES."
{Cari Osborne)
Os órgãos urinários (organa urinaria) incluem os rins (renes), ureteres (ureferes), bexiga (vesica - urinaria) e uretra (urethra masculina e urethra feminina). Os rins produzem a urina que, por meio dos ureteres, chega à bexiga, onde é temporariamente armazenada. Durante o esvaziamento vesical a urina passa pela uretra chegando ao meio externo. Para a produção de urina, os rins filtram o plasma, extraindo grande quanti- dade de um líquido chamado ultrafiltrado, que é, então, processado para reabsorção de substâncias úteis e concentração dos rejeitos a se- rem eliminados. A maior parte da água do ultrafiltrado é reabsorvida de modo a manter o volume plasmático em parâmetros normais. Assim, os rins movimentam um volume muito grande de líquidos a cada 24 ho- ras. Em cães grandes (e animais de tamanho semelhante), os rins são perfundidos diariamente com l .000 a 2.000 litros de sangue, dos quais são filtrados 200 a 300 litros (ultrafiltrado), que por sua vez são redu- zidos, por reabsorsão, para l a 2 litros de urina. As várias propriedades especiais dos rins fazem destes órgãos efetores essenciais para a homeostase de água, de eletrólitos e de dezenas de substâncias derivadas do meta- bolismo e do catabolismo. Não menos relevantes são as funções renais endócrinas ligadas ao metabolismo de cálcio e fósforo, à produção de hemácias e ao controle da pressão arterial.
428 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico RINS O rim (ren em latim, nephros em grego) é o órgão que repousa sob os músculos sublombares, um de eada lado da coluna vertebral. Os rins têm locali- zação retroperitoneal, com a superfície dorsal em contato com os músculos sublombares, frequente- mente circundada por gordura, e a superfície vcn- tral coberta por peritônio transparente. Cada rim tem um pólo eranial e um caudal, um bordo medial e um lateral, uma superfície dorsal e uma superfície ventral; tais referências devem ser empregadas para descrever a posição de alterações renais localizadas e para orientar procedimentos cirúrgicos. No bor- do medial está localizado o hilo renal (hilus renalis), através do qual passam o ureter, veias e artérias renais, vasos linfáticos e nervos. O pólo eranial de cada rim é coberto com peritônio em ambas as superfícies, dorsal e ventral, enquanto o pólo caudal é coberto somente na superfície ventral. O rim é revestido por uma cápsula fibrosa (capsulafibrosa) cuja rigidez restringe a habilidade de expansão do tecido renal. O aumento de volu- me que ocorre em certas doenças renais tende a causar compressão do tecido, estreitamento das passagens internas e dor. A cápsula adiposa (capsula adiposa), que reves- te parcialmente o rim, estende-se através do hilo para dentro do sino renal. A visualização do bordo renal em radiografias é facilitada pela presença dos tecidos adiposos perirenal e retroperitoneal, que podem variar em espessura, de acordo com a espé- cie e o estado nutricional do animal. O parênquima renal, localizado entre a cáp- sula e o sino renal, é constituído pela medula re- nal (medulla renis) e pelo córtex renal (córtex renis). No parênquima renal estão os ncfrons que são as unidades estruturais específicas dos rins. O néfron (nephronum) consiste de um longo túbulo que se inicia no corpúsculo renal (corpusculum renale) e termina em conexão com o dueto coletor. O cor- púsculo renal é constituído pela cápsula glomeru- lar (capsulaglomeruli), que envolve completamen- te uma rede capilar esférica denominada glomé- rulo (glomerulus). As diferenças de tamanho dos rins, nas várias espécies animais, estão relacionadas ao número de glomérulos que eles contêm. Cada rim contém aproximadamente 30.000 glomérulos no rato, 190.000 no gato, 400.000 no cão, 1.300. no homem, 2.200.000 no suíno e 7.000.000 no elefante. Equinos. O rim direito tem forma de triân- gulo equilátero com os bordos arredondados, mede de 13 a 15cm de comprimento e está lo- calizado no espaço compreendido entre a 15a costela e a apófise transversa da 1a^ vértebra lombar, não sendo acessível à palpação retal. O rim esquerdo tem formato de feijão, mede de 15 a 20cm de comprimento, tem mais mobilida- de, podendo haver variação na sua localização que, normalmente, é mais caudal que a do rim direito. Geralmente o pólo caudal do rim esquerdo está em relação com a apófise transversa da 3a vértebra lombar. Bovinos, ovinos e caprinos. O rim direito está relacionado dorsalmcnte com a última costela e com as apófises transversas das três primeiras vértebras lombares podendo, em alguns casos, ter localização mais caudal (cerca de 8cm). O rim esquerdo tem posição muito variável; quan- do o rúmen está parcialmente cheio, o que ocorre em período de jejum, o rim repousa à esquerda do plano médio; após a ingestão de alimentos, quando o rúmen está distendido, o rim esquer - do é pressionado para o plano médio e repousa abaixo e caudalmcnte ao rim direito, no espaço compreendido pelas 3a, 4a^ e 5a^ vértebras lom- bares. Nos bovinos os rins são lobulados; o com- primento do rim direito varia de 18 a 24cm e do esquerdo entre 19 e 24cm. Os ovinos e os caprinos têm os rins muito semelhantes aos rins de cães (forma de feijão), com comprimento variando en- tre 5,5 e 7cm. Cães e gatos. Os rins de cães e gatos têm a forma típica de feijão. O comprimento pode ser estimado por meio de radiografia lateral e varia entre 2,5 e 3, vezes o comprimento da 2a^ vértebra lombar no cão e entre 2,5 e 3,0 vezes no gato. Adotando o mesmo critério de medida, a largura varia de 1,4 a 1,8 para os cães e 1,6 a 1,9 para os gatos. No cão, o rim direito está comumente localizado no espaço correspondente ao intervalo entre a 13a^ vértebra torácica e a 1a^ vér- tebra lombar, enquanto o rim esquerdo, cuja posi- ção pode variar mais, está localizado no espaço cor- respondente ao intervalo entre a 2 - e a 4 - vértebra lombar. A fixação dos rins à parede do corpo é mais frouxa nos gatos do que nas demais espécies. Assim, nesta espécie, os rins são bastante móveis e, portan- to, fáceis de palpar. O rim esquerdo dos gatos ocupa posição ligeiramente pendulosa, o que facilita ainda mais a palpação. Pela localização particular no gato, este órgão é, algumas vezes, mal interpretado como massa abdominal anormal. O rim direito ocupa o espaço compreendido entre a l - e a 4a^ vértebra lom- bar, e o rim esquerdo se estende da 2a^ até a 5a^ vér- tebra lombar.
430 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico URETRA
A uretra do macho leva urina, sémen e secre-
ções seminais para o orifício uretral externo
(ostium urethae externum}, na extremidade distai
do pênis. No macho a uretra é dividida em parte
pélvica (pars pelviná) e parte peniana (pars
peníná) ou esponjosa. A uretra feminina se origi-
na na bexiga e segue em sentido caudodorsal,
com sua parede dorsal em aposição à parede
ventral da vagina, e adentra o trato genital cau-
dalmentc à junção vaginovestibular na linha
média da superfície ventral da vagina. A mus-
culatura (túnica musculares) da uretra feminina é
formada por três camadas de músculo liso. A ure-
tra é envolvida em quase toda sua extensão por
musculatura estriada, pelo músculo urethralis, cujo
fascículo cranial circunda a uretra, enquanto o
fascículo caudal forma um suporte em forma de
"U" preso na parede vaginal. A contração desta
musculatura, além de diminuir a luz vaginal, pres-
siona a uretra contra a vagina causando fecha-
mento uretral. A musculatura voluntária em forma
de "U" desempenha a função de esfíncter bastan-
te forte.
Cães e gatos. A primeira parte da uretra pélvi-
ca no gato é a porção pré-prostática (pars
preprostatica), mas no cão o início da uretra está
inteiramente circundado pela próstata (pars
prostaticà). Em ambas as espécies a uretra pélvi-
ca continua após a próstata. Km um cão adulto
com aproximadamente 12 quilos de peso corpo-
ral, a uretra tem 25cm de comprimento em mé-
dia. Entretanto, tanto o comprimento quanto o
diâmetro da uretra podem variar amplamente.
Durante a micção ou ejaculação, a parede da ure-
tra se distende, mas a expansão é limitada na
porção cavernosa da uretra que passa pelo sulco
ventral do osso peniano. Esta característica ana-
tómica da uretra dos cães é fator predisponente
para as obstruções uretrais por cálculos. Os gatos
machos apresentam afunilamento da uretra em
direção à extremidade do pênis, característica esta
que pode facilitar acúmulo de material sólido, re-
sultando em obstrução uretral. A uretra da cade-
la tem cerca de 0,5cm de diâmetro por 6 a lOcm
de comprimento, e a mucosa permite expansão
considerável quando está sob pressão. Na cade-
la, pode ser visto o tubérculo uretral (tuberculum
urethralé), uma elevação que demarca o orifício
uretral externo. O tubérculo uretral está locali-
zado cranialmente ao clitóris, cerca de 4 a 5cm a
partir da comissura da vulva. A cateterização da
uretra é fácil nos cães e relativamente fácil na
gata, mas pode ser considerada mais difícil no gato,
devido ao reduzido diâmetro, e ao tamanho, for-
ma e posicionamento do pênis.
Equinos. A uretra dos machos é bastante lon-
ga, mas a uretra pélvica mede apenas de 10 a 12cm.
Na extremidade peniana dos equinos, a uretra
termina em prolongamento cilíndrico de 1,5 a 3cm
de comprimento, denominado processo uretral, que
fica alojado dentro da fossa da glande. Nas fêmeas
a uretra mede de 5 a 7,5cm c o lúmen é suficien-
temente largo para permitir a introdução de um
dedo.
Ruminantes. Nos bovinos machos a uretra se
prolonga como processo de 2 a 3cm, que fica
encaixado no sulco localizado do lado direito da
extremidade peniana. Nos pequenos ruminan-
tes ocorre o processo uretral que se projeta para
além do pênis. A uretra feminina tem cerca de
10 a 13cm na vaca, 4 a 5cm na ovelha c 5 a 6cm
na cabra. O orifício uretral externo se abre no
assoalho da vagina, sob forma de fenda delimi-
tada, lateralmente, por pregas de mucosa. Vcn-
tralmcnte ao orifício uretral externo, existe o
divertículo suburetral, que se constitui em uma
pequena bolsa, direcionada cranioventralmente,
com cerca de 2cm de diâmetro na vaca e l a
l,5cm na ovelha e na cabra. O divertículo deve
ser evitado no momento de introdução de son-
da uretral.
CONTROLE DA MICÇÃO
A micção compreende o processo fisiológico de
armazenagem e eliminação da urina. A vesícula
urinária e a uretra, em ação conjunta, propiciam o
acúmulo da urina que vai sendo formada (fase de
armazenagem), por meio de relaxamento da bexi-
ga e contração do "esfíncter" uretral que previne
o fluxo de urina para o meio externo. Na etapa
seguinte, quando a bexiga está suficientemente
cheia, a contração vesical e a facilitação do fluxo
de urina dada pelo relaxamento uretral propiciam
o esvaziamento da bexiga (fase de eliminação de
urina).
A micção é uma função reflexa que envolve ação
integrada de vias parassimpáticas, simpáticas e
somáticas, que se estendem desde o segmento sacral
da corda espinhal até o córtex cerebral. Este pro-
cesso envolve os nervos pudendo, pélvico e hipo-
gástrico em uma ação que está sob o controle de
neurônios da formação reticular pontina que, por
Semiologia do Sistema Urinário 431
sua vez, podem ser influenciados por neurônios do
córtex cerebral e do cerebelo.
A musculatura lisa da vesícula urinária (mús-
culo detrusor), assim como a musculatura estria-
da do esfíncter uretral externo, recebem inerva-
ção simpática, parassimpática e somática para o
controle neural da micção. A fase de armazena-
gem de urina é dominada por atividade neuro-
lógica autonômica simpática, através de relaxa-
mento do músculo detrusor (atividade betadre-
nérgica) que permite distensão sem aumento sig-
nificativo da pressão intravesical e, simultanea-
mente, contração do esfíncter uretral externo que
promove a contenção da urina. A contração da mus-
culatura estriada do esfíncter uretral externo, por
estimulação voluntária, pode reforçar a continência
urinária quando necessário. Uma vê/ atingidos os
limiares de volume e pressão da vesícula uriná-
ria, impulsos motores eferentcs dão início à fase
de eliminação de urina ou esvaziamento vesical.
Xesta fase, impulsos autonômicos do parassim-
pático estimulam a despolarização e contração do
músculo detrusor (efeito colinérgico pós-ganglio-
nar), ao mesmo tempo que ocorre inibição da
atividade simpática e somática dos esfíncteres
uretrais com relaxamento da uretra. Com o esva-
ziamento da vesícula urinária, tem início uma nova
fase de armazenagem.
Controle Voluntário da Micção
As vias sensoriais que seguem da bexiga para
a região pontina no cérebro também chegam ao
córtex cerebral, onde é integrado o controle vo-
luntário da micção. Através desta via de controle
do reflexo do músculo detrusor, o animal pode iniciar
voluntariamente a micção, corno no caso de mar-
cação de território, ou pode inibir a micção, como
ocorre quando o animal é treinado para urinar em
locais e momentos determinados. O controle vo-
luntário da micção pode ser perdido nos casos de
lesões do córtex cerebral. Através de inervação
somática, pode haver contração da musculatura
estriada do esfíncter uretral externo e musculatu-
ra perineal, mecanismo voluntário que traz auxí-
lio adicional para a contenção urinária, quando
necessário (Tabela 9.1).
EXAME DO PACIENTE Resenha (Identificação)
Para avaliar o sistema urinário, assim como
ocorre com outras partes do organismo, diversas
informações sobre as características do animal têm
grande relevância na definição do tipo de aborda-
Semiologia do Sistema Urinário 433 Tabela 9.3 - Resumo da sequência de exame clínico do sistema urinário. Resenha e anamnese Exame físico Geral
- Peso corporal, temperatura, frequência de pulso e respiratória, mucosas (coloração e estado dos vasos), grau de hidratação
- Boca (úlceras, alterações da língua, inserção dos dentes, aumento maxilar, hálito urêmico)
- Exame geral dos demais órgãos e sistemas **Específico
- Rins**
- Ambos são palpáveis?
- Tamanho, simetria e posição?
- Forma, contorno e consistência?
- Dor? 2. Bexiga
- Posição?
- Tamanho, formato, consistência?
- Cálculos ou massas palpáveis?
- Espessura da parede?
- Dor? 3. Próstata (importante em cães)
- Posição, tamanho, simetria, consistência
- Dor? 4. Uretra dos machos
- Meato urinário
- Secreção uretral ou prepucial?
- Tamanho, forma e consistência das porções pal páveis?
- Anormalidades periuretrais? 5. Micção
- Frequência?
- Disúria?
- Retenção?
- Incontinência? Exames complementares
- Urinálise
- Cateterização vesical
- Técnicas para diagnóstico por imagem
- Provas de função renal
- Biopsia tares que serão eleitos de acordo com as possibi- lidades diagnosticas aventadas. Dentre os exames especiais, a urinálise destaca-se por ser necessá- ria em praticamente 100% dos casos. Outros exa- mes incluem as provas de função renal, exames radiográficos, ultra-sonografia e uretrocistoscopia. A técnica de palpação destaca-se no exame físico de rotina. A palpação dos órgãos urinários, seja externa ou por via retal, é útil para verificação das características anatómicas e para avaliação da sensi- bilidade. É importante ressaltar que o examinador não pode executar movimentos bruscos. O contato de pelo menos uma das mãos do examinador com o corpo do paciente deve sempre ser mantido durante as trocas de posição. A pressão necessária para palpar cada órgão deve ser aplicada de forma gradativa, até que se atinja o grau mínimo necessário. O término da pressão também deve ser feito de forma gradativa. Estes cuidados evitarão desconforto desnecessário ao paciente e, principalmente, impedirão que um grau normal de sensibilidade venha a ser erroneamente interpretado como dor decorrente de doença. O au- mento da sensibilidade ou dor, quando existir, será manifestado por gemidos ou reação de defesa, du- rante o toque suficientemente profundo, mas suave, da área afetada. Outro dado a ser destacado é que a ausência de sensibilidade dolorosa ou mesmo de al- terações anatómicas detectáveis à palpação dos ór- gãos urinários não descarta a possibilidade de doen- ça. Muitas afecções, inclusive várias de caráter grave, não cursam com alterações perceptíveis à palpação. Exame dos Rins Para examinar os rins, deve ser feito exame físico de ambos os órgãos, sempre que possível, e também do seu produto mais acessível - a urina. Os exames complementares dos rins incluem tan- to avaliações feitas por inspeção e palpação, como exames laboratoriais e provas de função renal (Quadro 9.1 e Tabelas 9.4 e 9.5). Os rins podem apresentar diversos tipos de alterações tanto congénitas quanto adquiridas (Tabela 9.7). Estes órgãos possuem grande capa- cidade de reserva funcional e podem manter a produção de urina, como também suas demais funções, enquanto sofrem algum tipo de doença. Assim, ao serem examinados os rins, o clínico deve avaliar (1) a possibilidade de existência de algu- ma doença renal em curso, sem comprometimento importante da função e (2) a possibilidade de haver déficit da função renal. Quando ocorre défi- cit da função renal, o exame do paciente deve ser conduzido de modo a elucidar a causa envolvida. Nos casos de déficit funcional com comprome- timento da função de depuração (redução severa da filtração glomerular), o paciente apresenta au- mento das concentrações séricas dos produtos fi- nais do metabolismo de substâncias nitrogenadas (creatinina e ureia). Este achado laboratorial, de- nominado azotemia, pode ter causa pré-renal, re- nal ou pós-renal (Tabela 9.6). Se o problema per-
434 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico
Semiologia do Sistema Urinário 435 siste, o paciente sofre alterações orgânicas impor- tantes em função de quebra da homeostase e passa a apresentar um conjunto de sinais e sintomas clí- nicos e laboratoriais, que caracterizam o quadro conhecido como síndrome urêmica ou uremia (Qua- dro 9.2). Esta condição pode se apresentar tanto sob a forma aguda como sob a forma crónica, de acordo com o tipo de doença renal em curso. Outra condição bastante peculiar é a do pacien- te com glomerulonefrite crónica. Neste caso os rins perdem a capacidade de conservar proteína e desen- volve-se uma condição sistémica denominada síndro-
Quadro 9.2 - Conceito de síndrome urêmica
(uremia).
Conjunto de sinais e sintomas que caracterizam as
manifestações sistémicas resultantes de mau funcio-
namento dos rins. Na síndrome urêmica existem com-
prometimentos gastrointestinais, neuromusculares,
cardiopulmonares, endócrinos, hematológicos e of-
tálmicos. A azotemia também é um dos achados la-
boratoriais da síndrome urêmica.
me nefrótica, que se caracteriza por proteinúria, hi- poprotcinemia, edema e ascite. Exame dos Ureteres
Os ureteres podem sofrer processos obstru-
tivos parciais ou totais que resultam, a longo pra-
zo, em grande dilatação pelo acúmulo de urina
normal ou contaminada por infecções, caracteri-
zando o quadro de megaureter. O desenvolvimento
de megaureter, em um grande número de casos
observados em cães e gatos, é secundário a pro-
cesso congénito de falha na implantação do ure-
ter na bexiga (ureter ectópico), com ocorrência
de obstrução. Em animais pequenos, o exame dos
ureteres é possível somente por inspeção indire-
ta, por meio de radiografia contrastada (urografia
excretora). Este exame radiográfico é útil para
diagnosticar processos obstrutivos ureterais, com
ou sem megaureter e ainda é adequado para diag-
nosticar os casos de ruptura ureteral. Em condi-
ções excepcionais, parte dos ureteres pode ser exa-
minada por meio de ultra-sonografia. Nos casos
436 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico
Figura 9.1 - Manifestações clínicas das síndromes re-
lacionadas a doenças renais crónicas. (A) cão com uremia
crónica, notar emaciação e apatia; (B) gato com sín-
drome urêmica, notar apatia e fraqueza muscular; (C)
e (D) equino com síndrome urêmica, notar úlcera de
mucosa oral e de língua; (E) cão com síndrome urêmica,
notar petéquias de mucosa oral e úlcera de língua; (F)
cão com síndrome nefrótica, notar edema de região
ventral e ascite.
A
438 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico
palpação retal ou vaginal (com um dedo) e de pal-
pação externa (mão sob forma de pinça). Nos
equinos e nos bovinos, a bexiga pode ser examina-
da por palpação retal; nas fêmeas é possível exa-
minar a bexiga por palpação vaginal. Durante a pal-
pação vesical verifica-se localização, volume, for-
ma, consistência, tensão e sensibilidade. Caso a
bexiga contenha pouco volume de urina, pode ser
avaliada a espessura da parede e, muitas vezes, é
possível detectar a presença de cálculos ou de
massas anormais. Quando indicado, durante a
palpação, pode ser feita expressão manual da be-
xiga para verificar se a uretra está patente (de-
sobstruída) ou para coleta de amostra de urina. A
bexiga também pode ser examinada por meio de
radiografias e ultra-sonografia, que são métodos de
inspeção indireta (Fig. 9.2). Em pequenos animais,
as grandes distensões de bexiga, causadas por re-
tenção de urina, podem ser detectadas por inspe-
ção direta do abdome. Nestes casos, o conteúdo
líquido pode ser identificado e delimitado por meio
de percussão digito-digital (som maciço).
Na tabela 9.9 estão apresentadas as técnicas
para exame da uretra.
Avaliação da Micção
Para avaliação da micção devem ser conside-
radas as informações obtidas durante a anamnese
(Tabela 9.3). A esse respeito deve ser lembrado
que são frequentes informações não precisas que,
não raramente, decorrem de falta de clareza das
perguntas formuladas pelo veterinário. O ideal é
que a avaliação seja feita pelo próprio clínico (ins-
peção), assim que possível. Para identificar os trans-
tornos da micção, deve ser considerada a postura
normal à micção, que é particular para cada espé-
cie animal (Tabela 9.10).
As alterações da micção podem estar relacio-
nadas a vários problemas que incluem tanto afecções
do trato urinário como afecções extra-urinárias. Com
o exame clínico completo e o detalhamento na
avaliação do trato urinário é possível diagnosticar
a causa do transtorno da micção. Os termos
semiológicos apropriados para cada tipo de altera-
ção da micção e suas possíveis causas estão apre-
sentadas nas Tabelas 9.11 e 9.12.
Frequência da Micção
Para manter o equilíbrio de água, o volume da
urina produzida em 24 horas deve ser proporcio-
nal ao volume de água ingerida. Entretanto, quando
ocorre aumento de perda de água por vias extra-
renais (respiração, transpiração, defecação, lacta-
ção), deve haver diminuição do volume de urina
produzida, a menos que haja aumento compensa-
tório da ingestão de água. A frequência de micção,
indicada pelo número de vezes que o animal urina
em 24 horas, deve ser proporcional ao volume de
urina produzida no mesmo período (Tabela 9.13).
Cada espécie animal tem um padrão para a fre-
quência de micção (lembrar que os recém-nasci-
dos sempre urinam muito mais que os adultos).
Contudo, diversas condições fisiológicas ou pato-
lógicas podem implicar alteração do número de
vezes que o animal urina. As variações na frequência
de micção recebem denominações específicas que
incluem polaquiúria ou polaciúria, oligosúria e
iscúria ou retenção de urina. Outra condição que
também modifica a frequência de micção é a per-
da de urina decorrente de incontinência urinária
(ver Fig. 9.3 e Tabela 9.14).
Tabela 9.9 - Sumário das técnicas semiológicas indicadas para o exame da uretra de c ães, gatos, equinos e ruminantes. Exame físico de rotina Inspeção direta Exames específicos e complementares Inspeção direta por uretroscopia Inspeção indireta (radiografias contrastadas, ultra-sonografia) Palpação indireta por meio de sonda uretral Palpação retal Aplicabilidade Permite o exame do meato urinário externo em todos os animais Eficiente para avaliação interna da uretra e para biopsia; pode ser empregada em todos os animais nos quais seja possível a cateterização vesical (como parte da cistoscopia tra n s u retrai) Radiografias são úteis para animais pequenos A ultra-sonografia é útil para o exame de alguns segmentos da uretra Possível em todas as fêmeas e em cães, gatos e cavalos machos Útii para machos; permite examinar a parte pélvica da uretra
Semiologia do Sistema Urinário 439 Tabela 9.10 - Posturas normais e atitudes comuns à micção. Equinos Geralmente só urinam quando não estão trabalhando. A postura para micção é similar para ca- valos e éguas e consiste em extens ão dos membros torácicos seguida por abaixamento do abdo- me e inspiração, que resultam em aumento da press ão intra-abdominal. O cavalo faz ligeira exposição do pênis Ruminantes As vacas adiantam os membros pélvicos, arqueiam o dorso e elevam a cauda. Os bovinos machos urinam tanto quando estão parados como quando estão andando ou comendo. A urina é eliminada na cavidade prepucial, de onde escorre através do meato. Os ovinos adotam as mesmas posturas de micção observadas em bovinos Caninos As cadelas flexionam os membros pélvicos de modo que o períneo fique paralelo ao solo, faltando pouco para tocá-lo. Os cães levantam um dos membros pélvicos e direcionam o jato para um objeto selecionado. Quando filhotes, antes da maturidade sexual, os machos adotam a mesma postura de micção das fêmeas. Os cães adultos, principalmente os machos, podem urinar pequenas quantida- des, muitas vezes seguidas, para marcar território Felinos A postura adotada, tanto pelas fêmeas como pelos machos, é a mesma das cadelas. Os felinos fazem uma pequena cova onde depositam a urina, cobrindo-a após a micção. Machos e fêmeas sexualmente maduros podem ter o hábito (não desejado pelo proprietário) de eliminar urina sob a forma de spray (marcação de território). Primeiro o animal cheira o alvo, então se vira de costas e emite o jato. O alvo é sempre uma superfície vertical de cerca de 20cm acima do solo Tabela 9.11 - Disúria (dificuldade para urinar). Caracteriza-se por sinais de desconforto ou de dor à micção, podendo haver dificuldade para eliminação da urina. De acordo com a causa e a intensidade do problema, as manifesta ções de disúria podem variar tanto quanto ao tipo como quanto à intensidade. Assim, a disúria pode ser classificada como micção dolorosa, estrangúria ou tenesmo vesical Causas possíveis
- Enfermidades dolorosas da bexiga, uretra, vagina ou prep úcio
- Enfermidade dolorosa de outros órgãos comprimidos pela prensa abdominal durante a mic ção
- Peritonite aguda
- Tumores ou cálculos vesicais
- Obstruções uretrais Tabela 9.12 - Variações do estado de disúria. Durante os esforços de micção, o animal apresenta gemidos, desassossego, movimentos de um lado para o outro, olhares dirigidos para o ventre, agitação da cauda, "sapateado" Caracteriza-se por esforços prolongados, com intervenção enérgica da prensa abdominal, sem eliminação de urina, ou que acabam por produzir eliminação de poucas gotas ou de poucos jatos finos de urina, acompanhados de manifestação de dor (gemidos) É um esforço constante, prolongado e doloroso para emissão de urina. Nos casos extremos, o animal pode conservar constantemente a postura de mic ção. Nesse quadro, a vontade de urinar é constante, mesmo que a bexiga contenha volume de urina pequeno ou esteja vazia Tabela 9.13 - Frequência normal de micções em 24 horas para adultos. Equinos e bovinos 5 a 7 vezes Ovinos e caprinos 1 a 4 vezes Cães Muito variável Cadelas 2 a 4 vezes Gatos 2 a 4 vezes Micção dolorosa Estrangúria Tenesmo vesical
Semiologia do Sistema Urinário 441 Volume de Urina
A análise do volume de urina requer acom-
panhamento por 24 horas com mensuração de
todos os volumes eliminados (Tabela 9.15). Isso
pode ser feito colocando-se o animal em gaio-
las metabólicas ou empregando bolsas coleto-
ras. Entretanto, estes procedimentos comumente
não podem ser empregados na rotina. Mesmo
assim, pode e deve ser feita a avaliação por es-
timativa do volume de urina. O proprietário ou
tratador do animal pode inferir sobre possíveis
aumentos ou diminuições do volume de urina
produzida, considerando o número de vezes que
o animal está urinando por dia e os tamanhos
das "poças" de urina, formadas a cada micção.
Para tanto, o veterinário deve conduzir, com mui-
ta clareza, suas perguntas. Muito frequentemen-
te o informante se refere ao fato de que o "ani-
mal está urinando muito" não fazendo distin-
ção entre polaquiúria (micção muito frequen-
te, sinal típico de cistite aguda) e poliúria (au-
mento do volume de 24 horas, comum na insu-
ficiência renal crónica, dentre outras afecções).
As variações do volume de urina produzida em
24 horas devem ser qualificadas obedecendo as
denominações: poliúria (muita urina), oligúria
(pouca ou pouquíssima urina) ou anúria (quan-
tidade desprezível ou nenhuma urina) (ver
Tabela 9.16).
Alterações Macroscópicas da Urina
Alguns tipos de alterações na composição da
urina podem ser verificados pelos proprietários
Tabela 9.15-Quantidade padrão de urina produ- zida em 24 horas. 3 a 6L (máximo de 10L) 6 a 12L (máximo de 25L) 0,5 a 2L 0,5 a 2L 40 a 200ml_ 180 a 400mL Equinos Bovinos Ovinos e caprinos Cães grandes Cães pequenos e gatos Coelhos
444 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico se o aproveitamento da urina do jato médio. Entretanto, em casos específicos, pode ser exa- minada a urina do primeiro jato (contém mais material proveniente da uretra) ou a do jato final (contém mais material que esteja sendo sedimentado na bexiga), de forma isolada ou em comparação com a urina do jato médio. Caso seja empregado o cateterismo vesical também deve ser desprezado o volume inicial que con- terá maior abundância de material que tenha sido aprisionado na sonda durante sua passa- gem pela uretra (também pela vagina no caso de fêmeas). Quando a urina for obtida por cisto- centese pode ser aproveitado todo o volume co- letado. Os resultados dos exames realizados devem ser interpretados sempre consideran- do o jato de urina aproveitado e a forma de coleta da amostra. A amostra de urina deve ser acondicionada em recipiente estéril e livre de resíduos quími- cos. Depois de receber a amostra, o frasco deve ser hermeticamente fechado e refrigerado até o momento do exame. O ideal é que não decor- ram mais do que 40 minutos (máximo de 2 ho- ras) entre a coleta e realização dos exames de- sejados. O exame de urina fica indicado nas situações apontadas no Quadro 9.6. Os resultados espera- dos nas urinálises de urinas normais estão apre- sentados nas Tabelas 9.19 e 9.20.
Semiologia do Sistema Urinário 445
quadro 9.5 - Diferenciação entre hemogiobinúria e mioglobinúria.
Hemoglobinúria - Presença de hemoglobina na urina em decorrência de hemólise intravascular (babesiose,
leptos-pirose, anemia hemolítica do recém-nascido, envenenamentos, acidente ofídico, queimaduras
extensas). A urina apresenta-se avermelhada ou acastanhada.
Mioglobinúria - Presença de mioglobina na urina em decorrência de lesão muscular extensa (miopatia de
esforço). A urina tem coloração castanho-avermelhada.
Figura 9.4 - Alterações macroscópicas da urina. (A) gato com cistite hemorrágica, notar o jato de urina sanguinolenta
(hematúria) obtido por expressão manual da bexiga; (B) urina de equino com pielonefrite, notar floculação decorrente
de piúria e depósito constituído principalmente por cristais; (C) (D) (E) e (F) representações esquemáticas para locali-
zação de hemorragias do trato urinário de acordo com a quantidade de sangue presente em cada um dos jatos de urina
(primeiro, intermediário e final).
D