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Fundamentos da Literatura Comparada: Influência, Imitação e Tradução, Provas de Literatura

Este documento aborda conceitos fundamentais da literatura comparada, como influência, imitação e tradução, através da análise de diferentes perspectivas teóricas. O texto discute as distinctions entre influência, imitação e tradução, utilizando os cinco componentes da obra literária: tema, forma, recursos estilísticos, idéias e sentimentos, e ressonância afetiva. Além disso, o documento explora as ideias de paul valéry e guillén sobre a influência, e os riscos de estudos que se limitam à localização de origens. O texto é uma valiosa fonte para quem estuda literatura comparada, literatura universal e teoria literária.

O que você vai aprender

  • Como Guillén distingue influência, imitação e tradução?
  • Quais são os riscos de estudos que se limitam às localizações de origens?
  • Quais são as categorias de influência identificadas por Paul Valéry?
  • Qual é a importância da influência na criação literária?
  • Como a estética da recepção abre perspectivas para a compreensão da influência?

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

usuário desconhecido
usuário desconhecido 🇧🇷

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Sandra Nitrini
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Sandra Nitrini

CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Quidquid recipitur, recipitur ad modum recipientis. S. Tomás

PREÂMBULO

Vimos o panorama da trajetória da literatura comparada, con- substanciada sobretudo em três tendências - a francesa, a americana e a dos países do Leste europeu, ou inserida em sua tradição teórica - com premissas de ordem positivista, fenomenológica da obra literária e de dialética entre a sociedade e a literatura, respectivamente. Ainda neste panorama, tivemos a oportunidade de acompanhar discussões sobre a especificidade desta disciplina no campo dos estudos literários. Questão essa ainda irresolvida em termos de um consenso geral. Por mais amplo que se desenhe seu campo de estudos, no en- tanto, e por mais variadas que sejam as opiniões de especialistas so- bre o objeto, o método e a finalidade da literatura comparada, uma questão medular congrega todas as discussões em torno do conceito

ConceitosFundamentais127 do de conceitos como “influência” e “imitação", apesar de seu aspec- to esquemático e, conseqüentemente, simplificador e polêmico. Co- meçarei expondo suas idéias^1. O conceito de influência tem duas acepções diferentes. A pri- meira, a mais corrente, é a que indica a soma de relações de contato de qualquer espécie, que se pode estabelecer entre um emissor e um receptor. O estudo da influência de Goethe na França, por exemplo, compreende um capítulo dedicado às traduções francesas de sua obra, como outros sobre as imitações, os contatos pessoais, as críticas e os estudos publicados na França sobre o autor. Nesse caso, pode-se admi- tir que a influência de Goethe é o mesmo que o total das relações de contato que se pode assinalar entre Goethe e a literatura francesa. A segunda acepção é de ordem qualitativa. Influência é o “re sultado artístico autônomo de uma relação de contato”^2 , entendendo- se por contato o conhecimento direto ou indireto de uma fonte por um autor. A expressão “resultado autônomo” refere-se a uma obra literária produzida com a mesma independência e com os mesmos procedimentos difíceis de analisar, mas fáceis de se reconhecer intui- tivamente, da obra literária em geral, ostentando personalidade pró- pria, representando a arte literária e as demais características próprias de seu autor, mas na qual se reconhecem, ao mesmo tempo, num grau que pode variar consideravelmente, os indícios de contato en- tre seu autor e um outro, ou vários outros. Até certo ponto, a influência pode confundir-se com a imitação, assim como, em sua outra acepção, confundia-se em parte com a di- fusão. Nesse caso, o matiz que diferencia as duas noções é que a imi- tação refere-se a detalhes materiais como a traços de composição, a episódios, a procedimentos, ou tropos bem determinados, enquanto a influência denuncia a presença de uma transmissão menos material, mais difícil de se apontar, “cujo resultado é uma modificação da for- ma mentis e da visão artística e ideológica do receptor”^3. A imitação é um contato localizado e circunscrito, enquanto a influência é uma aquisição fundamental que modifica a própria personalidade artísti-

  1. Cf. Cionarescu, 1964 e 1966.
  2. Cionarescu, op.cit., 1964, p. 92. 3.Idem, p. 93.

128Literatura Comparada

ca do escritor. A influência distingue-se da tradução que se identifica a si mesma, e da imitação, que se reconhece por um simples cotejo de textos. Devem-se assinalar, aqui, os riscos da excessiva simplifica-. ção de Cionarescu ao tratar de uma possível diferenciação entre os conceitos de “imitação” e “influência”, no âmbito da literatura com- parada, sobretudo se tivermos em mente a história do conceito de “imitação”, que ele próprio tem o cuidado de considerar, embora, também, esquematicamente. Cionarescu aponta quatro sentidos para “imitação”. O primei- ro se refere à mimesis, imitação da natureza como fonte de arte. Cabe aqui explicitar, com a ajuda de Haskell M. Block^4 , que imitação, no sentido amplo de imitação da natureza, refere-se ao padrão uniforme ou universal da experiência como norma de arte, situando-se na tra- dição platônica. Esta imitação não é a representação de uma ação, mas a idealização de uma experiência geral ou comum, de acordo com a prática dos antigos e com a visão do escritor que é própria de seu tempo. Assim concebida, a imitação supõe seleção e transposição, mais do que mera reprodução^5. O segundo sentido vincula-se à retórica do Renascimento que aconselhou a imitação dos grandes autores antigos, de acordo com princípios e procedimentos que fazem quase sempre uma espécie de adaptação aos cânones e às formas e ao estado de espírito contempo- râneos, aos gêneros literários em vigor. Esta segunda acepção, entre- tanto, não vigorou de modo tão límpido e tranqüilo, como nos faz crer a classificação de Cionarescu. Convém não perdermos de vista a história do conceito de “imi tação”, e lembrarmos que no Renascimento ocorreu uma confusão entre poética e retórica, confusão esta que perdurou nos séculos XVII e XVIII. Os comentadores renascentistas, comprometidos com a ver- dade literal, a exortação moral e as necessidades de um público es- pecífico, fundamentaram-se, sem rigor, em Aristóteles. Os cânones de verossimilhança e probabilidade ficaram sujeitos a reivindicações

  1. Block, 1966. Para este comparatista americano, o conceito de imitação deve ser estudado de um ponto de vista histórico, como uma corporificação de uma variedade de normas e hipóteses, às vezes sem nenhuma relação, outras, totalmente contraditórias entre si.
  2. Block, op. cit., 1966, p. 705.

130 • Literatura Comparada

cos expressivos; as idéias e sentimentos (ligados à camada ideológica), e, finalmente, a ressonância afetiva, registro inconfundível da perso- nalidade artística dos grandes escritores. O fenômeno da influência limita-se à absorção de um ou outro desses aspectos. Quanto maior o número de elementos aproveitados da obra de um autor por outro, tanto mais ele vai-se aproximando da imitação, da paráfrase, até che- gar à tradução, quando todos os elementos são considerados. Ainda dentro dos pressupostos da literatura comparada tradi- cional, vale a pena trazer aqui o pensamento de Owen Aldridge so- bre influência. Não pelo teor de sua definição, que se revela óbvia , mas por sua funcionalidade para a compreensão de uma determina-da obra. Para Aldridge, a influência se define como “algo que existe na obra de um autor que não poderia ter existido se ele não tivesse lido a obra de um autor que o precedeu”^7. Quando semelhanças entre dois autores são suficientemente claras para serem discernidas, o historia- dor literário encontra-se diante de material legitimado para seu uso. Influência não é algo que se revela no singular, na maneira concre- ta, mas deve ser buscada em diferentes manifestações. O interesse de Aldridge pela “influência” é que ela ajuda a expor por que um escritor exprime um pensamento ou um sentimen- to daquele modo determinado. Compreender uma fonte mostra o processo de composição e ilumina o pensamento de um autor. Segun- do este autor, podemos analisar uma passagem altamente poética era Shakespeare e elucidar os valores estéticos que aí encontramos, mas não podemos estar seguros de que Shakespeare passou pelo mesmo processo estético e emocional na criação da obra que passamos na nossa experiência de sua interpretação. Mas se nós conhecemos que certas passagens de A Tempestade são paráfrases de Montaigne, então ficamos sabendo algo concreto sobre o pensamento de Shakespeare e seu processo de composição. Apontar influências sobre um autor é certamente enfatizar antecedentes criativos da obra de arte e considerá-la um produto humano, não um objeto vazio.

  1. Aldridge, 1963, p. 144.

Conceitos Fundamentais • 131

Na discussão sobre o conceito de influência, nos anos 60 , quan- do já se tinha deflagrado a polêmica entre “escola francesa” e esco- la americana de literatura comparada, Guillén propõe-se a encontrar o lugar correto das influências dentro das coordenadas vigentes dos estudos comparatistas, agora não mais dominados pela mentalidade genética do século XIX, mas caracterizado por campos de estrutura de pensamento^8. Guillén trabalha com duas acepções de influência: como par- te reconhecível e significante da gênese de uma obra literária e como presença na obra de convenções técnicas, pertencendo ao equipamen- to do escritor e às tradicionais possibilidades de seu meio. A primeira acepção trata da relação entre a obra e a experiên- cia do escritor, de modo que cada fonte é uma fonte vivida. Ela reco- bre condições genuinamente genéticas. Influências, desde que desen- volvidas estritamente no nível criativo, são experiências individuais de uma natureza particular, porque representam uma espécie de intrusão no ser do escritor ou uma modificação. A alteração que elas trazem tem um efeito indispensável sobre os estágios subseqüentes da gêne- se da obra. Nesse sentido, são forças que se introduzem a si mesmas no processo de criação, élans e incitações que acarretam o movimen- to “genético” mais além e permitem que o artista prossiga sua elabo- ração do “segundo mundo” da literatura. As influências tornam o poema possível e são transcendidas por ele, seu efeito desaparece fre- qüentemente na extensão da consciência do escritor. Essas incitações genéticas fazem parte da experiência psíquica do escritor. As colocações de Guillén, que estabelece a distinção entre duas acepções de influência, uma delas diretamente relacionada ao ato criador, justficam uma interrupção no acompanhamento de suas idéias para dar lugar ao pensamento de um importante poeta moder- no, Paul Valéry, o qual, em vários de seus escritos, sobretudo naque- les situados entre 1924 e 1927, pronunciou-se sobre esse conceito. Ao empregar a admirável imagem “do leão que é feito de car neiro assimilado”^9 , mais do que lançar uma nova fórmula para uma

  1. Ver os capítulos “La Hora Francesa” (Guillén, 1985); “De Influencias y Convenciones" (Guillén, 1989); e “The Aesthetics of lnfluence in Comparative Literature” (Guillén, 1959).
  2. Ver "Tel Quel”, em Valéry, 1960, vol. 2, p. 478.

Conceitos fundamentais • 133

Numa tentativa de sistematizar o pensamento de Paul Valéry sobre a questão da influência, já se detectaram, em seus escritos, qua- tro categorias: a influência recebida, que consiste no contato miste- rioso de dois espíritos ou na dívida de um autor para com outro, isto é, a influência propriamente dita, que ocupa o centro dos estudos comparatistas e que ele chamou de “modificação progressiva de um espírito pela obra de um outro”; a influência exercida sobre a poste- ridade, que determina, em grande parte, o valor da própria obra emissora; a influência que o autor exerce sobre si mesmo; e, finalmen- te, a influência por reação, ou seja, a recusa da influência^15. Dessas quatro categorias, a que mais nos interessa é a primeira, por suas implicações com o ato criador. O problema da influência, para Valéry, reduz-se ao estudo de uma misteriosa afinidade espiritual entre dois espíritos ou tempera- mentos. O essencial desta relação é o caráter emocional. Ele próprio fazia questão de sublinhar que este misterioso processo de influência não se limita a simples modificações intelectuais. De modo que, para ele, o estudo de influências é a pesquisa de semelhanças escondidas, de parentescos secretos entre duas visões de mundo. Para fisgar as semelhanças escondidas nas obras que estuda, Paul Valéry abandona o método objetivo de pesquisa de filiações e de causalidade, e recorre à psicologia. Fazer psicologia autêntica signi- fica sempre tomar consciência de si mesmo. Observou o mecanismo da influência a partir da estranha transformação que o encontro com Mallarmé provocou nele. Ao descrevê-lo, emprega a expressão “teve o choque”, utilizada várias vezes, em seus escritos^16 , e aqui, recupera- da, no contexto de sua “Carta sobre Mallarmé”:

Ainda na idade bastante tenra de vinte anos, e no ponto crítico de uma es- tranha e profunda transformação intelectual, sofri o choque da obra de Mallarmé; conheci a surpresa, o instantâneo escândalo íntimo, não só o fascínio como tam- bém a ruptura dos liames com meus ídolos desta idade. Senti-me tornar-me fanático; experimentei o progresso fulgurante de uma decisiva conquista espiritual.^17

  1. Cf. Pistorius, op. cit.. 16.Como bem nos lembra Georges Pistorius em sua comunicação (Pistorius , op. cit.). 17. Valéry, op. cit.f 1960 , vol. I, p. 637.

134 • Literatura Comparada

O mecanismo de influência ocorre em dois planos paralelos Primeiro, o choque recebido faz o autor influenciado voltar-se para a própria personalidade. Em seguida, provoca também a ruptura de seus liames com ídolos dos quais se nutrira até então. Este duplo movimento revela um traço paradoxal na concepção de influência valéryana. De um lado, o escritor mais profundamente influenciado poderia ser o mais original. De outro, a influência mais estimulante é a que leva o escritor a rejeitar uma influência. O escritor se libera de uma influência por outra. No cerne da concepção de influência de Valéry existe a convicção de que o escritor atinge sua identidade valendo-se dos exemplos dos outros, e, também, de que ele tem ne- cessidade de se distinguir dos outros de qualquer maneira. A influência recebida não minimiza em nada a originalidade que, no fundo, é uma das formas de influência. Ainda em sua “Carta sobre Mallarmé”, referindo-se à originalidade, Valéry afirma:

Dizemos que um autor é original quando ignoramos transformações ocul- tas que modificaram os outros nele; queremos dizer que a dependência daquilo que faz em relação àquilo que foi feito é excessivamente complexa e irregular. 18

Na verdade, o que conta é o grau de assimilação, tão bem ex- presso na sua famosa e já citada imagem “do leão que é feito de carnei- ro assimilado”. Aliás, esta imagem situa-se num contexto semântico em que toda a problemática da influência e originalidade confunde-se com o ato de ingerir e digerir; enfim, de nutrir-se:

Nada mais original, nada mais próprio do que nutrir-se dos outros. Mas é preciso digeri-los. O leão é feito de carneiro assimilado^19.

A originalidade é, pois, um caso de assimilação, “caso de estô

mago”, segundo expressão do próprio Valéry^20. A qualidade da diges-

  1. Idem, p. 635 (grifos do autor).
    1. Ver “Tel Quel”, em Valéry, op. cit., 1960, vol. 2, p. 478.
  2. Cabe chamar a atenção para o fato de que André Gide também se vale de um termo liga- do ao campo semântico do estômago para tratar do problema da influência. Referindo-se às influências que recebera ao longo de sua vida, afirma: “Já exprimi mais de uma vez

Conceitos Fundamentais 137

Guillén foi o único estudioso de literatura comparada, pelo menos dentre aqueles arrolados no âmbito deste livro, que procurou estabelecer a distinção entre influência relacionada estritamente à criação e influência como conceito operacional da teoria literária. Referindo-se ao conceito de influência da escola francesa - baseado na idéia de transmissão, vale dizer, uma influência conduz para a presença de uma determinada obra elementos, de algum modo, comparáveis com outros encontrado em outra obra Guillén mostra que há aí uma premissa com a qual ele não concorda: influên- cias e paralelismos são indivisíveis. Para Guillén, incitações genéticas constituem parte da experiência psíquica do escritor, enquanto simi- laridades textuais pertencem à realidade da literatura. Daí sua convic- ção, compartilhada por vários outros comparatistas, de que uma in- fluência não precisa adotar a forma reconhecível de um paralelismo, assim como nem todo paralelismo procede de uma influência. Para ele, um estudo de influência quando completamente per- seguido contém duas fases muito diferentes. O primeiro passo consiste na interpretação de fenômenos genéticos. O segundo passo é textual e comparativo, mas inteiramente dependente do primeiro para sua significação. Deste modo, seu método propõe primeiro apurar se uma influência ocorre e avaliar a relevância ou “função genética”. Daí se pensaria em considerar o resultado objetivo que pode ter sido o pro- duto da influência e definir a ulterior “função textual”. Sua proposta metodológica é perfeitamente coerente com sua visada teórica a respeito da influência. No entanto, sua operaciona- lidade pode ser questionada, na medida em que o estudioso entrar num terreno extremamente escorregadio, ao se dispor a realizar uma tarefa praticamente impossível, qual seja a de verificar se uma influência realmente ocorreu e avaliar seu papel na gênese de uma obra literária. Cláudio Guillén chama a atenção para dois outros conceitos fundamentais da teoria literária — convenção e tradição - que devem ser instrumentalizados pela literatura comparada. Tais conceitos dão conta da inserção da obra no contexto mais amplo da literatura e permitem também o estudo do diálogo entre obras, autores e litera- turas. Convenções e tradições são “sistemas” cujo principal fator uni- ficante é o costume aceito. Tradições constituem convenções que

138 Literatura Comparada

supõem ou conotam seqüências temporais. Tanto num caso como no outro, o que está em jogo é o uso coletivo, e não o impacto singular ou a forma concreta de um processo de transformação histórica. Uma constelação de convenções determina o meio de expressão de uma geração literária - o repertório de possibilidades que um escritor compartilha com seus rivais vivos. As tradições supõem o conhecimen- to, por parte dos escritores, de seus antepassados. Tais coordenadas não apenas regulam a composição de uma obra, como também se fazem presentes no processo de leitura. Enquanto as convenções são extensas, as influências, genéticas e individuais, são intensas. As influências mais significativas costumam ser relações diretas entre dois autores, e não associações ou parentes- cos remotos. Mallarmé e Rimbaud foram um alimento essencial para o jovem André Breton. Mas se um romance recente nos lembra Ho- mero, estamos às voltas com um conjunto comum de premissas e tra- dições culturais, mais do que um tête à tête de uma influência. É insuficiente afirmar que Virgílio influiu Dante, independen- temente de outros fatores, quando tantos outros elementos sustenta- ram essa relação e o fundamental encontra-se no funcionamento de “um campo total”: a autoridade e a continuidade de uma tradição. Impõe-se reconhecer que o que se imita é a obra singular, não a tra- dição. Mas muitas obras literárias encarnam tradições, condensam e vitalizam sistemas de convenções e simbolizam outras obras. Por outro lado, quando as influências se estendem e se amal- gamam, quando compõem premissas comuns ou usos - o ar coletivo que os escritores de certa época respiram - assimilam-se ao que cha- mamos convenção. Em outras palavras, as convenções literárias cons- tituem não somente ferramentas técnicas como também campos mais vastos ou sistemas que derivam de influências prévias, singulares e genéticas. Para Cláudio Guillén, as influências literárias poderão continu- ar desempenhando um papel importante nos estudos comparativos, desde que de modo adequado e conveniente. De um lado, as conven- ções podem trazer uma certa iluminação ou compreensão dos proces- sos criadores e genéticos. De outro, uma influência pode, sem dúvida, contribuir para uma análise crítica. As convenções e tradições descortinam amplas perspectivas mais facilmente que as influências e

140 • Literatura Comparada

simplicidade, de natural, significava, entre outras coisas, que o poeta

devia ser fiel à própria natureza. Naquela época, a imitação constituía

um princípio artístico, mas o escritor não devia imitar servilmente ,

não devia sacrificar sua própria individualidade; ao contrário , devia

impregnar a obra com sua marca própria. Essa espécie de originalidade que vigorará, também, no século XVII apresenta duas características muito importantes. Uma está liga- da à idéia de inspiração, segundo a qual a ação de escrever se desen- rola sob os ditames dos poderes divinos. No século XVI, verifica-se uma reverência quase mística com relação aos momentos privilegiados, durante os quais, num “impulso de imaginação”, vão cristalizar-se numa ordem satisfatória palavras que, ate então, se cruzavam confusa- mente. A autora insiste neste ponto, porque lhe parece interessante notar que, desde o século XVI, a idéia de originalidade revela-se inti- mamente ligada à de um elemento pessoal, indefinível e irredutível. A segunda característica dessa espécie de originalidade é que ela implica uma submissão com relação à época e ao lugar nos quais vive o escritor. A “marca própria” está ligada indissoluvelmente a uma consciência aguda de certos aspectos individuais de sua nacionalida- de e de seu século. Essas duas características constituem elementos essenciais, se- gundo Odette de Mourgues, quando se trata de analisar a originali- dade de um escritor. Com o romantismo, a idéia de originalidade foi adquirindo um

caráter cada vez mais individualista. Nos séculos XIX e XX, verifica-se

a tendência em se ver na “marca própria” o reflexo não somente do

esforço criador pessoal do poeta, mas de toda a sua personalidade individual. Quanto mais for ele mesmo, tanto mais será original. Na

busca incessante de sua individualidade, ele se oporá à sociedade de

seu país e de sua época. Como sabemos, isso não passa de uma ilu-

são romântica, pois o escritor do século XIX ou XX sofre as influên-

cias do meio e do tempo tanto quanto o do século XVI ou XVII. Mas a grande diferença e também a causa de muita confusão é que, no

romantismo, valoriza-se extremamente o termo “original”, certamente por causa do cultivo do indivíduo.

Os temas literários românticos comportam, entre outros, o pro-

blema do indivíduo e o da sociedade. O espírito da época estimula o

Conceitos Fundamentais 141

escritor a ter idéias individuais sobre a vida, a ter uma mensagem pes- soal para esclarecer os homens. Como conseqüência disso, procura-se, também, criar obras artísticas com características singulares. O cultivo do individualismo, que, aliás, não tem nada de original, pois é comum a toda uma época, dá a impressão de que a obra literária não tem vín- culos com a tradição: ela é totalmente nova, seu tema e sua técnica brotam do mundo interior do artista. Tal concepção, no entanto, re- vela-se totalmente equivocada, abrindo brecha para uma visão subjeti- va do conceito de originalidade, criando falsa ilusão tanto no escritor que se julga diferente quanto no leitor que apreciará a qualidade de uma obra em razão de seu aparente traço inusitado e individual. Odette de Mourgues elege a concepção do século XVI de ori- ginalidade como a mais adequada. A originalidade que percebemos numa obra literária, ou seja, sua marca própria, não é outra coisa senão o gênio criador que levou um escritor a escolher um assunto, modificar uma técnica etc., nas suas relações complicadas e variáveis com a tradição, com as influências específicas que agiram sobre ele e com o gosto de sua época. E muito importante considerar com al- gum cuidado as relações entre os dois elementos da originalidade relativa: o esforço criador e o condicionamento da época. Com relação a Anna Balakian, ela parte da duplicidade termi- nológica da língua francesa, inexistente na portuguesa, que lhe per- mite fazer a distinção entre original, relativo à origem ( original) e original, remetendo à novidade ( original). O original (novidade), dotado de espírito crítico, sabe decifrar e aperfeiçoar o que os outros descobriram. A palavra “perfeição”, que se encontra no cume dos valores críticos, contém, de um lado, a idéia de transcendência do já conhecido, de outro, resvala a noção de monotonia e esterilidade. Um significado ou outro vai depender do lado por onde se sobe a montanha. A originalidade existe ou não, de acordo com o lado escolhido. Mme. de Staël via no aperfeiçoamen- to da linguagem e do gosto do classicismo francês “a esterilidade que ameaça nossa literatura” e considerava os alemães e Chateaubriand “iluminadores do exército do espírito humano”. Portanto, ela teria apreciado a qualidade original, no sentido relativo à origem. O original (ligado à origem) é um ser iluminado que abre ca- minho, é um peregrino destinado a ganhar na história literária o lu-

Conceitos Fundamentais 143

universo, mas a unidade da terra e sugerindo uma orientação poéti- ca totalmente nova. Algumas vezes o desvio é produzido por um espírito de com- bate à tradição, levando a uma reversibilidade total do tema original. É o caso de escritores modernos que tomam emprestados títulos clás- sicos para dizer o contrário: Édipo de Gide, Anfitrião de Giraudoux, Moscas de Sartre e Sísifo de Camus. Este último vale-se do símbolo de dor e opressão e o transforma em felicidade estóica. A originali- dade de Camus é lançar um desafio ao original e produzir, por uma antítese categórica, o símbolo da revolta contra a convenção. Esta espécie de originalidade querida é mais precária que os desvios sutis e não produz uma nova convenção. A reversibilidade é uma forma de originalidade, mas parece menos capaz de iniciar sua própria conven- ção e produzir imitadores. A terceira forma de originalidade é a sátira do tema conheci- do. Menos radical que a reversibilidade, a sátira se inspira mais no clima social do que numa filosofia de revolta pessoal. Para Anna Balakian, um dos exemplos mais brilhantes é o da relação entre Lolita, de Nabokov, e Les infortunes de la vertu, de Sade. Nesta última obra, o tema da juventude e da inocência pervertidas pela corrupção dos ri- cos e as hipocrisias da sociedade explica a infelicidade de Sofia que, ainda criança, é violentada por um homem de uma certa idade que a maltrata e, em seguida, livra-se dela como se fosse um objeto. Na- bokov usa o mesmo tema e com ele faz, em Lolita, uma sátira da so- ciedade americana, do culto do sexo que ele observa nos Estados Unidos, uma sátira sobre a independência dos jovens e sobre sua decadência voluntária. Neste caso, não se trata nem de um desvio do tema, nem de uma antítese de indignação, mas de um exagero gros- seiro que marca o tom, o clima de uma nova época e dá a impressão de uma profunda originalidade. Finalmente, Anna Balakian se detém na originalidade que pro- vém da técnica. Para demonstrar a qualidade revolucionária de seu simbolismo, Mallarmé escolhe um símbolo dos mais comuns de seu tempo: o fauno. A originalidade de Mallarmé não consiste em fazer um fauno diferente, ou instrumento de revolta ou sátira. Seu fauno é o que há de mais banal. E o fauno convencional, sensual, pagão, semideus, semi-animal, falando a língua dos humanos. No entanto, o

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poeta francês faz dele um veículo para demonstrar a verdadeira tér nica da composição simbolista: cria a forma que convém à junção do sonho e da vigília, a estrutura musical dos temas e variações, a sincro- nização da língua que se torna música não por suas sonoridades mas como expressão do pensamento abstrato, insólito, metafórico mais que ideológico. Nesse nível se situa uma extrema originalidade no coração do tema mais banal, assinala a autora^31. No final de sua comunicação, Anna Balakian critica o fato de os estudos comparatistas estarem ainda muito voltados para as desco- bertas das origens, dando, portanto, continuidade a um debate que já se tinha instalado na década de 1950. Detentora de um ideário poético que absorve os conceitos de fonte, influência e originalida- de, ela clama por estudos comparatistas que ultrapassem o momen- to das descobertas das origens: "Tendo encontrado a fonte, o erudi- to não deveria ir mais longe?”^32 Que o leitor não se assuste. O “ir mais longe” refere-se, aqui, ao estudo concreto da obra literária. A fortuna de um escritor ilumina o caráter de sua obra e nisso se encontrariam as vantagens dos estudos de doxologia. Por outro lado, os estudos de influências deveriam enriquecer a apreciação do crítico não sobre aquele que brilha, mas sobre aquele que recebe o brilho. Terá sido ele tomado, invadido por esta influência? Ou a transcendeu, produziu a alquimia da convenção e tornou-se por isso mesmo o ini- ciador de uma nova convenção?”^33 Com essas críticas e indagações, Anna Balakian, fazendo eco às vozes de outros comparatistas partidá- rios de uma poética que inclui esses conceitos tradicionais, revela-se lúcida quanto aos riscos diante de estudos que se limitam às localiza- ções das origens, caindo numa erudição estéril, além de se mostrar partidária da análise concreta da obra literária, para se verificar como se deu a alquimia da convenção, ou em termos mais modernos, como se deu a absorção e a transformação dos elementos recebidos^34.

  1. Idem p. 1268.
  2. Idem, p. 1269.
  3. Idem, ibidem.
  4. Nessa linha de estudiosos tradicionais que se empenham em renovar a literatura compa- rada merecem ser lembrados Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux. Ambos estimulam o estudo das fontes e influências, dentro de uma perspectiva de análise tex-