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Procedimento Administrativo e Participação: Nova Era da Administração Pública, Notas de estudo de Direito

Este documento aborda três fenômenos atuais do direito administrativo: procedimentalização da atividade administrativa, participação administrativa e o surgimento de uma nova administração pública. O texto discute a evolução do processo administrativo na europa e sua influência no direito administrativo brasileiro. Além disso, analisa a origem jusfilosófica do paradigma procedimentalista do direito administrativo e a relação entre procedimento administrativo e participação administrativa.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Boto92
Boto92 🇧🇷

4.6

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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE DIREITO
PROCEDIMENTALIZAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA DIGITAL
Uma contribuição à operatividade da participação administrativa
procedimental através das TIC no ordenamento brasileiro
MESTRADO EM
CIÊNCIAS JURÍDICO-ADMINISTRATIVAS
RENATO LIMA MARTINS DE CASTRO
Professor Orientador: David Duarte
OUTUBRO DE 2016
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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE DIREITO

PROCEDIMENTALIZAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA DIGITAL

Uma contribuição à operatividade da participação administrativa

procedimental através das TIC no ordenamento brasileiro

MESTRADO EM

CIÊNCIAS JURÍDICO-ADMINISTRATIVAS

RENATO LIMA MARTINS DE CASTRO

Professor Orientador: David Duarte

OUTUBRO DE 2016

Para Guga, Alex, Luana e Sofia, minha família em Lisboa. Para minha Mãe, minha fonte de amor. Para meu filho, minha fonte de força.

6.1 - A norma geral da participação administrativa do §3 do artigo 37 da Constituição Federal de 1988…………………………………………………………….6 4 6.2 - Por que “usuários”? Uma interpretação histórico-sociológica do §3 do art. 37 da CF……………………………………………………………………………….. 68 6.3 - A posição do §3 do artigo 37 sob a ótica da sistematização da Constituição Federal………………………………………………………………………. 6.4 - A confusão doutrinária e jurisprudencial sobre a norma regulamentadora do §3 do art. 37 da CF…………………………………………………………………….7 1 7 - A Norma Geral de Participação Administrativa: uma dupla perspectiva operativa………………………………………………………………………...................7 4 7.1 - A vinculação da Administração Pública à participação administrativa no Brasil…………………………………………………….…………………………………..7 4 a) A Administração Pública Federal, participação administrativa e o Decreto n° 8.243/2014 - Plano Nacional de Participação Social……..7 6 7.2 - O direito de participação administrativa dos particulares……………….. 79 8 - Participação administrativa procedimental………………………………………… III - A Administração Pública Digital………………………………………………….. 1 - Reforma Administrativa, Sociedade da Informação e Administração Pública Digital……………………………………………………………………………………….. 2 - O que é Administração Pública Digital?............................................................... 3 - Da Administração Eletrônica à Administração Digital……………………………... 4 - O caminho da Administração Digital e suas fases evolutivas…………………….9 1 5 - Administração Pública Digital na Europa…………………………………………....9 3 6 - Administração Pública Digital em Portugal………………………………………… 7 - Administração Pública Digital no Brasil……………………………………………... a) Administração Pública Digital e a procedimentalização da atividade administrativa…………………………………………………..………… b) Administração Pública Digital e a participação administrativa………..10 4 IV - A Participação administrativa procedimental num contexto da Administração Digital: uma contribuição para uma noção operativa no ordenamento jurídico brasileiro…………………………………………………...… 1 - O Princípio Constitucional da Eficiência e o direito de participação procedimental através de meios tecnológicos da informação e comunicação……………………...

2 - O princípio da publicidade e a exigência de publicização através das TIC como instrumento garantidor da participação administrativa procedimental……………...11 1 3 - O Princípio da impessoalidade administrativa como exigência de tratamento isonômico dos interessados através das TIC…………………………………………1 17 4 - Princípio da Legalidade e a participação procedimental digital como legitimadora da atuação informal da Administração Pública………………………………………..12 2 Conclusões……………………………………………………………………………….1 27 Bibliografia……………………………………………………………………………….13 0

posteriormente no Brasil, na tentativa de elucidação de uma interpretação incorreta do §3° do artigo 37 da Constituição Federal. O capítulo III fala sobre a interferência das Tecnologias da Informação e Comunicação na transformação da organização e na forma de relacionamento das Administrações dos Estados contemporâneos. Relaciona-se a o surgimento da Administração Digital com o movimento de reforma administrativa ocorrida na década de 1990 e com a nova sociedade da informação. Depois traça-se um conceito de Administração Digital, seguida por uma análise das principais fases evolutivas do processo de incorporação das TIC pela Administração Pública. Posteriormente, detalha-se a evolução da Administração Digital na Europa, em Portugal e no Brasil. Nas duas últimas partes, se relaciona a Administração digital ao fenômeno procedimental e a disciplina da participação administrativa. Na última parte do estudo, capítulo IV, busca-se uma contribuição à operatividade de uma participação procedimental no contexto de uma Administração Digital no ordenamento jurídico brasileiro, retirando desdobramentos jurídicos dos princípios gerais da atividade administrativa previstos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, o princípio da legalidade, da publicidade, da impessoalidade e da eficiência.

Abstract

This paper discusses three current phenomena in Administrative Law: proceduralizing administrative activity, administrative participation and the emergence of a new type of Public Administration, in result of the changes by the use of Information and Communication Technologies, called Digital Administration. In respect of these themes, based on the general principles of the Brazilian Administrative Law, the purpose is to contribute to the operability of administrative participation procedural in the context of Digital Administration. The study is divided into four chapters. The first part addresses the discipline the proceduralizing of activity management, as a new paradigm of Administrative Law. It makes a brief historical

resume, highlighting the Administration still carries a unilateral and authoritarian heritage from a reality compatible with the overcome dogmas of the Liberal State. In view of the Democratic Estate of Law, where the fundamental rights and the democratic principle emerge as values structuring, a requirement it is the emergence of a new public administration, democratic and guarantor of the rights of individuals. The procedural theory, therefore, wins the outline of new theoretical paradigm in administrative law, and proceeds to integrate the legal system through laws and codes of procedure. In Portugal, the Administrative Procedure Code 1991 opens and provides operability to the procedure. In Brazil, the Federal Constitution of 1988, through the principle of due process and the law n. 9784/1999 provide the legal boundaries for proceduralizing of all the administrative action where there is any conflict of interest. Chapter II discusses the discipline of administrative participation. First a brief historical analysis is made of this phenomenon, subsequently undertakes the definition of a concept of administrative participation, discussing the main categorizations developed by doctrine. Finally, approaches to regulatory and legal instruments of administrative participation in Portugal, and later in Brazil, in an attempt to elucidate an incorrect interpretation of Paragraph 3 of Article 37 of the Constitution. Chapter III talks about the interference of Information and Communication Technologies in transforming the organization and form of relationship of the administrations of contemporary states. It relates to the Digital Administration appearance with the administrative reform movement that took place in the 1990s and the new information society. Then draws up a concept of Digital Administration, followed by an analysis of the main evolutionary phases of the ICT incorporation process by the Public Administration. Subsequently, details the evolution of the Digital Administration in Europe, in Portugal and Brazil. In the last two parts, it relates to digital management to procedural phenomenon and discipline of administrative participation. In the last part of study, chapter IV, search is a contribution to the operability of a procedural participation in the context of Digital Administration in the Brazilian legal system, drawing legal consequences of the general principles of administrative activity provided for in Article 37 of the 1988 Federal Constitution, the principle of legality, publicity, impersonality and efficiency.

Introdução

A revolução social e econômica proporcionada pelas transformações tecnológicas que vêm ocorrendo nas últimas décadas, de maneira generalizada em todas as parte do mundo, é uma realidade que vem alterando de forma inédita a comunicação e o relacionamento entre os indivíduos, da esfera interpessoal às relações econômicas, e, cada vez mais, traz para o mundo virtual todos os aspectos das nossas vidas. O Estado, enquanto instituição integrada a essa nova Sociedade da Informação, influencia e, ao mesmo tempo, sofre influência de todo esse processo. A incorporação do uso das novas Tecnologias de Informação e Comunicação pelas Administrações Públicas permitiu a desmaterialização de atos e documentos, aumentou sua capacidade interativa através da comunicação em rede e tem feito surgir um novo tipo de administração, com novas possibilidades de rearranjo organizacional e interação com os cidadãos. Em paralelo, o procedimento aparece como figura central do Direito Administrativo contemporâneo, se consolidando como um novo paradigma e adquirindo uma centralidade teórica que traz para os seus contornos as principais explicações dogmáticas dos fenômenos jusadministrativos. Noutra vertente, a participação administrativa ressurge como ponto de ligação entre as duas disciplinas: assumindo uma posição fundamental dentro da procedimentalização da atividade administrativa e ganhando contornos inéditos com as novas possibilidades participatórias proporcionadas pela utilização das TIC. Neste ínterim, apesar da carência de instrumentos normativos, o objeto do presente estudo centra-se na busca de uma operatividade jurídica da participação procedimental no contexto de uma Administração Digital, com foco no ordenamento jurídico brasileiro. A escassez de estudos sobre a procedimentalização da atividade administrativa, e de sua relação com a participação e a Administração Digital no Brasil, revela um certo isolamento e conservadorismo da doutrina jurídica nacional, que faz com que a produção científica do país ainda se encontre nos primeiros anos de desenvolvimento dessas matérias.

No entanto, o estágio de evolutivo desse fenômenos no ordenamento jurídico e na dogmática europeia, e especificamente em Portugal, que possui o mais atualizado Código de Procedimento Administrativo do continente, lançam algumas luzes sobre os principais desafios a serem superados num futuro breve, e servem de referência para uma adaptada leitura dessas temáticas à realidade brasileira.

2 - A atuação da Administração Pública no século XXI em crise

Entender a atual fase anacrônica do Direito Administrativo requer um entendimento prévio da relação entre o Estado e o Direito, e para esse fim se faz necessária uma retomada histórica dos momentos que marcaram as principais viradas de rumo do Estado, e por reflexo, do Direito, e que consequentemente moldaram o fundamento da atuação administrativa. Considerando os limites do objeto de estudo aqui tratado, neste tópico se fará uma breve análise das viragens políticas e históricas do Estado^7 , com foco em desvendar como a atuação administrativa foi moldada a partir da concepção de Estado de sua respectiva época. O momento histórico imediatamente anterior às revoluções liberais é caracterizado por uma forte centralidade estatal, em que o poder era exercido pelo Rei, e o fundamento legitimador do poder era de base religiosa, num direito divino^8 , o que se chamou de Estado Absoluto ou Estado de Polícia^9. Numa perspectiva histórica, a própria função política deste tipo de Estado consistiu em construir uma unidade estatal e societária, para que fosse possível a transformação de uma situação de fragmentação política, para um contexto de unidade e coesão jurídica-política^10 , que deu forma ao modelo de Estado Nação que conhecemos atualmente 11. Dentro desse quadro político, a centralidade das estruturas decisórias e executórias, além de uma posição de supremacia em relação aos súditos, eram a base da atuação estatal, pois quanto mais próxima do centro, mais fidedigna seria o conteúdo da manifestação de vontade do Estado-Rei. Nestes termos, podemos

(^7) Aqui se refere a “Estado” na sua feição moderna, portanto em Estado Moderno, surgido a partir do processo de nascimento dos Estados europeus. Para mais desenvolvimentos ver Jorge Miranda, Teoria Geral do Estado e da Constituição, Almedina, 2005, pag. 37 8 Nas lições de Jorge Miranda, “O Rei pretende-se escolhido por Deus, governa pela graça de Deus, exerce uma autoridade que se reveste de fundamento ou de sentido religioso”, Teoria Geral do Estado e da Constituição, pag. 43 9 10 Cfr Jorge Miranda, Teoria Geral do Estado e da Constituição, pag. 43 11 Cfr Jorge Miranda, Teoria Geral do Estado e da Constituição, pag. 44 Nesse contexto surge a ideia de soberania do Estado, de Jean Bodin, como fundamento jurídico do poder do Rei, e justifica a centralidade da organização política-administrativa, nesse sentido ver Miguel Morgado, A noção de soberania e os seus fundamentos em Jean Bodin, in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, vol. I, Coimbra Editora, 2012, pag. 161-

dizer que a eficiência geral do Estado era medida pelo critério centralizador, quanto mais central a atuação, mais eficiente seria seu comando^12. Como sabemos, com o advento das Revoluções Liberais, principalmente da Revolução Gloriosa, na Inglaterra, e da Revolução Francesa, ocorreu uma profunda ruptura social e política, que alterou toda a organização da sociedade e do Estado. A partir desse momento foram introduzidas as bases para um novo tipo de Estado, o Estado de Direito ou Liberal, que pode ser caracterizado pelo exercício do Poder do Estado apenas nos limites das normas estabelecidas, pautado pela limitação do poder pela Lei, a que todos deveriam se submeter, inclusive o Estado, e pela garantia de direitos individuais aos cidadãos, além da repartição do exercício do poder entre Parlamento, Executivo e Judiciário. O “novo contrato social” é fundamentado numa racionalidade que coloca o povo como titular da soberania do Estado e na divisão do exercício do poder em três entes distintos. O discurso legitimador dessa nova estrutura política-social é pautada pela ideia de exercício do poder estatal pelo povo, que através da sua casa (Parlamento) emana suas próprias regras e define os limites de quem aplica a lei, Executivo e Judiciário. A noção de Estado mínimo, e de separação total entre Estado e Sociedade, são características de uma fase em que a ausência de intervenção do poder público era uma garantia dos cidadãos, e as únicas funções da Administração Pública do Estado Liberal eram manter a ordem e assegurar o exercício dos direitos de liberdade e propriedade dos cidadãos^13. No entanto, apesar da radical ruptura no campo social e político, as mudanças carreadas pelo Estado Liberal não significou o surgimento de um novo modelo de Administração Pública. O que se identifica é uma continuidade do modelo de Administração do Estado Absoluto^14 , mantendo-se intactos os traços

(^12) Sobre o tema Wolff, Bachof e Stober afirmam que a estrutura fruto deste modelo de Estado é uma “organização administrativa unitária e hierarquizada”. Para mais desenvolvimentos ver o capitulo II A Administração centralizada no Estado de polícia, pag. 105 e ss, ver Hans J. Wolff; Otto Bachof; Rolf Stober, Direito Administrativo, vol. I, Tradução de Antonio F. de Sousa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2006 13 14 Cfr Hans J. Wolff, Otto Bachof e Rolf Stober, Direito Administrativo, Vol. I, pag. 111 Cfr Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 2003, pag. 38

Portanto, observa-se um emponderamento jurídico-político da Administração Pública, que expande seus limites de atuação e assiste a criação de outras formas de intervenção jurídica, no sentido de operacionalizar seu modo de atuação, como são exemplos o regulamento e o contrato administrativo. Apesar do aparecimento dessas novas formas de agir, que de certo modo, inauguraram a colaboração e intervenção dos particulares na atividade administrativa^21 , o cerne do modo atuação da Administração Pública continuou carregando o viés autoritário da Administração agressiva, inclusive por uma questão de eficiência no cumprimento das prestações materiais a que estava incumbida^22. De fato, não se pode julgar incoerente que a Administração do Estado Social se utilize dos mesmos institutos jurídicos operativos do Estado Liberal, pois como assevera David Duarte, “tanto num caso como no outro, a intervenção jurídica da Administração baseia-se generalizadamente nas figuras do acto e do regulamento(...) formas de atuação unilateral tipicamente autoritárias”^23. As demandas trazidas pela necessidade de intervenção do Estado na esfera social pugnavam por ações intervencionistas e de grande escala, tarefas que seriam melhor desenvolvidos em estruturas decisórias centralizadas e hierarquizadas^24 , e a Administração, passa a ganhar uma concepção de um poder autônomo não meramente executivo da Lei, mas essencialmente voltado à concretização dos fins e metas do Estado, apesar de sua atuação, muitas vezes, possuir um vácuo regulamentador.

A expansão das atividades da Administração Pública e a impossibilidade da lei regular todas as hipóteses do comportamento estatal repercute num contexto em que a Administração, na ausência de parâmetros legais de atuação, cria suas

(^21) Cfr Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, pag. 76 (^22) Cf David Duarte, Procedimentalização, Participação...pag. 34 (^23) Cf David Duarte, Procedimentalização, Participação...pag. 34 (^24) Sobre a transição do Estado Liberal para o Estado Social, Rogério Soares comenta: ”(...) toda a construção do Direito Administrativo estava proposta para regulamentar a acção do velho Estado do modo liberal e custa encaixar agora nos quadros tradicionais uma acção em que o Estado não age como Estado, como sujeito da esfera do político, mas como figura do mundo do econômico.” Rogério Ehrhardt Soares, Direito Público e Sociedade Técnica, Atlântida Editora, Coimbra, 1969, pags. 86 -

próprias normas de conduta^25 , se auto-regulando, apesar de sua estrutura centralizada e “inadequada” para a emanação de normas^26. Um conjunto de circunstâncias, principalmente econômicas e sociológicas, demonstraram as limitações desse modelo de organização estatal^27 , e a crise do Estado-Providência deu lugar a um novo modo de configuração organizativa, o ainda jovem Estado Pós-social. Nesse quarto estágio estatal, em especial nos países adeptos do sistema jurídico romano-germânico, ocorre uma revalorização do papel da Constituição na configuração do Estado, como fruto de um movimento que busca nos valores morais a base do pacto social. Após a traumática experiência do nazi-fascismo, a Constituição aparece como o centro axiológico legitimador da conduta do Estado^28 , e ganha uma força normativa até então desconhecida, passa a ter eficácia e aplicabilidade direta, como toda norma jurídica^29. A expansão e fortalecimento da jurisdição constitucional^30 e a eficácia operativa dos direitos fundamentais expressos nas cartas constitucionais nos países de Direito Continental, exigiram uma postura estatal inteiramente nova, na busca por um modelo de atuação e de solução de conflitos que se compatibilizasse dentro desse novo quadro jurídico-político.

(^25) Nesse sentido, sobre a autonomia da Administração em relação a lei, Vasco Pereira chega a afirmar que a função da Administração Pública se torna uma “função muito mais criadora”. Ver Em Busca do Acto Administrativo Perdido, pag. 83 26 O Prof. Paulo Otero classifica as normas criadas pela Administração Pública para se auto-regular em “fontes voluntárias internas autovinculativas”, esse fenômeno ocorre quando a Administração Pública reserva para si a produção da fonte que consubstancia a vinculação administrativa”, ver Legalidade e Administração Pública: O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina 2011, pag. 397 e ss 27 28 Por todos ver Vasco Pereira, Em Busca do Acto Administrativo..pag. 122- Nas lições de Gustavo Binenbojm, “A bárbarie perpretada pelas potências do Eixo com o beneplácito do legislador revelou, com eloquência, a imperiosa necessidade de fixação de limites jurídicos para a ação de todos os poderes públicos, inclusive os parlamentos.”, ver Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização, 2° ed., Renovar, 2008, pag. 62 29 Sobre o tema se destaca a obra de Konrad Hesse, A Força Normativa da Constituição. Nessa obra Hesse sustenta que a Constituição jurídica tem uma pretensão de eficácia, e, assim como a lei, deve moldar a realidade, e não depender dela para ver realizado seus comandos, nesse sentido ver Nesse sentido ver Konrad Hesse, A Força Normativa da Constituição, Fabris Editor, Porto Alegre, 1991 pag. 19 30 Jurisdição Constitucional significa, nas lições de Hans Kelsen, “a garantia jurisdicional da Constituição”, e “é um elemento do sistema de medidas técnicas que têm por fim garantir o exercício regular das funções estatais”. Noutras palavras, é a outorga de poderes a um tribunal jurisdicional para que se verifique a devida conformação das leis e demais atos a Constituição. Ver Hans Kelsen, Jurisdição constitucional, 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007, pag. 123

A Constituição da República Portuguesa de 1976 e a Constituição Federal do Brasil adotaram, expressamente, o modelo de Estado Democrático de Direito em seus textos constitucionais, em seus artigos 2ª^35 e 1°^36 , respectivamente.. Nesse contexto, a positivação dos direitos fundamentais nos textos constitucionais assumem um papel importantíssimo para toda ordem jurídica, que passam a integrar um sistema axiológico e atuam como fundamento material de todo o ordenamento jurídico, extrapolando sua função originária de instrumentos de defesa da liberdade individual^37. Nas lições de Konrad Hesse, os valores democrático e dos direitos fundamentais são os fundamentos de legitimidade e os elementos estruturantes do Estado Democrático de Direito^38. Nesse mesmo sentido, Gustavo Binenbojm, considera a democracia e os direitos fundamentais como as duas maiores conquistas da moralidade pública em todos os tempos^39. A centralidade das constituições modernas no princípio da dignidade da pessoa humana é a expressão maior da posição de superioridade axiológica dos direitos fundamentais nesses sistemas normativos^40. O fundamento democrático surge do valor moral de auto-afirmação humana, do ponto de vista individual, e de autogoverno coletivo, do ponto de vista social, baseado na premissa em que todos os indivíduos são iguais, e por conseguinte, todos têm uma parcela igual de poder para decidir sobre os rumos da sociedade em que vivem^41. Enquanto princípio constitucional, o princípio democrático é mais que

(^35) Constituição da República Portuguesa, “Artigo 2º: A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. 36 Constituição Federal do Brasil, “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:(...)” 37 Nesse sentido ver Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais: Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional, Livraria do Advogado, 11ª ed, 2012, pag. 60-61 38 Ver Konrad Hesse, Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, Fabris Editor, Porto Alegre, 1998, pag. 240 39 40 Cfr Gustavo Binenbojm, Uma Teoria do Direito Administrativo, pag. 49 Nesse sentido comenta Flávia Piovesan, “A dignidade da pessoa humana, (...) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro”, Direitos Humanos e o Direito Constitucional internacional, 4° ed, São Paulo: Max Limonad, 2000, pag. 54 41 Cfr Gustavo Binenbojm, Uma Teoria do Direito Administrativo, pag. 50

uma técnica de deliberação (consubstanciada no princípio da maioria^42 ) é um “impulso dirigente” de toda sociedade e exige que toda organização do Estado possua o conteúdo democrático. Entre os direitos fundamentais e democracia existe uma relação de “interdependência e reciprocidade”^43 , base do Estado Democrático de Direito, que conjuga respeito pelos direitos de liberdade e dignidade, pautada pela legitimação da conduta estatal na soberania popular. Por uma perspectiva, os direitos fundamentais podem ser considerados simultaneamente como pressuposto, garantia e instrumento do princípio democrático da autodeterminação do povo^44. A própria noção de direitos fundamentais, na visão de Ronald Dworkin, tem um elemento democrático intrínseco, pois os considera como direitos morais, reconhecidos no seio de uma comunidade política cujos integrantes são tratados com igual respeito e consideração^45. Os direitos fundamentais têm uma função democrática, e significam a contribuição de todos os cidadãos no exercício do poder. Juntos, o princípio democrático e os direitos fundamentais, possuem um papel na definição da forma de organização do poder do Estado^46. Essa forma, impõe um dever de justificação de todo o exercício das competências estatais, inclusive as de natureza administrativa, seja feito com obediência à soberania popular^47. Essa mudança copérnica nos fundamentos legitimadores de atuação do Estado exige uma refundação do próprio Direito Administrativo enquanto ciência jurídica, no sentido de analisar e repensar seus dogmas clássicos diante dessa nova realidade política-jurídica. Não são poucas as evidências de que o esquema teórico geral do Direito Administrativo encontra no momento histórico atual um desafio inédito. Como vimos nas linhas acima, apesar do Estado ter passado por várias transformações nos

(^42) Portanto, a igualdade é o valor axiológico da democracia, no qual o princípio da maioria é a técnica de deliberação coletiva mais difundida e aceita hodiernamente, mas aquela não se resume neste. 43 44 Cfr Gustavo Binenbojm, Uma Teoria do Direito Administrativo, pag. 50, 45 Cfr Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, pag. 61 46 Cfr Gustavo Binenbojm, Uma Teoria do Direito Administrativo, pag. 54 47 Cfr J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pag. 290 Cfr Marçal Justen Filho, Curso de Direito de Direito Administrativo, Revista dos Tribunais, 8 ed, São Paulo, 2012, pag. 117