Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Análise da Argumentação Retórica em Schopenhauer e Aristóteles, Esquemas de Lógica

Este documento discute a relação entre a teoria retórica de aristóteles e a filosofia de schopenhauer, enfatizando a importância dos lugares comuns argumentativos na comunicação entre a verossimilhança e a verdade. O texto analisa escritos de aristóteles e schopenhauer, bem como a nova retórica de perelman e olbrechts-tyteca, para explorar as preocupações comuns sobre a persuasão e a argumentação. O documento também discute a teoria da argumentação, da elocução e da composição do discurso na teoria retórica aristotélica.

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Pipoqueiro
Pipoqueiro 🇧🇷

4.5

(123)

405 documentos

1 / 26

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
SCHOPENHAUER E A PROVA ANALÓGICA DE QUE A
VONTADE É A COISA EM SI: UMA LEITURA DA § 19 DE O
MUNDO COMO VONTADE E COMO REPRESENTAÇÃO DO
PONTO DE VISTA DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA
Matheus Silva Freitas
Doutorando em Filosofia pela UFS
RESUMO: Este artigo propõe uma leitura da § 19 de O mundo como vontade e como
representação do ponto de vista da retórica aristotélica. Neste referido parágrafo, Schopenhauer
propõe uma analogia entre o corpo humano e as demais coisas que compõem a natureza, a fim
de especificar qual é a essência desta ou, em outros termos, o que é a coisa em si. Como
alternativa às propostas interpretativas dessa manobra, que tomam a analogia, por um lado,
como uma “prova” nos termos da lógica formal ou, por outro, como um instrumento de acesso
ao cerne da natureza, nós apresentamos a seguinte hipótese: nessa § 19 Schopenhauer prepara
um “argumento analógico retórico”, mediante o qual concluiria que “a Vontade é a coisa em si”,
sendo essa conclusão verdadeira, ainda que não necessária do ponto de vista da lógica clássica.
Isso seria possível, de acordo com o método dialético de Aristóteles, graças à comunicação entre
a “verdade” e a verossimilhança”, viabilizada pelo uso de “lugares comuns” argumentativos,
extraídos de seu pensamento metafísico e que são também, de acordo com o sentido que
desejamos explorar aqui, aplicados à sua arte retórica. Assim, recorreremos à análise não apenas
do texto em que Schopenhauer formula a analogia, mas de outros escritos seus que guardam
relação direta com esse problema; e também consideraremos aqueles em que Aristóteles expõe
sua teoria da arte retórica, com ênfase para a Retórica, e ainda partes do Tratado da
argumentação: a nova retórica, de Perelman e Olbrechts-Tyteca, na medida em que estes
reformulam e, ao mesmo tempo, refletem praticamente as mesmas preocupações daquela obra
aristotélica.
PALAVRAS-CHAVE: Schopenhauer. Coisa em si. Analogia. Retórica. Aristóteles.
ABSTRACT: This paper proposes a reading of § 19 of Die Welt als Wille und Vorstellung from
the point of view of Aristotelean rhetoric. In this referred section, Schopenhauer propose an
analogy between the human body and the all other things that compose the nature. As an
alternative to interpretations that take the analogy, on the on hand, as a proof in the sense of
formal logic, and on another as a device to reach the core of nature, we present the following
hypothesis: in this § 19 Schopenhauer formulate a “analogical rhetoric argument”, whereby
would be concluded that “the Will is the thing-in-itself”, this concluding being true, although
not needed of classical logic point of view. This would be possible, according to Aristotle’s
dialectical method, because of connection between the “truth” and the “verisimilitude”, ensured
by the use of argumentative “commonplaces” collected of his metaphysical thinking and which
are applied to his rhetorical art, which we intend to explore here. Therefore, we will resort to
analyze the text in which Schopenhauer elaborate the analogy, and to some other his writings
that have direct relationship with this some problem; and we will also analyze the texts in which
Aristotle directly or indirectly prepare his rhetoric art theory, especially the Rhetoric, as well
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Análise da Argumentação Retórica em Schopenhauer e Aristóteles e outras Esquemas em PDF para Lógica, somente na Docsity!

SCHOPENHAUER E A PROVA ANALÓGICA DE QUE A

VONTADE É A COISA EM SI: UMA LEITURA DA § 19 DE O

MUNDO COMO VONTADE E COMO REPRESENTAÇÃO DO

PONTO DE VISTA DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA

Matheus Silva Freitas Doutorando em Filosofia pela UFS

RESUMO: Este artigo propõe uma leitura da § 19 de O mundo como vontade e como representação do ponto de vista da retórica aristotélica. Neste referido parágrafo, Schopenhauer propõe uma analogia entre o corpo humano e as demais coisas que compõem a natureza, a fim de especificar qual é a essência desta ou, em outros termos, o que é a coisa em si. Como alternativa às propostas interpretativas dessa manobra, que tomam a analogia, por um lado, como uma “prova” nos termos da lógica formal ou, por outro, como um instrumento de acesso ao cerne da natureza, nós apresentamos a seguinte hipótese: nessa § 19 Schopenhauer prepara um “argumento analógico retórico”, mediante o qual concluiria que “a Vontade é a coisa em si”, sendo essa conclusão verdadeira, ainda que não necessária do ponto de vista da lógica clássica. Isso seria possível, de acordo com o método dialético de Aristóteles, graças à comunicação entre a “verdade” e a “verossimilhança”, viabilizada pelo uso de “lugares comuns” argumentativos, extraídos de seu pensamento metafísico e que são também, de acordo com o sentido que desejamos explorar aqui, aplicados à sua arte retórica. Assim, recorreremos à análise não apenas do texto em que Schopenhauer formula a analogia, mas de outros escritos seus que guardam relação direta com esse problema; e também consideraremos aqueles em que Aristóteles expõe sua teoria da arte retórica, com ênfase para a Retórica , e ainda partes do Tratado da argumentação: a nova retórica , de Perelman e Olbrechts-Tyteca, na medida em que estes reformulam e, ao mesmo tempo, refletem praticamente as mesmas preocupações daquela obra aristotélica.

PALAVRAS-CHAVE: Schopenhauer. Coisa em si. Analogia. Retórica. Aristóteles.

ABSTRACT: This paper proposes a reading of § 19 of Die Welt als Wille und Vorstellung from the point of view of Aristotelean rhetoric. In this referred section, Schopenhauer propose an analogy between the human body and the all other things that compose the nature. As an alternative to interpretations that take the analogy, on the on hand, as a proof in the sense of formal logic, and on another as a device to reach the core of nature, we present the following hypothesis: in this § 19 Schopenhauer formulate a “analogical rhetoric argument”, whereby would be concluded that “the Will is the thing-in-itself”, this concluding being true, although not needed of classical logic point of view. This would be possible, according to Aristotle’s dialectical method, because of connection between the “truth” and the “verisimilitude”, ensured by the use of argumentative “commonplaces” collected of his metaphysical thinking and which are applied to his rhetorical art, which we intend to explore here. Therefore, we will resort to analyze the text in which Schopenhauer elaborate the analogy, and to some other his writings that have direct relationship with this some problem; and we will also analyze the texts in which Aristotle directly or indirectly prepare his rhetoric art theory, especially the Rhetoric , as well

some parts of The new rhetoric: a treatise on argumentation , in which Perelman and Olbrechts- Tyteca reformulate, but still reflect the same concerns presents in that Aristotelean work.

KEYWORDS: Schopenhauer. Thing-in-itself. Analogy. Rhetoric. Aristotle.

Introdução

Na §19 de O mundo como vontade e como representação^1 , Schopenhauer procura desvendar a essência do mundo por meio de uma analogia com o nosso próprio corpo. Para alguns comentadores (CACCIOLA, 1994, p. 50; BARBOZA, 2015b, pp. 39 - 40; SILVA, 2011, p. 187), essa analogia é formulada em termos de uma “prova”, em que todas as similaridades constatadas entre os objetos corpóreos, em seu aspecto exterior, são apontadas como premissas, das quais se conclui que tais objetos devem ser idênticos também em seu interior; portanto, seriam exatamente aquilo que cada ser humano pode conhecer por meio de uma autorreflexão, a saber, “vontade”^2. Outro grupo de intérpretes rechaça que Schopenhauer ofereça a analogia como uma prova, no sentido da lógica formal. Segundo eles, a consideração analógica é, antes, um instrumento de acesso ao cerne da natureza, a partir da interpretação da experiência interna humana. Interpretação que poderia ser metafórica, como para De Cian e Segala (2002) e Prado (2015; 2019) ou metonímica, tal qual sustenta Shapshay (2009). Cada uma dessas duas posições encontra fortes dificuldades para lidar com as seguintes questões, respectivamente: a) como sustentar que a analogia foi mesmo empregada como uma prova, tendo em vista as inúmeras objeções a que ela está sujeita de uma perspectiva da lógica clássica e que foram, detalhadamente, expostas por Silva (2011)^3? E, b) se ela se configura como um instrumento de acesso à essência do mundo, o conhecimento dessa essência é, por isso, mais incerto que aquele mais imediato,

(^1) Doravante referido abreviadamente como O mundo. (^2) Em Silva (2011, pp. 135-136) pode-se encontrar uma síntese da interpretação desses comentadores que entendem a analogia da § 19 em termos de uma “prova”, bem como é apresentada uma paráfrase de como eles a reconstroem em seus respectivos estudos. Com efeito, entende-se “prova”, aqui, no sentido de “argumento” definido por Mortari (2011, p. 11): “conjunto (não-vazio e finito) de sentenças, das quais uma é chamada de conclusão, as outras de premissas, e pretende-se que as premissas justifiquem, garantam ou deem evidência para a conclusão”. 3 Invalidade lógica, falta de critério para a extensão pretendida, indeterminação do que na verdade está sendo estendido e o caráter ilimitado da sua extensão: estes são apenas alguns dos problemas evidenciados por Silva (2011) no argumento analógico da § 19 de O mundo , caso tal argumento seja lido a partir das prescrições da lógica formal para a elaboração de raciocínios por analogia.

no primeiro livro da Retórica , “constitui o eixo principal e fornece ao mesmo tempo o nó da sua articulação com a lógica demonstrativa e com a filosofia”; que essa teoria da argumentação, ainda segundo Ricoeur, “cobre só ela dois terços do tratado” de Aristóteles, já indica que a atenção desse autor estava dirigida, principalmente, para uma retórica aparentada à filosofia e, concomitantemente, à lógica demonstrativa 5. Tal proposta de leitura, segundo Coelho (2005, p. XI-XII), fica patente também nas considerações que Aristóteles (2012, p.11 [1355b]) faz na própria Retórica acerca dos dois tipos de raciocínios: o “silogismo analítico” e o “silogismo dialético”. Coelho (2005, p. XI) resume que, para o Estagirita, o silogismo analítico “se traduz numa demonstração fundada em proposições evidentes, que conduz o pensamento à conclusão verdadeira, sobre cujo estado se alicerça toda lógica formal”; e que o silogismo dialético “se expressa através de um argumento sobre enunciados prováveis, dos quais se poderiam extrair conclusões apenas verossímeis, representando uma forma diversa de raciocinar”, sendo este o tipo de silogismo concernente também à arte retórica, conforme destacará nossa abordagem. O ponto chave que nós gostaríamos já de sublinhar, e que é enfatizado por Coelho (2005, p. XII), é que “não se nota, no pensamento aristotélico, qualquer sugestão de hierarquia entre essas duas maneiras de raciocinar: elas não se excluem mutuamente, não se sobrepõem, não substituem uma à outra”^6. Com efeito, a dissolução da fronteira entre o “silogismo analítico”, que trata do verdadeiro, e do “silogismo dialético”, a partir do qual se conclui o provável ou verossímil, certamente está alinhada com a seguinte assunção aristotélica encontrada em sua Retórica : “é próprio de uma mesma faculdade discernir o verdadeiro e o verossímil, já que os homens têm uma inclinação natural para a verdade [...]” (ARISTÓTELES, 2012, p. 9 [1355a]). Consequentemente, conclui Aristóteles (2012, pp. 9-10 [1355a]),

(^5) De fato, Aristóteles dividiu sua Retórica em três livros. Para usar a terminologia de Ricoeur, o primeiro e mais extenso contém a “teoria da argumentação” aristotélica, focada exclusivamente nas formas dos argumentos e nos elementos de que derivam a matéria desses argumentos; por meio dessa teoria é que o autor estreitaria a relação entre retórica, lógica e filosofia. O livro II contém o que Ricoeur chamou de “teoria da elocução”, e nela Aristóteles expõe como o caráter do orador e o modo como ele manipula as emoções podem ser usados como parte da argumentação retórica. Já no livro terceiro Aristóteles apresenta o que Ricoeur classifica como “teoria da composição do discurso” e que versa, por seu turno, sobre o estilo, sobre o modo como o discurso é proferido. Para um esquema mais detalhado acerca da divisão de Retórica nesses três livros e dos conteúdos abordados em cada um deles, cf. Júnior (2012, pp. XXIX-XL). 6 Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p.5) também acentuam essa divisão entre “silogismo analítico”, próprio da lógica formal”, e o “silogismo dialético” ou, no sentido mais restrito que adotamos neste artigo, “silogismo retórico”, ao mesmo tempo em que enfatizam o paralelismo que há entre eles na teoria aristotélica: “o raciocínio dialético é considerado paralelo ao raciocínio analítico, mas trata do verossímil em vez de tratar de proposições necessárias”.

“ser capaz de discernir sobre o plausível é igualmente ser capaz de discernir sobre a verdade”. E o que garante, por sua vez, que a arte retórica possui mesmo a prerrogativa de expor o “verossimilhante” aparentado à “verdade” é a comunicação que essa arte pode estabelecer com a metafísica. Black (1978, p. 92), por exemplo, comenta que a teoria retórica de Aristóteles é perpassada por um mesmo fio condutor subjacente a todo o seu opus : a pressuposição metafísica de que tudo que se faz se dirige para um fim, e que este fim se dirige para um fim ainda mais elevado, até que se chegue a um fim último supremo^7. Ou seja, este já é mais um indício de que há um fundo filosófico-metafisico também na Retórica de Aristóteles; pois, no caso dessa obra, o comentador esclarece que o fim ao qual ela se dirige é o que Aristóteles chama de krisis e que os anglófonos traduzem por judgement. Mais especificamente, Black (1978, p. 103) conclui que Aristóteles emprega krisis quase sempre no sentido de uma faculdade humana ou como um processo após o qual se chega a um julgamento ou juízo^8 ; não seria tal faculdade, pois, aquela mesma apontada por Aristóteles como a responsável pela consideração tanto do verdadeiro quanto do verossímil? A respeito desse seu comentário sobre o sentido de krisis na Retórica , Black estabelece:

Ao considerar o escopo da teoria retórica de Aristóteles, nós somos agora levados a concluir que não importa que combinação nós façamos dos usos de krisis ou judgment ou que extensão razoável nós somos capazes de fazer deles, restarão ainda exemplos do que hoje nós poderíamos chamar de persuasão retórica e cujos objetivos, realizações e fins não podem ser chamados de juízo. Basta citar as fanfarronadas de Mussolini, com todas as suas performances teatrais assessórias [...] para ver que há procedimentos retóricos que, longe de encontrarem seu fim no julgamento, antes inculcam novas convicções pelo obscurecimento na capacidade do auditório de formular juízos (BLACK, 1978, pp. 108-109).

(^7) Ora, justamente por isso Aristóteles (2005, p. 11 [982b]) considera que “a mais elevada das ciências, a que mais autoridade tem sobre as dependentes é a que conhece o fim para o qual é feita cada coisa”, sendo o fim último supremo “o sumo bem”. 8 Essa interpretação a respeito do fim último da retórica a partir da análise do termo krisis é resultado de um denso estudo empreendido por Black (1978, pp. 93-108). Esse comentador, primeiramente, pesquisa quais os diversos sentidos que pode assumir o termo judgment , acolhido pelos tradutores ingleses para significar o que Aristóteles chama de krisis. Em seguida, ele avalia o significado de inúmeras passagens da Retórica em que tal conceito aparece. O intérprete expande sua investigação a fim de checar o significado de krisis em outras obras de Aristóteles, como Ética a Nicômaco e mesmo Sobre as plantas. Por fim, ele resolve contrapor o significado de krisis com o de outros dois termos de significados relativamente afins e tais quais aparecem na Retórica , quais sejam, dóxa , significando “opinião”, e pisti s, referindo “convicção”.

Aristóteles, o que deve ser o foco do orador, sendo necessário se valer dos seguintes dispositivos: c1) “exemplo”, que funciona como uma indução retórica, ou seja, visa demostrar porque determinada conclusão deve ser acatada, mostrando muitos casos semelhantes; e c2) “entimema”, que na retórica faz o papel do silogismo na lógica clássica^10. Especificando o que Aristóteles (2012, p. 19 [1357b]) entende por “exemplo” ou “indução retórica”, temos que esse tipo de prova vai apresentar uma relação de “parte” para “parte”, do semelhante para o semelhante; mas nunca apresenta relação “da parte para o todo, nem do todo para a parte, nem do todo para o todo”. O exemplo dado por Aristóteles de uma “indução retórica” é o seguinte: Dionísio pede uma guarda, logo, ele está tentando a tirania, porque “Pisísrato pediu uma guarda e converteu-se em tirano mal a conseguiu, e Teágenes fez o mesmo em Megara”. Vemos, pois, como o “exemplo” usado como prova limita-se a explorar a relação do semelhante para o semelhante, da parte para a parte, neste caso, de soberano de um reino a soberanos de outros reinos. Por isso, nós já podemos antecipar que a analogia da § 19 de O mundo não será aqui considerada como “exemplo”, na acepção aristotélica da retórica. Ora, tal analogia empreende uma “extensão” do conhecimento que temos do interior do nosso corpo para o interior de todas as outras coisas que compõem a natureza, ou seja, ela trata de uma relação da parte para o todo; é exatamente isso que se percebe em um dos passos do argumento analógico, em que Schopenhauer (2015a, pp. 122-123) escreve claramente: “todos os objetos que não são nosso corpo [...], conforme sua essência íntima, tem que ser o mesmo que aquilo a denominarmos em nós vontade”. Além disso, Aristóteles (2012, pp.137-138 [1394a]) enfatiza mesmo que o “exemplo” não é propriamente a prova retórica por excelência, justamente porque “a indução não é própria da retórica”. Neste sentido, o autor recomenda que se faça uso do “exemplo” após já se ter alcançado alguma demonstração, visando apenas reforçá-la. A prova retórica por excelência é, para esse autor, o entimema. Discursos firmados em entimemas são considerados por Aristóteles muito mais sólidos; e é isso mesmo que Black (1978, p. 115) enfatiza, ao citar a passagem da Retórica em que entimema é definido como “o corpo da prova”^11 , posto que Aristóteles (2012, p. 15 [1356b]) até mesmo associa “entimema” a “silogismo retórico”: ambos consistiriam em

(^10) Para essa classificação empreendida pelo próprio autor dos tipos de prova retórica e a relevância que ele atribui a cada uma delas, cf. Aristóteles (2012, pp. 12-21 [1355b-1358a]). 11 Cf. Aristóteles (2012, p. 6 [1354a]) para a passagem da Retórica em que esse filósofo define o entimema como o “corpo da prova”.

“demonstrar”, a partir de “certas premissas”, “uma proposição nova e diferente”. De modo geral e do ponto de vista da lógica clássica, as diferenças do entimema para o silogismo, tal qual a explicação dos Analíticos anteriores , é que o silogismo constitui-se da apresentação de duas premissas e, delas, uma conclusão se segue necessariamente; já o entimema só explicita uma premissa, a segunda é implicitamente aceita como óbvia tanto pelo que compõe o raciocínio quanto por quem considera tal raciocínio, sendo suas conclusões igualmente necessárias^12. Por outro lado, se o considerarmos agora apenas do ponto de vista da arte retórica, outra peculiaridade do entimema se apresenta, qual seja, a de que suas conclusões nem sempre são verdadeiras, mas são “quase sempre verdadeiras” (ARISTÓTELES, 2012, p. 15 [1356b]). Com efeito, a matéria de que são elaborados os entimemas na Retórica é recolhida dos “tópicos” ( topói ) ou “lugares comuns”; tratam-se das premissas que não levam ninguém ao conhecimento de uma ciência específica, pois têm a capacidade se aplicar a qualquer uma delas^13. Sobre esses “lugares comuns” Garavelli (1991), inclusive, faz uma observação extremamente relevante para estabelecermos de vez como se dá o vínculo entre retórica e metafísica em Aristóteles, vínculo este que garantiria a transição do que é verossimilhante para o que é verdadeiro. Diz Garavelli (1991, p. 93): “Aristóteles elaborou uma teoria dos tópoi de acordo com as categorias de sua metafísica [...]”. No livro I dos Tópicos , por exemplo, Aristóteles (1987, p. 5) propõe “encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto”; e, mais à frente, como parte desse método, ele explica que é necessário definir bem as categorias, dentre outras listadas, de “quantidade”, “qualidade” e “essência”, porque “todas as proposições que por meio delas se efetuarem” podem significar “a essência de alguma coisa” (ARISTÓTELES, 1987, p. 11). Certamente, o livro delta da metafísica também pode ser apontado como uma das bases dessa teoria dos topói , pois em tal livro Aristóteles apresenta uma espécie de glossário de termos filosóficos e frequentes em sua metafísica; termos que aparecem definidos, de acordo com a organização de Giovani Reali em

(^12) Para todas essas definições de silogismo e entimema na lógica clássica, cf. Aristóteles (1995, pp. 95-96; p. 102; p. 294). O leitor ainda pode se familiarizar mais com essas e outras definições da lógica aristotélica em Jonathan Barnes (2005, pp. 57-65). 13 Sobre a definição aristotélica de “lugares comuns”, cf. Aristóteles (2012, pp. 20-21). Nesta mesma referência ele explica que há premissas formadas por outras artes ou faculdades, quando dizem respeito a uma espécie particular, como as premissas que só podem ser usadas na medicina, por exemplo. São as chamadas premissas “específicas”. Estas não são o principal objeto da arte retórica, que visa a persuasão acerca do verdadeiro em qualquer assunto em geral.

em entimemas que, por suas raízes metafísicas vinculadas às “categorias” e condensadas nos topói , se conectem ao verdadeiro^14. Justamente por isso, Schopenhauer interpreta que Aristóteles prezou mais pela persuasão acerca da verdade do que pela exposição corretamente formal do verdadeiro:

Parece-me que também Aristóteles elaborou sua lógica propriamente dita (a analítica) essencialmente como fundamento e preparação para a dialética e que esta era para ele a coisa mais importante. A lógica se interessa pela mera forma das proposições; a dialética, por seu conteúdo ou matéria (SCHOPENHAUER, 2018, p. 9). singular

Ora, o “conteúdo ou matéria” da dialética, entendida aqui em sua aplicação à arte retórica, constitui-se exatamente dos topói. Seguiremos a síntese feita Gavavelli (1991, pp. 91-93) a respeito desses lugares comuns listados por Aristóteles, selecionando aqueles que consideramos mais relevantes na análise que faremos a seguir da analogia da §19 de O mundo^15 :

 Tópico da quantidade: o Premissa subentendida: uma coisa vale mais que outra por razões quantitativas; o Exemplo de aplicação: determinadas concepções de democracias, com base nas quais prevalece a ideia de que se deve seguir a opinião da maioria;  Tópico da qualidade: o Premissa subentendida: a quantidade se constitui em prejuízo da qualidade; o Exemplo de aplicação: a associação da unidade ao verdadeiro e da multiplicidade à mera opinião ou mesmo ao falso^16 ;  Tópico da ordem:

(^14) Berti (2010, p. 271), inclusive, também chama a atenção para o uso filosófico que, segundo a teoria aristotélica, se pode fazer da retórica aplicada a problemas de lógica, de física e de ética, e que tal aplicação depende, justamente, do uso dos referidos 15 topói. Nós não nos deteremos na retórica elaborada por Cícero e da qual Garavelli (1991, pp. 94-95) também trata porque, como explica essa comentadora, aquele autor teria simplificado a retórica aristotélica com vistas a aplicá-la mais perfeitamente a fins jurídicos; ora, o fundo metafísico da retórica aristotélica é justamente, aliada à sua noção de persuasão, o que mais nos interessa. A retórica de Cícero seria mais uma espécie de Vade Mecum para uso de juristas. Schopenhauer (2018, p 13) chega mesmo a afirmar, de modo até grosseiro, que a teoria retórica de Cícero não tem nada a acrescentar em termos filosóficos e, além disso, não passa de 16 “uma imitação extremamente rasa e pobre de Aristóteles” Esta é, exatamente, a dicotomia traçada por Platão (2014, p. 281 [507b]) no livro V da República.

o Premissa subentendida: superioridade do anterior sobre o posterior, dos princípios sobre as aplicações concretas; o Exemplo de aplicação: o respeito que se reclama ao primeiro a superar algum limite ou a descobrir algo;  Tópico da essência: o Premissa subentendida: a excelência do indivíduo que reúne todas as características exigidas ao “tipo” que representa; o Exemplo de aplicação: a eleição de uma estrela de cinema como ideal de beleza, ou do superman trajando cueca como o ápice do ridículo;  Tópico da existência: o Premissa subentendida: preeminência do real sobre o possível, do atual sobre o virtual”; o Exemplo de aplicação: preferência por um resultado observável em detrimento de um projeto que está em andamento;

Ademais, na manobra analógica da §19, não entendemos que Schopenhauer tenha feito uso do “lugar comum” da “quantidade”, até porque o objeto que ele estabelece como ponto de partida da analogia é singular, qual seja, seu próprio corpo. Julgamos, sim, justamente por isso, que ele argumenta tendo em vista o lugar comum da “qualidade”, na medida em que considera que o corpo humano vale mais do que quaisquer outros na tentativa de descobrir a essência íntima de toda a natureza; e isso porque, parafraseando o próprio Schopenhauer (2015a, p. 120), o corpo é um objeto toto genere diferente dos demais, posto que dele temos conhecimento não apenas como corpo entre outros corpos, mas também temos acesso ao que se passa na sua interioridade. Assim, entendemos que o primeiro passo da extensão analógica da § 19, qual seja, o estabelecimento do nosso corpo como via privilegiada para o conhecimento da coisa em si, é dado com o auxílio de um lugar comum, neste caso, o de “qualidade”. Estabelecido, assim, com base no lugar comum de “qualidade”, que o corpo humano deve ser o ponto de partida da analogia, pensamos que Schopenhauer continua recorrendo aos topói na argumentação que permeia a §19. Primeiramente, com a finalidade de estabelecer com que direito é possível ter conhecimento da essência de todas as coisas que compõem a natureza, tomando como base unicamente o que se conhece do querer humano. Para tanto, o autor lança mão do lugar comum de “existência”, que apela para a “preeminência do real sobre o possível, do atual sobre o

por excelência, e o “tipo” que ele hipoteticamente representa refere-se, na verdade, ao conjunto de todos as coisas que constituem a natureza. Ora, escreve Schopenhauer (2015a, p. 122-123) na § 19 e a respeito dos dois únicos caracteres do mundo que, segundo ele, é possível conhecer: “além da vontade e da representação, absolutamente nada é conhecido nem pensável”; e, também, que apenas nosso corpo é conhecido “de dois modos por completo heterogêneos”, de um lado como representação e, de outro, como vontade. Este topos da essência, portanto, é definitivo para mudar a chave da abordagem do mundo da aparência para o da coisa em si, na medida em que sustenta que o único aspecto que se pode atribuir ao mundo, além do da representação, é acessível exclusivamente pelo corpo e é o da vontade. Com base na nossa interpretação, todos os lugares comuns mencionados até aqui, no contexto dos argumentos que cada um deles integra na §19, preparam o terreno para a elaboração da analogia como uma “prova”. Com efeito, Schopenhauer inicia o argumento analógico precisamente com um indicativo de conclusão, o que deixa claro que o início de tal argumento já é uma consequência dos raciocínios que lhe precedem e em que estão dispostos aqueles topói ; vejamos precisamente o decisivo passo analógico: “ Assim ( daher ), todos os objetos que não são nosso corpo, portanto não são dados de modo duplo, mas apenas como representações na consciência, serão julgados exatamente conforme analogia com aquele corpo” (SCHOPENHAUER, 2015a, pp. 122-123, grifo nosso). E imediatamente na sequência desta proposição, com a qual Schopenhauer principia a analogia, é inferida outra, que definitivamente estabelece a transição de um discurso sobre a aparência para uma conclusão sobre a coisa em si e que é anunciada por mais um indicativo de conclusão:

Por conseguinte ( daher ), [todos os objetos que não são nosso corpo] serão tomados, precisamente como ele [nosso próprio corpo], de um lado como representação e, portanto, nesse aspecto, iguais a ele; mas de outro, caso se ponha de lado a sua existência como representação do sujeito, o que resta, conforme sua essência íntima, tem de ser o mesmo que aquilo a denominarmos em nós VONTADE” (SCHOPENHAUER, 2015a, p. 122-123, grifo nosso, maiúsculas do autor).

Desse modo, não são desprezíveis as evidências de que analogia da § 19 pode, sim, ser entendida como uma prova fundamentada em topói aristotélicos, os quais são tomados por nossa leitura em uma dimensão retórica com vistas à persuasão; leitura sustentada apesar do reconhecimento de que a analogia schopenhaueriana não é

elaborada na forma precisa de um entimema retórico, segundo os moldes da Retórica. Pois, apesar de Aristóteles tomar os topói como matéria-prima dos entimemas, que enquanto tais compõem os silogismos abreviados, porque omitem uma das duas premissas para aparentemente fazer com que a conclusão surja de forma mais imediata

  • apesar dessa relação entre entimema e topói na retórica aristotélica, dizíamos – Schopenhauer não necessariamente fez uso abreviado desses lugares comuns. Ao contrário, explicitou cada um deles, como buscamos evidenciar. Isso seria um problema, se estivéssemos tentando provar que Schopenhauer busca oferecer sua conclusão metafísica da doutrina da vontade, exatamente, na mesma forma retórica proposta por Aristóteles, a saber, a entimemática; por outro lado, o que acentuamos é, antes, a eventual proximidade com o conteúdo da arte retórica aristotélica que, por meio dos topói , possibilita não apenas a comunicação entre o verossimilhante e o verdadeiro, mas também a persuasão em favor deste. O que estamos fazendo em nossa investigação, ou seja, ultrapassar o que reza a “letra” da Retórica na nossa investigação, é sugerido mesmo por Black:

[...] dificilmente nós podemos esperar que os princípios da retórica formulados há milhares de anos atrás sejam uniformemente pertinentes ainda hoje. [...] Seria ingênuo supor que não haveria mudanças concomitantes no caráter do discurso retórico, particularmente quando nós sabemos que as modulações mais sutis na sociedade ecoam no discurso retórico. O mundo muda e, com ele, os usos da linguagem também (BLACK, 1978, p. 125).

Neste sentido, conclui Black (1978, pp. 124), “esperar que os princípios antigos se apliquem, de forma imutável, a fenômenos mutáveis, é colocar um peso intolerável em tais princípios”. Por isso, acatamos a sugestão desse comentador, que propõe “‘montar nos ombros dos antigos’”, a fim de nos elevar e “modificar nossa perspectiva” (BLACK, 1978, pp. 124-125). Nessa esteira, pode-se contornar também a complicação advinda do fato de que Aristóteles traça uma tipologia dos usos retóricos limitada a três campos de aplicação e relacionadas, por seu turno, a três tipos de auditório específicos: aos membros de um conselho ou assembleia na retórica “deliberativa”, que versa sobre decisões políticas a respeito do futuro da Pólis com vistas ao seu bem; a esse mesmo público na retórica “epidíctica”, por seu turno referente ao passado e que visa persuadir a respeito do que foi belo em termos de ações; e a um juiz na retórica “judicial”, referente ao presente e

conseguinte, é inteiramente independente de provas [...]” (SCHOPENHAUER, 2015a, p. 90)^21. Ou seja, nessa relação traçada por Schopenhauer entre forma e conteúdo do que é verbalizado, importa não tanto que a verdade seja transmitida com correção lógica, mas que aquilo que é transmitido por um encadeamento discursivo, necessário ou não, seja verdadeiro e persuasivo. O caso é que o filósofo enxerga nesse trânsito entre verdade e persuasão uma via de mão dupla, pois, por um lado, escreve que “a arte de ter razão [...] será tanto mais fácil quando se tem razão objetivamente” (SCHOPENAHUER, 2018, p. 13); e ao defender, assim, que o discurso ganha em persuasão se profere, de fato, uma verdade, marca uma posição que é extremamente aristotélica, posto que Aristóteles (2012, p. 10 [1355a]) afirma que a verdade é por natureza mais forte que seu contrário. E por outro lado, Schopenhauer defende que é recomendável que a “verdade objetiva” seja acompanhada de uma arte para expor o conteúdo de tal verdade: “mesmo quando temos razão, precisamos da dialética para defendê-la”, ainda que precisemos recorrer a “artifícios desonestos” para tanto (SCHOPENHAUER, 2018, p. 14); o que significa que também a verdade é mais bem assimilada se apresentada de modo mais persuasivo, segundo o uso especificamente retórico que fazemos aqui do termo “dialética”. Ora, “artifício desonesto”, neste contexto, pode não significar mais que um argumento inválido do ponto de vista da analítica, da lógica formal^22. Em todo caso, acreditamos que, se queremos compreender o alcance da prova analógica de Schopenhauer, precisamos desmistificar a suposição, extremamente arraigada na prática filosófica, de que apenas seguindo inferências necessárias é possível chegar à conclusão de uma verdade. E fizemos isso, até então, recorrendo à teoria retórica de Aristóteles,

(^21) Embora Schopenhauer não discrimine, nesta passagem, o que considera como “esplêndido e verdadeiro” na doutrina de Espinosa, e que não deriva das provas que este oferece, há indício de que o alvo desse comentário elogioso seja a identidade, que o último estabelece, entre substantia extensa e substantia cogitans. Isso porque, em primeiro lugar, Schopenhauer interpreta o que ele próprio chama de “representação” como sinônimo do que Espinosa entende por substantia cogitans , pelo que escreve, em Esboço de uma história da doutrina do real e do ideal : “[Espinosa] obviamente tem razão ao dizer que aquilo que é extenso e aquilo que é representado – em outras palavras, nossa representação dos corpos e esses corpos em si – são a mesma coisa” (SCHOPENHAUER, 2007, p. 16). E em segundo por enunciar, em Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente , o que considera como falácias desse autor, em sua tentativa de identificar extensão e pensamento (SCHOPENHAUER, 1998, pp. 42-47). Em todo caso, com sua interpretação desse momento da doutrina espinosana, Schopenhauer julga encontrar uma prévia da correlação, que ele mesmo estabelece, entre sujeito e objeto, entre mundo real e faculdade do entendimento. 22 Para Schopenhauer (2017), a dialética erística pode sim ser usada sem se importar com a verdade objetiva, e é isso que ele tenta mostrar com os 38 estratagemas por meio dos quais pretende que uma pessoa possa ganhar uma discussão mesmo sem ter razão, isto é, mesmo sem proferir “verdades objetivas”. Todavia, de forma alguma se deve entender que ele exorta tal comportamento no campo das ciências e da filosofia.

fundada a partir de seu método dialético e da qual Schopenhauer teria, na nossa hipótese, colhido artifícios para elaborar a analogia da §19. Assim como nessa teoria aristotélica, no Tratado da argumentação: A nova retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca, que tomaremos a seguir como uma espécie de “complemento” seu, a comunicação entre a verdade e o que provavelmente é verdadeiro é estreitada pelo conteúdo metafísico dos topói. Por isso, apesar do risco inevitável de anacronismo, nós também resolvemos avaliar como esse texto pode iluminar o suposto recurso de Schopenhauer à retórica, em sua argumentação em busca da prova de que a Vontade é a coisa em si.

3 A influência aristotélica na Nova Retórica e a analogia da § 19 O mundo

Conforme nota Coelho (2005, p. XIV), após Aristóteles a tradição filosófica desprestigiou o legado aristotélico sobre os silogismos dialéticos, considerando apenas o modo analítico de raciocinar; e somente depois de vinte e três séculos, analisa Coelho (2005, p. XIV), Perelman e Olbrechts-Tyteca reabilitam a retórica conforme teorizada por aquele filósofo a partir de sua dialética. Embora Coelho (2005, pp. XVI-XVIII) explique que as maiores contribuições da Nova retórica versem sobre a teoria do conhecimento jurídico, ele ainda admite que os aspectos filosóficos de seu livro são bastante consideráveis, por conta do seu resgate dos topói aristotélicos. O resgate desses topói parece justificar o comentário de Júnior (2012, p. XXIV) de que, indo além na trilha já apontada por Aristóteles, o projeto de Perelman e Olbrechts-Tyteca “insere a própria verbalização do discurso filosófico no campo da retórica”; e também parece dar razão à Meyer (2005, p. XX), na medida em que este situa o texto desses autores “entre o ‘tudo é permitido’ e ‘a racionalidade lógica é a própria racionalidade’”, esta última uma concepção de logos que encontrou sua máxima expressão no racionalismo cartesiano. Nas próprias palavras de Perelman e Olbrechts- Tyteca (2005, p. 1), a publicação da Nova retórica consagrada à argumentação constitui “uma ruptura com uma concepção da razão e do raciocínio, oriunda de Descartes, que marcou com seu cunho a filosofia ocidental dos últimos três séculos”. Mesmo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 1) entendem essa herança cartesiana como aquela que fez “da evidência a marca da razão”; e que, mais grave ainda, não quis “considerar como racionais senão as demonstrações que, a partir de ideias claras e distintas, estendiam, mercê de provas apodíticas, a evidência dos axiomas a todos os teoremas”. Como

todavia, no caso da retórica essas afirmações são incompatíveis devido a circunstâncias contingentes, como as estabelecidas pelas leis da natureza, por decisões humanas, etc. Ora, não é a um argumento quase-lógico de contradição que Schopenhauer apela ao sugerir que ou realizamos a extensão analógica, ou caímos no solipsismo e somos obrigados a admitir que só nós possuímos existência efetiva no mundo inteiro? A esse respeito Schopenhauer (2015a, p. 122) escreve: “Se [...] os objetos conhecidos pelo indivíduo simplesmente como representação ainda são, semelhante ao seu corpo, aparências de uma vontade – eis aí [...] o sentido propriamente dito da questão acerca da realidade do mundo exterior”; e, conclui Schopenhauer (2015a, p. 122), negar que outros corpos existam, assim como o nosso, como vontade, é considerar “todas as aparências, exceto o próprio indivíduo, como fantasmas”. Esta postura de negar a existência dos demais corpos, segundo Schopenhauer (2015a, p. 122), nem precisa de refutação, mas de tratamento. Ou seja, aqui o filósofo apela para uma evidência que ele considera ser comumente aceita e que, por isso, nem precisa de demonstração, qual seja, a realidade efetiva de todas as coisas que percebemos pelos sentidos. E note-se que antes disso ele já estabelecera, supostamente por meio dos lugares comuns aristotélicos que acabamos de especificar, que estamos, sim, autorizados e estender a toda a natureza do conhecimento que temos do interior do nosso corpo; se não exercemos, pois, esse direito a tal extensão, teríamos de admitir que qualquer indivíduo a se voltar para a sua interioridade e perceber algo como um querer, uma vontade, existe sozinho no mundo. Portanto, já que não estamos dispostos a sustentar, na visão de Schopenhauer, o disparate do solpsismo, é mister concluir que “o mundo é Vontade”. Segundo entendemos, é assim que o argumento chamado na Nova Retórica de “quase lógico” e de “contradição” poderia se articular com a argumentação referente à § 19. Deixando o registro dos argumentos quase-lógicos, vejamos como Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 297) explicam os “argumentos baseados na estrutura do real”. A força desses argumentos não repousa na sua semelhança com os argumentos formalmente válidos e sim, antes, na relação de dependência que se pode estabelecer entre os “juízos aceitos e outros que se procura promover” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 297). Esses argumentos baseados na estrutura do real podem se apoiar em relações de sucessão, em que o efeito segue a causa, ou em relações

de coexistência, sejam estas entre uma pessoa e suas ações ou entre uma entidade e suas manifestações 25. A respeito da conclusão sobre a coisa em si, extraída mediante analogia na § 19, Schopenhauer (2015a, pp. 7; 15; 38, 115) é claro ao estabelecer que ela não pode ser feita por intermédio do princípio de razão suficiente, ou seja, por qualquer uma das leis, incluindo a de causalidade, que condicione nossas faculdades cognitivas. Por isso, esse filósofo em hipótese alguma poderia apelar para o tipo de argumento retórico que a Nova Retórica classificaria, posteriormente, como um “argumento baseado na estrutura do real” a partir de “relações de sucessão”, em que o efeito segue a causa. Já o argumento “baseado na relação de coexistência de uma entidade e suas manifestações” parece ter mais potencial para esclarecer as supostas investidas retóricas da manobra analógica da § 19; até por conta da célebre conclusão schopenhaueriana de que tudo que existe é, mais do que Vontade, “manifestação” ( Manifestation ) de uma Vontade una e imutável (SCHOPENHAUER, 2015a, p. 161). Nesta esteira, e para usar a terminologia cunhada a posteriori por Perelman e Olbrechts-Tyteca, Schopenhauer teria lançado mão de um argumento retórico baseado na exploração da coexistência de uma “entidade”, no caso a Vontade, com suas manifestações, isto é, com todas as entidades que compõem o mundo. Acontece que, ao admitir essa especulação, ultrapassamos nosso próprio recorte neste artigo, dado que o conceito de “manifestação” é exposto bem posteriormente ao argumento analógico; precisamente, surge pela primeira vez apenas na §26 de O mundo , e estamos priorizando aqui, em contrapartida, exatamente o encadeamento progressivo da argumentação da § 19 de O mundo , até o ponto em que ela chega à conclusão de que “tudo é Vontade”. Ademais, após a exposição dos “argumentos baseados na estrutura do real”, Perelman e Olbrechts-Tyteca começam a explicar os “argumentos destinados a fundar a estrutura do real”. Um destes argumentos é, inclusive, a analogia, que nos interessa agora enfatizar. Na concepção desses autores, a analogia deve, sim, ser entendida como um elemento de prova (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 424). Ora, mesmo as concepções que atribuem menos força argumentativa à analogia interpretam- na ainda como um instrumento que possibilitaria a formulação de uma hipótese, passível de ser posteriormente corroborada por indução. Se é assim, questionam

(^25) Há uma boa síntese dos “argumentos baseados na estrutura do real” em Garavelli (1991, pp. 109).