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Este documento aborda o processo saúde-doença das mulheres como fenômeno social, refletindo sobre as teorias explicativas da saúde-doença e o papel do gênero na construção social da saúde e doença. O texto discute as teorias da unicausalidade, multicausalidade e determinação social do processo saúde-doença, além do conceito de gênero e sua relação com a saúde-doença social.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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FONSECA, Rosa Maria Godoy Serpa da. Gênero e saúde da mulher: uma releitura do processo saúde doença das mulheres. In: Rosa Áurea Quintella Fernandes; Nádia Zanon Narchi. (Org.). Enfermagem e saúde da mulher. 1. ed. Santana do Parnaíba: Manole, 2007, p. 30-61.
Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca 1 Objetivos do capítulo:
Esquema dos tópicos:
1. Visão de mundo e conceitos-chave para compreender a saúde-doença - conceito de visão de mundo - visão idealista de mundo: conceito de ser humano, sociedade, processo saúde- doença - visão materialista ou realista de mundo: conceito de matéria, sociedade, população, ser humano, processo saúde-doença 2. Teorias explicativas da saúde-doença - teoria da unicausalidade - teoria da multicausalidade - teoria da determinação social do processo saúde-doença 3. Gênero como categoria explicativa dos fenômenos sociais, entre eles a saúde- doença: conceito de gênero, processo de construção da feminilidade e da masculinidade, gênero na teoria da determinação social do processo saúde-doença 4. O processo saúde-doença das mulheres como fenômeno social – processos destrutivos da vida e da saúde da mulher 5. O processo saúde-doença como fenômeno social e a assistência à saúde da mulher: princípios do Sistema Único de Saúde e bases para a assistência à saúde da mulher. 6. A prática generificada na saúde da mulher – características da prática em saúde à luz de gênero.
superação das contradições do feudalismo pelo capitalismo e permanece hegemônica até nossos dias, principalmente no mundo ocidental, em que a maioria das sociedades é organizada sob a égide deste modo de produção. Vincula-se à visão idealista de mundo, porém, agora, a expectativa de perfeição era dada pela idealização do natural. Enquanto visão de mundo, o idealismo parte do princípio de que a consciência ou qualquer das suas manifestações como o pensamento, a vontade ou qualquer coisa de ideal e imaterial, é primário, fundamental e determinante. A matéria, a natureza e o mundo material são produzidos por aqueles ou deles dependentes. A base de todos os objetos e fenômenos do mundo é uma certa substância ideal representada pela vontade divina, a razão mundial, a idéia absoluta, o espírito, derivados das sensações e percepções do homem e da sua razão..^ De qualquer forma, sendo de uma natureza ou de outra, a essência de todas as coisas está na consciência humana. Nesta visão, o ser humano é um ser ideal e existe como entidade real permanentemente na busca deste ideal. É universal, ou seja, existe nele uma essência, independentemente do local ou da época em que vive. Como ser de existência foi criado baseado numa essência ideal e durante toda a sua vida deve buscar assemelhar-se o mais possível a este ideal. Assim, existem padrões pré-determinados que devem servir de modelo para todos. Esta teoria, concebida de diversas formas, apesar de reconhecer a complexidade do ser humano e a influência do meio social no desenvolvimento de suas potencialidades, coloca toda a responsabilidade disto no indivíduo e na sua relação seja com o sobrenatural, seja com o natural. Derivado disto, existe também uma sociedade ideal, normatizada segundo valores universais de cooperação para o desenvolvimento das potencialidades humanas. A ordem social é mantida a partir do desempenho de diferentes papéis sociais que regulam o funcionamento da engrenagem social, sem conflitos. Estes, por sua vez, são concebidos como defeitos que devem ser corrigidos, sob pena de não permitir a realização do humano. O processo saúde-doença é visto como manifestações de polos de regularidades ou irregularidades de funcionamento da corporeidade do homem, adaptado ou não ao meio social e natural em que vive. Há um perfil de saúde ideal que se refere à ausência de doença e a um perfeito funcionamento do corpo humano nas suas dimensões física, psíquica e biológica, perfeitamente adaptadas às condições sociais existentes. Não é à toa que, derivado disto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu saúde como um completo estado de bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença 3. Com o desenvolvimento da sociedade capitalista e a agudização das contradições que lhe são inerentes verificou-se que a explicação dos fatos sociais, baseada na ciência positiva, oriunda das ciências naturais, proporcionava apenas uma visão parcial da realidade. Concebendo a sociedade como uma máquina e os homens como suas engrenagens, cada qual com um funcionamento pré-determinado, não permitia a visualização do todo e não mantinha qualquer aderência com o social mais amplo. O processo saúde doença refletia apenas as condições de equilíbrio/ desequilíbrio ou (^3) WHO (World Health Organization) 1946. Constitution of the World Health Organization. Basic Documents. WHO. Genebra.
normalidade/anormalidade desta máquina. Mais uma vez na história da humanidade esgotava-se a possibilidade de explicação dos fatos a partir do conhecimento construído. Em oposição a isto, ressurge da antigüidade grega, a visão do realismo ou materialismo que considera que o mundo é, pela sua natureza, material, ou seja, existe fora da consciência humana e independente dela, não sendo produto nem do pensamento, nem de qualquer ser imaterial. Tudo o que existe é matéria, ou pelo menos, depende dela. Matéria pode ser definida como a categoria filosófica que designa a realidade objetiva. É dada ao homem, copiada, fotografada, refletida nas suas sensações, porém, existindo independentemente delas. Não apenas os corpos materiais com propriedades mecânicas são matéria, mas também todas as formas qualitativamente diferentes deste mundo material, com suas propriedades físicas, químicas, biológicas e sociais, enfim, todas as coisas que têm a propriedade fundamental de existir, independentemente da consciência humana. Ainda, toda matéria está sempre em constante desenvolvimento e transformação, segundo determinadas leis, explicadas pela dialética materialista. A partir deste conceito e propriedades da matéria, a sociedade também é material porque existe fora da consciência humana e independentemente dela. Não coaduna com um ideal pré-estabelecido e não funciona como uma máquina com engrenagens movimentando-se segundo um padrão pré-determinado. É o espaço onde acontecem as relações sociais, ou seja, as relações que os seres humanos estabelecem entre si e com a natureza para a produção e reprodução das condições de subsistência ou sobrevivência. As sociedades são históricas, organizadas segundo a maneira encontradas pelos seres humanos para a sua sobrevivência. Decorrente deste, existe o conceito de população, considerando-se que, a cada momento histórico e em seu específico modo de produção, corresponde uma dada estruturação demográfica que é determinada pelo estágio de desenvolvimento econômico-social daquela coletividade. Vinculado ao conceito de sociedade encontra-se o conceito de população como um conjunto de indivíduos que realiza sua atividade vital no quadro de uma determinada sociedade. Este conjunto vive num dado território e é responsável pela produção e consumo de serviços e bens necessários para que a sociedade sobreviva e se reproduza, por meio da sobrevivência e da reprodução dos seus membros. Esta reprodução deve ser entendida como reprodução dos corpos e também do mundo (material e das idéias) no qual eles se inserem, com sua organização, normas, leis, costumes e, assim, construindo a sua própria história. Nessa visão de mundo, o ser humano nada tem de essencial, sendo histórico, ou seja, determinado pelo espaço e época em que vive. Diferencia-se conforme sua inserção no tempo e no espaço. Como ser de existência, ele se faz, se constrói no seu próprio percurso histórico. É o único ser da espécie animal que consegue traçar a sua maneira de viver, sendo esta fruto de sua relação com os outros homens e com a natureza. Além disso, por constituir-se num ser de existência, a sua natureza se revela na medida em que ele se relaciona com o concreto. É a partir deste enfoque que surge o conceito de alienação como uma situação em que o homem não se percebe enquanto transformador da natureza e da sociedade em que vive. O processo saúde doença, por sua vez, não pode ser pré-determinado ou obedecer a padrões pré-estabelecidos de normalidade. É determinado historicamente pela forma de
apenas o agente etiológico. Isto propiciou o surgimento da teoria multicausal da doença ou Teoria da Multicausalidade. 2.2 A teoria da multicausalidade Esta teoria consolidou-se na década de 60 do século XX e substituiu a teoria unicausal. Segundo ela, a causa da doença não é única mas no seu aparecimento coexistem várias causas devidas a vários fatores causais. O controle destes fatores é que favorece a não propagação da doença e constitui a base da assistência. Estes fatores agem como somatória de causas, sem que sejam atribuídos pesos a cada um deles e desta forma, a sociedade e a organização social também constituem fatores causais, tanto quanto a constituição biológica do homem, por exemplo. Uma variante deste modelo é a Teoria de Leavell e Clark, também chamado Modelo da Tríade Ecológica, segundo o qual, as causas se ordenam dentro de três conjuntos possíveis de fatores que intervêm no aparecimento da doença, relacionados ao agente (causador da doença), ao hospedeiro (homem) e ao meio ambiente (físico e social). O comportamento anormal de um destes conjuntos de fatores pode ocasionar o desequilíbrio do sistema e conseqüentemente o aparecimento da doença. Assim, a presença de um ambiente desfavorável ocasiona transtornos no hospedeiro e ativação do agente que até então pode ter permanecido inativo ou em estado de não agressão, rompendo o equilíbrio. O perfil epidemiológico constitui o conjunto das causas de doenças ou de mortes na população. Acontece que principalmente nos países e regiões mais pobres do mundo, os modelos idealistas têm se mostrado insuficientes para explicar o comportamento das doenças, mesmo quando são feitos investimentos pesados em assistência à saúde, seja preventiva, seja curativa. A falência deste modelo se dá, entre outras coisas, pela persistência de condições de vida extremamente precárias dos diferentes grupos sociais, nos quais as desigualdades condenam inexoravelmente os indivíduos a condições cada vez mais precárias de vida. Buscando uma explicação cuja lógica não resida em causas aparentes mas na essência dos problemas, surgiu a teoria da determinação social do processo saúde doença. 2.3 A teoria da determinação social do processo saúde-doença Segundo esta teoria, baseada no realismo, a causa última do comportamento do processo saúde doença deve ser buscada na forma segundo a qual a sociedade se organiza para a construção da vida social. Essa teoria interpreta os fenômenos saúde e doença como expressões de um mesmo processo, evidenciando o seu duplo caráter: o biológico e o social , uma vez que encara que a natureza humana, apesar de ter um lastro biológico, se determina a partir da vida do homem em sociedade. Assim, a organização social passa a ser o determinante fundamental das manifestações deste processo e evidencia-se como uma forma de manifestação da
qualidade de vida dos agentes sociais. Esta, por sua vez, é determinada pelos processos de produção e reprodução da vida social (trabalho e formas de vida). 5 Essa teoria permite compreender como cada sociedade cria um determinado padrão de desgaste ou potencialidades em função do consumo e gasto de energia pelos indivíduos no processo de reprodução social. A cada grupo social (representado por categorias como classe social, gênero, raça/etnia ou geração) corresponderiam condições negativas (riscos de adoecer ou morrer) ou positivas (possibilidades de sobrevivência), conseqüentes às formas historicamente adotadas pela sociedade para conduzir a sua vida social (trabalho e outras maneiras de viver a vida). O processo saúde doença manifesta- se por meio de diferentes fenômenos cuja freqüência e intensidade variam no tempo e no espaço e podem ser expressos nos níveis: individual ou singular; do grupo social e da estrutura social. (Breilh; Granda, 1990) No primeiro nível ( individual ou singular ) o processo saúde-doença manifesta-se com variações na frequência e na intensidade entre pessoas e pequenos grupos que se diferenciam entre si por atributos individuais tais como: sexo, idade, religião, escolaridade, rendimentos, etc. No segundo nível, dos grupos sociais (classes sociais, gêneros, raças/etnias ou gerações) que compartilham das condições de vida e de trabalho, as manifestações se dão através de perfis de morbi-mortalidade peculiares de cada grupo, como a expressão dinâmica da inserção destes no sistema produtivo, havendo uma verdadeira alquimia dessas categorias, com a inter-relação entre elas determinando padrões diferenciados de desgastes e peculiaridades dos sujeitos sociais. No terceiro nível, o da estrutura social , o processo saúde-doença manifesta-se através de perfis de morbi-mortalidade, peculiares de uma dada sociedade ou formação social em relação às demais.^6 Na verdade, os fenômenos saúde e doença aparecem como expressões de um mesmo processo, evidenciando o seu duplo caráter: o biológico e o social, uma vez que encara que a natureza humana, apesar de ter um lastro biológico, se determina a partir da vida do homem em sociedade. Aqui, a causa (evidenciada nas teorias anteriores) é englobada à determinação que pressupõe uma relação dialética entre dois fenômenos não reproduzíveis igualmente em diferentes condições. Em outras palavras, além da causa (ou das causas) imediatas ou diretamente vinculadas, deve ser levado em conta o lugar que o indivíduo ou grupo ocupa na sociedade (situação de classe) ou a vivência social das diferenças biológicas que porta (sexo/gênero; idade/geração; raça/etnia). (^5) “Qualidade de vida (QV) é uma noção eminentemente humana e abrange muitos significados que refletem conhecimentos, experiências e valores de indivíduos e coletividades. Tais significados refletem o momento histórico, a classe social e a cultura a que pertencem os indivíduos. (...). A expressão ‘Qualidade de vida ligada à saúde’, tradução da expressão inglesa Health-related Quality of Life , tem sido utilizada para ser distinguida da QV, em seu significado mais geral. No contexto da área clínica o interesse tem sido, geralmente, naqueles aspectos da QV que são ou estão sendo influenciados pela ocorrência ou tratamento de doenças ou traumas”. Dantas RAS; Sawada NO; Malerbo MB Pesquisas sobre qualidade de vida: revisão da produção científica das universidades públicas do Estado de São Paulo. Rev. Latino-Am. Enfermagem, jul./ago, 2003, 11(4):532- 38 (^6) Breilh J; Granda E Investigação da saúde na sociedade: guia pedagógico sobre um novo enfoque do método epidemiológico. São Paulo: ABRASCO/ HUCITEC,1990.
homem satisfaz seus desejos, libera seus instintos, trabalha, casa, come, dorme, faz sexo, diverte-se em liberdade, a mulher é reprimida e sua repressão tem sido a causa de tremendas infelicidades. Mas como não reprimí-la se, segundo a Bíblia, ela é culpada do pecado original! Confúcio, muito à vontade assinala que 'a mulher é o que há de mais corruptor e corruptível no mundo'; Péricles, quase na mesma época, afirma que 'as mulheres, os escravos e os estrangeiros não são cidadãos'. Aristóteles não fica atrás: 'Da mulher pode-se dizer que é um homem inferior' (...) E o mesmo pode-se dizer de Henrique VIII: 'As mulheres casadas, as crianças, os idiotas e os lunáticos não podem legar suas propriedades'".^8 3. Gênero como categoria explicativa dos fenômenos sociais, entre eles a saúde- doença A compreensão da visão andocêntrica prevalente na sociedade, bem como dos seus efeitos sobre a saúde-doença das mulheres se dá a partir da incorporação da categoria gênero , para diferenciar mulheres e homens não apenas biológica mas socialmente e assim romper com a compreensão dicotomizada dos papéis sociais e abrir possibilidades de superar a condição de subalternidade feminina. A categoria gênero pressupõe a compreensão das relações que se estabelecem entre os sexos na sociedade, diferenciando o sexo biológico do sexo social. Enquanto o primeiro refere-se às diferenças anátomo-fisiológicas, portanto, biológicas, existentes entre os homens e as mulheres, o segundo diz respeito à maneira que estas diferenças assumem nas diferentes sociedades, no transcorrer da história. O sexo social e historicamente construído é produto das relações sociais entre homens e mulheres e deve ser entendido como elemento constitutivo destas mesmas relações nas quais as diferenças são apresentadas como naturais e inquestionáveis. Ao contrário, a análise mais profunda de tais relações revela condições extremamente desiguais de exercício de poder com as mulheres ocupando posições subalternas e secundárias em relação aos homens. A categoria gênero pretende assim explicar, à luz destas relações de poder, as manifestações sociais das mulheres, entre elas o seu processo saúde-doença. No entanto, essa categoria não pode ser vista ou utilizada isoladamente, sob pena de se incorrer no mesmo erro apontado quando se falou do uso da categoria classe social anteriormente. Na verdade, o que se propõe é a compreensão da realidade alquimizada pelas diferentes categorias, ressaltando-se umas ou outras ou a junção de várias, dependendo do fenômeno a ser iluminado. "As categorias raça, gênero e geração têm em comum serem atributos naturais com significados políticos, culturais e econômicos, organizados por hierarquias, privilégios e desigualdades, aparados por símbolos particulares e naturalizados (...) A combinação de categorias é de fácil comprovação, já o seu produto (^8) Marchant J Apresentação. In: Loi I. A mulher. São Paulo: Jabuti, 1988.
leva a outros resultados e o seu conhecimento exige saber que se inicia por ruptura com os esquemas duais." 9 O que se quer dizer com isto é que a determinação dos fenômenos sociais subjaz à inter-articulação entre diferentes categorias sociais, com a emergência ora de uma, ora de outra, de acordo com a subjetividade social construída. Com relação a isso, é importante notar que “a vivência de relações sociais racistas, com marcas de gênero e códigos de geração por sexo, leva tanto à fragmentação da identidade por referência exclusivas, indirecionais, quanto à combinações entre identidades, resultando em significados próprios de constructos básicos de cada sistema de discriminação. " 10 Neste raciocínio está ancorada a expressão alquimia das relações sociais (raça, gênero e geração) sendo que não ocorreria em um vacum, resultando em um tipo de perfil próprio. Seus significados e re-elaborações, por sujeitos políticos numa trajetória de se assumirem como tal, são pautados por práticas sociais e projetos específicos. Assim, tal alquimia é levada a extremos em uma sociedade de classes, onde as desigualdades estão presentes em todas as esferas da vida. Não só se naturalizam questões de gênero, raça e geração, como estas são filtradas por questões de classe, diluindo-se identidades e, portanto, percepções e ações críticas às suas lógicas. Diluindo-se as identidades, dilui-se também a propriedade compreensiva dos quadros conceituais próprios a cada sistema de relações.^11 A análise mais profunda de gênero, raça/etnia e geração, no entanto, não prescinde do entendimento político mais simples da condição feminina, dos não brancos e dos não adultos de modo a decodificar tradições culturais e filosóficas e religiosas, profundamente enraizadas nas relações sociais e traduzidas nas representações dos sujeitos sociais acerca das mesmas. Na visão da saúde coletiva, subjacente à Teoria da Determinação do Processo Saúde-Doença, a situação social resultante da alquimia dessas diferentes categorias determina uma dada qualidade de vida que por sua vez condiciona riscos e potencialidades de adoecer e morrer, contrapondo-se à visão multifatorial da saúde pública baseada no funcional - positivismo. Tal visão faz com que, de uma maneira geral a saúde coletiva se contraponha à saúde pública como um esforço para a transformação social, como veículo de uma construção alternativa da realidade em termos do seu objeto de ação, dos métodos para estudá-lo e das formas de práxis que estes requerem. A amplitude da compreensão da saúde da mulher subjaz às possibilidades de interpretação do seu processo saúde-doença enquanto fenômento social. De um lado, enquanto saúde materna, saúde reprodutiva, “saúde feminina”, o objeto do processo de trabalho em saúde coletiva é a capacidade reprodutiva da mulher com a finalidade da produção e reprodução dos corpos sociais (força de trabalho). Mesmo numa compreensão mais ampliada que concebe a mulher enquanto trabalhadora, a finalidade ainda se reporta (^9) Castro MG A dinâmica entre classe e gênero na América Latina: apontamentos para uma teoria regional sobre gênero. In: Instituto Brasileiro de Administração Municipal, Rio de Janeiro. Mulher e Políticas Públicas. Rio de Janeiro: IBAM/UNICEF, 1991. p39- 69 (^10) Castro MG Alquimia de categorias sociais na produção dos sujeitos políticos. Estudos Feministas, (0/92):57-73, 1992. (^11) Stolcke V Estará o sexo para gênero assim como a raça está para etnia? / Apresentado à I Conferência da Associação Européia dos Antropólogos Sociais. Coimbra, 1990./ mimeografado
desemprego entre as mulheres foi mais alta devido à forte pressão da população feminina para ingressar no mercado de trabalho, fenômeno oposto ao verificado na década anterior. Enquanto o indicador de desocupação da população feminina foi de 12,3%, na população masculina, chegou a 7,8%. 13 Como conseqüência de menor possibilidade de consumo de bens e serviços, persiste a relação positiva entre mulher e pobreza, constatada a partir dos anos 90. À época a pobreza passou a ser vista no contexto das relações de gênero e passou a conformar uma nova análise das experiências de vida das mulheres. Constatou-se que elas constituem um grupo crescente entre os pobres das sociedades latinoamericanas, não podendo deixar de ser diferente na sociedade brasileira. As análises qualitativas constataram que as relações de gênero exacerbaram as desigualdades associadas às classes sociais e fizeram emergir situações como a distribuição desigual de alimentos no interior das famílias, a desvalorização do corpo feminino e a sobrecarga de trabalho que incide sobre as mulheres. A precariedade da situação social das mulheres passou a ser vista como resultante da divisão sexual do trabalho, de menores oportunidades em termos de educação, de situações de trabalho instáveis e com menor remuneração, de níveis inferiores de saúde e bem-estar, de reduzida participação nas decisões (tanto no âmbito privado como no público, mas especialmente, neste) e de limitada autonomia pessoal. 14 Outro fenômeno que, apesar de atingir todas as classes sociais mantém íntima relação com a pobreza de gênero é a violência de gênero, trazendo, entre outras conseqüências, o aumento do contingente de mulheres chefes de família. Segundo o censo de 2001, tomando-se o Brasil como um todo, as famílias comandadas por mulheres passaram de 18% em 1990 para 25% em 2001. Na cidade de São Paulo, representavam 24%, sendo que nos bairros centrais, bastante problemáticos por conta inclusive do narcotráfico, eram 38,10%. A causa mais freqüente disto, além do aumento no número de relações maritais desfeitas, é que os homens morrem mais por causas violentas na faixa de idade em que constitui família. Uma das preocupações do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) é que o fato já está afetando a própria pirâmide populacional de locais onde a situação é mais adversa.^15 Além da violência contra os homens que obriga as mulheres a se responsabilizarem sozinhas pelas famílias, atingindo-as também, mesmo que indiretamente, a violência direta contra as mulheres atinge todas as classes e estratos sociais. No Brasil, a cada 15 segundos uma mulher é espancada e a cada 12 segundos uma é vítima de ameaça, porém menos de 2% dos casos são denunciados, a despeito da existência das delegacias da mulher. Isto não é diferente do restante do mundo. Em cerca de 50 pesquisas populacionais mundiais, de 10% a 50% das mulheres relatam terem sido maltratadas fisicamente de alguma forma, por seus parceiros íntimos, em algum momento de suas vidas. Segundo o sociólogo e psicanalista Roberto Gambini, “a violência é a pior patologia da saúde, e sabemos mais sobre o HIV do que sobre o ódio, que é tão antigo (^13) Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Síntese dos Indicadores Sociais, 2002. Disponível em www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2002/sintesepnad2002.pdf (^14) Schteingart, M. Pobreza y alternativas de equidad social. IDRC/CDRI: CIID-Montevideo: Conferencias. Montevideo, abril, 2000. Disponível em: http://www.idrc.ca/lacro/docs/conferencias/ schteingart.html (^15) São Paulo, Município Plano Municipal de Direitos Humanos, São Paulo, 1997. Ver www.direitoshumanos.usp.br/dhbrasil/plano_munic_dh_sp_2.htm)
quanto Caim e Abel e só faz aumentar no mundo inteiro. Os excluídos de hoje só se fazem perceber quando recorrem à violência”. 16 Resumidamente, portanto, podemos dizer que na pós-modernidade, têm sido detectados vários processos destrutivos da vida das mulheres:
doença. No caso da aids, a doença hoje constitui um preço a ser debitado na conta do androcentrismo que permeia a sociedade. Inicialmente, a doença era vinculada a grupos de risco, tais como homossexuais, prostitutas e outros grupos de comportamento moral duvidoso. Atualmente observam-se grandes mudanças nos perfis epidemiológicos que indicam que não há grupos de risco mas comportamentos de risco, principalmente a descrença que coloca as pessoas em situação de vulnerabilidade (susceptibilidade individual e coletiva de exposição a riscos, condições ou danos, no processo de aquisição de uma determinada doença). O Brasil tem acompanhado a tendência mundial de mudanças no perfil da epidemia, do seu início na década de 1980, até agora. Assim, tem-se que:
sexualmente transmissíveis e aids, conforme ocorreu. Já, para a mulher, isso foi causa de imensa decepção, uma vez que agia com coerência, permanecendo fiel a ele, pelo fato de amá-lo. Este amor, no entanto, foi a causa última da sua vulnerabilidade à aids pois mesmo depois de contaminada por sífilis, anteriormente à aids, continuou mantendo relações sexuais com o marido sem a devida proteção. Segundo Paiva, “o depoimento [de Fátima] está fortemente ancorado no amor como o grande condutor do seu relacionamento e como um opositor à sua predisposição para a prevenção, tornando-a mais vulnerável à infecção pelo HIV. Sua fala é carregada de emoção, de sentimento de traição, não só da traição extra-conjugal que se desnudou com o diagnóstico do marido mas da traição aos seus sentimentos, afetividade e ao amor dedicado ao casamento que, até então, parecia estar funcionando como uma barreira que lhe garantia a imunidade”. O mito do amor romântico - aquele acima de qualquer suspeita e idealizado no qual, em geral, as mulheres acreditam - tem nas figuras de Romeu e Julieta, do romance de William Shakespeare, seu maior ícone. Trata-se do amor puro e capaz de sacralizar o humano, cuja realização não é possível fora da monoparceria sexual, pois que sacraliza o próprio sexo. No entanto, de outro lado, justamente por se realizar no mundo material e envolvendo seres históricos e socialmente constituídos, tal amor assume formas profanas (reais, terrenas) admitindo, portanto, ser vivido sem compromisso com a monoparceria sexual. Neste caso, quase se pode afirmar que o amor sagrado e metafísico é aspiração feminina, enquanto o outro, profano, é uma forma masculina de amar. Enquanto diferença, isto não significa necessariamente problema, porém, a desigualdade que resulta disso é extremamente perversa para as mulheres, pois as torna mais vulneráveis às doenças do sexo, conforme ocorreu com a feminização da epidemia da aids. Conforme afirma Bernardo Soares, no livro Desassossego, “O amor romântico é como um traje, que, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e, em breve, sob a veste do ideal que formámos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em que o vestimos. O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão. Só o não é quando a desilusão, aceite desde o príncipio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se renove o aspecto da criatura, por eles vestida” 19 Ainda, há que se levar em conta que a lógica androcêntrica da sociedade valoriza desigualmente o corpo feminino e o masculino, desvalorização essa que repercute diretamente na assistência à saúde das mulheres. Mesmo diante da positividade para o HIV, o serviço de saúde responsável por este diagnóstico não convocou a mulher para investigar uma possível contaminação. Ela só descobriu o fato depois que o marido morreu, quando já estava grávida de outro homem, no contexto de outro relacionamento. Além de falhar em relação à mulher, a precariedade dessa assistência também provocou a exposição ao risco de contaminação por HIV uma terceira pessoa que, inicialmente, nada tinha a ver com a história: o segundo companheiro de Fátima. O que se deduz disto tudo é que há uma grande iniqüidade de gênero por trás de um caso que, infelizmente, é menos raro do que se gostaria que fosse, pois pode ser o de (^19) Pessoa F O livro do desassossego de Bernardo Soares (um guarda livros da cidade de Lisboa). São Paulo: Ática, 1982.
reconhecendo-se o peso diferenciado do social atuando diretamente sobre a conformação do biológico, do psicológico e mesmo do espiritual. b) A incorporação do conceito de contextos deve ser vista como a articulação entre as diferentes dimensões da realidade determinando os perfis de saúde-doença dos sujeitos sociais quais sejam: a) a estrutural referente ao nível da estrutura social, onde têm especial influência as políticas sociais que regulamentam a forma como a sociedade se organiza para a produção da vida social. No caso da América Latina, organizada sob o modo de produção capitalista periférico e dependente, o valor do sujeito social refere-se ao valor da produtividade do seu trabalho, portanto, como dele enquanto força de trabalho. Há que buscar a transcendência deste valor no sentido de incorporar o direito de cidadania, visualizando o sujeito social como potencialmente transformador da sua vida e do seu país. b) particular ou do grupo social ao qual pertence - neste caso, especificamente relacionada à qualidade e modos de vida e saúde dos grupos sociais (constituídos através de classes sociais, gênero, raça-etnia, gerações) aos quais pertencem os sujeitos sociais e suas famílias; c) singular ou individual referente aos modos específicos de adoecer e morrer das pessoas ou grupos menores e mais próximos (famílias, por exemplo) diretamente relacionados ao seu potencial genético e forma de vida e trabalho. 22 c) A aplicação de enfoques integradores no planejamento de programas de saúde integral deve estabelecer os grupos sociais prioritários para a atenção através da seleção criteriosa, levando-se em conta a qualidade de vida determinada pela forma de inserção social de tais grupos que lhes determinam especificidades em relação aos seus perfis de saúde-doença em termos de riscos e potencialidades em relação às probabilidades de adoecer e morrer. d) As famílias e os grupos da coletividade aos quais pertencem as mulheres detêm uma posição fundamental no que se refere aos riscos e potencialidades explicitados anteriomente, pelo fato de serem locus privilegiados de socialização. Portanto, à semelhança dos sujeitos sociais individuais devem merecer especial atenção no que concerne às ações de saúde. e) A incorporação do conceito de prevenção nos diferentes níveis (primário, secundário e terciário) deve ser no sentido de prevenir o agravamento da situação de saúde, seja qual for o estágio em que se inicia a intervenção. f) A integralidade da estruturação da atenção à saúde refere-se ao enfrentamento da problemática de saúde, do diagnóstico à implementação e avaliação da intervenção baseados nas informações que comporão os perfis epidemiológicos mencionados anteriormente. A estruturação da intervenção em saúde, em linhas gerais, deve ser: multiprofissional e multidisciplinar , ou seja, exercida por diferentes trabalhadores de saúde; participativa (com participação dos diferentes segmentos da coletividade); dinâmica no sentido de busca ativa dos sujeitos sociais na coletividade e não esperar que acorram ao sistema de saúde; suficiente em termos dos recursos humanos e materiais (adequados em quantidade e qualidade) para o enfrentamento da problemática detectada; regionalizada e hierarquizada (de acordo com os princípios do SUS, mencionados anteriormente). (^22) Breilh J; Granda E, op. cit.
g) a releitura dos desafios que se colocam atualmente para o enfrentamento da problemática de saúde os coloca como sendo: