Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Religião Primítiva: Medo, Impureza e Hierarquias Sociais, Notas de estudo de Religião

Neste documento, durkheim discute as religiões primitivas, distinguindo-as por dois aspectos: a inspiração pelo medo e a interconexão com notições de impureza e higiene. Ele argumenta que as religiões primitivas são expressões da consciência coletiva e que as crenças em poderes espirituais são ligadas às instituições sociais. O autor também examina a ideia de magia primitiva e a distinção entre poderes espirituais interiores e exteriores.

O que você vai aprender

  • Como as religiões primitivas estavam interconexas com as noções de impureza e higiene?
  • Como as crenças em poderes espirituais estão ligadas às instituições sociais?
  • Qual é a definição dada por Durkheim às religiões primitivas?
  • Quais são os dois tipos de poderes espirituais discutidos no texto?
  • Por que as religiões primitivas eram inspiradas pelo medo?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

A_Santos
A_Santos 🇧🇷

4.4

(111)

214 documentos

1 / 136

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
1
PUREZA E PERIGO
ENSAIO SOBRE A NOÇÃO DE POLUIÇÃO E TABU
MARY DOUGLAS
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a
pf1b
pf1c
pf1d
pf1e
pf1f
pf20
pf21
pf22
pf23
pf24
pf25
pf26
pf27
pf28
pf29
pf2a
pf2b
pf2c
pf2d
pf2e
pf2f
pf30
pf31
pf32
pf33
pf34
pf35
pf36
pf37
pf38
pf39
pf3a
pf3b
pf3c
pf3d
pf3e
pf3f
pf40
pf41
pf42
pf43
pf44
pf45
pf46
pf47
pf48
pf49
pf4a
pf4b
pf4c
pf4d
pf4e
pf4f
pf50
pf51
pf52
pf53
pf54
pf55
pf56
pf57
pf58
pf59
pf5a
pf5b
pf5c
pf5d
pf5e
pf5f
pf60
pf61
pf62
pf63
pf64

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Religião Primítiva: Medo, Impureza e Hierarquias Sociais e outras Notas de estudo em PDF para Religião, somente na Docsity!

PUREZA E PERIGO

ENSAIO SOBRE A NOÇÃO DE POLUIÇÃO E TABU

MARY DOUGLAS

Esta colecção visa essencialmente o estudo da evolução do homem sob os aspectos mais genericamente antropológicos — isto é, a visão do homem como um ser que se destacou do conjunto da natureza, que soube modelar-se a si próprio, que foi capaz de criar técnicas e artes, sociedades e culturas.

AGRADECIMENTOS

O meu interesse pelas atitudes humanas face à poluição deve-se ao Professor Srinivas e ao falecido Franz Steiner. Estes dois homens, um brâmane o outro judeu, tentaram ao longo da sua vida abordar os problemas de pureza ritual. Estou-lhes grata por me terem sensibilizado para os sinais de separação, de classificação e de pureza. Encontrei- me depois a fazer trabalho de campo junto de um povo congolês extremamente preocupado com a idéia de poluição e aí foi então que descobri em mim própria uma reserva face a explicações parciais. Considero parciais quaisquer explicações da poluição ritual que se limitem a um só tipo de impureza ou a um só contexto. Devo muito à origem desta reserva que me obrigou a abordar o problema de maneira sistemática: nenhum conjunto particular de símbolos classificatórios pode ser entendido igualmente; para os compreender, há que relacioná-los com a estrutura total de classificações da cultura em questão. O método estrutural tem sido muito propagado desde o princípio deste século, particularmente graças à influência da Psicologia da Forma, mas só me influenciou por intermédio do Professor Evans-Pritchard e da sua análise do sistema político dos Nuer (1940). O lugar desta obra na antropologia corresponde à invenção do chassis monobloco na história do design automóvel. Quando o chassis e a carroçaria do automóvel se desenhavam separadamente, a sua união fazia-se numa estrutura metálica. Do mesmo modo, a teoria política costumava ver nos órgãos de governo central a estrutura da análise social: as instituições sociais e políticas eram consideradas separadamente. Os antropólogos satisfaziam-se descrevendo os sistemas políticos primitivos através do inventário dos seus títulos oficiais e das suas assembléias. Se não existia um governo central, a análise política era considerada irrelevante. Nos anos 30, os desenhadores de automóveis descobriram que poderiam eliminar a estrutura metálica central se considerassem todo o automóvel como uma só unidade. Hoje é o próprio corpo do automóvel que suporta as tensões dantes suportadas pela estrutura. Mais ou menos na mesma altura, Evans-Pritchard descobriu que poderia fazer a análise política de um sistema em que não existissem órgãos centrais de governo e em que o peso da autoridade e as tensões inerentes ao funcionamento do sistema político estivessem dispersos pela estrutura política global. O ponto de vista estrutural pairava já sobre a antropologia antes de Lévi-Strauss ser incitado pela lingüística estrutural a aplicá-lo aos sistemas de parentesco e à mitologia. Daí que qualquer pessoa lidando com rituais de poluição procure, hoje em dia, perceber as idéias de pureza dum povo como parte de um todo mais vasto. A minha outra fonte de inspiração tem sido o meu marido. Em matéria de pureza, o seu limiar de tolerância é ainda mais baixo que o meu. Esse exemplo levou-me a tomar uma posição sobre a relatividade da impureza. Os meus agradecimentos vão para aqueles, numerosos, que criticaram e discutiram comigo vários capítulos desta obra, particularmente para a Bellarmine Society do Heythrop College, Robin Horton, Padre Louis de Sousberghe, Dra. Shifra Strizower, Dra. Cecily de Monchaux, Professor Victor Turner e Dr. David Pole. Alguns tiveram a amabilidade de ler a primeira versão de capítulos específicos e de os comentar: o Dr. G. A. Wells o Capítulo I, o Professor Maurice Freeman o Capítulo IV, o Dr. Edmund Leach, o

dr. Ioan Lewis e o Professor Ernest Gellner o Capítulo V, a Dra. Mervyn Meggit e o Dr. James Woodburn o Capítulo IX. Estou particularmente agradecido ao Professor S. Stein, Director do Departamento de Estudos Hebraicos no University College, que pacientemente corrigiu uma primeira versão do Capítulo III. Não tendo visto a versão definitiva, ele não é responsavel por erros posteriormente cometidos na interpretação da Bíblia. O Professor Daryll Forde, que leu várias vezes versões anteriores desta obra, também não é responsável pelo resultado final. Estou-lhe especialmente agradecida pelas suas críticas. Esta obra representa um ponto de vista pessoal, controverso e muitas vezes prematuro. Espero que os especialistas em cujos ramos de saber a minha argumentação se intrometeu desculpem a ousadia, porque este é um daqueles assuntos que até agora têm sofrido por serem abordados, demasiado estreitamente, numa só disciplina. M. D.

ofensa contra a ordem. Eliminando-a, não fazemos um gesto negativo; pelo contrário, esforçamo-nos positivamente por organizar o nosso meio. Pessoalmente, tolero bem a desordem. Mas lembro-me de como me senti tensa num certo quarto de banho que, embora estivesse sempre impecavelmente limpo de impurezas, fora improvisado numa velha casa, num espaço criado pelo simples recurso a uma porta colocada no fim e no princípio de um corredor, entre duas escadarias. A decoração do corredor permanecera inalterada: o retrato gravado de Vinogradoff, os livros, os utensílios de jardinagem, a fila de botas de borracha. Enquanto corredor, este lugar tinha um sentido que perdia com a sua transformação em quarto de banho. Eu, que raramente sinto a necessidade de impor uma idéia à realidade exterior, começava enfim a compreender as atitudes de amigos mais susceptíveis. Indo à caça das impurezas, cobrindo esta superfície de papel, decorando aquela, arrumando, não somos movidos pela ansiedade de escapar à doença: reordenamos positivamente o espaço que nos rodeia (o que é um acto positivo), tornamo-lo conforme a uma idéia. Não há aqui nada de temeroso ou de irracional. O gesto que fazemos é criativo, o que tentamos é relacionar a forma e a função, impor uma unidade à experiência. Se é assim com as nossas destrinças, as nossas arrumações e os nossos gestos de purificação, deveríamos interpretar a purificação e a profilaxia primitivas à mesma luz. Tentei demonstrar, nesta obra, que os rituais de pureza e de impureza dão uma certa unidade à nossa experiência. Longe de serem aberrações que afastam os fiéis do fim da religião, são actos essencialmente religiosos. Por meio deles, as estruturas simbólicas são elaboradas e exibidas à luz do dia. No quadro destas estruturas, os elementos díspares são relacionados e as experiências díspares adquirem sentido. As noções de poluição inserem-se na vida social a dois níveis: um largamente funcional, o outro expressivo. No primeiro nível, o mais óbvio, encontramos pessoas tentando influenciar o comportamento umas das outras. As crenças reforçam os constrangimentos sociais: todos os poderes do universo são chamados a garantir a realização do desejo de um velho homem moribundo, a dignidade de uma mãe, os direitos do fraco e do inocente: O poder político é geralmente precário e os chefes primitivos não são uma excepção à regra. As suas legítimas pretensões apóiam-se nas crenças em poderes extraordinários que emanam da sua pessoa, das insígnias da sua função ou das palavras que pronunciam. Do mesmo modo, a ordem ideal da sociedade é mantida graças aos perigos que ameaçam os transgressores. Estes pretensos perigos são uma ameaça que permite a um homem exercer sobre outro um poder de coerção. Mas aquele que o exerce receia também expor-se a eles se acaso se afastar do bom caminho. Estas crenças são uma poderosa linguagem de exortação mútua. A este nível, chamam-se as leis da natureza em socorro do código moral que sancionam: esta doença é causada pelo adultério, aquela pelo incesto; este desastre meteorológico é o efeito de uma deslealdade, aquele o efeito de um acto de impiedade. Sempre que os homens se obrigam uns aos outros à boa cidadania, o universo colabora com eles. Descobre-se assim que certos valores morais são protegidos e certas regras sociais definidas por crenças em contágios perigosos, por exemplo, quando o olhar ou o toque de um adúltero é considerado a causa da enfermidade dos seus vizinhos ou dos seus filhos. Não é difícil perceber a utilidade das crenças relativas à poluição num diálogo em que cada um reivindica ou contesta um dado estatuto na sociedade: mas estudando de perto estas crenças, descobrimos que os contactos que se julgam perigosos também transportam uma carga simbólica. É neste nível, mais interessante, que as noções de poluição se relacionam com a vida social. Creio que algumas poluições servem de

analogias para exprimir uma idéia genérica da ordem social. Existem crenças, por exemplo, segundo as quais cada um dos sexos constitui um perigo para o outro quando entram em contacto por meio dos fluidos sexuais. De acordo com outras crenças, apenas um sexo é posto em perigo pelo contacto com o outro, geralmente o sexo masculino pelo sexo feminino, mas, por vezes, o inverso. No domínio sexual, estas noções de perigo são a expressão de uma simetria ou de uma hierarquia. É pouco provável que exprimam qualquer aspecto da relação real entre os sexos. Na minha opinião, seria melhor interpretá- las como a expressão simbólica das relações entre diferentes elementos da sociedade, como o reflexo duma organização hierárquica ou simétrica válida para todo o sistema social. O que é válido para a poluição sexual, também o é para a poluição corporal. Os dois sexos podem servir de modelo da colaboração e da diferença existente entre as unidades sociais. De modo idêntico, o processo de ingestão pode representar a absorção política. Por vezes, os orifícios do corpo parecem representar pontos de entrada ou de saída dos grupos sociais, tal como a perfeição corporal pode simbolizar uma teocracia ideal. Cada cultura primitiva é um universo em si. Seguindo os conselhos de Franz Steiner em Taboo , começo por interpretar as regras de impureza colocando-as no contexto mais vasto de toda a gama de perigos possíveis num dado universo. Tudo o que pode acontecer de desastroso a um homem deve ser catalogado em função dos princípios que regem o universo específico da sua cultura. Por vezes são as palavras que despoletam cataclismos, por vezes os actos, por vezes os estados físicos. Alguns perigos são grandes e outros pequenos. Não podemos começar a comparar as religiões primitivas antes de conhecermos toda a série de poderes e perigos que elas admitem. A sociedade primitiva é uma estrutura poderosíssima no centro do seu próprio universo. Dos seus pontos fortes, dimanam poderes, o poder de prosperar, o poder temível de exercer represálias. Mas nenhuma sociedade existe num vazio neutro e sem cargas. Está sujeita a pressões exteriores; o que não está com ela, não é parte dela e não está sujeito às suas leis, está, pelo menos virtualmente, contra ela. Ao descrever pressões que se exercem nas fronteiras e nas margens da sociedade, admito tê-la feito parecer mais sistemática do que realmente é. Mas para interpretar as crenças em questão, é, necessário, precisamente e a todo o custo, sistematizar, porque me parece que as crenças relativas à separação, à purificação, à demarcação e ao castigo das transgressões tem como principal função sistemática uma experiência essencialmente desordenada. E só exagerando a diferença entre dentro e fora, por cima e por baixo, masculino e feminino, com e contra, que se cria uma aparência de ordem. Neste sentido, não tenho receio de ser acusada de tornar as estruturas sociais mais rígidas do que são. Porém; não desejo de forma alguma sugerir que as culturas primitivas, onde florescem estas noções de contágio, são rígidas ou estagnantes. Ignora-se quando surgiram as noções de pureza e de impureza nas sociedades sem escrita. Para os meus membros, elas devem parecer eternas e inalteráveis, mas há toda a razão para pensar que estão sujeitas à mudança. Pode supor-se que o mesmo impulso que as faz nascer – e que procura impor a ordem – as modifica e enriquece continuamente, o que é muito importante, porque quando argumento que as reacções à impureza derivam de outros comportamentos que inspiram a ambigüidade ou a anomalia, não procuro ressuscitar, sob uma nova forma, a teoria novecentista do medo. É claro que se podem fazer remontar as idéias sobre o contágio às reacções à anomalia, mas essas idéias são algo de muito diferente e superior à inquietação de um cobaia de laboratório que, de repente, descobre fechada uma das suas familiares saídas do labirinto. E são também muito diferentes do desconforto do peixe de aquário, confrontado com um membro anômalo da sua espécie. De início, a descoberta de

CAPÍTULO I

A IMPUREZA RITUAL

A nossa idéia de impuro é fruto do cuidado com a higiene e do respeito pela convenções que nos são próprios. Certamente que as nossas regras de higiene evoluem com os conhecimentos que adquirimos. Quanto às convenções que nos mandam afastar da impureza, pode acontecer que não as cumpramos por amizade, como o pastor da fazenda de Hardy que recusou um copo limpo para a sua cidra. «Aqui está um homem de bem que não se faz esquisito», concluiram os trabalhadores da quinta.

  • Um copo lavado para o pastor – bradou o preparador de malte.
  • Não, de modo nenhum – disse Gabriel, num tom delicadamente reprovador. – Eu nunca me aflijo com a sujidade no seu estado puro e quando sei de que espécie é... Por nada na vida iria incomodar os nossos vizinhos obrigando-os a lavar mais loiça, quando há já tanto trabalho para se fazer neste mundo. Num espírito mais exaltado diz-se que Santa Catarina de Siena se censurava amargamente pela revulsão que lhe provocavam as chagas que tratava. Sendo a higiene incompatível com a caridade, bebeu deliberadamente uma tigela de pus. Quer sejam observadas com rigor, quer violadas, não há nada nas nossas regras de pureza que sugira uma relação entre o impuro e o sagrado. Por isso nos sentimos confusos quando nos apercebemos de que os povos primitivos não distinguem o sagrado do impuro. Para nós os objectos e os lugares sagrados devem ser protegidos das impurezas. O sagrado e o impuro são pólos opostos. Não podemos confundi-los, como não poderíamos confundir a fome com a saciedade, o sono com a vigília e, contudo, parece que é característico das religiões primitivas não distinguir claramente o sagrado do impuro. Se isto for verdade, existe um grande abismo entre os nosso antepassados e nós, entre nós e os primitivos contemporâneos. Numerosos foram os eruditos que retiveram esta hipótese que ainda hoje se ensina de uma forma oculta ou outra. Vejamos, a este respeito, um reparo de Elíade:

A ambivalência do sagrado não é só de ordem psicológica (na medida em que atrai ou causa repulsa), mas também a ordem dos valores; o sagrado é, ao mesmo tempo, «sagrado» e «profano». (1958, p. 14-15)

A afirmação pode ser feita de forma a parecer menos paradoxal. Poderia significar que a nossa idéia do sagrado é especializada, enquanto em algumas culturas primitivas o sagrado é uma idéia muito geral que significa pouco mais do que proibição. É neste sentido que o universo se encontra dividido entre as coisas e as acções que estão sujeitas a restrições e aquelas que não o estão. Certas restrições visam proteger os deuses das profanações e outras proteger o profano das perigosas intromissões divinas. As regras relativas ao sagrado destinam-se então a manter os deuses à distância e a impureza constitui, nos dois sentidos, um perigo: através dela, o indivíduo pode entrar em contato com o deus. Tudo se resume assim a um problema de linguagem e o paradoxo: desaparece mudando-se de vocabulário. Isto poderá ser válido para algumas culturas (ver F. Steiner, p. 33).

A título de exemplo, a palavra latina sacer toma este sentido de restrição quando se aplica aos deuses e em alguns casos, pode aplicar-se do mesmo modo à consagração e ao seu contrário. Similarmente, a raiz K-d-sh em hebraico, geralmente traduzida por sagrado, baseia-se na idéia de separação. Ciente da dificuldade que existe na tradução directa de K- d-sh por santo, Ronald Knox, na sua tradução do Velho Testamento, emprega «set apart»; «posto de lado». Desta forma, as magníficas palavras «Sereis santos porque eu sou santo» são pobremente traduzidas por:

Porque eu sou o senhor que vos tirou do Egito para ser o vosso Deus: eu estou posto de lado e vós sereis postos de lado como eu. (Lev. 11,45)

Se com uma retradução se pudesse esclarecer o assunto, como seria simples. Mas existem muitos mais casos rebeldes. No Hinduísmo, por exemplo, é absurdo pensar que o impuro e o sagrado possam pertencer a uma mesma categoria lingüística. A noção de poluição nos Hindus sugere uma outra maneira de abordar o problema. Afinal de contas, o sagrado e o profano não são sempre e como que por necessidade diametralmente opostos. Podem ser categorias relativas: o que é puro em relação a uma coisa, pode ser impuro em relação a outra e vice-versa. A linguagem da poluição presta-se a uma álgebra complexa que leva em conta as variáveis de cada contexto. O Professor Harper explica, por exemplo, como os Havik de Malnad, região do Estado de Mysore, exprimem o respeito:

Os comportamentos que usualmente redundam em estados de poluição são por vezes intencionais e exprimem a deferência e o respeito; fazendo aquilo que noutras circunstâncias , seria um acto de profanação, um indivíduo expressa a sua posição inferior. Por exemplo, o tema de subordinação da mulher em relação ao marido, encontra a sua expressão ritual no facto de comer na folha do marido depois de ele ter acabado...

Outro exemplo ainda mais claro é aquele em que uma mulher santa, sadhu , devia ser tratada com o maior respeito quando ia de visita à aldeia. Para mostrá-lo, o líquido em que banhava os seus pés

passava de mão em mão num recipiente de prata. Todas as pessoas presentes o derramavam na sua mão direita e o bebiam como Tirtha (líquido sagrado), indicando assim que lhe fora atribuído um estatuto: de deusa e não de simples mortal (... ). De todas as manifestações de respeito pela poluição, a mais surpreendente e que mais freqüentemente se encontra é o uso de esterco de vaca como agente de purificação. As mulheres havik adoram diariamente uma vaca e os homens fazem-no também em certas ocasiões cerimoniais (...). Por vezes, diz-se que as vacas são deuses; ou que mais de mil deuses habitam nelas. As poluições menores são removidas pela água, as mais graves pela água e pelo esterco de vaca (...); o esterco de vaca, como os excrementos de qualquer outro animal, é intrinsecamente impuro. Pode poluir um deus; mas por referência ao homem, é puro (...). A parte mais impura da vaca é suficientemente pura para remover as impurezas de um sacerdote brâmane. (E. B. Harper, pp. 181-183)

É óbvio que estamos perante uma linguagem simbólica capaz de diferenciações muito subtis. Este uso da relação entre pureza e impureza não é incompatível com a nossa

que isto. As regras primitivas de impureza prestam atenção às circunstâncias materiais que acompanham os actos e julgam-nos, por conseqüência, bons ou maus. Assim, considera- se, por vezes, perigoso o contacto com os cadáveres, o sangue ou o cuspo. Nos cristãos, ao contrário, as prescrições relativas ao sagrado ignoram as circunstâncias materiais e os crentes julgam os actos em função dos motivos e do estado de espírito do agente.

Do ponto de vista da religião espiritual ou mesmo de um paganismo evoluído, (...) a irracionalidade das leis respeitantes à impureza é tão manifesta que se deve considerá-las como sobrevivências de uma fé e de uma sociedade anteriores.(Nota C, p. 4~0).

Eis um critério de classificação das religiões em primitivas ou em evoluídas. No primeiro caso, as prescrições relativas ao sagrado e à impureza seriam inseparáveis; no segundo, as regras respeitantes à impureza desapareciam da religião. Eram relegadas para a cozinha, para o quarto de banho ou para os serviços de saneamento municipais, nada tendo a ver com a religião. Mas quanto mais se ligava a impureza a fundamentos materiais, mais era assimilada a um estado de indignidade espiritual e mais a religião se considerava evoluída. Robertson Smith era sobretudo um teólogo e :um especialista do Velho Testamento. Na medida em que a teologia aborda as relações entre o homem e Deus, tem forçosamente de se pronunciar sobre a natureza humana. No tempo de Robertson Smith, a antropologia ocupava um lugar de primeiro plano nas discussões dos teólogos. Na segunda metade do século XIX, a maioria dos pensadores era constituída, por força das circunstâncias, por antropólogos amadores. Margaret Hodgen demonstra-o na sua obra The Doctrine of Survivals , um guia indispensável para quem quer que deseje seguir o confuso diálogo que então se desenrolava entre a antropologia e a teologia. Nesse período de formação, a antropologia era ainda tributária do púlpito do pregador e da paróquia e os bispos usavam as suas descobertas para redigir textos fulminantes. Os etnólogos de paróquia tomavam partido: eram optimistas ou pessimistas quanto às perspectivas do progresso humano. Os selvagens eram, ou não, capazes de evoluir? John Wesley ensinava que, no seu estado natural, o homem era fundamentalmente mau, e pintava quadros vivos dos costumes primitivos para ilustrar a sua tese sobre a degenerescência daqueles que não haviam recebido a salvação. ,

A religião natural dos Creek,~ Cherokee, Chickasaw e de todos os outros índios, consiste em torturar os seus prisioneiros de manhã à noite e por fim assá-los em lume brando (...). Digo-vos que é comum entre eles o filho. estoirar os miolos do pai se achar que ele já viveu demasiado: (Works,- vo1: 5, p: 402)

É inútil resumir aqui a longa controvérsia entre os partidários do progresso e os da degenerescência. As discussões arrastaram-se por várias décadas sem nunca terem sido concludentes. Por fim, o Arcebispo Whately retomou de forma pertinaz e popular a tese da degenerescência para refutar o optimismo dos economistas discípulos de Adam Smith.

Poderá esta criatura licenciosa ser dotada de alguma nobreza? [pergunta] Poderão considerar-se os selvagens mais atrasados e os espécimes mais evoluídos das raças européias como membros da mesma espécie? Será concebível, como afirmava o grande economista «progredir passo a passo em todas as artes da vida civilizada»? (1855, pp. 26-7)

O seu panfleto suscitou; segundo Hodgen, reacções violentas e imediatas:

Outros partidários da degenerescência, como W. Cooke Taylor, escreveram volumes em apoio da tese de Whately e reuniram para este fim um grande número de provas; enquanto o Arcebispo se contentara só com uma ilustração (...). Os defensores do optimismo do século XVIII apareciam de todos os lados. Criticavam os livros a partir das teses de Whately. E em toda a parte os reformadores da ordem social, essas boas almas cuja recente compaixão pelos oprimidos se consolava com a idéia de uma melhoria inevitável da sociedade, se alarmavam com as conseqüências práticas da tese oposta. (...) Mais desconcertados ainda estavam aqueles especialistas da cultura e do espírito humano interessados pessoal e profissionalmente numa metodologia baseada na idéia de progresso. (pp. 30-1)

Finalmente; apareceu um homem que, até ao fim do século, pôs fim à controvérsia trazendo o pensamento científico em auxílio dos adeptos do progresso. Tratava-se de Henry Burnett Tylor (1832-1917). Desenvolveu uma teoria e procurou. provar que a civilização era o .resultado de um lento progresso tendo como ponto de partida uma sociedade semelhante às dos selvagens contemporâneos.

Entre os elementos quë nos ajudam a delinear o verdadeiro curso da civilização no mundo, existe uma importante categoria de dados a que, por comodidade, chamei «sobrevivências». São processos, costumes, opiniões, etc:, que se arrastaram pela força do hábito até o coração da nova sociedade (...) que, deste modo, constituem provas, exemplos de uma cultura mais antiga a partir da qual uma outra, mais nova, evoluiu (p. 16).

Tudo se passa como se os assuntos mais importantes da antiga sociedade se tivessem introduzido no espírito das gerações seguintes e como se as suas crenças mais importantes permanecessem como um folclore de nursery. (p. 71) ( Primitive Culture , I, 7ª. ed.)

Robertson Smith recorrera à noção de sobrevivência para explicar a persistência das regras irracionais de impureza. Tylor publicou a sua obra em 1873, depois da publicação de The Origin of the Species e a sua análise das culturas parece-se, nalguns pontos, com a que Darwin faz das espécies orgânicas. Darwin tinha curiosidade de saber em que condições podia surgir um novo organismo. Interessava-se pela sobrevivência dos mais fortes e também pelos organismos rudimentares cuja permanência lhe dava as indicações necessárias para a reconstituição do esquema evolucionista. Mas Tylor estava unicamente interessado na persistente sobrevivência dos elementos inadaptados, nas relíquias de culturas quase desaparecidas. Não era sua intenção catalogar as espécies culturais distintas nem mostrar a sua adaptação através da história. Apenas pretendia demonstrar, de uma maneira geral, a continuidade da cultura humana. Robertson Smith, aparecendo depois, herdou a idéia de que o homem civilizado dos tempos modernos resulta de um longo processo de evolução. Admitia que os nossos actos e as nossas crenças têm ainda hoje um lado fóssil, como um apêndice petrificado e desprovido de sentido, preso ao nosso modo de vida. Mas Robertson Smith não se interessava pelas sobrevivências fossilizadas. Para ele, estes costumes, que não alimentaram os momentos de crescimento que balizam a nossa história, eram irracionais, primitivos e, por isso, sem grande interesse.

costumes e as leis graças aos quais se realiza na vida algo de semelhante a este ideal são dotados de uma autoridade divina. (M. Richter, p. 105).

Em última análise, a filosofia de Green tende a afastar-se da revelação e a substituí- la pela moral enquanto essência da religião. Robertson Smith nunca renunciou à Revelação. Até ao fim da vida, acreditou que o Velho Testamento era de inspiração divina. Mas os seus biógrafos, Black e Chrystal, sugerem que, embora guardando a fé, ele se abeirou, estranhamente, da religião pregada pelos idealistas de Oxford. Em Aberdeen, no ano de 1870, Robertson Smith regia a cadeira de hebraico na Free Church. .Estava na vanguarda dum movimento de crítica histórica que havia algum tempo vinha a perturbar profundamente os especialistas da Bíblia. Em 1860, em Balliol, o próprio Jowett fora censurado por publicar um artigo intitulado «A propósito de uma interpretação da Bíblia», no qual defendia que o Velho Testamento tinha de ser entendido como qualquer outro livro. As acções intentadas contra Jowett falharam e foi-lhe permitido continuar como Professor Regius. Em compensação, quando em 1875 escreveu o artigo «Bíblia» para a Enciclopédia Britânica, a Free Church sublevou-se contra uma tal heresia. Foi suspenso e, depois, demitido das suas funções. Como Green, Robertson Smith mantinha um estreito contacto com o pensamento alemão. Mas enquanto Green não defendia a Revelação cristã, Robertson Smith nunca vacilou na sua fé na Bíblia enquanto testemunho de uma Revelação específica e sobrenatural. Mas estava preparado para submeter a Bíblia à crítica, como qualquer outra obra. Dirigiu-se inclusive à Síria, depois de ter sido demitido da .universidade de Aberdeen, para recolher no terreno informações que viriam a firmar a sua interpretação: Expôs o fruto destas pesquisas em primeira mão sobre a vida e os documentos semitas nas suas “conferências Burnet”, cuja primeira série foi publicada sob o título The Religion of the Semites. O leitor desta obra apercebe-se rapidamente de que Robertson Smith não procurou iludir os problemas da humanidade do seu tempo, e refugiar-se numa torre de marfim. Se julgava importante compreender as crenças religiosas das obscuras tribos árabes, era porque estas lançariam alguma luz sobre a natureza humana e sobre a experiência religiosa. Destas conferências emergem temas fundamentais: primeiro, que os fenômenos exóticos e mitológicos, as teorias cosmológicas, têm pouco a ver com a religião. Assim, Smith contradiz implicitamente a teoria de Tylor de que a religião primitiva teria as suas origens no pensamento especulativo. Robertson Smith sugeria àqueles que passavam as suas noites em branco tentando conciliar a Criação segundo o livro da Gênesis com a teoria da evolução darwiniana, que podiam enfim descansar. A mitologia é uma espécie de bordado que enfeita as crenças mais sólidas. A verdadeira religião, desde os tempos mais remotos, está enraizada nos valores morais da comunidade. Até os mais primitivos e os mais errantes dos vizinhos de Israel, atormentados por demônios e mitos, mostram alguns sinais de verdadeira religião. O segundo tema de Robertson Smith é que a vida religiosa de Israel era mais moral do que a de todos os povos circundantes. Consideremos brevemente este tema. As três últimas conferências Burnett, proferidas em Aberdeen no ano de 1891, nunca foram publicadas e hoje delas pouco sobrevive. Estas conferências tratam dos pontos comuns entre a cosmogonia do Gênesis e a dos povos semitas. Smith achava que a pretensa similaridade com a cosmogonia caldaica era muito exagerada e que os mitos babilônicos estavam mais próximos dos das sociedades selvagens do que dos de Israel. É certo que a lenda fenícia se assemelha superficialmente à história do Gênesis, mas. estas similaridades põem em relevo as suas diferenças fundamentais de espírito e de sentido.

As lendas fenícias (...) estavam ligadas a uma concepção absolutamente pagã de Deus, do homem e do mundo. Desprovidos como estavam de motivos morais, nenhum dos seus crentes poderia alcançar uma concepção espiritual da Divindade ou uma noção elevada dos fins da humanidade. (...) Não me cabe a mim explicar o contraste (com as noções hebraicas de divindade); cabe sim àqueles que, orientados por uma falsa filosofia da Revelação, apenas vêem no Velho Testamento o resultado das tendências gerais das religiões semíticas. Os meus trabalhos não me permitem aqui adoptar esse ponto de vista infirmado pelas numerosas semelhanças de pormenor entre os contos e os ritos hebraicos e pagãos; porque todas estas semelhanças concretas não fazem mais que por em evidência os contrastes entre as duas tradições no plano espiritual (...) (J. S. Black e G. Chrystal, p. 536)

Isto quanto à esmagadora inferioridade das religiões dos vizinhos de Israel e dos Semitas pagãos. No que respeita às religiões semitas pagãs, elas possuem essencialmente duas características: uma demonologia abundante que desperta o medo e relações estáveis e reconfortantes com o deus da comunidade. Os demônios são o elemento primitivo rejeitado por Israel; as relações morais e estáveis com Deus constituem a verdadeira religião.

Se é verdade que o selvagem se sente rodeado por inumeráveis perigos que não compreende e que assim identifica como inimigos invisíveis ou misteriosos dotados de poderes superiores aos do homem, já não é verdade que a religião se funde numa tentativa de apaziguar estes poderes. Desde o princípio, a religião, dado que distinta da magia e da feitiçaria, era um assunto de família. Dirigia-se aos parentes e aos amigos que podiam de facto zangar-se com a sua gente durante algum tempo, mas que podiam sempre conciliar-se, desde que não fossem inimigos da família ou membros renegados da comunidade. (...) Só nos momentos de dissolução social (...) é que a superstição mágica baseada no simples terror ou os ritos destinados a apaziguar os deuses estrangeiros invadem a esfera da religião tribal ou nacional. Em tempos melhores, a religião da tribo ou do Estado não se confunde com as superstições locais ou estranhas, com os ritos mágicos que o terror selvagem pode ditar ao indivíduo. A religião não é uma relação arbitrária entre cada indivíduo e um poder sobrenatural. É a relação de todos os membros da comunidade com um poder que zela pelo bem-estar desta comunidade. ( Religion of the Semites , p. 55)

Não há dúvida de que este julgamento sobre a relação entre a moral e a religião primitivas encontrou, durante a década de 1890, um acolhimento favorável. Operava uma combinação feliz entre o novo idealismo moral de Oxford e a antiga revelação. Robertson Smith dedicara-se à interpretação moral da religião. As suas teses eram compatíveis com as de Oxford e a prova disso é que Bailliol lhe ofereceu um lugar logo que foi demitido da cadeira de hebraico na universidade de Aberdeen. Smith estava convencido de que o Velho Testamento se manteria por cima da contenda e que sairia incólume dum exame científico, por mais rigoroso que fosse. Podia mostrar com uma erudição incompatível que todas as religiões primitivas eram a expressão de formas e de valores sociais. E uma vez que os conceitos religiosos de Israel eram indiscutivelmente de um grande valor moral, que ao longo da história deram lugar aos ideais cristãos e que estes, por sua vez, abandonaram o catolicismo em favor do Protestantismo, o sentido da evolução não colocava dúvidas. Deste modo, a ciência não contradizia a tarefa dos cristãos, antes constituía um dos seus suportes essenciais. Tendo definido a magia como um resíduo da evolução, os antropólogos encontraram-se perante um problema irresolúvel. Por um lado, a magia era um rito que

observâncias, quer em virtude de ter nascido dentro da família e da comunidade quer em virtude de ter adquirido este ou aquele estatuto no seio dessa família e dessa comunidade. (...) A religião tinha por objectivo não a, salvação das almas; mas a preservação da sociedade e a garantia do seu bem-estar. (...). Todo indivíduo entrava, pelo nascimento, em relações pré-estabelecidas com certos deuses e com os seus congêneres; e a sua religião, que é a parte da conduta determinada pelas suas relações com os deuses, era simplesmente um segmento do esquema geral de comportamento que lhe estava prescrito consoante a sua posição na sociedade. (...) A religião antiga não é mais que um aspecto da ordem social geral que regula tanto os deuses como os homens.

Assim escreveu Robertson Smith (pp. 29-33). Não fora o seu estilo e o uso do imperfeito e isto poderia ter sido escrito por Durkheim. Achei muito útil, para compreender Durkheim, saber que ele se encontrou inicialmente envolvido numa controvérsia com os ingleses, como sugere Talcott Parsons (1960). As lacunas da filosofia política inglesa, sobretudo de Herbert Spencer, incitavam Durkheim a levantar mais uma vez o problema da integração social que tanto o preocupava. Não podia subscrever a teoria utilitarista segundo a qual a psicologia individual bastaria para explicar o desenvolvimento da sociedade. Durkheim queria demonstrar que era necessário algo mais, uma obrigação comum para com um conjunto de valores comuns, uma consciência colectiva para se compreender a natureza da sociedade. Na mesma altura, outro francês, Gustave le Bon (1841-1931) embrenhava-se na mesma tarefa de corrigir as teses de Bentham que então prevaleciam. Para este efeito, elaborou uma teoria da psicologia das massas que Durkheim parece ter utilizado livremente. Compare-se a descrição que Durkheim faz da emoção arrebatadora que se desprende das cerimônias totêmicas com a descrição de Gustave le Bon do «espírito das massas», influenciável, emotivo, heróico ou selvagem. Mas para convencer os ingleses do seu engano, Durkhein dispunha, de um argumento melhor presente na obra de outro inglês. Durkheim adoptou sem reservas a definição que Robertson Smith fez da religião primitiva: uma igreja estabelecida que exprime os valores da comunidade. Aceitou a distinção de Robertson Smith entre os ritos que fazem parte do culto aos deuses da comunidade e os outros ritos. Como Smith, qualificou-os de ‘mágicos’ e definiu a magia e os mágicos como crenças, práticas e pessoas que se encontram à margem da comunhão da igreja e que por vezes lhe são hostis. Seguindo Robertson Smith e talvez também Frazer (porque os primeiros volumes do Golden Bough apareceram antes da publicação, em 1912, das Formas Elementares da Vida Religiosa), admitiu que os ritos mágicos correspondiam a uma forma de higiene primitiva:

As coisas que o mágico recomenda que se mantenham separadas são aquelas que, por causa das suas propriedades características, não podem ser misturadas ou confundidas sem perigo. Trata-se de máximas utilitárias, das primeiras formas de interdições higiênicas e médicas. (p. 338)

Deste modo se confirmava a distinção entre o contágio e a verdadeira religião. Mas como as regras de pureza não estavam no centro das suas preocupações, Durkheim não lhes prestou mais atenção do que Robertson Smith. Qualquer estudioso que delimite arbitrariamente o seu objecto encontra-se em dificuldades. Ao distinguir uma categoria de separações que atribuía à higiene primitiva, de uma outra categoria que atribuía à religião primitiva, Durkheim minava os

fundamentos da sua própria definição de religião. Nos primeiros capítulos, compendia e rejeita as definições de religião que não o satisfazem: as que faziam apelo ao mistério e ao medo e também a de Tylor, que identificava a religião com a crença em realidades espirituais. Durkheim adopta de seguida dois critérios que supõe coincidentes: o primeiro, vimo-lo já, é a organização comunitária dos homens no culto da comunidade; o segundo é a distinção entre o sagrado e o profano. O sagrado é o objecto de adoração da comunidade e pode ser reconhecido nas regras que exprimem o seu carácter essencialmente contagioso. Quando insiste na ruptura completa entre o sagrado e o profano, entre os comportamentos seculares e os religiosos, Durkheim abandona Robertson Smith. Este afirmava, ao contrário e com insistência (p. 29 e s.), que não existe «separação entre a esfera religiosa e a vida corrente». Uma oposição total entre sagrado e profano parece ter sido um passo necessário na teoria durkheimiana da integração social e exprimia outra oposição, agora entre o indivíduo e a sociedade. Durkheim projecta a consciência social para além e acima dos membros individuais da sociedade, para uma outra entidade ao mesmo tempo exterior e poderosamente constrangedora. Vemos também Durkheim insistir no facto de as regras de separação caracterizarem o sagrado, diametralmente oposto ao profano. Os seus argumentos levam-no então a perguntar por que razão o sagrado é contagioso. Responde referindo-se à natureza fictícia, abstracta, das entidades religiosas. Elas não são mais do que idéias despertadas pela experiência da sociedade, idéias colectivas projetadas para o exterior, meras expressões de valores morais. Não possuem bases materiais. São pois, em última análise, desenraizadas, fluidas, capazes de se fundirem noutras experiências. É da sua natureza estarem sempre em perigo de perder o seu carácter distintivo e necessário. O sagrado precisa de estar forçosa e continuamente delimitado por interdições. O sagrado deve sempre ser visto como contagioso porque as relações que se estabelecem com ele se exprimem obrigatoriamente nos ritos de separação e de demarcação e na idéia de que é perigoso , ultrapassar certos limites. Mas aqui surge uma pequena dificuldade. Se o contágio caracteriza o sagrado, em que difere então da magia, não sagrada, mas também caracterizada pelo contágio? Que forma de contágio é esta que não é gerada pelo processo social? Por que assimilar as crenças mágicas à higiene primitiva e não à religião primitiva? Estes problemas não interessaram Durkheim. Ele seguiu a via traçada por Robertson Smith separando a magia da moral e da religião e assim ajudou a transmitir-nos uma confusão de idéias sobre a magia. Desde então, os estudiosos não cessaram de meditar numa definição satisfatória das crenças mágicas e de se interrogar sobre a mentalidade dos povos que as subscrevem. Sabemos agora que a visão durkheimiana de comunidade social era demasiado unitária. Devemos começar por reconhecer que a vida comunitária é muito mais complexa do que ele julgara. Depois, descobrimos que a sua teoria segundo a qual os rituais são símbolos de processos sociais é válida para dois tipos de crenças – religiosas e mágicas – relativas ao contágio. Se tivesse pressentido que as regras a que chamava higiênicas são também dotadas de um simbolismo social, teria sem dúvida afastado a categoria da magia. Voltaremos a este tema, pois não poderemos desenvolvê-lo sem primeiro fazer tábua rasa de uma série de idéias preconcebidas derivadas, também, de Robertson Smith. Frazer não se interessou pelas implicações sociológicas da obra de Robertson Smith nem pelo seu tema principal. Optou por agarrar-se à magia, resíduo que Robertson Smith rejeitara casualmente, por assim dizer, da sua definição de verdadeira religião. Ele mostrou que as crenças mágicas tinham uma certa regularidade e que podiam ser classificadas. Concluiu, após o exame, que a magia não era um conjunto de regras para evitar qualquer