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Reforma da Base Metodológica da Pesquisa Jurídica: Superando Obstáculos Epistemológicos, Notas de aula de Direito

Este documento discute a importância de reavaliar as bases metodológicas da pesquisa jurídica no brasil, apontando os obstáculos epistemológicos identificados por michel miaille. Ao examinar a falta de inovação e crítica na pesquisa jurídica, o texto propõe a utilização da teoria crítica de miaille para a construção de uma base epistemológica mais consistente, reflexiva e crítica para o direito.

O que você vai aprender

  • Por que a pesquisa jurídica no Brasil apresenta um perfil reducionista e acrítico?
  • Como a desconstrução dos obstáculos epistemológicos pode servir para repensar a pesquisa jurídica no Brasil?
  • Qual é a importância da pesquisa jurídica no Brasil como instrumento de transformação social?
  • Como a teoria crítica de Michel Miaille pode ajudar a redefinir as bases metodológicas da pesquisa jurídica no Brasil?
  • Quais obstáculos epistemológicos foram identificados por Michel Miaille na pesquisa jurídica?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Maracana85
Maracana85 🇧🇷

4.2

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REPENSANDO AS BASES METODOLÓGICAS DA PESQUISA EM DIREITO NO
BRASIL
RETHINKING THE METHODOLOGICAL BASIS OF RESEARCH IN LAW IN BRAZIL
Isabela Medeiros *
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo propor uma reavaliação do perfil predominante observado na
pesquisa produzida no âmbito do direito no Brasil, a partir da verificação de que a aumento
quantitativo dos programas de pós-graduação do país não foi acompanhado no mesmo compasso
no aspecto qualitativo. Parte-se da premissa de que, muito embora haja um progresso na pesquisa
jurídica, esta ainda está despida de um viés inovador e crítico, mantendo-se vinculada à visão
reducionista e conservador da ciência jurídica. Diante de tal análise, faz-se um aporte na teoria
crítica elaborada por Michel Miaille para propor uma redefinição das bases metodológicas da
pesquisa jurídica, a partir da desconstrução dos obstáculos epistemológicos enfrentados pela
ciência do direito para o fim de propor a construção de uma base epistemológica para o direito
que trabalhe o próprio objeto de estudo de forma mais consistente, reflexiva e crítica.
Palavras-chave: Pesquisa em direito; Obstáculos epistemológicos; Metodologia; Epistemologia;
Teoria crítica.
ABSTRACT
This paper aims to propose a reevaluation of the predominant profile observed in the research
produced in the law in Brazil, from the finding that the quantitative increase in graduate programs
in the country was not followed in tandem in the aspect qualitative. It starts with the premise that,
although there is progress in law research, this is still devoid of a critical and innovative trend,
remaining bound to the reductionist view of science and conservative legal. Before this analysis,
it is an investment in critical theory developed by Michel Miaille to propose a redefinition of the
methodological foundations of legal research from the deconstruction of the epistemological
obstacles faced by the science of law for the purpose of proposing the construction of a base
epistemological framework for the right to work the very object of study in a more consistent,
reflective and critical.
Keywords: Research in law; Epistemological obstacles, Methodology, Epistemology, Critical
theory.
* Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Brasileiro
de Estudos Jurídicos. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Advogada. Professora do Curso de
Graduação em Direito e Coordenadora de Prática Jurídica do Núcleo de Pesquisa e Prática em Direito da Faculdade de Ciência
Sociais de FlorinaópolisFCSF/CESUSC.
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REPENSANDO AS BASES METODOLÓGICAS DA PESQUISA EM DIREITO NO

BRASIL

RETHINKING THE METHODOLOGICAL BASIS OF RESEARCH IN LAW IN BRAZIL

Isabela Medeiros * RESUMO O presente artigo tem por objetivo propor uma reavaliação do perfil predominante observado na pesquisa produzida no âmbito do direito no Brasil, a partir da verificação de que a aumento quantitativo dos programas de pós-graduação do país não foi acompanhado no mesmo compasso no aspecto qualitativo. Parte-se da premissa de que, muito embora haja um progresso na pesquisa jurídica, esta ainda está despida de um viés inovador e crítico, mantendo-se vinculada à visão reducionista e conservador da ciência jurídica. Diante de tal análise, faz-se um aporte na teoria crítica elaborada por Michel Miaille para propor uma redefinição das bases metodológicas da pesquisa jurídica, a partir da desconstrução dos obstáculos epistemológicos enfrentados pela ciência do direito para o fim de propor a construção de uma base epistemológica para o direito que trabalhe o próprio objeto de estudo de forma mais consistente, reflexiva e crítica. Palavras-chave : Pesquisa em direito; Obstáculos epistemológicos; Metodologia; Epistemologia; Teoria crítica. ABSTRACT This paper aims to propose a reevaluation of the predominant profile observed in the research produced in the law in Brazil, from the finding that the quantitative increase in graduate programs in the country was not followed in tandem in the aspect qualitative. It starts with the premise that, although there is progress in law research, this is still devoid of a critical and innovative trend, remaining bound to the reductionist view of science and conservative legal. Before this analysis, it is an investment in critical theory developed by Michel Miaille to propose a redefinition of the methodological foundations of legal research from the deconstruction of the epistemological obstacles faced by the science of law for the purpose of proposing the construction of a base epistemological framework for the right to work the very object of study in a more consistent, reflective and critical. Keywords: Research in law; Epistemological obstacles, Methodology, Epistemology, Critical theory.

  • (^) Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Advogada. Professora do Curso de Graduação em Direito e Coordenadora de Prática Jurídica do Núcleo de Pesquisa e Prática em Direito da Faculdade de Ciência Sociais de Florinaópolis – FCSF/CESUSC.

1 INTRODUÇÃO

Muito embora o ensino jurídico no Brasil já tenha sido objeto de incansáveis estudos e discussões, o tratamento destacado da pesquisa no direito parece não ter recebido o mesmo relevo, apresentando-se ainda como um assunto que merece análise mais detida. A importância da discussão acerca da pesquisa jurídica evidencia-se sobretudo a partir da avaliação dos dados fornecidos pela CAPES, que demonstram um notável aumento do número de cursos de pós- graduação oferecidos no país nas últimas décadas. O aumento dos número de cursos, entretanto, traz à tona a necessária discussão acerca da pesquisa que os programas de pós-graduação têm produzido e, mais ainda, enseja a necessidade de reflexão acerca de uma análise qualitativa desta produção. A análise qualitativa, por seu turno, revela que o perfil da pesquisa jurídica ainda é um tanto quanto desapontador, sugerindo o que alguns autores denominarão de “atraso qualitativo”, uma vez que ainda apresenta, predominantemente, um perfil epistemológico reducionista da ciência jurídica, traduzindo-se em pesquisas que possuem caráter pouco renovador e crítico. A partir de tal análise é que se mostra pertinente a introdução dos intitulados “obstáculos epistemológicos” à ciência jurídica cunhados por Michel Miaille, para que a sua identificação – e possível ruptura – possibilite um exame mais consciente deste perfil predominante verificado na pesquisa jurídica e, mais ainda, sirva de sustentáculo para que a pesquisa jurídica seja repensada sob um novo paradigma, cujo viés epistemológico perceba o direito – e a ciência jurídica – enquanto fenômeno complexo, dinâmico e contextualizado com a realidade social. O presente artigo tem o objetivo de, a partir da premissa de que há um descompasso entre o avanço quantitativo e qualitativo da pesquisa jurídica no Brasil, resgatar a discussão a respeito da necessidade de se repensar as bases metodológicas da pesquisa que vem sendo produzida no âmbito do direito no país, propondo, para tanto, a utilização da teoria crítica proposta por Michel Miaille, notadamente no que diz respeito à necessidade de “desconstrução” dos “obstáculos epistemológicos” da ciência jurídica para o delineamento de um novo perfil para a pesquisa jurídica do Brasil.

2004 34 15 49 2003 32 14 46 2002 29 14 43 2001 24 14 38 2000 24 11 35 1999 15 11 26 1998 12 11 23 Fonte: http://geocapes.capes.gov.br/geocapesds/# Verifica-se, portanto, que os dados são claros ao apontar uma realidade: a pós-graduação em Direito cresceu (numericamente) e muito, nos últimos tempos. A partir de tal constatação, parece que outra apreciação reputa-se obrigatória: a verificação da qualidade dos programas oferecidos e, mais ainda, da pesquisa produzida dentro de tais programas. Isso porque parece claro que a pós-graduação deva estar voltada – ainda que parcialmente – para a pesquisa^2 e, portanto, o crescimento quantitativo dos programas de pós- graduação devem ter como consequência inerente o incremento da pesquisa em direito. Em abordagem sobre o assunto, NOBRE (2005) registra que o aumento quantitativo dos programas de pós-graduação não foi acompanhado pela qualidade da pesquisa produzida no direito, gerando o que o autor denomina de um “atraso” em comparação com outras disciplinas das ciências humanas. De forma similar, FRAGALE e VERONESE (2004, p. 54) apuram que há um descompasso entre o avanço quantitativo e a qualidade da pesquisa produzida no direito, defendendo que “a área do Direito ainda precisa constituir-se como um espaço científico mais denso para alcançar uma melhor inserção no sistema nacional de pós-graduação”. Evidentemente que não se está a ignorar os avanços, inclusive qualitativos, ocorridos nas últimas décadas. Os números apresentados no quadro, por si só, já são bastante reveladores no sentido de indicar o progresso da pesquisa jurídica no Brasil. O que ocorre é que o progresso (^2) A vinculação dos objetivos de uma pós-graduação com a pesquisa pode ser uma análise um tanto quanto incompleta e, sobretudo, ingênua, quando se sabe que os cursos de pós-graduação oferecidos, além de comportarem os denominados cursos “profissionalizantes” (que, evidentemente, não tem por objetivo o incentivo à pesquisa, ao menos não primordialmente) são utilizados comumente apenas para obtenção de titulação para fins estritamente remuneratórios. De qualquer forma, não é objeto do presente estudo analisar detidamente os objetivos dos programas de pós-graduação e sua relação com a pesquisa.

qualitativo não acompanha o ritmo do avanço quantitativo dos programas de pós-graduação em direito. A identificação da defasagem da qualidade tem sido verificada, primordialmente, a partir da constatação de que a pesquisa em direito no Brasil tem tido um caráter pouco inovador, ou seja, em sua grande parte acaba por reproduzir o conteúdo dos textos legais, deixando perceptível a preponderância da concepção reducionista do próprio objeto da pesquisa (a ciência jurídica) e, mais ainda, mostrando um perfil hegemônico acrítico. Partindo de experiências vivenciadas no âmbito do mestrado e doutorado em direito, Luciano Oliveira (apud FRAGALLE FILHO, 2011, p. 3-4) indica que as dissertações e teses pecam, essencialmente, pelos seguintes problemas: O manualismo, “ou seja, a tendência a escrever verdadeiros capítulos de manual [...]”. O reverencialismo, que se expressa na construção a partir do argumento de autoridade, da proximidade com o “melhor” direito, sem perceber que a hipótese não pode ser tratada como uma tentativa de defesa de uma causa. A falta de tempo [...]. A impureza metodológica [...], acompanhado de precária interdisciplinaridade [...], sincretismo metodológico e confusão epistemológica [...]. NOBRE (2005, p. 24), por sua vez, defende que o atraso qualitativo estaria fundado basicamente em duas premissas: A minha hipótese é que esse atraso está ligado a dois fatores fundamentais. Em primeiro lugar, o isolamento em relação a outras disciplinas das Ciências Humanas e uma peculiar confusão entre a prática profissional e pesquisa acadêmica. É da combinação destes dois fatores que irá resultar uma relação extremamente precária com as disciplinas das Ciências Humanas, como na concepção de o que é o objeto da Ciência do Direito. Entende-se que a avaliação mais adequada acerca dos problemas com a qualidade da pesquisa no direito foi formulada por FRAGALE e VERONESE (2004, p. 67) que, refutando parcialmente os fundamentos trazidos por Marcos Nobre, sinalizam para a necessidade de rejeição de que este atraso qualitativo seria decorrente da precária institucionalização da pesquisa no direito, defendendo, ao contrário, que a questão do atraso qualitativo seria muito mais um problema de viés metodológico e epistemológico: Parece-nos que o real “atraso”, não percebido por Nobre em sua reflexão, consiste na ausência de uma reflexão epistemológica e metodológica mais

A questão do reconhecimento do direito enquanto ciência e a análise da produção científica no direito^4 , no presente artigo, parte primordialmente dos apontamentos elaborados por MIAILLE (1979) em relação aos “obstáculos epistemológicos”^5 enfrentados pela ciência jurídica. Segundo o autor, referidos obstáculos estariam consubstanciados na (i) “falsa transparência do direito”; no (ii) “idealismo jurídico” e, ainda, na (iii) pretensa independência (isolamento) da ciência jurídica em relação aos demais campos de conhecimento. A “falsa transparência do direito” estaria associada ao domínio positivista e, portanto, na ausência, ontológica, de compromisso com o questionamento do fenômeno jurídico, mais especificamente, da função e fundamentos das regras jurídicas. O positivismo, tratado por MIAILLE (1979, p. 37) enquanto “corrente de pensamento, enquanto atitude epistemológica geral” ao contrário do que defende a teoria crítica, aproxima-se de um conhecimento quase que “sacralizado”, no qual a ciência do direito resume-se às regras que, por sua vez, são dogmas e, portanto, não devem ser questionadas, somente cumpridas^6 : Esta atitude [o positivismo] define-se por uma posição aparentemente isenta de qualquer reparo: o estudo científico do direito é o estudo do direito experimentalmente constatável: o direito positivo, dito por outras palavras, as regras do direito fixadas pelos homens. O estudo do direito deve ser relativo a todas as regras, mas deve limitar-se só a elas. (MIAILLE, 1979, p. 37-38) Esta atitude positivista irá conferir ao direito uma pretensa transparência, uma aparência de neutralidade. Assim, além de ter o objeto bastante delimitado – as regras jurídicas – o dados sistematizado que levou a uma conclusão. Acho que esta é uma característica importante, e mostra que nosso Direito é de opinião e não de fato; não há uma grande preocupação em se conferir os fatos”. (in NOBRE et al., 2005, p. 50). (^4) Sobre o papel da epistemologia e, consequentemente, da importância de se identificar o que pode (ou não) ser definido por conhecimento jurídico (científico), explica MIAILLE (1979, p. 30-31): “Não é pois supérfluo nem desnecessário perguntar-se que condições deve cumprir uma produção teórica para merecer a sua qualificação de cientifica. Dito de outra maneira, é capital para a nossa tarefa saber porque é que o conhecimento que tivermos do direito justifica a denominação de conhecimento jurídico. A resposta tem precisamente a ver com o termo não habitual que abria esta parte: epistemologia. Pode ela de facto ser definida como o conhecimento das condições da produção científica”. (^5) O conceito de “obstáculo epistemológico” utilizado por Miaille é extraído de Gaston Bachelard. De acordo com COELHO (2011, p. 215), Gaston Bachelard foi “outro epistemólogo a questionar as condições de verdade da ciência”. Para Bachelard, “o progresso das ciências é sempre uma correção dos erros do passado; e que a ciência só evolui quando o cientista não se deixa seduzir pelo saber já estratificado, mas o questiona e rompe com ele, partindo sempre de novas hipóteses. Para Bachelard todo conhecimento científico é um rutura como conhecimento comum, procurando determinar aspectos do real que não são dados imediatos, mas resultados construídos pelo cientista. A racionalidade é assim projetada em outro plano, o construtivo em oposição ao descritivo, o operacional em oposição ao casual; entende Bachelard que a realidade é sempre irredutível aos modelos que a interpretam, exigindo-se constante retificação de erros; em outras palavras, conforme asseverou posteriormente Popper, toda teoria científica é sempre provisória, já que destinada a ser superada e retificada”.

positivismo pretende que tal estudo dê-se de forma eminentemente descritiva, conforme explica o autor: A ciência será positiva no sentido de ser «neutra» no plano político ou moral. Por outras palavras, a atitude positivista em direito postula que a descrição e a explicação das regras jurídicas, tal qual são limitadas a si mesmas, representam um proceder «objectivo», o único digno do estatuto científico. (MIAILLE, 1979, p. 39). O “idealismo jurídico”, definido por MIAILLE como o segundo obstáculo epistemológico, estaria relacionado à visão idealizada da realidade jurídica, isto é, estaria consubstanciado na própria idealização das instituições, que receberiam uma análise destacada do “contexto geográfico e histórico no qual foram efetivamente produzidas e constituem um conjunto de noções universalmente válidas (universalismo), sem intervenção de uma história verdadeira (não história)”. (1979, p. 48). Ou seja, é a visão do universo jurídico de forma totalmente descontextualizada com a realidade social, “abstratalizada”, dentro de um contexto que o autor denomina de “mundo subvertido” e que trará por consequência, além do “universalismo a-histórico”, o “pluralismo de explicações”: Em suma, estando a explicação jurídica completamente abstraída do seu contexto real, esta, transformada numa pura ideia, aparece como resposta um pouco gratuita que poderia suportar, se não a tese inversa, em qualquer caso uma tese diferente. É o sentimento que experimenta não só o profano face às discussões dos juristas, mas também o estudante de direito: as disputas oratórias como as sábias comparações entre teorias rivais fazem nascer a ideia de que tudo é aproximadamente equivalente. (MIAILLE, 1979, p. 51). Por fim, a “independência da ciência jurídica” é uma barreira da própria origem do direito, que desde o início consagrou-se enquanto disciplina isolada das demais. Sob tal aspecto, afirma MIAILLE (1979, p. 53), que “No fundo, toda a história do surgimento de uma ciência jurídica aparece como a a progressiva separação de outras ordens de pensamento” e alerta, ainda, que este obstáculo epistemológico [...] encontra-se todo, inteiro, expresso e mantido pelas estruturas universitárias actuais, na concepção de que é desejável uma análise isolada do direito, (^6) Em outra oportunidade, MIAILLE (1984, p. 34) corroborava seu pensamento afirmando que “O estudo do direito se apresenta frequentemente como uma dogmática no sentido usual do termo: quer dizer, a análise de regras de um ponto de vista normativo [...]”.

Brasil está situada em sua desvinculação da realidade social. É preciso enquadrá- los nessa realidade, não para a sua estagnação, mas para a sua adequação à justiça social efetiva. A produção do conhecimento científico no âmbito do direito está umbilicalmente vinculada ao reconhecimento de tais “obstáculos epistemológicos”, mas, sobretudo, na verificação da necessidade de construir uma ciência jurídica capaz de romper com este paradigma hegemônico^7. Este rompimento de paradigma é, justamente, o que se extrai da proposta epistemológica da teoria crítica: O conceito de ciência que a teoria crítica revela é o de uma tentativa de aproximação ao real concreto, denunciando a realidade imaginária consubstanciada na ideologia, superação de obstáculos epistemológicos e rutura com o saber teórico acumulado. Assim, ela opõe-se a um saber construído sobre princípios dogmaticamente aceitos pelo senso comum teórico dos juristas e problematiza as respostas do saber tradicional, questionando a própria situação social onde elas incidem. [...] Projetando-se para além dos estreitos horizontes da dogmática jurídica, a teoria crítica procura constituir-se em instrumento de transformação dos postulados da dogmática e não de sua legitimação [...]. Como teoria crítica, a ciência do direito deve ser considera em rutura com o pensamento tradicional a partir da superação de seus próprios obstáculos epistemológicos, que a problematização do saber identifica e desmistifica. (COELHO, 2011, 215-216). A jornada pela construção deste novo paradigma é árdua e complexa – já que envolve de forma invariável um repensar sobre toda a ciência jurídica e o ensino do direito – porém é necessária e deve ser enfrentada, mesmo que sinalize um objetivo “utópico” ou mesmo um trajeto “delirante”^8. Isso porque talvez seja preciso se buscar o impossível ou mesmo utópico, para se alcançar o desejável. (^7) “Para desenvolver um estudo científico do direito, temos de forçar três obstáculos tanto mais sólidos quanto mais «naturais» parecem: a aparente transparência do objecto de estudo, o idealismo tradicional da análise jurídica, a convicção, finalmente, de que uma ciência não adquire o seu estatuto senão isolando-se de todos os outros estudos. O reconhecimento destas dificuldades conduz-nos desde logo a afirmar que temos de construir o objecto do nosso estudo – e não deixarmo-nos impor a imagem que o sistema jurídico veicula consigo – , subverter totalmente a perspectiva idealista c fraccionada do saber que domina actualmente. Como facilmente se pode constatar, a revelação destes obstáculos, quer dizer, a denúncia dos erros que eles fazem pesar sobre a definição e o desenvolvimento de um pensamento científico, não reveste o carácter gratuito de uma simples «crítica» negativa: leva-nos positivamente a constituir de outra maneira a ciência do direito. A critica radical desta «ciência» abre-nos a via de novas hipóteses científicas”. (MIAILLE, 1979, p. 57) (^8) Os termos utopia e “direito ao delírio” ora utilizados são uma proposital reverência às expressões utilizadas por Eduardo Galeano no vídeo “El derecho al delirio”, no qual o autor, além de fazer a leitura de um texto de sua autoria, traz a definição de

É necessário, sobretudo, entender que, conforme bem aponta COELHO (2011, p. 224), “O direito não é a pressão do passado condicionando o presente, é a própria transformação do presente e a construção do futuro”. Evidentemente que a mudança paradigmática exige uma transformação institucional, de modo que os programas de pós-graduação e as instituições de ensino superior estejam mais seriamente voltadas para o incentivo à pesquisa e à produção científica. Em termos práticos, conforme aponta NOBRE (2005, p. 36-37), é necessário que haja institucionalmente uma estrutura adequada, que envolve não apenas o aspecto salarial como igualmente os recursos de pesquisa. Complementa o autor que “[...] se quisermos implantar um modelo novo de pesquisa, a primeira coisa que devemos fazer é exigir uma dedicação integral à pesquisa, ao ensino e à extensão de uma parte substancial dos docentes de um curso de direito”. A questão, entretanto, não é apenas estrutural e institucional, como visto, muito embora não se ignore a necessidade de uma reforma nestas searas. A mudança que se deve sublinhar há que ser operada na concepção do conteúdo do direito, de modo que possa estar “efetivamente engajado na construção de um mundo mais humano” (COELHO, 2011, 224). Um dos caminhos que parece indispensável está justamente em incentivar cada vez mais “um tipo de ontologia furtiva”, nos termos do que já ensinava Lyra Filho (1984), no recorte conferido pelo pesquisador, que indica, desde logo, se o objeto da pesquisa tomará o direito concebido em sua concepção reducionista ou se, ao contrário, reconhecerá o direito – e portanto o objeto de sua pesquisa – de forma mais ampliada, contra-hegemônica. Esta “ontologia furtiva” pode partir inclusive das próprias instituições de ensino e programas de pós-graduação, através da formulação de linhas de pesquisa que incentivem a crítica e um olhar epistemológico mais consistente do próprio direito. O ensino jurídico precisa procurar libertar-se, paralelamente à ciência do Direito, de toda uma carga dogmática que o aliena. Para tanto, há que voltar-se para o objetivo fundamental da educação, que é a formação de uma consciência crítica que possibilite ao jurista participar ativamente do processo de desenvolvimento utopia do diretor de cinema argentino Fernando Birri, para quem “a utopia está no horizonte […]. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei, que se eu ando dez passos ela se distanciará dez passos, quanto mais a procure menos a encontrarei, porque ela vai se distanciando, quando mais me aproximo. […] Pois a utopia serve para isso, PARA CAMINHAR”. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=m-pgHlB8QdQ&feature=results_main&playnext=1&list=PL0D5A635E8555405E. Acesso em 24 out. 2011.

Ciência Jurídica e dos princípios racionais e dos métodos dedutivos que orientam a produção de conhecimento deste campo. Em conferência intitulada “Epistemologias do Sul: o papel dos movimentos sociais na produção dos saberes”^9 , Boaventura de Sousa Santos, aponta não apenas para a importância da adequação da fala – notadamente para a fata da denominada “teoria crítica” – aos seus destinatários, mas, sobretudo, para a o compromisso da docência com a formação do que o teórico denomina de “rebeldes competentes”. Segundo o autor, Nós, na vida acadêmica, nas universidades, fizemos durante muito tempo muitas discussões totalmente fora da realidade dos nossos países e dos nossos problemas. E o resultado foi é que nós formamos – e eu sinto esta responsabilidade como sociólogo e professor – formamos conformistas, nem sempre competentes. Eu penso que a nossa tarefa, a tarefa de todos aqueles que tem o privilégio de estar na universidade e aqueles que lutam por entrar – e felizmente mais estão entrando no Brasil – não é formar conformistas, é formar rebeldes competentes. E é para isto que eu vos apelo, no vosso trabalho, na universidade, na vossa fábrica, na vossa cidade, é o olhar sempre que nós precisamos é o de rebeldes competentes. Parece, assim, que o ensino jurídico – e consequentemente a pesquisa no direito – devam estar imbuídas desta “rebeldia competente” tratada com tanta propriedade por Boaventura. E que o “caminhar” por esta nova perspectiva, calcada na teoria crítica – na qual a pesquisa no direito aproxima-se de seus destinatários e concebe a ciência jurídica enquanto um fenômeno dinâmico, errante, porém mais consonante com a realidade social – seja incansável e permanente. 5 CONCLUSÃO É preciso fomentar e trazer à tona a discussão da importância do papel da pesquisa jurídica para o direito como possível instrumento de transformação social, dentro da perspectiva epistemológica proposta pela teoria crítica de Michel Miaille. O notável aumento quantitativo dos programas de pós-graduação recentemente operado no Brasil deve ser objeto de uma análise mais (^9) Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=GaAh7B12Nd8&feature=related> (parte 1) e < http://www.youtube.com/watch?v=J2TT9l7AIk8&feature=related> (parte 2). Acesso em: 02 set. 2011.

detalhada, para o fim de se incrementar efetivamente a qualidade da pesquisa jurídica, de forma que esta esteja em compasso com o progresso quantitativo. A questão do descompasso ou do atraso qualitativo da pesquisa jurídica não pode receber um tratamento estritamente institucional; o atraso requer, ou melhor, exige, uma revisão da própria epistemologia jurídica na perspectiva adotada pela teoria crítica. Desta forma, além de se resgatar a importância da pesquisa em direito no Brasil é preciso se fazer uma profunda discussão e revisão do perfil da pesquisa que vem sendo produzida

  • a partir da desconstrução dos obstáculos epistemológicos identificados por Michel Miaille – para se repensar a pesquisa jurídica sob um viés epistemológico que prestigie uma visão do direito diferenciada e abrangente, crítica e potencialmente transformadora e emancipatória, rompendo de forma contundente com o tecnicismo acrítico ainda preponderante. Para que se opere esta mudança paradigmática parece ser bastante pertinente não apenas o incentivo à “ontologia furtiva” cunhada por Roberto Lyra Filho, assim como o estímulo a uma docência voltada para a formação dos “rebeldes competentes” referidos por Boaventura de Sousa Santos. Talvez, arrisca-se afirmar, seja inclusive pertinente praticar um pouco do “direito ao delírio” proposto (ainda que de forma poética) por Eduardo Galeano. Este parece ser um bom começo para a longa caminhada em busca de uma pesquisa mais consistente, crítica e consciente da realidade social.