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A Unidade e a Variedade na Pintura e Música Renascentista e Barroca, Notas de estudo de Música

Este texto explora as categorias desenvolvidas por wolfflin para estabelecer uma relação entre pintura e música durante os períodos renascentista e barroco. O autor compara a abordagem de unidade e variedade em obras de arte visuais e musicais, destacando as semelhanças e diferenças entre esses períodos.

O que você vai aprender

  • Como a pintura renascentista difere da pintura barroca em termos de unidade e variedade?
  • Qual é a importância da unidade e variedade na arte renascentista e barroca?
  • Como as formas musicais, como a forma rondó, são relacionadas à unidade e variedade na música?
  • Como a música renascentista difere da música barroca em termos de unidade e variedade?
  • Quais categorias desenvolvidas por Wolfflin são exploradas no texto?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Rafael86
Rafael86 🇧🇷

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artistas que, quando não transitaram entre as
duas artes, freqüentemente conceberam íntimas
relações entre ambas.
As artes Visuais, entre as quais a Pintura, e a
Música, têm naturalmente cada qual as suas
especificidades. Podemos lembrar aqui uma
clássica oposição que será retomada mais adiante:
o contraste entre o princípio apolíneo e o princípio
dionisíaco (Nietzsche, 1996). Apolo, deus do Sol
e pai de toda imagem, é o deus por excelência
das artes plásticas, no sentido de que estas são
potencialmente (embora não necessariamente,
Pintura e Música apresentam uma longa história
de diálogos e entrecruzamentos, como expressões
artísticas distintas mas que podem interagir
uma sobre a outra. Das concepções estéticas
de pintores como Kandinsky e Braque, que
vislumbravam relações íntimas entre a imagem
e o som, até as experiências de compositores
como Alexander Scriabin, que chegou a imaginar
um piano foto-cromático que além de sons
emitisse feixes luminosos de diversas cores, e até
fraglâncias perfumadas, não são raros na História
das Artes Visuais e da Música os exemplos de
RENASCIMENTO E BARROCO – UM PARALELO
CONTRASTANTE ATRAVÉS DA PINTURA E DA MÚSICA
José Costa D’Assumção Barros
UFRRJ
Resumo
Este artigo busca refletir sobre as relações entre
Artes Visuais e Músico no âmbito de momentos
específicos da História da Arte, elaborando uma
análise comparativa entre a arte renascentista e a arte
barroca, examinando as relações entre artes visuais
e Música. Os elementos essenciais do estilo Barroco
e do estilo Renascentista são considerados em
oposição de modo a identificar possíveis similitudes
existentes entre os aspectos pictóricos e os aspectos
musicais de cada um destes estilos. O artigo parte do
pressuposto de que, uma vez que estejam envolvidas
pelo mesmo contexto histórico-social, a produção
artística visual e a produção artística musical de um
mesmo período e sociedade devem trazer elementos
fundamentais em comum, e que, de maneira análoga,
podem ser percebidas mudanças e rupturas entre as
artes visuais e sonoras de dois períodos históricos
distintos. Metodologicamente, dialoga-se na parte
inicial do artigo com o sistema conceitual proposto
por Wölfflin para análise de estilos artísticos. Na
parte final do artigo dialoga-se teoricamente com a
filosofia nietzscheniana, ao utilizar-se os conceitos
de apolíneo e dionisíaco em sua aplicabilidade às
artes visuais e à música.
Palavras-chave:
Arte e Música; Arte Barroca; Arte Renascentista.
Keywords:
Art and Music; Baroque Art; Renaissance Art.
Abstract
This article attempts to develop a reflection about
the relations between visual arts and music in the
ambit of specifically historical periods, elaborating
a comparative analysis from the renaissance and
baroque arts, examining the relations between
visual arts and Music. The essential elements of
the Baroque Style and of the Renaissance Style
are considered in opposition in order to identify
possible similarities existent between the pictorial
and musical aspects of which one of these styles.
In the methodological aspects, the initial part of
the article dialogues with the conceptual system
considered by Wöfflin for analysis of artistic
styles. In the last part of the article, it is establish
a dialogue with the Nietzsche’s Philosophy in the
use of the concepts of apolinian and dionysiac.
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artistas que, quando não transitaram entre as duas artes, freqüentemente conceberam íntimas relações entre ambas.

As artes Visuais, entre as quais a Pintura, e a Música, têm naturalmente cada qual as suas especificidades. Podemos lembrar aqui uma clássica oposição que será retomada mais adiante: o contraste entre o princípio apolíneo e o princípio dionisíaco (Nietzsche, 1996). Apolo, deus do Sol e pai de toda imagem, é o deus por excelência das artes plásticas, no sentido de que estas são potencialmente (embora não necessariamente,

Pintura e Música apresentam uma longa história de diálogos e entrecruzamentos, como expressões artísticas distintas mas que podem interagir uma sobre a outra. Das concepções estéticas de pintores como Kandinsky e Braque, que vislumbravam relações íntimas entre a imagem e o som, até as experiências de compositores como Alexander Scriabin, que chegou a imaginar um piano foto-cromático que além de sons emitisse feixes luminosos de diversas cores, e até fraglâncias perfumadas, não são raros na História das Artes Visuais e da Música os exemplos de

RENASCIMENTO E BARROCO – UM PARALELO

CONTRASTANTE ATRAVÉS DA PINTURA E DA MÚSICA

José Costa D’Assumção Barros

UFRRJ

Resumo

Este artigo busca refletir sobre as relações entre Artes Visuais e Músico no âmbito de momentos específicos da História da Arte, elaborando uma análise comparativa entre a arte renascentista e a arte barroca, examinando as relações entre artes visuais e Música. Os elementos essenciais do estilo Barroco e do estilo Renascentista são considerados em oposição de modo a identificar possíveis similitudes existentes entre os aspectos pictóricos e os aspectos musicais de cada um destes estilos. O artigo parte do pressuposto de que, uma vez que estejam envolvidas pelo mesmo contexto histórico-social, a produção artística visual e a produção artística musical de um mesmo período e sociedade devem trazer elementos fundamentais em comum, e que, de maneira análoga, podem ser percebidas mudanças e rupturas entre as artes visuais e sonoras de dois períodos históricos distintos. Metodologicamente, dialoga-se na parte inicial do artigo com o sistema conceitual proposto por Wölfflin para análise de estilos artísticos. Na parte final do artigo dialoga-se teoricamente com a filosofia nietzscheniana, ao utilizar-se os conceitos de apolíneo e dionisíaco em sua aplicabilidade às artes visuais e à música.

Palavras-chave:

Arte e Música; Arte Barroca; Arte Renascentista.

Keywords:

Art and Music; Baroque Art; Renaissance Art.

Abstract

This article attempts to develop a reflection about the relations between visual arts and music in the ambit of specifically historical periods, elaborating a comparative analysis from the renaissance and baroque arts, examining the relations between visual arts and Music. The essential elements of the Baroque Style and of the Renaissance Style are considered in opposition in order to identify possible similarities existent between the pictorial and musical aspects of which one of these styles. In the methodological aspects, the initial part of the article dialogues with the conceptual system considered by Wöfflin for analysis of artistic styles. In the last part of the article, it is establish a dialogue with the Nietzsche’s Philosophy in the use of the concepts of apolinian and dionysiac.

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como provarão várias correntes da arte moderna) artes figurativas. Dionísio, o deus da embriaguez, ao menos no âmbito das proposições nietzschinianas, é também o deus da Música –a arte não-figurativa por excelência^1. Essas relações são na verdade apenas primárias, referentes a um plano de definições mais amplas, uma vez que tanto a pintura como a música movimentam dentro de si, como veremos, princípios apolíneos e dionisíacos. De qualquer maneira, o projeto de estabelecer uma ponte entre a pintura e a música (e de certa maneira entre o apolíneo e o dionisíaco), tem fascinado diversos artistas em todos os tempos.

Por outro lado, grandes teóricos e estudiosos da arte têm se empenhado em examinar as íntimas relações que podem ser estabelecidas entre a Música e as diversas modalidades de expressão artística que lidam com imagens. A busca da compreensão através de uma Estética mais abrangente, que considere a Pintura, a Escultura, a Arquitetura e a Música de uma mesma época, ou ainda incluindo outras formas de expressão como a Literatura e a Filosofia, tem sido meta de diversos historiadores da cultura e filósofos da arte. Apenas para registrar um exemplo célebre, entre outros tantos, podemos citar o esforço de Erwin Panófsky, em uma obra escrita em 1951, com vistas a enxergar as relações possíveis entre aArquitetura Gótica e a Escolástica, relacionando Arquitetura, Artes Visuais e Filosofia em um único movimento ou sistema de pensamento e criação^2.

O principal objetivo deste ensaio será o de entrecruzar algumas categorias de análise, já tradicionais para a interpretação das obras de arte visuais e sonoras, com vistas a examinar certos padrões estéticos e estratégias representativas (na pintura e na música) de um mesmo período – tendo sido escolhidos para este paralelo comparativo os momentos Renascentista e Barroco da História da Arte. A discussão envolverá a apropriação de alguns conceitos fundamentais da História da Arte e da Música e, ao mesmo tempo, a consciência dos limites a que se restringem os estudos sobre a arte quando utilizam estas formulações conceituais. Neste sentido, partiremos de uma reflexão inicial sobre o uso de categorias generalizadoras no estudo da História da Arte, indagando simultaneamente sobre os limites de seu uso e a sua necessidade.

Desde que homem começou a empreender esforços no sentido de compreender racionalmente a Arte, seja a de sua época ou a de outras épocas, têm sido elaboradascategorias econceitos que, de uma maneira ou de outra, são quase sempre redutores e generalizadores. Por diversas razões, as categorias e conceitos estabelecidos racionalmente freqüentemente incorrem em limitações, particularmente quando estes são concebidos como operacionalizações para compreender os fenômenos artísticos. Em primeiro lugar, isto ocorre porque a Arte possui também um aspecto “não-racionalizável”: ela é também o território do intuitivo, do espontâneo, do surpreendente, da transgressão em relação às normas estabelecidas. Assim, nem o mais completo sistema de categorias e conceitos racionais pode aspirar a compreender a arte em sua totalidade, ou mesmo uma única obra de arte em sua plena singularidade, pois sempre restará aquela dimensão de uma obra artística que não é passível de ser compreendida conceitualmente.

Em segundo lugar, qualquer sistema de categorias e conceitos – bem como qualquer modelo de racionalização – é, em última instância,histórico. Vale dizer, e é já mesmo um truísmo nos dias de hoje ressaltar isto, qualquer perspectiva do homem sobre o próprio homem é antes de mais nada produto de sua época e de seu ambiente cultural, sendo esta perspectiva algo que naturalmente não cessa de se transformar continuamente através de sua passagem pelo tempo. Por isto mesmo, também o olhar do homem de determinada localidade e época histórica sobre a arte de seu tempo ou de períodos anteriores é sempre apenas um dos “olhares” possíveis – sem esquecer que uma mesma comunidade de pensadores pode dar origem a perspectivas interpretativas mais ou menos diversificadas sobre um mesmo objeto de estudo. Dito de outro modo, nenhum conceito ou categoria de análise pode aspirar a ser absoluto. Se isto é fato reconhecido para qualquer campo de conhecimento nos dias de hoje, tanto mais se mostra aplicável ao campo da História da Arte.

Por fim, resta acrescentar que nenhum artista se reduz rigorosamente ao “padrão de excelência” de sua época, havendo mesmo os que criam os seus próprios padrões individuais e se afastam

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amplo que lhes dá sentido, cada figura ou grupo de figuras neste quadro conserva uma espécie de autonomia. A idéia de Rafael neste mural foi a de homenagear grandes pensadores da Antigüidade Clássica. Nele aparecem representados filósofos antigos de tempos diversos. Platão e Aristóteles aparecem destacadamente no centro do quadro, e também estão presentes diversos outros pensadores clássicos como Sócrates, Diógenes, Pitágoras, Epicuro, Ptolomeu e Euclides.

Não poderemos nos ater a explicar cada um destes personagens, pois isto fugiria aos objetivos deste texto, mas o importante é ressaltar que o observador da obra pode examinar sem dificuldade cada quadrinho particular dentro deste quadro maior. No canto direito inferior do quadro, por exemplo, o matemático Euclides demonstra um teorema para alguns discípulos, e no canto inferior esquerdo quem centraliza um outro grupo é o célebre filósofo Pitágoras. Na parte central inferior aparece uma figura isolada – a de Diógenes, filósofo

grego que criticava as posses materiais e que na representação de Rafael aparece relaxadamente esparramado nos degraus. Um pouco à esquerda vemos outra figura isolada, o filósofo Heráclito – outro severo crítico da frivolidade humana e que, na representação de Rafael, aparece solitário e pensativo com a cabeça apoiada no braço esquerdo. Cada grupo ou figura isolada funciona, de certa forma, como um quadrinho menor dentro do quadro mais amplo (questão à qual voltaremos mais adiante), e é possível isolar cada elemento constituinte do todo precisamente porque os desenhos são muito bem delimitados. Os contornos das várias figuras e objetos são bem delineados e destacam-se do fundo, os grupos separam-se espacialmente uns dos outros, os elementos de arquitetura os enquadram. Tudo é muito claro e fácil de ser percebido objetivamente.

Apenas como um exemplo desta tendência ao seccionamento interno que se estabelece no padrão de representação da pintura renascentista,

Figura 1 - Raffaelo Sanzio,A Escola de Atenas 1509

podemos vislumbrar dentro do quadro “A Escola de Atenas” várias seções entre outras, como as exemplificadas acima (figura 1.1).

Cada quadrinho acima selecionado – detalhes do Quadro maior que os constitui em uma totalidade – pode ser contemplado como uma seção à parte, com certo nível de autonomia embora bem integrada no todo. Seccionadas em partes autônomas, estas seções não perdem propriamente o seu sentido. Elas são como partes do quadro que narram a sua pequena história em particular, e todas essas histórias juntam-se em uma história maior que constitui o grande plano narrativo do quadro como um todo. Também é interessante observar que outras maneiras de se dividir o quadro poderiam se apresentar, já com relação aos planos de afastamento das imagens em relação ao observador. Este aspecto será discutido em seguida, quando examinarmos outro aspecto importante das maneiras renascentistas de representação pictórica, e que pode ser

denominado representação “planar”. Apenas para antecipar este ponto, seria possível pensar aqui em um primeiro mais plano, mas próximo do observador que contempla o quadro, e que se constitui de todas as figuras que se acham ao nível do pé da pequena escada de três degraus. Sentado nas escadas displicentemente, Diógenes situa-se em um ponto que já se coloca a meio caminho em direção ao grande grupo de pessoas que, situadas no patamar mais alto da escada e centralizadas pelas figuras de Platão e Aristóteles, povoam um segundo plano de observação. Atrás deles, iniciam-se camadas de profundidade determinadas pela arquitetura deste grande recinto que seria esta imaginária “Escola de Atenas” criada por Rafael.

Os exemplos acima evocados – seja os seccio- namentos que podem ser feitos para a compreensão do quadro na sua superfície, seja os seccionamentos que se referem a planos de profundidade – vêm a nos mostrar que, quando nos pomos a contemplar um

Figura 1.1 - Raffaelo Sanzio, A Escola de Atenas. Cinco detalhes do quadro. 1509

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considerar o quadro de Rubens, e em outro caso unificadas pela sombra envolvente no quadro de Rembrandt. Esta luz unidirecional ou esta sombra englobante funcionam aqui como poderosos elementos intermediadores entre cada elemento do quadro e o “todo composicional”. Assim, o contraste entre sombra e porções de luz no quadro A Ronda Noturna de Rembrandt contribui para realçar ou obscurecer irregularmente um elemento e outro, e ainda para indeterminar os contornos das figuras que acabam se fundindo na sombra sem fronteiras bem definidas.

Outro par dicotômico importante na abordagem proposta por Heinrich Wölfflin para a análise de representações iconográficas figurativas é o que poderemos chamar de “planar-recessional”. Nas obras renascentistas, tipicamente planares, identifica-se facilmente, como já foi notado no

parágrafo anterior, uma série de planos paralelos que organizam regularmente a profundidade do conjunto de imagens, e nestes planos de composição os vários elementos isolados são distribuídos.

Assim, como se disse, se naEscola de Atenas um primeiro plano é dado pelos grupos e degraus mais próximos ao observador; já o segundo plano desenvolve-se em torno das figuras centrais de Platão e Aristóteles e se estende simetricamente por outros grupos de pessoas e objetos; enquanto isso, o último plano corresponde à arquitetura de fundo que faz o olhar convergir para uma pequena porta aberta para o infinito, perfazendo-se com tudo isto uma organização em três planos paralelos. Estes três planos, aliás, são bem assinalados pela seqüência de arcos e outros elementos da arquitetura, e desde já vale lembrar que era muito comum entre os pintores

Figura 3 - Rembrandt,Ronda Noturna 1648

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renascentistas (como também o será entre os pintores neo-clássicos do século XVIII) a utilização dos suportes arquitetônicos para criar a ilusão de profundidade e construir a perspectiva.

Tudo se passa de maneira distinta nos quadros de Rubens e Rembrandt. Nestes exemplos barrocos, o princípio de organização se dá em termos de diagonais em recessão. A composição deO Rapto das filhas de Leucipo é dominada por figuras dispostas em ângulo em relação ao plano do quadro e que se afastam ou se aproximam do espectador em profundidade: na esquerda, o Raptor inclina- se em direção a uma das mulheres desnudas, mais avançada, e a agarra em uma das pernas. Um pouco mais avançado aparece o outro raptor que agarra a outra mulher desnuda, mais próxima do observador. Mas todas estas figuras estão muito entrelaçadas, de sorte que seria impossível separá-las em planos bem definidos e muito menos em seções isoladas dentro da obra. De maneira análoga, também na Ronda Noturna de Rembrandt as figuras principais parecem se movimentar diagonalmente, agora para a frente e para a esquerda.

A organização recessional tem um desdobramento que é oportuno comentar: ela impede que a percepção da obra seja conduzida através de um padrão de fixidez ou estabilidade. Na segunda parte deste texto veremos que a idéia de ‘movimento’ é característica não apenas da pintura como também da música barroca. As idéias deestabilidade e equilíbrio na concepção renascentistas, e de movimento nas obras barrocas, também aparecem em decorrência ao terceiro par de conceitos: forma fechada – forma aberta.

Aforma fechada é bastante típica do Renas- cimento: todas as figuras incluídas na Escola de Atenas estão equilibradas dentro da moldura do quadro, ao mesmo tempo em que a composição se baseia em verticais e horizontais que repetem a forma da moldura e sua função delimitadora. Assim, nesta pintura de Rafael as horizontais enfáticas dos degraus contrastam com as verticais das figuras e das paredes que sustentam os arcos. O que já foi comentado acerca das pequenas seções internas que podem ser estabelecidas no interior do quadro vê-se também reforçado por este aspecto. Na verdade, os diversos aspectos que aqui estamos considerando tendem a se reforçar

reciprocamente: a forma fechada, a tendência à compartimentação interna, a estabilidade, a organização planar do material visual – estes diversos aspectos interagem uns sobre os outros, são partes integradas de um mesmo sistema de representação pictórica.

Já nas composições barrocas verificamos a ocorrência mais freqüente daforma aberta. A cons- trução em linhas diagonais contrasta então com as horizontais e verticais da moldura e determina relações de distância, trazendo um dinamismo às figuras e a um conjunto que agora não parece mais estar contido simplesmente na estrutura de emolduramento. A moldura, aliás, costuma nas obras barrocas cortar as figuras pelos lados deixando-as pela metade, e em algumas composições as cenas representadas parecem se estender para muito além dos limites espaciais impostos pela moldura, como se quisessem ganhar o infinito.

Por fim, o último par proposto por Wolfflin para a análise de obras renascentistas ou barrocas é o que relacionamultiplicidade eunidade. De certa maneira, estes dois conceitos informam todos os anteriores. Entende-se pormultiplicidade, para além do fato de que se multiplicam as temáticas internas que compõem o enredo mais abrangente, o fato já mencionado de que a pintura renascentista é composta de partes distintas e de ambientes relativamente diferenciados. Conforme já vimos, nestes casos a obra apresenta-se internamente seccionada, sendo cada seção plena de sua cor própria, particular e local, e sendo por vezes possível examinar certos grupos e elementos como se fossem pequenos quadros dentro do quadro, separados uns dos outros ainda que mutuamente articulados em uma totalidade maior que unifica a variedade. Para o caso de A Escola de Atenas, já vimos como seria possível subdividir o quadro em quadrinhos menores, cada qual com um subtema particular e destacado mais ou menos claramente das demais seções. Fora o polisseccionamento imediato, os renascentistas tinham ainda outros recursos que contribuíam para isolar os vários elementos em uma multiplicidade de unidades independentes, como era o caso da já mencionada utilização de uma luz difusa emA Escola de Atenas.

Por outro lado, aunidade é o ponto de partida da pintura barroca, muitas vezes obtida por meio

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chanson de autoria de Clement Janequim, compositor francês do século XVI 8.

Antes de adentrarmos a questão formal, convém observar que nesta composição, como em muitas outras, Janequin tematiza a Natureza. Esta é uma tendência perfeitamente integrada ao quadro de atitudes renascentistas e que também aparece em outras formas de expressão artística, nas quais uma nova valorização da natureza faria com esta passasse a ser um tema bem presente na produção pictórica e também concepção arquitetônica.

Conforme poderá ser observado em uma audição atenta de O Canto dos Pássaros, Janequim procura imitar musicalmente sons de pássaros através de recursos onomatopéicos, o que é um traço característico de muitas das obras deste compositor. A música é toda “a capela”, isso é, para vozes humanas sem o concurso de instrumentos musicais. A linguagem está enquadrada dentro da já citada polifonia imitativa, sendo percorrida por temas musicais que aparecem imitados nas diversas vozes. Como ocorre freqüentemente nas chansons, além de serem distinguíveis temas particulares que separam por contraste as várias seções, ocorrem tambémcadências muito nítidas ao final de cada uma delas, o que facilita a delimitação das várias seções. Já vimos que este traço – a delimitação mais ou menos clara de seções internas – é muito característico da concepção artística do Renascimento, manifestando-se também nas artes visuais do período.

A estrutura musical deLe Chant des Oiseaux pode ser explicitada pelo esquema formal abaixo:

Note-se, a partir do esquema bastante simples proposto acima, que a música é dividida em múltiplas seções, cada qual representada por uma letra, sendo que as seções ímpares são similares musicalmente e por isso foram representadas pela mesma letra A. Por outro lado, as seções pares são distintas não só das seções do tipo A como também entre si, e por este motivo foram representadas por letras distintas (B, C, D, etc....). Em uma obra musical, as partes internas vão obviamente se sucedendo no tempo, uma depois da outra e assim sucessivamente, de modo que

neste caso o ouvinte escuta a parte A, logo depois a parte B, volta a escutar a parte A, escuta a parte C, e assim por diante. Aliás, uma diferença entre a obra musical e a pintura é precisamente a de que, na Música, ocorre a passagem da forma através do tempo – como se uma história estivesse sendo contada através de sons – enquanto na pintura a forma é toda exposta de uma única vez para aquele que observa um quadro. Vale dizer, neste último caso as partes ou seções da obra são regiões do espaço pictórico que, por um motivo ou outro, se destacam das outras regiões (ou tematicamente, ou por um efeito de sombra e luz, o por um predomínio de certa cor, ou através de recursos vários de perspectiva, ou mesmo em virtude de sub-campos temáticos gerados pelas figuras representadas). Já na música, as partes se sucedem no tempo e são identificáveis através de mudanças mais ou menos perceptíveis no padrão de sonoridade. A forma musical, poder- se-ia dizer, produz ambientes sonoros distintos que podem ser captados com menor ou maior facilidade pelos ouvintes de música, de acordo com o seu próprio nível de competência auditiva.

A forma musical que aparece no Canto dos Pássaros de Janequin não era incomum na arte renascentista, e mais tarde voltaria a ser freqüente noClassicismo da segunda metade do século XVIII – precisamente um estilo de época que voltaria a apresentar suas formas fundamentadas em contrastes temáticos e seções bem definidas (por oposição à concepção unitária do Barroco, tal como veremos oportunamente). No período Clássico da História da Música, que se celebrizou pela contribuição de três dos maiores compositores da música ocidental – Haydn, Mozart e Beethoven

  • esta forma era especificamente chamada de “forma rondó”, e muito freqüentemente aparecia nos últimos movimentos das sonatas, concertos e sinfonias. Por outro lado, se quisermos evocar um campo musical mais recente onde aparece com bastante freqüência uma forma análoga a esta, podemos remeter também aos “chorinhos” brasileiros, onde também é comum este tipo de forma musical fundado na recorrência alternada de uma seção de música que faz as vezes de refrão musical 9.

A lógica das formas tipo A-B-A-C-A-D-A-E-A é simples: enquanto a unidade da obra é assegurada pela repetição de material musical similar nas seções

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ímpares, as seções pares apresentam material musical sempre novo, com o que se assegura a variedade e ocontraste temático ao longo da música.

NoCanto dos Pássaros, obra musical que se propõe a traduzir musicalmente o canto de vários pássaros através da linguagem vocal polifônica, isto é feito precisamente nas seções pares contrastantes. Em cada uma delas é imitado um pássaro novo, sempre por meio de recursos onomatopéicos e de um diálogo rítmico entre as várias vozes que traz a estas seções um grande dinamismo e uma surpreendente inventividade. Cada uma dessas seções será diferente de todas as outras, como se tivesse a sua cor própria e particular que é obtida a partir de um novo efeito sonoro.

Em contrapartida, as seções ímpares “tipo A” são similares entre si, e correspondem a trechos musicais onde não aparecem efeitos onomatopéicos. Se examinarmos os compassos iniciais da partitura, veremos que a primeira ‘seção A’ – bem como as suas similares – é fundamentada em ummotivo temático inicial. O motivo inicial é entoado pelo contratenor (a segunda voz, considerando como primeira a de registro mais agudo) e já no compasso seguinte este é imediatamente respondido pelo tenor (a voz imediatamente mais grave). Mais adiante (figura 4), na segunda metade do terceiro compasso, é a vez da voz superior, e por fim do baixo no sétimo compasso.

O que dá uma identidade a esta primeira seção da música é precisamente esse tema recorrente, que aparece sucessivamente em cada uma das vozes, embora não necessariamente na mesma altura

(isto é, se na primeira aparição o tema se inicia com a nota “lá”, na segunda aparição, já em outra voz, ele pode se iniciar com a nota “ré”, como de fato ocorre no exemplo). Da mesma forma, também será este mesmo tema que mais adiante, nas demais seções do tipo A, assegurará uma unidade mais ampla à obra, apesar da imensa variedade e multiplicidade introduzidas pelas inventivas seções contrastantes que se ocupam de imitar onomatopeicamente o som de pássaros. Todo o segredo desta forma está portanto em alternar o já conhecido com o inteiramente novo. Eis aí como o compositor francês do século XVI conseguiu assegurar ‘unidade na variedade’.

Este tipo de forma não é de maneira nenhuma o único que ocorre na música renascentista. Muitos motetos do século XVI, para dar um exemplo, são fundamentados em seções inteiramente contrastantes (A-B-C-D-E-F-G, etc.), cada qual baseada em um motivo novo que lhe dá uma identidade própria. Nesses casos, a unidade da obra costuma ser assegurada pela unidade do texto poético, caso se trate demúsica vocal. Essa unitextualidade foi aliás uma conquista paulatina da música renascentista: lentamente apolitextualidade herdada da música medieval, onde por vezes três ou quatro textos distintos se sobrepunham nas diversas vozes, foi dando lugar à utilização de um ‘texto único’ para todas as vozes e seções^10.

É oportuno reconhecer uma diferença formal significativa entre o moteto e achanson do século

Figura 4 - Trecho inicial da partitura deLe Chant des Oiseaux, de Clement Janequin. Cada um dos pentagramas refere-se a uma das quatro vozes que soam simultaneamente nesta obra musical.

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os compositores renascentistas, os compositores classicistas do século XVIII também tendiam a construir suas formas musicais com base no contraste temático, como se partissem primeiro da multiplicidade contrastante para só depois atingir a unidade composicional da obra através da cuidadosa articulação de suas partes internas em formas como a que vimos anteriormente. Renascentistas e classicistas, enfim, tendiam a construir suas formas musicais a partir de idéias musicais distintas, ou pelo menos através de seções de música de algum modo contrastantes.

Diante dessas duas estéticas a ele opostas, e que o ladeiam cronologicamente, o compositor barroco teria sempre algo a objetar – caso pudéssemos imaginar um debate imaginário entre os três estilos. O barroco, defensor de uma estética da unidade, preferiria em todos os casos guardar uma nova idéia musical para a composição seguinte, e continuar construindo a sua peça musical em torno de um único tema a partir do qual toda a composição gravitaria. As composições politemáticas dos clássicos e renascentistas sempre lhe soariam como um desperdício de várias idéias musicais que bem poderiam cada qual gerar a sua própria pela musical, ao invés de se amontoar conflituosamente dentro de uma mesma composição. Ou, antes, talvez lhe ocorresse sarcasticamente que os compositores que precisam abarrotar uma peça de uma pluralidade de temas são aqueles que não se tornaram capazes de desenvolver imaginativamente um mesmo e único tema sem que se perca o interesse da obra.

Já um clássico teria a objetar na música barroca que ela carece daquela “dramaticidade musical” que só pode ser obtida mediante o choque e o contraste de personagens musicais distintos – e às formas unificadas do barroco responderia com formas baseadas em temas contrastantes que se enfrentam musicalmente no decorrer de uma mesma peça (a chamada ‘forma-sonata’ é um exemplo), ou então com formas ternárias mais simplificadas – tipo ABA – onde a seção intermediária é tão contrastante quanto possível em relação às duas seções extremas.

Naturalmente que tal diálogo entre épocas distintas nunca existiu, e não podemos falar disto senão metaforicamente, uma vez que devemos sempre

lembrar que um estilo de época vai como que deslizando para o outro sem que ninguém perceba exatamente como e quando ocorreu a transferência de um padrão estético ou composicional para outro. Voltemos, neste momento, ao período barroco, com suas formas musicais que partem da unidade temática e que somente a partir daí começam a construir a variedade.

Dentre as diversas formas unificadoras do Barroco, poucas conseguiram realizar de maneira tão eficiente o ideal de fazer derivar toda a obra de um elemento fundamental como a FUGA. Essa forma atinge a sua suprema realização na primeira metade do século XVIII com João Sebastião Bach^12.

O mecanismo de construção da FUGA é relativamente simples. Neste caso, teremos mais uma vez aqui o modo de apresentação polifônico, onde a obra musical envolve planos melódicos separados cantados por vozes separadas. Dito de outra forma, teremos aqui várias vozes musicais que, embora soando simultaneamente, conservam certa autonomia. No caso da Fuga, trata-se de umapolifonia imitativa, onde as várias vozes têm umas com as outras uma relação dialogada. Se por exemplo uma voz expõe um motivo ou um tema, uma outra logo a seguir o reproduz em outra altura, com ou sem modificações essenciais.

Além de polifônica imitativa – que também foi o caso do exemplo musical renascentista apresentado no artigo anterior – a Fuga émonotemática; isto é, existe um únicotema que é enunciado logo no início da composição por uma das vozes e que a partir daí vai ser imitado ou desenvolvido de diversas maneiras até o final da peça. Este aspecto monotemático da obra é precisamente o que distingue com maior clareza uma peça musical barroca de uma peça musical renascentista.

Johan Sebastian Bach, seguramente o maior dos compositores barrocos, compôs inúmeras fugas ao longo de sua vida. Podemos dar como exemplo uma das fugas da célebre coletâneaO Cravo Bem Temperado (a ‘Fuga n° 1’). Como toda Fuga (figura 5), veremos aqui uma peça polifônica onde o material temático vai passando sucessivamente de uma a outra voz, de modo que poderemos acompanhar este desenvolvimento através das curvas de apoio acima ou abaixo de cada grupo temático^13. É importante deixar claro que, quando

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deixa de entoar o material temático principal, nem por isso uma determinada voz deixa de soar; ao contrário, ela segue adiante, embora em segundo plano, já que apenas vai fazendo soar notas musicais que não tem mais importância temática e apenas complementam a harmonia e a rítmica da composição.

Na Fuga n° 1, em Dó Maior^14 , o tema ocupa basicamente os dois primeiros compassos; ele soa pela primeira vez na segunda voz e logo a seguir é emitido por cada uma das outras três vozes (primeiro na voz superior, e depois nas duas vozes mais graves). Trata-se no caso de uma fuga a 4 vozes, e o tema é imitado pela voz superior tão logo esta 1ª voz intermediária conclui sua exposição do tema (isto é, no 3° tempo do 2° compasso da partitura) só que em outra altura e outra tonalidade. Somente depois que a voz superior conclui sua exposição do tema, entra em cena uma voz mais grave (a 3ª voz) reexpondo-o mais uma vez. As sucessivas exposições do tema ocorrem sucessivamente. Desde que a Fuga seja tocada por um bom pianista (essa fuga foi composta originalmente para cravo) cada entrada do tema deve ficar muito clara e não se misturar às demais notas musicais que soam juntas. O instrumentista, aliás, deve estar preparado para ressaltar o tema que por vezes está oculto no conjunto de todas as vozes. Seu trabalho principal deve ser exatamente o de ressaltar o tema que vai sendo alternado pelas diversas vozes – e é a partir

desta explicitação da forma que ele pode ser bem sucedido em transmitir um prazer estético ao seu ouvinte. Explicitar cada aparição do tema na voz adequada equivale a contar uma boa estória, a fazer com que o ouvinte perceba muito claramente o que está acontecendo, uma vez que o segredo estético da composição de uma fuga é que ela toda é baseada em um único tema musical.

Um exame atento desta partitura, mas também uma audição acurada, pode mostrar que o tema reaparece ao longo de toda a composição, do início ao fim. Nos momentos em que ele não está soando, via de regra o compositor aproveita para desenvolver um pequeno fragmento musical tirado do próprio tema, seja imitando esse fragmento num habilidoso diálogo entre as diversas vozes, seja modificando-o ligeiramente, invertendo-o, tocando-o de trás para diante, de cima para baixo, ou de tantas maneiras quanto a sua inventividade permitir.

O importante para a nossa presente discussão é que, a partir de uma única idéia musical, o compositor consegue aqui fazer derivar a composição inteira. Ele consegue realizar nesse tipo de forma musical a busca barroca de uma unidade quase absoluta, e não é à toa que as formas fugatas adquiriram tanta popularidade entre alguns compositores barrocos.

A Fuga não é a única forma musical que um compositor barroco tinham à sua disposição para

Figura 5 - Trecho inicial da partitura da Fuga n° 1, do “Cravo Bem Temperado” de Johan Sebastian Bach.

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assim dizer, como elementos indissociáveis da composição, amalgamados na unidade da obra. Também na Música, o jogo de tonalidades que se opõem e sucedem uma à outra fazem parte de um mesmo movimento, o contraste timbrístico e de densidades instrumentais é parte de um mesmo movimento unidirecional para a frente, a se perder no tempo da música que, não fosse isso impossível, poderia não se acabar nunca. Os efeitos de espaço infinito, aberto e capaz de extravasar para fora, assegurados tanto pelos pintores como pelos arquitetos barrocos, são os correspondentes desta música que poderia não se acabar nunca.

Ao contrário disto, os contrastes na música e na arte renascentista (e também na música e na arte do neoclassicismo iluminista) estabelecessem-se a partir de lugares distintos. Uma seção musical contrasta com a outra, cada qual com seu lugar muito bem definido no interior da organização musical, da mesma forma que, na pintura renascentista, os vários ambientes se opõem uns aos outros sem se misturarem, cada qual conservando a sua identidade, o seu delineamento e a sua luz própria. Os contrastes renascentistas não se constituem em amálgama, não se estabelecem como tensões no interior de um mesmo ser. Cada seção que contrasta com a outra, na música ou na pintura renascentista, faz isso de seu lugar próprio e específico no interior da obra, como se tivéssemos não um único ser submetido a intensos contrastes (como no Barroco), e sim vários seres que se contrastam uns com os outros no interior de um mesmo eco-sistema. A pluralidade, enfim, é a base da obra de arte renascentista, da mesma forma que a unidade (embora uma unidade que traz os contrastes para dentro de si) é o ponto de partida da obra de arte barroca. Seria talvez possível dizer que, do ponto de vista semiótico, Renascimento e Barroco abordam de maneira distinta os seus pares de contrastes. Enquanto no Renascimento teríamos uma oposição por contrariedade (dois contrários que não se misturam), no Barroco teríamos oposições por contraditoriedades (pólos que interferem um sobre o outro, que são gestados um do outro, e resolvidos dialeticamente em uma unidade maior). Eis aqui dos padrões estéticos que se distinguem perfeitamente, e que marcam tão claramente a sua distância como o “apolíneo” e o “dionisíaco” na filosofia nietzscheniana (Nietzsche, 1872).

A propósito da dicotomia entre o apolíneo e o dionisíaco, poderíamos remeter a estética renascentista a um predomínio de Apolo, o harmonizador dos contrários, e a estética do Barroco a um predomínio de Dionísios, o deus queincorpora os contrários, que se dilacera por dentro mas reatualiza a unidade em um eterno devir. O mergulho dionisíaco, aliás, corresponde à perda da individualização (lembremos que a estética renascentista individualiza explicitamente os seus temas e seções internas, dotando-as de uma luz própria e de contornos muito precisos, que posicionam os diversos temas em uma separação por contrariedade). O dionisíaco, ademais, corresponde à perda de si mesmo (e que metáfora seria mais apropriada para a perda de si mesmo do que a forma “fuga”, onde um mesmo tema perde- se a cada instante em um passado musical que fica para trás para, em seguida, renascer em uma nova versão em meio ao devir da grande unidade composicional?)^16.

A estética barroca tem algo de dionisíaco no sentido de que, já o vimos, é tributária do devir, do movimento, da impulsão para a frente, do eterno trânsito rumo ao infinito das formas abertas. O tema que se impulsiona para a frente na Música Barroca, recria-se e reatualiza-se necessariamente através de novas tonalidades e alturas, de novas versões do mesmo tema (a recriação de um tema musical na sua forma inversa, retrógrada ou retrógrada-inversa, como se o compositor estivesse utilizando tipos diferentes de espelhos, era bastante comum na polifonia barroca). Podem ser citados ainda, como recursos adicionais que se incorporam à Estética do Movimento proposta pela Música Barroca, o uso da técnica do ‘baixo contínuo’, que através de um instrumento que dita a base da harmonia e do movimento rítmico ajuda a impulsionar a música para diante. Da mesma forma, não é por acaso que a ‘modulação’ (passagem de uma tonalidade a outra) adquire um desenvolvimento extraordinário no período barroco, sendo oportuno observar que a modulação em uma música barroca é utilizada para também impulsionar a música para diante (ao contrário do que ocorre com o uso da modulação no estilo clássico do século XVIII, que atende ao interesse de criar zonas de contraste harmônico para os diferentes temas musicais, cada qual com a sua cor musical específica).

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Percebe-se, aqui, que a Música Barroca não se encontra de nenhum modo em desacordo com relação à Literatura Barroca, esta que vai buscar na antítese uma de suas figuras e estratégias retóricas preferidas, e nem em relação à Escultura Barroca, que lida habitualmente com tensionamentos diversos. Na Música Barroca, se quisermos ir mais além, teremos, para a realização deste jogo de tensões sob o fundo temático unificado, aspectos específicos que vão desde o já mencionado contraste de densidades sonoras diversificadas (o estilo concertato) até o jogo contrastante de dinâmicas alternando o ‘piano’ e o ‘forte’ (uma dinâmica em degraus, ao invés da dinâmica em gradações que seria tão típica do período clássico). Na pintura barroca, da mesma forma, é por demais evidente o jogo que se estabelece visualmente entre o claro e escuro.

Por fim, ainda com relação a esta mesma questão da “multiplicidade”, que apontamos constituir o ponto de partida do modo de criação típico dos artistas renascentistas (evoluindo a partir daí para a unidade), é preciso ressaltar a singular relação que também existe entre os artistas barrocos e a multiplicidade, mas de um outro modo. Tal como assinala Germain Bazin, grande estudioso do Barroco, o que interessava ao artista barroco era atingir a apreensão e compreensão da multiplicidade dos fenômenos (BAZIN, 1994, p.2), mas, acrescentemos desde já, isto se dava de uma maneira bastante específica: tratava- se de integrar esta multiplicidade em um todo compreensivo – ou, melhor dizendo, parte-se aqui deste todo, desta luz unidirecional que a tudo traspassa, para em seguida atingir a multiplicidade dos fenômenos, envolvendo e adornando a cada um deles de modo especial. Trata-se então, para o caso da arte barroca e da arte renascentista, de duas maneiras distintas de tratar a multiplicidade.

Renascimento e Barroco, enfim – ao menos quando consideramos o padrão de excelência predominante em cada um destes estilos de época – marcam muito claramente o seu mútuo distanciamento estético, embora na verdade o segundo estilo tenha surgido do primeiro ao mesmo tempo em que as sociedades renascentistas deslizavam historicamente para o universo social e político das sociedades barrocas que já se encontram consolidadas em diversas partes da Europa no século XVII.

Os exemplos que estudamos neste ensaio mostram que é possível, enfim, estabelecer um paralelo entre as formas musicais e as estratégias de representação pictórica relacionadas a um mesmo período da História da Arte e da Música, o que pudemos verificar ser especialmente verdadeiro tanto para o período renascentista como para o período barroco. A uma estética que parte da variedade para atingir a unidade – tal como vemos na música e na pintura renascentista

  • podemos contrastar uma outra estética típica da música e da pintura barroca, onde se parte da unidade para a partir daí atingir a variedade.

É esta unidade de elementos definidores de uma mesma estética – de uma certa ordem ou maneira de conceber a obra de arte – que permite que falemos em “estilos de época” para vários momentos da História da Arte e da Música no Ocidente. Por outro lado, embora este assunto não vá ser desenvolvido aqui, o século XX traria como grande novidade ao padrão de desenvolvimento da História da Arte precisamente o rompimento em relação à unidade dos “estilos de época”. Já não encontraremos mais, seja na Pintura ou na Música do século XX em diante, um único grande estilo definidor de uma época, e por esta razão, para estes períodos mais contemporâneos, costumamos falar em “correntes estéticas” diferenciadas que convivem umas com as outras no interior de um mesmo grande período. O Cubismo, o Fauvismo, o Expressionismo, o Abstracionismo e outras “correntes estéticas” da pintura são movimentos contemporâneos, que se dão simultaneamente em uma mesma época. Da mesma forma, o Atonalismo, o Neoclassicismo contemporâneo, os Nacionalismos, e outras tantas correntes que enveredam para experiências musicais ainda mais radicais como o Microtonalismo e a Música Concreta, constituem todos a variedade de correntes musicais que começam a aparecer na música erudita do novo século.

De qualquer modo, para os períodos mais recuados da História da Arte – precisamente aqueles em que podemos identificar os chamados “estilos de época” – a utilização de conceitos como os elaborados por Heinrich Wölfflin para a análise pictórica mostra-se particularmente eficaz, desde que tenhamos plena consciência de seus limites. Podemos da mesma forma relacioná-los

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  1. REMBRANDT, Harmenszoon van Rijn.Ronda Noturna, 1642. ost. Amsterdam: Rijksmuseum.
  2. As diferenças entre a Música Renascentista e a Música Barroca tem sido tratadas por diversos autores. Para uma aproximação inicial, ver MOORE, Douglas.Guia dos estilos musicais. Lisboa: Edições 70, 1990. Para aspectos relacionados à interpretação musical, ver DART, Thurston.Interpretação da Música. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
  3. O modo de apresentação que em Música é denominado ‘polifonia’ – e que corresponde a várias vozes soando simultaneamente como melodias a serem percebidas dentro de sua identidade própria – pode ser contrastado com o modo de apresentação musical que denominamos ‘homofonia’. Na Homofonia, tem-se uma melodia principal, geralmente na parte aguda, e um plano de acompanhamento em acordes que estabelece uma ambiência harmônica. / Sobre o desenvolvimento da polifonia na História da Música Ocidental, ver BOULEZ, Pierre.Apontamentos de aprendiz. São Paulo: Perspectiva, 1995, p.263-
  4. Para uma compreensão acerca dos processos que permitiram que a Homofonia surgisse como conseqüência do posterior surgimento de uma linguagem harmônica na Polifonia Renascentista, ver WEBERN, Anton. Caminho para a Música Nova. São Paulo: Novas Metas, 1984.
  5. Recomenda-se, para uma audição da música selecionada como exemplo, a interpretação gravada pelo Ensemble Clément Janequin em 1963 [JANEQUIN, Clément.Le Chant des Oyseaux. Paris : Harmonia Mundi, 1963. Ensemble Clément Janequin, HMC 901099. [CD-Rom]]. Referência da partitura: JANEQUIN, Clément. Le Chant des Oyseaux. [Paris : 1528]. New York : Broude Brothers, 1980.
  6. Como exemplo de utilização da forma tipo rondó na música popular brasileira, pode ser examinado o célebre chorinhoOdeon, de Ernesto Nazareth, que é construído com uma forma que pode ser esquematizada em cinco seções: A-B-A-C-A.
  7. Não era incomum nos motetos medievais a superposição de textos em línguas distintas e com temáticas diversificadas. Por exemplo, podia-se ter no baixo uma melodia de apoio que correspondia a um canto gregoriano em latim,

apresentando temática sacra, e em uma voz mais aguda um texto em francês com conteúdo amoroso ou erótico. Sobre o moteto medieval, ver BENT, Margaret. “The Medieval Motet.” In Tess Knighton and David Fallows (orgs.). Companion to Medieval and Renaissance Music. New York: Schirmer Books and Maxwell Macmillan International, 1992. 114-19.

  1. O moteto, de um lado, e o madrigal italiano e a chanson francesa, de outro, são gêneros muito aproximados no que se refere ao modo de apresentação musical, sempre uma polifonia vocal. Com relação à natureza do conteúdo poético que estes gêneros musicais encaminham, pode-se dizer que o moteto – pelo menos a partir do período renascentista – é sempre um gênero sacro, enquanto o madrigal ou a chanson constituem gêneros profanos. Com relação à forma musical, há diferenças sutis, como as que já foram mencionadas. Para um aprofundamento relacionado a estes genros da música renascentista, ver KIEFER, Bruno.História e significado das formas musicais. Porto Alegre: Editora Movimento, 1990.
  2. Para um estudo mais aprofundado da Fuga na obra de J. S. Bach, ver MAGALHÃES, Homero. Bach – prelúdios e fugas I. São Paulo: Novas Metas, 1988.
  3. Apesar da técnica análoga no que se refere à polifonia imitativa, há uma distinção formal importante entre as formas fugatas do barroco e o mero uso da polifonia imitativa na Música Renascentista mais típica. Conforme vimos no exemplo anterior, a unidade temática da música renascentista dá-se apenas no interior de cada seção, que a partir daí contrasta com as demais. Na polifonia barroca, um mesmo tema dita a unidade composicional da obra inteira.
  4. Partitura: BACH, Johan Sebastian.Fuga nْ 1 do “Cravo Bem Temperado – livro 1” [Leipzig: 1720]. Munich: Urtex, 2000; CD-Rom: BACH, Johan Sebastian.The Well Tempered Clavier – Book 1. pianista: José Carlos Martins. Claremont (Califórnia): Concord, 1981.
  5. Também Deleuze assim se expressa com relação a esta amálgama de tensões que, no Barroco, relacionam corpo e alma: “No Barroco, a alma tem com o corpo uma relação complexa:

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sempre inseparável do corpo, ela encontra nele uma animalidade que a atordoa, que a trava nas redobras da matéria, mas nele encontra também uma humanidade orgânica ou cerebral (o grau de desenvolvimento) que lhe permite elevar-se e que a fará ascender a dobras totalmente distintas” (DELEUZE, Gilles.A dobra: Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991, p.26). As tensões entre corpo e alma, enfim, dão-se literalmente no mesmo lugar, e cada um destes pólos de tensionamento informa o outro. A oposição de elementos no Barroco, ousaríamos dizer, dá-se por contraditoriedade, e não como uma oposição de contrários como ocorre com o Renascimento.

  1. Na verdade, as obras de arte, como a própria vida, de acordo com a filosofia nietzscheniana, são produzidas pela dialética do apolíneo e do dionisíaco. Cada obra de arte, grosso modo, elabora dentro de si, em alguma medida, os dois princípios. Para retomar as palavras de Nietzsche acerca da Origem da Tragédia: “... A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio, vincula-se a nossa cognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição, quanto a origens e objetivos, entre a arte do figurador plástico, a apolínea, e a arte não-figurada da música, a de Dionísio: ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum “arte” lançava apenas aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um miraculoso ato metafísico da “vontade” helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática...” (NIETZSCHE, Friedrich.O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.72).
  2. Os avanços científicos que já começam a ser impressos pelo Renascimento e a abrir novos horizontes começam precisamente a se entrechocar com o mundo da forma fechada, dos espaços compartimentados como os que vimos nas formas pictóricas e musicais da arte renascentista.

REFERÊNCIAS

Visuais e sonoras

BACH, Johan Sebastian. Fuga n ْ 1 do “Cravo Bem Temperado – livro 1” [Leipzig: 1720]. Munich: Urtex, 2000; CD-Rom: BACH, Johan Sebastian. The Well Tempered Clavier – Book 1. pianista: José Carlos Martins. Claremont (Califórnia): Concord, 1981

JANEQUIN, Clément. Le Chant des Oyseaux. Paris : Harmonia Mundi, 1963. Ensemble Clément Janequin, HMC 901099. [CD-Rom]

JANEQUIN, Clément. Le Chant des Oyseaux. [Paris : 1528]. New York : Broude Brothers, 1980

RUBENS, Petrus Paulus. O Rapto das filhas de Leucipo, 1618. ost. 222 x 219 cm. Munich: Alte Pinokothek

REMBRANDT, Harmenszoon van Rijn. Ronda Noturna, 1642. ost. Amsterdam: Rijksmuseum.

Bibliográficas

BENT, Margaret. “The Medieval Motet.” In Tess Knighton and David Fallows (orgs.). Companion to Medieval and Renaissance Music. New York: Schirmer Books and Maxwell Macmillan International, 1992. 114-

BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz. São Paulo: Perspectiva, 1995, p.263-270.

DART, Thurston. Interpretação da Música. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991.

KIEFER, Bruno. História e significado das formas musicais. Porto Alegre: Editora Movimento, 1990

MAGALHÃES, Homero. Bach – prelúdios e fugas I. São Paulo: Novas Metas, 1988

MOORE, Douglas. Guia dos estilos musicais. Lisboa: Edições 70, 1990.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1996