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Psicoterapia de abordagem gestáltica: um olhar reflexivo para ..., Notas de aula de Psicoterapia

Tendo em vista a relevância da Gestalt-Terapia (GT) para o cenário atual ... A seguir, são abordados os fundamentos teórico-epistemológicos que sustentam e.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Botafogo
Botafogo 🇧🇷

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ISSN 0103-5665 357
Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 32, n. 2, p. 357 – 386, mai-ago/2020
10.33208/PC1980-5438v0032n02A08
Psicoterapia de abordagem gestáltica:
um olhar reflexivo para o modelo terapêutico
gestalt PsychotheraPy: a reflective
look at the theraPeutic model
PsicoteraPia de enfoque gestáltica: una mirada
reflexiva hacia el modelo teraPéutico
Manoel Antônio dos Santos (1)
Patrícia Francielly Araújo Lara Silva (2)
Lucila Castanheira Nascimento (3)
Marciana Gonçalves Farinha (4)
Resumo
Tendo em vista a relevância da Gestalt-Terapia (GT) para o cenário atual
da Psicologia, este estudo apresenta reflexões teóricas sobre os fundamentos fi-
losóficos e teórico-epistemológicos que sustentam essa abordagem. Por meio de
breve retrospectiva histórica, a pesquisa localiza o surgimento da abordagem em
um cenário então dominado pelas perspectivas psicanalítica e comportamental.
A seguir, são abordados os fundamentos teórico-epistemológicos que sustentam e
norteiam as intervenções da GT. Em seguida, discorre-se conceitualmente sobre
o modelo terapêutico da GT, concentrando-se na análise de conceitos como aqui-
-agora, ‘awareness’ e fronteiras de contato. A última parte é dedicada à conside-
ração de apontamentos críticos e identificação de limitações da GT. A partir das
reflexões desenvolvidas, entende-se que a intervenção terapêutica em GT privile-
gia a experiência presente e tem por objetivo restaurar o contato, utilizando para
(1) Psicólogo, Mestre, Doutor e Livre-Docente pela Universidade de São Paulo (USP); Professor Titular da Universidade de
São Paulo (USP), Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil. email: masantos@ffclrp.usp.br
(2) Psicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), MG, Brasil. email: triccia.araujo@gmail.com
(3) Livre-Docente pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP), com
Pós-doutorado pela University of Alberta, Edmonton, Canada; Professora Titular do Departamento de Enferma-
gem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
(EERP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil. email: lucila@eerp.usp.br
(4) Doutora em Enfermagem Psiquiátrica pela Universidade de São Paulo (USP); Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal de Uberlândia (UFU), MG, Brasil. email: marciana@ufu.br
Os autores agradecem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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ISSN 0103-5665357 10.33208/PC1980-5438v0032n02A

Psicoterapia de abordagem gestáltica:

um olhar reflexivo para o modelo terapêutico

gestalt PsychotheraPy: a reflective

look at the theraPeutic model

PsicoteraPia de enfoque gestáltica: una mirada

reflexiva hacia el modelo teraPéutico Manoel Antônio dos Santos (1) Patrícia Francielly Araújo Lara Silva (2) Lucila Castanheira Nascimento (3) Marciana Gonçalves Farinha (4) Resumo Tendo em vista a relevância da Gestalt-Terapia (GT) para o cenário atual da Psicologia, este estudo apresenta reflexões teóricas sobre os fundamentos fi- losóficos e teórico-epistemológicos que sustentam essa abordagem. Por meio de breve retrospectiva histórica, a pesquisa localiza o surgimento da abordagem em um cenário então dominado pelas perspectivas psicanalítica e comportamental. A seguir, são abordados os fundamentos teórico-epistemológicos que sustentam e norteiam as intervenções da GT. Em seguida, discorre-se conceitualmente sobre o modelo terapêutico da GT, concentrando-se na análise de conceitos como aqui- -agora, ‘awareness’ e fronteiras de contato. A última parte é dedicada à conside- ração de apontamentos críticos e identificação de limitações da GT. A partir das reflexões desenvolvidas, entende-se que a intervenção terapêutica em GT privile- gia a experiência presente e tem por objetivo restaurar o contato, utilizando para (1) (^) Psicólogo, Mestre, Doutor e Livre-Docente pela Universidade de São Paulo (USP); Professor Titular da Universidade de São Paulo (USP), Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil. email: masantos@ffclrp.usp.br (2) (^) Psicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), MG, Brasil. email: triccia.araujo@gmail.com (3) (^) Livre-Docente pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP), com Pós-doutorado pela University of Alberta, Edmonton, Canada; Professora Titular do Departamento de Enferma- gem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil. email: lucila@eerp.usp.br (4) (^) Doutora em Enfermagem Psiquiátrica pela Universidade de São Paulo (USP); Docente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), MG, Brasil. email: marciana@ufu.br Os autores agradecem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

358psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica tanto a relação dialógica. Na abordagem gestáltica, o indivíduo é considerado um ser provisório que está em permanente construção, a partir das relações que estabelece. Essas relações acompanham o movimento de inacabamento, inerente à condição do homem, e a eterna reconstrução que caracteriza o devir humano. Ao final, demonstra-se que a GT reúne um acervo que contribui de modo signi- ficativo não apenas para a clínica psicoterápica, como também para o avanço do saber psicológico. Palavras-chave: Gestalt terapia; psicoterapia; processos psicoterapêuticos; psicologia e filosofia; contato. AbstRAct Given the relevance of Gestalt-Therapy (GT) to the current scenario of Psychology, this study presents some theoretical reflections on the philosophical and theoretical-epistemological foundations that support this approach. Through a brief historical retrospective, the study locates the emergence of the approach in a scenario then dominated by the psychoanalytic and behavioral perspectives. Next, the theoretical-epistemological foundations that support and guide GT interventions are addressed. Conceptual discourse is then discussed about the therapeutic model of GT, focusing on the analysis of concepts such as here-now, awareness, and contact boundaries. The last part is devoted to the consideration of critical notes and limitations of GT. From the reflections developed, it is un- derstood that the therapeutic intervention in GT privileges the present experi- ence and its function is to restore the contact, using to that end the dialogical relation. In the Gestalt approach, the individual is considered a provisional being, which is under permanent construction, based on the relationships established. These relations accompany the movement of unfinishedness, inherent to the hu- man condition, and the eternal reconstruction that characterizes becoming hu- man. Finally, it is shown that the GT brings together a collection that contributes significantly not only to the psychotherapeutic clinic, but also to the advance- ment of psychological knowledge. Keywords: Gestalt therapy; psychotherapy; psychotherapeutic processes; psychology and philosophy; contact. Resumen En vista de la relevancia de la Gestalt-Terapia (GT) para el escenario ac- tual de la Psicología, este estudio presenta algunas reflexiones teóricas sobre los

360psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica Laura Perls e Fritz Perls. Em especial, deve ser creditada a contribuição desta- cada de Laura Perls, psiquiatra e neurologista, além de professora e psicotera- peuta, que havia estudado os existencialistas (especialmente Kierkegaard e Hei- degger) e os fenomenólogos (Husserl e Scheler). Laura (nascida Lore Posner) havia trabalhado com Paul Tillich e foi aluna de Wertheimer, um dos expoentes da psicologia da Gestalt, com quem se tornou íntima das ideias da doutrina conhecida como psicologia da forma. Ela também havia trabalhado com o neu- rologista alemão Kurt Goldstein, pai da Teoria Organísmica. Foi nesse contexto que conheceu Fritz Perls, no período em que ambos viviam na Alemanha antes de emigrarem em razão da perseguição aos judeus pelo nazismo (Frazão, 2013). Perls, na época em que exerceu a função de médico-assistente de Goldstein, foi profundamente influenciado por sua teoria sobre o processo de readaptação de soldados que haviam sofrido lesão cerebral durante a segunda guerra mundial (Lima, 2009). As observações de Goldstein evidenciaram que, embora o dano fosse circunscrito a uma área cerebral específica, ocorria uma reorganização ge- ral do comportamento do indivíduo lesionado (Frazão, 2013). O ano de 1951 é considerado o marco histórico do surgimento da GT, com a publicação da obra Gestalt-therapy: Excitement and growth in the human personality (Perls et al., 1951). Esse livro inaugural é fruto de rascunhos de um manuscrito que Perls trouxe de sua viagem à África e de anotações dos debates ocorridos com a colaboração dos demais precursores que compunham, junto com ele, o Grupo dos Sete, que se reuniam no apartamento de Laura e Perls em Nova York (Frazão, 2013). Perls tinha formação médica, como a maioria dos pioneiros da psicote- rapia. Formou-se em medicina em 1920 e recebeu sua formação psicanalítica até 1932, transitando entre as cidades de Frankfurt, Viena e Berlim. Em 1928 foi analisado por Wilhelm Reich, de quem assimilaria seus ensinamentos sobre couraça caracterológica e tomaria emprestado o termo “terapia da concentração”, que chegou a ser cogitado pelo Grupo dos Sete para nomear a GT (Frazão, 2013). Goodman também havia sido influenciado pelas ideias de Reich, tendo contato com seu pensamento por intermédio de seu terapeuta Alexandre Lowen, discípu- lo de Reich. Perls emigrou para os Estados Unidos da América (EUA) em 1946, onde se dedicaria à prática clínica e a divulgar a GT até o final de sua prolífica vida, tendo falecido em 1970. Segundo Nascimento e Ribeiro (2017), em 1952 foi fundado o primeiro instituto de GT nos Estados Unidos. A partir desse marco inaugural, a GT e a abordagem gestáltica se difundiram em diversos países, incluindo o Brasil (Holanda, 2009; W. F. R. Ribeiro, 2007). Logo nos seus primórdios a GT

psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica361 conquistou projeção e ganhou visibilidade nos EUA, com os workshops coor- denados por Perls, que alcançaram grande repercussão. Mas a consistência dos fundamentos teórico-epistemológicos e a difusão sistemática da teoria só se tor- naram possíveis com o extraordinário impulso proporcionado pela criação dos institutos e associações. Para conhecer os primórdios da abordagem gestáltica é imprescindível se debruçar sobre o primeiro livro de Perls (1942/2002). Intitulado Ego, fome e agressão: uma revisão da teoria e do método de Freud , essa obra foi escrita em um período de transição e virada teórico-epistemológica do autor, quando ele já não se identificava com a Psicanálise e questionava abertamente várias das concep- ções psicanalíticas vigentes na época. Esse movimento de vigorosa contestação doutrinária teve início bem antes da criação da GT. O referido livro reúne uma variedade de estudos elaborados em diferentes momentos e permite conhecer as convergências e divergências fundamentais do autor em relação à psicanálise e seu método terapêutico. Uma das críticas mais incisivas de Perls à Psicanálise põe em relevo a exces- siva ênfase do método psicanalítico clássico à esfera do intelecto. Na perspectiva do autor, esse foco em conteúdos intelectuais deixava em segundo plano, ain- da que não negligenciasse, a dimensão afetivo-emocional do cliente. Para Perls (1942/2002), era fundamental que o terapeuta levasse o cliente a usar mais de suas capacidades sensoriais e afetivas, e menos de suas faculdades racionais, para que pudesse viver integralmente suas sensações, emoções e pensamentos, sem censuras e cesuras. Nesse sentido, Perls se colocou totalmente alinhado a uma postura existencial-experiencial e imprimiu esse caráter fortemente vivencial ao método terapêutico que viria a desenvolver. No entanto, a princípio, ele se pre- ocupou mais em difundir o método que criara de forma prática, ministrando regularmente workshops e seminários, vindo a desenvolver tardiamente os fun- damentos teóricos da GT apenas no final da década de 1960, portanto, em seus últimos anos de vida. O vocábulo gestalt , de origem alemã, significa forma ou configuração, ou ainda “um modo particular de organização das partes individuais que entram em sua composição” (Perls, 1988, p. 19). Dessa maneira, gestalt corresponde a uma forma, uma integração de partes, uma totalidade indivisível. Já a palavra terapia tem origem no vocábulo grego therapeia , que significa ato de curar ou reestabele- cer-se. Esse termo, por sua vez, remonta ao verbo grego therapeuein , que significa “curar” ou “realizar tratamento médico”. Por conseguinte, na perspectiva da GT entende-se que o cliente se submete a um processo sistemático de “cura”. Em síntese, é um modelo de psicoterapia

psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica363 cessário para se abordar uma transformação que não é apenas psíquica, mas que incide sobre a totalidade do ser. A GT sofreu a influência direta da noção de campo (Teoria de Campo) de Kurt Lewin. Isso implica conceber a psicoterapia como um campo de forças. A relação terapêutica, experienciada como campo, é orientada para “a realidade das coisas existentes, o mundo, o corpo” (Ribeiro, 2007a, p. 76). Ali são ativados os processos psicológicos por meio dos quais a psicoterapia se mantém como um campo constante de força e de energia de mudança. Toda a realidade acontece em um dado campo e em dado momento, como afirma Ribeiro (2007a), “nada acontece antes ou depois, pois o que está acontecendo é o que devia estar acon- tecendo, tanto que está acontecendo” (p. 76). “A questão é saber como o campo se organiza se conservando e, ao mesmo tempo, se transformando. O contato é a força permanente do crescimento e a consciência emocionada é o veio que garan- te e produz mudanças” (p. 77).

Fundamentos teórico-epistemológicos da GT

Evidentemente, não se pretende abarcar o conjunto das contribuições te- óricas e filosóficas da GT, mas tão somente articular alguns de seus fundamentos com a prática. Yontef (1993, 1993/1998) define a GT por meio de três princí- pios complementares: (1) é um método terapêutico que tem fundamento feno- menológico, sendo que seu objetivo e metodologia confluem para a awareness ; (2) também tem por fundamento o existencialismo dialógico; (3) sua visão de mundo é sustentada no holismo e na teoria de campo. A visão holística preconiza que qualquer parte só é compreendida a partir do todo. O todo tem uma unidade orgânica, sendo muito mais do que a simples soma das partes. Desse modo, o fundamento central da sólida base conceitual e epistemológica da GT é a consi- deração da interação, da integração e da totalidade. A fundamentação filosófica da GT está baseada em três pilares centrais: o Humanismo, a Fenomenologia e o Existencialismo. Isso significa que a aborda- gem gestáltica está comprometida com uma visão de ser humano e de mundo, o que assegura maior consistência epistemológica para a abordagem (Ribeiro, 2006). Outras teorias fundamentais que influenciaram a GT foram: Psicologia da Gestalt, Teoria de Campo e Teoria Organísmica. Também podem ser considera- das fontes de inspiração a psicanálise, o pensamento reichiano e o Zen Budismo. (1) No que diz respeito ao Humanismo, Cardoso (1999) aponta que é uma teoria que elege como questão central o homem, ou seja, é uma forma de

364psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica compreender o ser humano como ser único em sua totalidade, tendo como pro- posta principal favorecer condições propiciadoras do crescimento do indivíduo, a partir daquilo que ele tem de positivo, de qualidades e criatividade, enfim, do que cada pessoa possui de potencial de vida. Assim, a GT se apropria do Huma- nismo no que concerne à valorização do ser humano, levando-o a experimen- tar todas as suas potencialidades e limites, na busca por crescimento existencial (Holanda, 1998b). Outra dimensão importante é a ênfase dialógica, que imprime protagonismo ao encontro entre o “eu” e o “outro”. Isso aparece, claramente, no conceito de “fronteira de contato” extraído da teoria da Gestalt, que é o espaço no qual os indivíduos se encontram e interagem, implicando sempre uma relação (Perls et al., 1998). Contato, na perspectiva da GT, se refere ao fato de que o ser humano é compreendido como inerentemente relacional, singular, corporificado, concreto e criativo, aberto a infinitas potencialidades e sempre em movimento, em eterna construção a partir das interações que estabelece com o meio. O indivíduo se caracteriza como ser de relação, que se constitui “entre”, em um espaço vincular compartilhado com outros seres, sendo o vínculo terapêutico uma dessas relações. Essa concepção relacional reverbera em um dos construtos cruciais da abor- dagem gestáltica: o contato, um dos mais importantes elementos teóricos e práti- cos da GT. O contato é considerado como a forma pela qual a vida acontece e se expressa. É pelo contato com o outro que o ser humano se percebe como existente e como estando presente nas relações intra e interpessoais (Ribeiro, 2007c, p. 11). Por isso, a “Gestalt-terapia tem sido definida como Terapia do Contato” (Ribeiro, 2007b, p. 135). Como fenômeno, o contato é o que possibilita o encontro, sendo por esse motivo um ingrediente essencial da relação terapêutica (Ribeiro, 2007a). É por meio do encontro que acontece e se funda a relação psicoterapêutica, na qual tanto o cliente como o psicoterapeuta são modificados. Considerado como unidade processual, “o contato não é fruto do acaso, mas de uma intencionalidade que dirige o encontro entre os diversos seres do e no universo, o contato é a alma que dita e dirige todos os passos evolutivos de nossa caminhada” (Ribeiro, 2007b, p. 135). Na terapia ancorada no encontro entre psicoterapeuta e cliente desvendam-se outras formas de ser e estar no mundo. A relação psicoterapêutica, centrada no contato, é propiciadora de mudanças e desenvolvimento pessoal. Por meio dela o cliente pode descobrir novos caminhos de crescimento. Perls et al. (1998) dividem o ciclo de contato em quatro fases: pré-contato, fase na qual a sensação corporal torna-se figura; contato (nessa fase o que se des- taca é a ação do organismo no ambiente); contato final (na qual ocorrem as trocas

366psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica ressignificação dessas interrupções de contato. Assim, a psicoterapia busca dispo- nibilizar ao cliente a retomada da fluidez de contato, promovendo a emergência de contatos saudáveis e a ampliação de sua awareness. Quanto mais o psicotera- peuta consegue estar junto e disponível, mais o cliente é capaz de ficar aware de seus processos, mobilizar seus próprios recursos, descobrir suas capacidades e de- senvolver suas potencialidades em sua plenitude. E quanto mais o cliente se sente reconhecido em sua singularidade, mais fortalecido se sentirá para enfrentar suas vulnerabilidades e mais ele se sentirá acolhido e confiante para a entrega. As novas formas de estabelecer contato proporcionam à pessoa a experiência de assinar e ser autora de sua existência, reconhecendo-se capaz de estabelecer escolhas satisfa- tórias para si e de se responsabilizar pelas opções que fez, em vez de considerá-las como incontornáveis desígnios do destino. (2) Em relação à Fenomenologia, Rehfeld (2013) afirma que a GT busca a suspensão do pré-dado, isto é, daquilo que é da ordem do senso comum e que é, portanto, dado a priori , para tentar descobrir o novo, desvelar uma nova com- preensão sobre as coisas. Esse aprendizado provém da atitude fenomenológica, que, ao contrário da atitude natural, preconiza a epoché , que por sua vez implica a suspensão em relação à posição de existência do mundo, de fundamental im- portância para promover o desenvolvimento de atitudes e posturas terapêuticas. Dessa forma, na intervenção operada pelo gestalt-terapeuta, compreender passa a ser mais importante do que interpretar. Assim, psicoterapeuta e cliente passam a caminhar juntos, rumo àquilo que é novo e desconhecido para ambos. Assim, te- rapeuta e cliente se constituem mutuamente como dois parceiros de caminhada, que participam de forma colaborativa do processo de “cura”, marcado pela expe- riência relacional e por uma atitude autêntica, afetuosa e respeitosa. Estar aberto para o novo significa abrir outras possibilidades de criar significações e sentido no decorrer do processo terapêutico. A consciência em fluxo – ou, como é chamada na GT, a awareness – é um conceito primário nessa abordagem e um dos constru- tos mais importantes do seu arcabouço teórico (Yontef, 1993, 1993/1998), como será tratado mais detalhadamente no decorrer deste estudo. (3) No que concerne ao Existencialismo, Cardoso (2013) argumenta que a GT herdou dessa corrente filosófica notadamente a preocupação em compreen- der a existência humana e em perceber o homem como um ser livre e responsável por construir sua própria existência, ou seja, ele é livre para escolher sua essência continuamente. Além disso, o ser humano é um ser aberto para o mundo, con- denado à liberdade, mas ele é, acima de tudo, possibilidades. No entanto, essa liberdade radical acarreta, para o homem, o que os existencialistas denominaram de angústia, que é um sentimento irrevogável, gerado por essa condição de ser

psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica367 lançado no mundo sem qualquer garantia ou salvaguarda. Nesse sentido, a GT é existencialista, porque busca auxiliar a pessoa a ampliar sua consciência de si mesma no mundo, capacitando-a a fazer escolhas mais autênticas. Do existen- cialismo heideggeriano a GT importa, ainda, o conceito de Dasein , que pode ser compreendido como uma percepção do homem enquanto ser de possibilidades, sempre em contato com o que lhe é significativo e com aquilo que constitui a sua essência. A perda do sentido da vida seria, então, uma queda no vazio existencial, outro conceito muito difundido na GT (Perls, 1977; Perls et al., 1998). Cardoso (2013) aponta que a GT também se apropriou do conceito de cuidar, que é próprio do quadro teórico do Existencialismo. O gestalt-terapeuta persegue uma forma de cuidar que seja autêntica, que é aquela na qual há o re- conhecimento do outro na sua singularidade, buscando-se “estar com” o cliente, olhando-o e acolhendo-o por inteiro, ajudando-o a descobrir suas potencialida- des, mas acima de tudo respeitando seu ritmo e suas fragilidades. Esse cuidar equivale a inspirar no outro a confiança vital de que ele necessita para reconhecer em si o seu próprio valor e sua capacidade singular para realizar seu potencial. Há, entretanto, outras bases filosóficas importantes para a fundamentação da GT, tais como a Teoria de Campo, a Teoria Organísmica e a filosofia oriental (Holanda, 2005). Com relação à Teoria de Campo, também conhecida como “espaço vital psicológico”, Rodrigues (2013) esclarece que suas formulações con- sideram a totalidade de fatos que determinam o comportamento do sujeito em um determinado momento. Essa totalidade é composta pela pessoa em si e seu ambiente. Temos, então, uma dinâmica de forças do meio interno e externo, que se influenciam mutuamente e, juntas, configuram um todo unificado e interati- vo. O que vai influenciar a GT, dentre os vários aspectos que constituem a Teoria de Campo de Kurt Lewin, é o fato de que todo campo se organiza em função do que ocorre nele e tudo tem um sentido que deve ser compreendido nessa intera- ção (Perls et al., 1998; Rodrigues, 2013). Além disso, Rodrigues (2013) aponta que tudo o que afeta o campo está no presente, no aqui-agora, mesmo que seja um fato passado ou um pensamento futuro. Segundo Rodrigues (2013), Perls não estava satisfeito com a transposição da teoria de campo de Kurt Levin e mais de uma vez manifestou seu desejo de criar uma teoria de campo própria para a GT. Atualmente, as novas concepções de campo oferecem uma melhor sustentação para a abordagem do que a teoria proposta por Lewin, que permanece um autor importante do ponto de vista his- tórico. Desde então a concepção de campo da Gestalt se desenvolveu e se sofisti- cou, assim como as teorias de campo evoluíram, gerando contribuições variadas para a GT.

psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica369 suas partes constitutivas. O ser humano é um todo em si, inserido em um dado contexto e horizonte histórico; portanto, é preciso enxergá-lo assim, como um ser em suas circunstâncias (Lima, 2013; Perls et al., 1998; Rodrigues, 2000). Esse método foi designado como holístico por Goldstein. Desse método e da Teoria Organísmica foi deduzida a lei geral, que afirma que todo organismo tende a se atualizar recorrendo ao princípio da autorregulação (Lima, 2009). Além dessas influências teóricas, a GT recebeu forte inspiração do pen- samento oriental, especialmente do taoísmo e do zen-budismo. Para Veras (2013), essas filosofias orientais propõem uma visão de existência paradoxal e uma ampliação dos conceitos de tempo e espaço, dentro da compreensão do aqui-agora da GT. Dessa maneira, podemos afirmar que a perspectiva da GT visa a promover condições facilitadoras do processo de crescimento, bem como desenvolver todo o potencial humano. Assim, por meio dessa abordagem psico- terápica, o foco se concentra no momento e na experiência presentes, ressaltan- do as vivências do indivíduo por meio dessa consciência aguçada do aqui-agora (Costa, 2014; Ginger & Ginger, 1995). Um dos objetivos centrais da GT é ampliar a consciência do cliente sobre sua forma de se relacionar consigo mes- mo, com os outros e com o mundo à sua volta. Essa ampliação favorece com que ele vislumbre um caminho de maior autonomia e independência, e que se sinta seguro, acreditando que pode contar com seus próprios recursos internos (autossuporte) (Freitas, 2016). Na perspectiva da abordagem gestáltica, o indivíduo é compreendido como um ser inerentemente relacional, singular e criativo, com aberturas e potenciali- dades inesgotáveis. É um sujeito que está sempre em movimento, em incessante busca de realizar seu potencial. Portanto, é considerado um ser transitório, em estado provisório, que está em permanente construção, na medida em que se constrói, se desconstrói e se reconstrói continuamente e a cada momento, com base nas relações que estabelece com o meio externo. Essas relações acompanham os movimentos de perene inacabamento e de interminável reconstrução que ca- racterizam o devir humano em sua busca de realização.

Modelo terapêutico da GT

O processo psicoterapêutico sempre é mediado por uma determinada vi- são de homem e de mundo. Desse modo, a prática clínica do terapeuta está for- temente calcada na singularidade do seu olhar. Essa prática é fundamentada pela perspectiva teórica adotada. Como toda teoria que sustenta um método terapêu-

370psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica tico, a GT tem sua própria metodologia, que visa a apoiar o terapeuta com todas as ferramentas disponíveis para melhor compreender o cliente, propiciando as mudanças necessárias e o seu fortalecimento, ou seja, seu crescimento enquanto pessoa. Na sequência serão abordados os principais conceitos estruturantes da GT, como: aqui-agora, awareness , fronteira de contato, Self , maturação, impasse, figura-fundo e autorregulação organísmica. Na GT o agora pode ser entendido como uma ponte entre a teoria e a prática. Discorrendo sobre a temporalidade, Perls (1977) lembra a importância do agora , uma vez que o passado não existe mais e o futuro é um ponto incerto. Assim, o agora passa a ser o ponto de equilíbrio, pois é a própria experiência, o fenômeno em si, a consciência em seu desdobrar-se. Para Polster e Polster (2001), apenas o presente (o ethos do agora) existe e qualquer tentativa de se desviar dele poderia nos afastar de uma realidade viva e pulsante. No entanto, esses autores apontam dois paradoxos que podem encobrir a dinâmica do presente: (1) embora exista uma preocupação com o passado e o futuro no funcionamento psicológico do indivíduo, estar preso a um desses polos compromete as possibilidades vitais de ter a experiência do agora, ou seja, a apropriação da existência em si, no tempo e espaço onde ela acontece; (2) o ato de falar sobre alguma coisa sem, com isso, sacrificar a imediaticidade e o valor real da experiência que se está tendo naquele momento pode tornar isso um ciclo vicioso para o indivíduo. D’Acri et al. (2014) chamam a atenção para o termo aqui e agora , ressal- tando a importância de compreender que esse conceito não pode ser entendido separadamente, isto é, de forma a tornar estanques o aqui e o agora. Dessa forma, na perspectiva da GT, a prática clínica vai se utilizar desse conceito buscando ex- perienciar a situação passada no aqui-agora, pois, como afirma Costa (2014), os fatos passados que têm significância são aqueles que são vivenciados no presente. Por isso, só existe o agora, enquanto fenômeno e estado de consciência. A práti- ca do aqui-agora busca integrar situações não fechadas, chamadas de gestalt in- completa, solicitando ao cliente que permaneça focado no que está acontecendo consigo naquele momento, por meio de uma situação ocorrida no passado, o que favorece a awareness. A concepção de awareness é central na abordagem da GT e se caracteriza pela consciência de si e a consciência perceptiva. Awareness é um termo de di- fícil tradução. Seu significado literal designa o estado de estar consciente de al- guma coisa. Para evitar confusão com a palavra “consciência”, um conceito psi- canalítico, os gestalt-terapeutas preferiram manter o termo original em inglês (Frazão, 1995). Em uma tradução aproximada, pode significar presentificação ( tornar-se presente ou estar presente ), concentração, conscientização (Costa et al.,

372psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica mitsu, 2015). O sujeito é formado pela coordenação de diferentes partes de si mesmo, as quais compõem o todo do organismo. Essa integração dinâmica das partes é o que se chama de tomar consciência de si por si mesmo (Perls, 1977). O psicoterapeuta na abordagem gestáltica almeja promover condições facilitado- ras de uma ampliação das perspectivas do indivíduo, acompanhando-o como um anjo protetor em sua jornada única e imprevisível rumo ao crescimento. Quando tomamos consciência de que existe um eu ( Self ) e o outro (ou o mundo), delimi- tamos o que Perls (1977, 1988) denominou de fronteira do ego. Essa fronteira é a margem que delineia o limite de trocas entre o eu e o outro. É a zona liminar onde duas pessoas se encontram. Para o autor, existem dois fenômenos da fronteira do ego: (1) identificação : que são pessoas, coisas ou situações com as quais o indiví- duo se identifica ao longo de seu processo de desenvolvimento, e os quais deseja preservar; (2) alienação : que são pessoas, coisas ou situações com as quais o sujeito não se identifica e, portanto, gostaria de excluir de sua vida. Self é um conceito complexo na abordagem gestáltica. Entende-se por Self “uma estrutura cujo processo pretende revelar o íntimo funcionamento da perso- nalidade ou da pessoa. É também um processo na e da pessoa, que indica um jeito peculiar e restrito de funcionar da personalidade” (Ribeiro, 2006, p. 170). Self pode ser traduzido como “o si mesmo”. O conceito de Self , para a GT, refere-se à condição de estar totalmente conectado ao eu ou à personalidade de alguém. Nes- sa acepção, o Self faz parte das relações, não existe fora delas, é um fenômeno que emerge no processo de contato (Távora, 2014). Por Self , na perspectiva da GT, entende-se o processo perceptivo, visto como uma totalidade, utilizado pelo indi- víduo para esquematizar as próprias ações dentro do campo em que se encontra. Para apreender sua configuração e seu papel, é fundamental que se esteja atento a todas as dimensões e possibilidades. Não é definido, como em outras perspectivas teóricas, como representação de si ou centro da personalidade. Na abordagem gestáltica, o Self caracteriza-se como um sistema complexo, que atua como agente propiciador do contato (Rodrigues, 2000). Também é por meio do Self que se estabelece o ajustamento aos estímulos, contribuindo assim para a adaptação da pessoa ao seu meio. É o “eu”, o si mesmo vivido e percebido pelo sujeito quando está em contato com o outro e consigo próprio. Segundo Ribeiro (2006), o Self tem a função de facilitar a cada pessoa a percepção de si mesma, de fazer com que ela sinta quem e como ela é. A pessoa tem a sensação de que ela é. Essa sensação nada mais é do que o Self sendo experiencia- do. O Self é “um sistema de contatos mediante os quais a pessoa se vê como sendo ela mesma e que lhe dá identidade” (p. 170). O Self não pode ser pensado apenas como processo, uma vez que, segundo esse autor, não existe processo em estado

psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica373 puro. Deve ser visto também como um atributo da personalidade, que auxilia em sua estruturação. É um sistema de contatos definido por três estruturas: id, ego e personalidade, no qual cada estrutura tem uma função. O processo de estrutura- ção da personalidade, guiado pelo Self , ocorre por meio de suas três atribuições: (1) O id, que tenta responder à pergunta sobre “o quê” é o Self , está ligado ao sistema sensório-motor e representa o arcaico, o primevo e as emoções básicas. (2) Já o ego tenta responder à pergunta sobre “o como” o Self funciona e está re- lacionado à função motora da personalidade, sendo responsável pelo movimento e execução das tarefas que a pessoa pensa e propõe. (3) A personalidade, que res- ponde ao “para quê” o Self existe, é parte do sistema cognitivo da personalidade, sendo responsável por responder à pergunta: “Quem sou eu?”. É preciso, no entanto, diferenciar a “função personalidade do Self ” do construto “personalidade” em si, que envolve a totalidade da pessoa. Essas três funções, id, ego e personalidade, estão sempre funcionando juntas: “o ‘id’ como um gerador de processos, a personalidade como uma experiência consciente do que a pessoa humana é […] e o ‘ego’ como aquele que faz, que executa e está sem- pre disponível motoramente para o id e para a personalidade” (p. 171). O Self está intimamente relacionado a outros conceitos fundamentais da GT, como awareness , que diz respeito à consciência de si, e à consciência percep- tiva, caracterizada como consciência global centrada no aqui-agora, que influen- cia as percepções pessoal, corporal e emocional. Além disso, o Self se desenvolve (ou não) no e por intermédio do vínculo que o sujeito estabelece com determinada situação, no ato de contatar ou, ainda, como fenômeno que emerge no campo, um acontecimento que, ao se atualizar, põe em marcha e atualiza também os processos de subjetivação. O ajustamento criativo é definido como um processo no qual o Self pen- sa, sente e age, e assim realiza a autorregulação, estabelecendo estratégias para satisfazer as necessidades, escolhendo ou rejeitando determinadas possibilidades e atribuindo um sentido para determinada situação. Só a partir daí o Self pode se ocupar espontaneamente do contato na fronteira organismo-ambiente, usu- fruindo dessa experiência na medida em que é assimilada ou rejeitada, o que pode contribuir para o processo de evolução do indivíduo. Para Polster e Polster (2001), esse fenômeno é o que designa a frontei- ra de contato , e é por meio dessa função que a percepção do indivíduo acerca das diferentes facetas que compõem sua identidade pessoal pode se desenvolver plenamente. É, então, no e pelo contato que se dá a experiência e, desse modo, a possibilidade do crescimento. O contato é o solo que envolve o que é de senso próprio do indivíduo e também o senso daquilo que difere dele, ou seja, o que

psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica375 dez do contato. Por isso esse fenômeno adquire tanta relevância no caminhar do processo terapêutico. Na GT o manejo da evitação do contato é um importante recurso psicoterapêutico de compreensão fenomenológica das experiências vi- vidas pelo cliente. Ainda em relação ao ajustamento criativo, Cardella (2014) afirma que esse conceito se refere à criatividade que busca se ajustar, bem como a um tipo de ajustamento que é ativo e criativo, proporcionando uma relação que compõe uma totalidade. Portanto, todo contato é ajustamento criativo do organismo ao seu ambiente. Para a autora, ajustar-se criativamente é colocar sua própria marca nos acontecimentos da vida, atualizando, assim, suas potencialidades e singulari- dades. Cardella aponta que, quando há uma adaptação excessiva ou acomodação servil ao meio, ocorre um ajustamento inócuo e destituído de criatividade, que é ao mesmo tempo produto de submissão servil e cristalização. Trata-se, assim, de um ajustamento estéril, também conhecido como ajustamento criativo disfuncio- nal, com reações autorreguladoras precárias e reforço de estereotipias. Outros conceitos fundamentais operam no cenário da GT, como a dife- renciação entre autorrealização e autoimagem proposta por Perls. Para o autor, muitas pessoas passam toda a vida realizando com esmero uma concepção do que elas devem ser , ao invés de realizarem a si mesmas; ou seja, a maior parte do tempo essas pessoas vivem em função de sua imagem e, portanto, daquilo que projetam de si. Perls (1977) afirma: “Onde algumas pessoas têm um Self , a maioria tem um vazio, pois estão muito ocupadas em parecer isso ou aquilo” (p. 38). Isso vai ao encontro de um dos principais conceitos da GT, que é aceitar o que se é e, portanto, conseguir realizar-se naquilo que se é, buscando ser fiel e autêntico consigo mesmo. Perls (1977) destaca ainda um outro conceito relevante, que ele designa como maturação. Consiste na possibilidade de transição ou transcendência de um apoio do ambiente, ou seja, do outro e do mundo, para um autoapoio. Nesse sen- tido, ele acrescenta um outro conceito: o impasse. O impasse seria o ponto crucial da psicoterapia, pois é o momento em que o indivíduo caminhará por si mesmo, ou seja, sem a ajuda do meio ou de qualquer força exterior a ele, buscando o su- porte em si próprio. É, portanto, por meio da resposta que dará ao seu impasse que o sujeito crescerá (ou não) com vistas a atingir o processo de maturação, que nada mais é do que deixar de depender dos outros para passar a depender exclu- sivamente de si mesmo. Ainda com relação ao processo de maturação, Perls (1977) menciona que sem frustração não existe necessidade de o indivíduo mobilizar seus recursos, de modo a fazê-lo crescer diante de determinada situação desafiadora. Conforme

376psicotErapia dE abordagEM gEstÁltica mencionado anteriormente, a frustração seria, portanto, o combustível necessário para o autocrescimento, uma vez que gera no sujeito uma potencialização inte- rior. Assim, ao frustrar o paciente, o terapeuta o coloca frente ao impasse diante de seus medos e bloqueios, provocando deliberadamente uma mobilização de suas potencialidades. Outro conceito-chave no arcabouço teórico da GT é o de figura-fundo. O fundo seria um contexto e a figura seria aquilo que de mais relevante se destaca dentro de determinado contexto ou situação experienciada. Para Perls (1977), é necessário relacionar a figura, ou seja, a experiência que está em pri- meiro plano, com o fundo, que é o conteúdo, a circunstância vital, a situação de vida. Essas partes, juntas e indissociáveis, formam a gestalt. Para Polster e Polster (2001), a figura também emerge do fundo, tal qual um baixo-relevo, de modo a requerer para si toda atenção. Já o fundo, por não ter limites ou forma específica, não se destaca, embora seja um campo fértil e provocativo em termos de possibilidades latentes. Sua função principal é fornecer um contexto que dê total visibilidade à figura. Na GT, a experiência de cada indivíduo é captada como algo que tem flui- dez, ou seja, o que agora é figura pode daqui a pouco se transformar em fundo, e vice-versa, isto é, sob certas circunstâncias, algo do fundo a qualquer momento também pode emergir como figura. Segundo Polster e Polster (2001) existem três elementos que compõem o fundo na vida de uma pessoa: (1) suas vivências anteriores; (2) situações inacabadas; e (3) o fluxo da experiência presente. Dessa forma, se o indivíduo não consegue formar figuras claras e precisas sobre suas necessidades no contexto de determinado fundo, então dizemos que essa gestalt ainda não foi fechada. Ao longo da vida, várias gestalts se fecham e outras tantas permanecem abertas, ora emergindo do fundo, ora se tornando parte dele, em um movimento contínuo e dinâmico. Por isso, o indivíduo está sempre em busca do equilíbrio interior por meio da autorregulação organísmica, que como vimos é um recurso imprescindível para restituir a fluidez da fronteira de contato (Frazão & Fukumitsu, 2015).

Dialogar na fronteira: apontamentos críticos e limitações da GT

Os conceitos fundamentais da GT desenham mais claramente seus con- tornos quando articulados com as experiências que lhe deram origem. Um ponto frequentemente criticado por alguns teóricos da GT, a começar pelo próprio Perls (1977, 1988), é o fato que, nessa abordagem, não haveria espaço para análise,