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Neste texto, sonia borges explora a definição surpreendente de lacan sobre a interpretação, que a coloca como um 'ready-made', inspirada na obra de marcel duchamp. A autora discute como essa perspectiva radicaliza a crítica de lacan à interpretação hermeneutica e ratifica o equívoco como seu paradigma. Além disso, ela examina como essa ideia se relaciona à arte contemporânea e às obras de duchamp.
Tipologia: Notas de estudo
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Como referência para desenvolver este trabalho, tomei a surpreendente defini- ção da interpretação analítica proposta por Lacan, em 1974, em Roma, na con- ferência A terceira. Diante de uma grande plateia, para assombro de todos, ao desenvolver o tema da interpretação do sintoma, Lacan (1974/2005, p. 58) faz a seguinte afirmação:
A interpretação deve ser sempre o ready-made, Marcel Duchamp, que ao me- nos vocês ouçam disso alguma coisa, o essencial que há no jogo de palavras, é isso que a nossa interpretação deve visar para não ser aquela que alimenta o sentido do sintoma.
Com esta provocação, Lacan não só radicaliza a sua crítica à concepção her- menêutica de interpretação, como ratifica a ideia do equívoco como o seu pa- radigma: tal qual o ready-made, a interpretação deve apontar para os limites da representação ou da linguagem, para o impossível de se dizer a coisa, para o real. Mas, o que é o ready-made, modelo para a interpretação? Segundo Pierre Ca- bane (2008), um dos mais importantes críticos da obra de Duchamp, este objeto- -arte pode ser pensado como “uma janela para alguma outra coisa”. Não seria esta a função da interpretação? Lacan diz de passagem que, embora o relacionem principalmente aos surrea- listas, considera-se próximo do dadaísmo. O dadaísmo nasceu por volta de 1916 e congregou artistas plásticos, poetas e músicos que se rebelavam contra as ideias burguesas existenciais e estéticas então vigentes. Para isso, tinham como arma criações artísticas que veiculavam suas ideias pela via da ironia, da piada, do tro- cadilho, ou melhor ainda, do non-sense.
BORGES, Sonia
Parada amorosa. (1915). Coleção Particular.
Da Dandy (1913). Coleção Particular.
BORGES, Sonia
O Mictório, ou “Fonte”, título que já produz equívoco, a Roda de Bicicleta, o “Porta-Garrafa”, o pé “Tortura-Morte”; assim como muitas outras de suas cria- ções, quando expostas em um dos principais museus de Nova York, provocaram uma subversão no campo das artes, cuja repercussão se estende até hoje, inclusive no que tange à crítica de arte. Isto certamente se deve à prodigiosa repercussão de seus efeitos coerentes com os objetivos do dadaísmo, a saber, a crítica ao que Duchamp chamou de “arte retiniana”, ou arte representacional, arte produzida conforme o modelo, então vigente, fundado na aliança entre arte, representação e racionalismo. É esta subversão provocada por Duchamp no campo das artes o alvo de certa crítica que preconiza que suas obras, e a arte contemporânea de um modo geral, nem mesmo devam ser reconhecidas como arte. Duchamp, talvez pela radica- lização de seu trabalho, vem sendo o mais atingido. No Brasil, intelectuais re- conhecidos como Ferreira Gullar e Afonso Romano de Sant’Ana, entre outros, tecem constantes críticas a essa arte, mostrando verdadeira indignação diante do trabalho de Duchamp e de outros artistas, mobilizados, talvez, pelo amplo movimento e sucesso, inclusive internacional, da arte contemporânea brasilei- ra. Em seu livro Desconstruir Duchamp, Afonso Romano (2003, p. 116) afirma: “Passou-se a aceitar como arte tudo aquilo que o artista apresenta como obra de arte. Passou a valer a assinatura, a intenção. Daí o silogismo perverso: se tudo é arte, então nada é arte”. Como se pode observar, é justamente o que preconizavam os dadaístas, o que está no foco dessas críticas: o seu rompimento com a ideia clássica de arte como representação, que se expressa muito bem no dito de um deles, Richard Huel- senbek: “O bom é que não se consegue, e provavelmente não se deve entender o Dadá” (DEMPSAY, p. 157). A posição apaixonada destes críticos não viria da velha resistência ao descon- forto inegável que qualquer representação que rompa a relação biunívoca entre significante e significado nos traz? O que estaria em questão não seria a busca ansiosa pela possibilidade de interpretação que mata a riqueza polissêmica e am- bígua de nossas representações, palavras e imagens? Lacan vai na contramão desta posição. Refere-se ao ready-made, na Terceira (op. cit., p. 59), para recomendar ao analista que interprete “jogando com as pa- lavras”, ou seja, de uma forma provocativa que rompa com significados estáveis, que seja capaz de despertar o que o uso corrente do discurso ordinário adormece, evitando-se, assim, engordar o sintoma com significados (p. 94). Para Lacan, em última análise, trata-se de se ir além do deciframento dos significantes primor- diais que instituíram o sujeito, retendo-o na posição de sofrimento. Deciframento que, no entanto, não está descartado na direção das análises, como procedimento
Quem tem medo do ready-made? Psicanálise, interpretação e arte contemporânea
que leva o sujeito a aceder a tais significantes que mostram a sua alienação ao dito, ou à demanda do Outro. Em A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan (1958/2005, p. 640) afirma: “é de uma fala que suspenda a marca que o sujeito recebe do seu dito, e apenas dela, que poderia ser obtida a absolvição que devolveria seu desejo”. Assim sendo, pode-se perguntar: o que se faz, então, em uma análise? Decifra- -se, ou se cria a partir do que já está ali? As duas coisas, certamente, pode-se res- ponder. Decifrando-se, tem-se os efeitos de desalienação que, justamente, abrem as possibilidades para o processo criativo que se pode experimentar no trabalho analítico além do deciframento. Além do deciframento, porque esse é o ponto em que o significante não mais representa o sujeito para outro significante, mas o apresenta pela via de uma modalidade pulsional, a letra. Ponto ignorado pela ciência, já que para se fazer exige a transgressão de que só o fazer poético é capaz. O poético, que tomamos aqui no sentido grego do termo que, em uma de suas acepções, remete à criação, àquilo que se opõe à theoria enquanto contemplação, e à práxis como ação. É com a poesia que Lacan, sobretudo a partir de 1970, esclarece o que é o ato analítico, ressaltando que “a língua é fruto de uma maturação, de um amadureci- mento de alguma coisa que se cristaliza no uso; já a poesia releva de uma violência feita a este uso” (LACAN, 1976-1977/2005, lição de 15/03/1977). A poesia, assim como toda arte, subsiste dessa violência que provoca na língua e, consequente- mente, na cultura, transmutando o impossível em contingência. Quando Lacan recomenda que a interpretação produzida pelo ato analítico tenha efeito de equí- voco, assim como o ready-made o tem sobre os espectadores nos museus, e até sobre os críticos, aponta para o seu necessário efeito de transgressão, travessia, de ato no sentido estrito:
[...] enquanto está escrita, a obra [aqui Lacan se refere à escrita literária] não imita o efeito do inconsciente. Ela coloca dele o equivalente, não menos real que ele, por forjá-lo em sua inflexão (LACAN, 1977, apud LEITE, 2011, p. 37).
Estaria neste ponto – no ponto de violência da poesia e de toda arte – a cone- xão que permite a homologia, feita por Lacan, entre a interpretação analítica e o ready-made? No entanto, sabemos que há também controvérsias e desconforto no campo da psicanálise diante da radicalidade dessa orientação lacaniana quanto à interpre- tação. Desconforto que advém por também se estar apontando, seja com a palavra que equivoca, que faz enigma, seja com o semidizer ou com o corte em sessões curtas, para os limites da linguagem que proíbem a assimilação entre interpre-
Quem tem medo do ready-made? Psicanálise, interpretação e arte contemporânea
p. 154) falava da “benevolência do chiste: as palavras são um material plástico, afirma, com o que se pode fazer qualquer coisa”. Para Lacan, “O que se diz a partir do inconsciente participa do equívoco, do equívoco que está na base do chiste” (LACAN, 1976-1977/2005, lição de 11/08/1976). O fazer poético, o chiste e a interpretação têm em comum ser expressão da função poética da linguagem, portanto têm a mesma estrutura, que os faz aptos à criação, à ficção e à produção de semblantes. Os ready-mades, pode-se dizer, já estavam na casa de muita gente, mas Duchamp os retira, os descontextualiza, e os mostra como invenção ficcional e, ao se tornarem invenção ficcional, indicam que são semblante de algo que está e não está lá. Sua pretensão era de nenhuma representação, e a coisa pura, a roda da bicicleta, se torna arte. Está se falando de semblantes, de ficção, e estes devem ser tomados no sentido que Lacan indica: a verdade tem estrutura de ficção. A verdade é uma montagem, semblante. Esta orientação teórico-clínica de Lacan implica privar o sintoma de sentido, mas ainda é sobre o sintoma que se opera, mas para reduzi-lo. Por isso a neces- sidade de distinguir a perspectiva semântica, da assemântica da interpretação. A pontuação, por exemplo, ao realçar um significante, produz uma significação, diferentemente do equívoco que interrompe o movimento concernente ao sentido do sintoma, e reconduz o sujeito ao sem sentido do real, à opacidade do seu gozo e à perplexidade. Para terminar, acho importante ressaltar que esta manipulação por Lacan dos efeitos linguageiros, ou dos jogos fono-semânticos que propõe como modelo para a interpretação, não tem como meta efeitos estéticos. Com Haroldo de Campos (2001, p. 116), em seu belo ensaio O poeta e o psicanalista: algumas invenções lin- guísticas de Lacan, é possível dizer que:
Lacan está pensando em situar o inconsciente (...) não pela via destra e mestra do significado, mas pela via canhestra e sinistra do significante; não por uma via prevista e insuspeita do acesso, mas, por um desvio imprevisto (...) insuspeito do insucesso.
BORGES, Sonia
referências bibliográficas
BRETON. A. Le phare de la mariée. In: Revista Minotaure. Paris, n. 6, 1934, p.136-
CAMPOS, A. O poeta e o psicanalista. In: A invenção da vida: arte e análise. Por- to Alegre: Artes e Ofícios, 2001, p. 126-135. CABANE, P. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo, Perspec- tiva, 2008. 205p. COCCHIARALE, F. Quem tem medo da arte contemporânea? Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2006, 77p. DEMPSEY, A. Estilos, escolas e movimentos. São Paulo: Cosac Naify, 2003. 330p. FREUD, S. (1905) Os chistes e sua relação com o inconsciente. Tradução sob a dire- ção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969. (Edição Standard Brasilei- ra das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 8, 154p.) LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1985, 269p. _________. (1958). A direção do tratamento. In: LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 591-652. _________. A terceira. (1974). Texto inédito. Tradução para uso interno, FCCL/ Rio de Janeiro, 2005. 41p. _________. L’insu – que – sait de l’une bévue s’aile a mourre. (1976-1977). Semi- nário inédito. LEITE, N. entreAto – Apresentação. In: MILÁN-RAMOS, J. e LEITE (orgs.). en- treAto – o poético e o analítico. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2011. p. 11-20. SALSANO, R. O fracasso do equívoco é o amor. In: MILÁN-RAMOS, J. e LEI- TE, N. (orgs.). entreAto – o poético e o analítico. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2011, p. 53-58.