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Este documento discute o sentido etimológico da vulnerabilidade do consumidor e suas duas abordagens: conceito abstrato e situação concreta. Ele examina como a vulnerabilidade influencia a interpretação e aplicação das normas do direito do consumidor no brasil, especialmente no contexto dos 30 anos do código de defesa do consumidor (cdc).
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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B runo M irageM
1. INTRODUÇÃO O direito do consumidor constrói-se em torno da vulnerabilidade. Só há razão de haver um direito especial fundante de uma ordem pública de proteção, frente a critério que legitime a diferenciação. A Constituição da República refere-se à defesa do consumidor como direito fundamental (art. 5º, XXXII), porém não define quem seja o consumidor, cujo conceito é confiado à conformação do legislador.^1 A ordem jurídica defende o consumidor porque reconhece a necessidade de fazê-lo, identificando sua situação desigual em relação aos demais agentes do mercado (os fornecedores). Seu propósito fundamental é promover o equilíbrio das partes na relação de consumo, mitigando os efeitos de uma relação de subordinação estrutural do consumidor ao fornecedor (igualdade) de modo a assegurar sua regular ação na realização de seus interesses legítimos no mercado (liberdade). Das várias soluções percebidas a partir do direito comparado, o direito brasileiro adotou uma relativamente ampla, admitindo a pessoa física (natural) e a pessoa jurídica, como passíveis de serem qualificadas como consumidoras (art. 2º do CDC). A noção jurídica de vulnerabilidade tem origem e desenvolvimento, na expe- riência brasileira, associada ao direito do consumidor. Não que antes dele, a proteção da posição jurídica com menor poder fosse desconhecida, como bem demonstra o reconhecimento da hipossuficiência do trabalhador como princípio fundante do direito do trabalho desde meados do século passado. Seu reconhecimento pela teoria do direito, em especial a partir das transformações do direito constitucional com a consagração dos direitos fundamentais, permitiu que se admitisse uma proteção (^1) MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2019, p. 58 e ss. Para os limites e diretrizes da conformação do legislador, veja-se: MÖLLERS, Thomas M. J. Juristische Methodenlehre, 2. ed. Munique: Beck, 2019, p. 369.
(^234) | DIREITO DO CONSUMIDOR – 30 ANOS DO CDC especial, diferenciada, a grupos de pessoas em vista de qualidade ou situação espe- cífica que legitime esta distinção. A tradução desta distinção como vulnerabilidade será consagrada expressamente em relação ao consumidor, embora admita sua compreensão mais ampla em relação a outros grupos ou categorias (especialmente crianças e adolescentes, idosos, indígenas, dentre outros).^2 O sentido etimológico da expressão é conhecido: vulnus, vulnerare: aquele que pode ser ferido,^3 indicando uma situação de fraqueza ou debilidade de indivíduos ou grupos, podendo ser atribuída tanto em razão de uma qualidade pessoal (criança, idoso), uma determinada posição em relação jurídica identificada (caso do consu- midor na relação de consumo), ou ainda e em razão de terminada conjuntura social (vulnerabilidade conjuntural), como ocorre no caso das situações de discriminação estrutural em razão da raça^4 ou de sexo ou orientação sexual. Interessa a este estudo, considerando o marco dos 30 anos de promulgação do Código de Defesa do Consumidor brasileiro (CDC), o exame da vulnerabilidade do consumidor nos termos em que é reconhecida pelo Direito, e sua repercussão prática na interpretação e aplicação da lei. É notório que o reconhecimento da vulnerabi- lidade e a definição de um lugar a ela no Direito resulta da incorporação de certa visão de solidariedade social no ordenamento jurídico – no caso brasileiro, a partir da Constituição da República – rompendo com a visão exclusivamente individualista que marca a tradição do direito privado. O desenvolvimento dos institutos do direito do consumidor ao longo do tempo de vigência do CDC, seja na delimitação de seu âmbito de aplicação ou na interpretação de suas normas, sempre tomou em conta a vulnerabilidade. Surge no Código, em seu art. 4º, inciso I, que define “o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo” como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo. A vulnerabilidade do consumidor é em si, um fato, cujo reconhecimento é definido como princípio, por lei. Também a doutrina acolheu a vulnerabilidade como um princípio jurídico fundante do direito do consumidor,^5 caminho trilhado pela jurisprudência.^6 (^2) Veja-se: MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 10. (^3) FIECHTER-BOULVARD, Frédérique. La notion de vulnerabilité et sa consécration par le droit. In: COHET-CORDEY, Frédérique (org.). Vulnerabilité et droit: le developpement de la vulnerabilité et ses enjeux en droit. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2000. p. 14. (^4) IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 23 e ss. SKIDMORE, Thomas. Preto no branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 80 e ss. (^5) MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2019, p. 198. (^6) “O ponto de partida do CDC é a afirmação do Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor, mecanismo que visa a garantir igualdade formal-material aos sujeitos da relação jurídica de consumo, o que não quer dizer compactuar com exageros que, sem utilidade real, obstem o progresso tecnológico, a circulação dos bens de consumo e a própria lucratividade dos negócios.” (REsp 586.316/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, j. 17/04/2007, DJe 19/03/2009).
(^236) | DIREITO DO CONSUMIDOR – 30 ANOS DO CDC em situações específicas, por conta de determinada qualidade subjetiva pessoal ou ligada a grupos de consumidores, fundamentou o reconhecimento da vulnerabilidade agravada (ou hipervulnerabilidade),^7 a justificar a intervenção mais ampla do Estado na proteção dos sujeitos que ostentem tal condição. A afirmação destes critérios pela jurisprudência, e seu exame doutrinário, pas- saram a designar também derivações, com repercussões práticas na interpretação e aplicação das normas do CDC, e a densificação dos conceitos jurídicos formadores do direito do consumidor. Daí a utilidade de revisitar estes critérios. 2.1. Os critérios originais de classificação da vulnerabilidade do consumidor A classificação tríplice da vulnerabilidade resulta da doutrina inaugural do direito do consumidor brasileiro.^8 A distinguiu em três espécies: vulnerabilidade técnica; vulnerabilidade jurídica; e vulnerabilidade fática. A vulnerabilidade técnica resulta da situação em que o consumidor não detém conhecimento especializado sobre o produto ou serviço objeto da relação de consumo. Planta-se a desigualdade na relação jurídica com o fornecedor, mediante a presunção autorizada de que este, ao participar da oferta do produto ou serviço no mercado de consumo, detém um maior grau de informações sobre ele. É de rigor considerar que o fornecedor deve deter mais informações, inclusive como pressuposto do atendimento ao dever de informar que lhe é imputado. Em contraposição ao consumidor, de quem a priori não se exige que possua conhecimentos específicos sobre as características do objeto da contratação, além daqueles que são informados pelo fornecedor. Ao ser definida a partir do critério da existência de conhecimento específico sobre o objeto da relação de consumo, a vulnerabilidade técnica provoca duas ques- tões: a) esta presunção de desconhecimento do consumidor é absoluta, ou pode ser mitigada em vista da situação concreta, ou em relação a informações de amplo conhecimento público? e b) distinguem-se consumidores pessoas físicas e jurídicas na aferição das condições que caracterizam a vulnerabilidade técnica? A vulnerabilidade jurídica compreende a falta de conhecimento, pelo consu- midor, dos direitos e deveres inerentes à relação de consumo que estabelece, ou seja, das condições e efeitos jurídicos da incidência da legislação e do próprio conteúdo do contrato de consumo que venha a celebrar. A doutrina considera, em paralelo, uma vulnerabilidade científica,^9 para abranger também a ausência de conhecimentos em economia ou contabilidade pelo consumidor, e sua consequente incapacidade de compreensão das consequências da contratação sobre seu patrimônio. Já se observou que a vulnerabilidade jurídica é presumida com relação ao consumidor não especialista, pessoa natural, não profissional, a quem não se pode exigir a posse (^7) MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulne- ráveis. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 200. (^8) MARQUES, Claudia Lima Marques. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 324 e ss. (^9) MARQUES, Claudia Lima Marques. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 329.
Cap. 8 • PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE (^) | 237 específica destes conhecimentos.^10 Todavia, em relação ao consumidor pessoa jurídica, ou o consumidor profissional, é razoável exigir o conhecimento da legislação e das consequências econômicas dos seus atos, daí por que a presunção neste caso, ainda que relativa (iuris tantum) é de que deva ter tais informações ou buscar obtê-las. Aqui também surgem, contudo, questões interessantes: a) um consumidor com formação jurídica estará impedido, em qualquer caso, de alegar falta de entendimento sobre as repercussões jurídico-legais do contrato de consumo que venha a celebrar? b) o mesmo se pergunta em relação ao consumidor com formação na área contábil ou econômica em relação aos conhecimentos específicos das respectivas áreas. A vulnerabilidade fática é espécie ampla, que abrange, genericamente, diversas situações concretas de reconhecimento da debilidade do consumidor a partir de qua- lidades subjetivas que denotem sua subordinação estrutural em relação ao fornecedor. Poderá se dar em razão da diferença de porte econômico entre as partes, a refletir-se na desproporção dos meios de defesa de interesses e exercício de suas pretensões (vulnerabilidade econômica). Para além daí, a sobreposição de critérios a partir de qualidades subjetivas que se identifiquem também fundamentam a vulnerabilidade agravada (ou hipervulnerabilidade) do consumidor, caso, por exemplo, da criança, do idoso, ou da pessoa com deficiência, os quais podem ser, em razão de caracterís- ticas específicas (reduzido discernimento, falta de percepção), mais suscetíveis aos apelos dos fornecedores. Ela também se verifica em razão de circunstâncias fáticas da própria relação, como é o caso do consumidor enfermo que contrata com operadora do plano de saúde, profissionais médicos ou instituição hospitalar; ou o consumidor analfabeto ou estrangeiro que não conheça o idioma utilizado na relação de consumo específico. Este reconhecimento da vulnerabilidade agravada do consumidor^11 ao reconhecer o agravamento de sua condição de debilidade frente ao fornecedor, é útil na interpretação e aplicação das normas de proteção – ou como sugere a doutrina, originando um dever de cuidado especial^12 – que atenda a essa situação peculiar. Uma quarta categoria, da vulnerabilidade informacional,^13 é especialização das repercussões destas condições de fato, que dão conta da maior dificuldade do consumidor tomar em conta as informações relevantes sobre a contratação em si, ou a respeito de seu objeto (produto ou serviço). É fora de dúvida que o déficit ou assimetria informacional^14 é um dos critérios mais significativos do desequilíbrio da (^10) MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2019, p. 200. (^11) Assim, o nosso: MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: RT, 2012. Em relação à vulnerabilidade agravada dos deficientes, veja-se: DENSA, Roberta. Direito do consumidor. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 18. (^12) Assim sustentam Adalberto Pasqualotto e Flaviana Rampazzo Soares, atentando para o fato de sob o conceito não se eliminar a noção de autodeterminação do consumidor: PASQUALOTTO, Adalberto; SOARES, Flaviana Rampazzo. Consumidor hipervulnerável: análise crítica, substrato axiológico, contornos e abrangência. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 113, p. 81-109, set.-out. 2017. (^13) MARQUES. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 8. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 338 e ss. (^14) Sob distintos vieses, também na análise econômica do direito a referência a assimetria informacional conduz a interações com as noções de racionalidade limitada e economia
Cap. 8 • PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE (^) | 239 As novas tecnologias da informação e o desenvolvimento da internet, com sua incorporação a produtos e serviços, dão causa a uma profunda transformação do mercado de consumo. Introduz, com isso, realidade nova para reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado. A vulnerabilidade informacional, associada ao déficit de informações (assimetria informacional) do consumidor na relação com o fornecedor, modifica-se na reali- dade do mercado de consumo digital. Resulta das novas tecnologías da informação o surgimento de novas formas de ofertas de produtos e serviços e sua contratação pelo consumidor, bem como de novos produtos ou serviços, cuja utilidade/funcionalidade é ampliada pela combinação/acoplamento entre eles.^17 Daí a necessidade de supe- ração desta divisão trazida pela era digital (Überwindung des Digital Divide)^18 com mais informação e valorização da confiança, mas que nisso não se esgota, exigindo do intérprete o reconhecimento de uma realidade distinta também para a específica interpretação e aplicação das normas do CDC. Quanto aos novos modelos de oferta, o comércio eletrônico – inclusive por plataformas digitais –assim como o tratamento de dados pessoais dos consumidores para a definição de perfis de consumo, alteram o modo de consumir. Por outro lado, o surgimento de bens digitais, a aplicação crescente de inteligência artificial e o desen- volvimento da internet das coisas, acrescentando automação dos produtos e serviços, modificam substancialmente o objeto do consumo. Será este o contexto que justifica o reconhecimento de outra dimensão da vulnerabilidade informacional, que não se resume à falta ou à pouca qualidade da informação prestada, mas a ausência de habi- lidade ou familiaridade com o ambiente digital, o que repercute tanto na interpretação das manifestações nele emitidas ou recebidas, quanto na própria capacidade de resposta adequada a seus interesses nas relações jurídicas que resultem daí. Trata-se de situação de vulnerabilidade do consumidor facilmente percebida, passível de explicação por abor- dagens distintas. Pode-se recorrer à noção de uma vulnerabilidade neuropsicológica,^19 a partir dos estímulos do meio digital e a resposta dos consumidores, quanto inferências da economia comportamental e a estrutura de incentivos (nudges)^20 ao comportamento dos consumidores na internet – em especial aqueles que induzem a uma compreensão de maior facilidade na celebração do contrato, minimizando cautelas relativas à exigência do cumprimento das prestações pactuadas. A internet revela-se ambiente propício a (^17) Sobre o tema, seja consentido remeter a: MIRAGEM, Bruno. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo digital e o direito do consumidor. Revista de direito do consumidor, v. 125. São Paulo: RT, set.-out./2019. (^18) KLOEPFER, Michael. Informationsrecht. München: C.H.Beck, 2002, p. 128-129. (^19) Refere-se aqui, à explicação de MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Con- sumidor: o princípio da vulnerabilidade no contrato, na publicidade, nas demais práticas comerciais (interpretação sistemática do direito). 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 166 e ss. (^20) Da variada bibliografia, remeta-se, por todos, ao conhecido trabalho de THALER, Richard H.; SUSTEIN, Cass R. Nudge: improving decisions about health, wealth and hapiness. New York: Penguin Books, 2008, em especial, p. 83 e ss. Especificamente em relação ao com- portamento do consumidor, veja-se o texto de: TAHLER, Richard. Mental accounting and consumer choice. Marketing Science, v. 4, n. 3, 1985 (Summer), p. 199-214.
(^240) | DIREITO DO CONSUMIDOR – 30 ANOS DO CDC uma nova estratégia de comunicação, tendo em conta que as escolhas do consumidor não serão totalmente racionais (bounded rationality)^21 , mas influenciadas por cores, formatos, design, discurso e outros elementos da apresentação de produtos, serviços ou do próprio contrato, formando incentivos sensoriais ou emocionais direcionados à tomada de decisão. Assim, por exemplo, o estímulo emocional que pode ser utilizado para promover uma necessidade do consumidor, seja ela real ou criada artificialmente pelo forne- cedor. A internet, pela aplicação de softwares de apresentação gráfica e, sobretudo, a personalização de ofertas e publicidade ao consumidor mediante tratamento de dados pessoais,^22 potencializa os incentivos sensoriais ou emocionais para tomada de decisão do consumidor no mercado de consumo digital. Da mesma forma, as relações estabe- lecidas pela internet dão causa a novos riscos, como os que envolvem o acesso ilícito a dados, desvios de recursos e fraudes contra o consumidor, favorecidas pelo meio. Estes aspectos que caracterizam o mercado de consumo digital permitem identi- ficar uma posição própria do consumidor na internet, de vulnerabilidade em relação ao meio (ambiente), à forma de contratação e ao seu objeto (produto ou serviço): o reconhe- cimento da vulnerabilidade digital. Será ela o fundamento de um critério de diferenciação sobre as consequências/efeitos de certas relações jurídicas quando se estabeleçam em paralelo, ao mesmo tempo, na internet e fora dela. Ou ainda, para justificar determinada interpretação sobre o sentido e alcance de normas legais cujo preceito não se direcione especificamente para a internet, mas nele colha, com as transformações do mercado de consumo digital, exemplos mais significativos. Duas situações já afirmadas no direito do consumidor brasileiro, bem expressam o que aqui se busca demonstrar: a) o art. 49 do CDC, quando se refere a compras feitas fora do estabelecimento do fornecedor, não mirava as relações de comércio eletrônico; identificado, porém, que as características do comércio eletrônico impunham ao consumidor condições semelhantes às compras a distância, a extensão do direito de arrependimento nos casos previstos nesta regra é o principal exemplo contemporâneo sobre seu exercício; e b) a distinção entre o caso fortuito interno e externo, pelo qual o primeiro compreende um risco inerente a certa atividade, insuficiente para eximir a responsabilidade pelo dano que dele decorra, foi recebido pela jurisprudência para a proteção dos consumidores de serviços bancários, em relação a fraudes de que seja vítima, o que atualmente se agrava pelo uso de canais digitais, submetendo-os a tais riscos.^23 Um segundo critério que encontrou apreço jurisprudencial para reconheci- mento da vulnerabilidade – embora não sem contestação – foi o da dependência em (^21) Simon, Herbert A. Rational choice and the structure of the environment. Psychological Review, v. 63 (2). Washington: APA, 1956, p. 129-138. (^22) MENDES, Laura Schertel. A vulnerabilidade do consumidor quanto ao tratamento de dados pessoais. Revista de direito do consumidor, v. 102. São Paulo: RT, nov.-dez./2015, p. 19-43; MIRAGEM, Bruno. A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) e o direito do consumidor. Revista dos Tribunais, v. 1009. São Paulo: RT, nov./2019. (^23) Assim, a Súmula 479 do STJ: “As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias”.
(^242) | DIREITO DO CONSUMIDOR – 30 ANOS DO CDC É evidenciado, na nova regra, o propósito de limitar a extensão do âmbito de aplicação do CDC a contratos civis e empresariais, presumindo a igualdade das par- tes.^26 Todavia, alguns aspectos merecem atenção. Ao ressalvar os regimes jurídicos previstos em leis especiais preserva, em tese, a possibilidade da mesma interpretação do art. 29 do CDC, associada ao critério da dependência do produto ou serviço para equiparação a consumidor e extensão do âmbito de aplicação da lei. Por outro lado, o mesmo art. 421-A do Código Civil, ao enunciar que além da ressalva às leis especiais, prevê, igualmente, que as partes possam estabelecer parâmetros objetivos para interpretação de suas cláusulas, para sua revisão, ou para a resolução do contrato, que a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada, assim como a excepcionalidade da revisão do contrato. Pode ser interpretado, a partir destas regras, como obstáculo ao reconhecimento da vulnerabilidade-dependência que atrai a incidência do CDC. Percebe-se, contudo, que em termos lógicos este obstáculo não se firma. Afinal, uma vez ressalvado o regime da lei especial, se esta for o CDC, quaisquer parâmetros definidos pelas partes para interpretação, ou para revisão ou resolução do contrato, se contrários ao disposto no próprio Código, serão nulos (art. 51, § 1º). O mesmo se diga em relação à decisão sobre alocação de riscos, que distribua em desfavor do consumidor dever ou ônus que o CDC atribui ao fornecedor. Já a excepcionalidade da revisão contratual enuncia uma regra de interpretação dos fatos que fundamentem a pretensão revisional. Mais uma vez aqui, contudo, sendo aplicável o CDC à relação contratual das partes, quaisquer cláusulas que limitem o disposto no seu art. 6º, inciso V, ou no art. 51, serão, igualmente, cominadas de nulidade. De fato, questão fundamental do reconhecimento da vulnerabilidade pela dependência em relação ao produto ou serviço diz respeito aos seus limites. Afinal, como regra, os agentes econômicos que recorrem ao mercado para obter produto ou serviço, o fazem para atender uma necessidade, seja ela de caráter pessoal ou para o exercício de atividade econômica. Trata-se de saber como diferenciar a situação de uma pessoa jurídica empresária que dependa de um determinado insumo, da con- dição de vulnerabilidade que fundamente a incidência do CDC. A jurisprudência do STJ consagra este entendimento, ao dispensar a caracterização da destinação final do produto ou serviço quando presente a vulnerabilidade do adquirente.^27 Esta vulne- rabilidade identificada em uma situação concreta determinada, contudo, não pode equivaler a simples dependência do produto ou serviço em si; supõe a circunstância de que só possa ser oferecido, em termos úteis e a custo compatível com a atividade do adquirente, por aquele determinado contratante parte da relação jurídica, razão pela qual sua substituição se torna excessivamente custosa, ou mesmo impossível (especialmente em situações do fornecimento com exclusividade por força de lei ou de contrato). Da mesma forma, o prejuízo decorrente da falta do produto ou serviço para (^26) RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier; PRADO, Augusto Cézar Luckasheck. A liberdade contratual e a função social do contrato: alteração do art. 421-A do Código Civil. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. Comentários à Lei da Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019. São Paulo: RT, 2019, p. 309 e ss. (^27) STJ, AgRg no AREsp 735.249/SC, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. 15/12/2015, DJe 04/02/2016.
Cap. 8 • PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE (^) | 243 a atividade do adquirente deve ser grave, a ponto de reduzir seu poder de negociação com o cocontratante, situação que se relaciona também a restrições ou obstáculos a outros competidores no mercado, capazes de oferecê-los em condições comparáveis. A aplicação desses critérios pelo intérprete, contudo, nem sempre levará a conclusões unânimes. Assim por exemplo: no caso de uma revendedora de veículos que tenha feito publicidade de seus produtos, oferecendo para contato telefones que deixam de funcionar por falha da prestação de serviço pela operadora de telefonia, existiria de vulnerabilidade decorrente do custo de troca da operadora e/ou dos números de contato anunciados, ou o risco de frustração dos negócios projetados? Embora destacando o caráter essencial do serviço para o exercício da atividade empresarial em questão, o STJ entendeu que não era o caso de ter sido demonstrada, só por isso, a vulnerabilidade da revendedora de veículos.^28 A identificação destes novos critérios para o reconhecimento da vulnerabilidade e, especialmente, suas vicissitudes frente à realidade fática, tornam mais relevante o exame do conceito não apenas em razão do seu significado abstrato (princípio de vulnerabilidade), mas da forma como se apresenta em situações concretas, de modo a legitimar a aplicação do CDC, e a interpretação e suas normas.
3. NOVAS VISÕES SOBRE A VULNERABILIDADE NOS 30 ANOS DO CDC O protagonismo do princípio da vulnerabilidade no direito do consumidor afir- mou-se não apenas para justificar a existência de normas de proteção, como também de orientar sua aplicação. Para tanto, o reconhecimento da vulnerabilidade, tomada como presunção absoluta em relação às pessoas naturais consumidoras, valoriza, em relação às pessoas jurídicas, a situação concreta em que se estabelece a relação de consumo. A previsão da pessoa jurídica como consumidora – opção da legislação brasileira – desde a promulgação do CDC transitou entre dúvidas e divergências. Dúvidas sobre o alcance da disposição (em especial para apartá-las de relações civis e empresariais); divergências sobre o resultado de sua aplicação, em especial, para evitar o desequilíbrio de relações paritárias. A resposta a estas questões supõe a distinção entre a definição abstrata de vulnerabilidade e seu exame em situações concretas. Da mesma forma, o exame das próprias funções que podem ser exercidas pelo princípio da vulnerabilidade, orientadas a garantir a efetividade das normas de direito do consumidor, contribuem para a solução da questão. 3.1. A vulnerabilidade como conceito abstrato e situação concreta Resulta do princípio da vulnerabilidade a presunção absoluta de que todo o consumidor é vulnerável, modificando-se apenas o critério que a caracteriza. Em relação às pessoas jurídicas, cuja opção legislativa brasileira em prevê-la como con- sumidora se aparta de vários outros sistemas jurídicos,^29 o primeiro critério definido (^28) STJ, REsp 1195642/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 13/11/2012, DJe 21/11/2012. (^29) MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2019, p. 230. Antonio Herman Benjamin, em conhecido trabalho anterior ao CDC, definiu consumidor como sen- do “todo aquele que, para seu uso pessoal, de sua família, ou dos que se subordinam por
Cap. 8 • PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE (^) | 245 computador para uso comum no exercício de sua atividade, será consumidora? E uma sociedade simples com centenas de sócios advogados adquirindo um compu- tador para cada sócio? O critério do destinatário final fático e econômico afastaria a incidência do CDC de ambas as situações. Porém, é provável que no primeiro caso, a jurisprudência brasileira defina sua aplicação. A razão desta distinção será notada então, não pelo critério da destinação final (ambos se destinam ao exercício profissional, incrementam a atividade econômica do adquirente do produto), mas pela pressuposição de vulnerabilidade de um deles. Mesmo outros sistemas jurídicos não são unânimes na definição, alternando situações de ampliação do conceito para proteção de pequenos comerciantes (caso do direito francês)^32 , equiparar pessoas físicas e jurídicas independentemente do seu fim econômico para determinados fins (e.g. no direito italiano, para comunicação comercial e publicidade, art. 18 do Codice de Consumo), ou afastar qualquer finalidade profissional como pressuposto para atribuição do conceito (§13 do BGB alemão).^33 Daí por que um exame mais atento, inclusive da experiência na interpretação e aplicação do CDC nas últimas três décadas, permite identificar que o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor coloca-se em dois planos distintos. De um lado, sua concepção em abstrato, que permite presumir que todo o consumidor é vulnerável, o que fundamenta a própria existência de normas de proteção e sua aplicação para ree- quilibrar a relação jurídica entre as partes. Outra é seu reconhecimento em situações concretas, a partir das circunstâncias do caso e das qualidades subjetivas daquele sobre quem a vulnerabilidade se perquire, frente à relação jurídica estabelecida. Este exame da vulnerabilidade in concreto repercute de diferentes modos sobre a relação jurídica. Em primeiro lugar, poderá determinar a definição da relação de consumo, seja por equiparação (art. 29), ou influenciando na própria intepretação e aplicação do art. 2º do CDC (definição standard). Igualmente orienta a identificação situações nas quais estejam presentes diferentes critérios a agravar a situação de desigualdade do consu- midor (vulnerabilidade agravada), bem como a interpretação das normas do Código. Afinal, a vulnerabilidade (ou o reconhecimento da vulnerabilidade do consu- midor, nos estritos termos do art. 4º, I, do CDC) é princípio jurídico, o que a par do caráter polivalente de definição desta categoria jurídica,^34 que lhe impede uma definição unitária, tem seu significado associado a critérios ou fundamentos para (^32) CALAIS-AULOY, Jean; STEINMETZ, Frank. Droit de consommation. 7. ed. Paris: Dalloz, 2006, p. 11 e ss. (^33) Não se deixe de notar, contudo, que o controle das cláusulas contratuais, especialmente à luz da boa-fé objetiva é assegurado já há muitos anos pelo direito alemão (ao menos desde a lei das condições gerais dos contratos – AGB-Gesetz, de 1976), hoje definido no §305 do BGB. (^34) A crítica ao recurso excessivo aos princípios e os seus diferentes significados é talvez, hoje, tão abundante na literatura jurídica quanto a posição que sustenta a importância e protagonismo de sua aplicação. Resume o argumento a expressão de Lênio Luiz Streck, fundado em Larenz, para quem a aplicação do princípio deve ser uma solução para o sis- tema e não contra o sistema: STRECK, Lênio Luiz. Verdade e consenso. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 498.
(^246) | DIREITO DO CONSUMIDOR – 30 ANOS DO CDC a justificação de uma determinada ordem.^35 Estabelecidos de modo genérico, “são ideias diretrizes, cuja transformação em regras que possibilitem uma resolução tem lugar em parte pela legislação, em parte pela jurisprudência”,^36 devendo ser concre- tizados, e ao servirem de fundamento para ordem jurídica possuem uma dimensão de peso (dimension of weight), pela qual, no caso de colisão entre princípios, o de maior peso prevaleça, sem que o outro perca sua validade.^37 Razão pela qual serão considerados, na conhecida fórmula de Robert Alexy, como mandados de otimização, um estado ideal de coisas^38 caracterizado pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, e que a medida devida do seu cumprimento não apenas depende das possibilidades reais, mas também jurídico-normativas.^39 Os efeitos do princípio da vulnerabilidade se produzem em diferentes níveis,^40 informando a definição dos conceitos essenciais do microssistema de defesa do consumidor, a interpretação de suas disposições (como se caracteriza a informação adequada ou a segurança legitimamente esperada), assim como a rejeição de um resultado da aplicação incompatível com o princípio (assim, por exemplo, a que equi- pare a consumidor o empresário parte de um contrato paritário, ou mitigue riscos empresariais mediante aplicação das regras do CDC). 3.2. Funções da vulnerabilidade Um exame da experiência de quase três décadas de vigência do Código de Defesa do Consumidor permite observar a centralidade do princípio da vulnerabilidade como reitor de sua interpretação e aplicação. Ao lado do desenvolvimento doutrinário, fixando-lhe não apenas o conceito, mas também sua classificação (espécies), e efeitos, a jurisprudência o desenvolveu para além do uso meramente retórico, especialmente como critério de diferenciação das hipóteses de incidência das normas do CDC. Devem ser reconhecidas ao princípio da vulnerabilidade três funções essenciais. A primeira, mais conhecida, para definir o âmbito de aplicação do CDC, delimitando o conceito de consumidor a partir do critério de destinatário final presente no art. 2º, (^35) ESSER, Josef. Grundsatz und Norm in der richterlichen Fortbildung des Privatrechts, 4. impres- são, Tübingen, 1990, p. 51. (^36) LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 599. (^37) A dimensão de peso dos princípios resulta da influente contribuição de Ronald Dworkin, no direito anglo-saxão, e recepcionada no direito brasileiro. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978, p. 26. Na mesma linha o entendimento de ALEXY, Robert. Zum Begriff des Rechtsprinzips, Argumentation und Hermeneutik in der Jurisprudenz. Beiheft I: Rechtstheorie. Berlin: Duncker und Humblot, 1979, p. 59-87. Para a conhecida sugestão sobre a “ponderação de bens”. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 574 e ss. (^38) FIGUEROA, Alfonso García. Principios y positivismo jurídico. Madrid: CEPC, 1998, p. 192-193. (^39) ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón-Valdez. Madrid: CEPC, 2002, p. 86. (^40) FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação.
(^248) | DIREITO DO CONSUMIDOR – 30 ANOS DO CDC previstas”. Os capítulos mencionados na regra, já se disse, são aqueles que dispõem sobre as regras relativas às etapas pré e pós-contratuais, e de execução dos contratos de consumo, assim como de normas que disciplinam a relação independentemente da existência do contrato (“Das práticas comerciais” e “Da proteção contratual”). O elemento nuclear do preceito do art. 29 compreende a exposição às práticas previstas nos respectivos capítulos. Perceba-se: mera exposição. Não exige que haja a celebração do contrato, tampouco a presença de outro elemento objetivo previsto na definição legal de consumidor (art. 2º do CDC). Tomando em conta o conteúdo dos capítulos em referência, as práticas comerciais nele previstas e as regras contratuais são comuns às práticas no mercado, tanto em relações de consumo, quanto relações civis e empre- sariais. A interpretação e aplicação literal da regra do art. 29, nestes termos, atrairia a incidência do CDC, nesta parte, a todas as relações contratuais privadas, indistintamente. Daí o esforço doutrinário e jurisprudencial, desde o início da vigência do Código, para delimitar o âmbito de incidência da regra e, consequentemente, de aplicação das normas do CDC. Embora, em um primeiro momento, será o art. 29 fundamento para uma corrente de interpretação expansiva das normas do Código (comumente referida como “maximalista”), com o advento do Código Civil de 2002 é que a exigência de uma distinção mais precisa passa a dar maior destaque ao reconhecimento da vulnerabilidade in concreto do sujeito qualificável como consumidor como pressuposto de aplicação da regra. O disposto na regra adquire sentido específico: exposição às práticas que coloque o exposto em condição vulnerável perante o outro sujeito da relação jurídica. Daí decorre a definição de uma corrente de interpretação – o “finalismo aprofun- dado” – que admite a aplicação do CDC à pessoa jurídicas quando presente na situação concreta, sua vulnerabilidade frente aquele que será definido como fornecedor.^41 Em termos conceituais, a aplicação do princípio da vulnerabilidade à interpretação do art. 29 do CDC, conduziu a uma delimitação conceitual estrita, reduzindo o alcance do seu art. 2º em relação à definição do consumidor pessoa jurídica. Nestes termos é que se percebe, inclusive, as referências da jurisprudência quanto à excepcionalidade da aplicação do CDC às pessoas jurídicas.^42 Será pelo reconhecimento da vulnera- bilidade in concreto que se admitirá a incidência do CDC a relações entre pequenos empresários e bancos relativamente a certas operações,^43 ou mesmo entre empresários de diferentes portes, sobretudo quando lhe faltem condições para conhecimento pormenorizado sobre as características do produto^44 ou do contrato.^45 (^41) MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2019, p. 243. (^42) STJ, REsp 476.428, Rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 19.04.2005, DJU 09.05.2005; AgRg no AREsp 735.249/SC, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. 15.12.2015, DJe 04.02.2016. (^43) STJ, AgInt no AREsp 383.168/RJ, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, j. 24/09/2019, DJe 02/10/2019. (^44) STJ, AgRg no AREsp 735.249/SC, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. 15/12/2015, DJe 04/02/2016. (^45) STJ, AgRg no REsp 1.321.083/PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, j. 09.09.2014, DJe 25.09.2014; REsp 861.711/RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, j. 14/04/2011, DJe 17/05/2011.
Cap. 8 • PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE (^) | 249 Por outro lado, ao referir-se também a pessoas determináveis ou não o art. 29 também em relação a este aspecto sofrerá interpretação informada pelo princípio da vulnerabilidade para efeito de considerar a exposição da coletividade de consumi- dores, em razão do reconhecimento do risco que certas práticas comerciais podem oferecer à coletividade. Conforme ensina a jurisprudência, “notadamente os riscos que, in abstracto, acarretam para toda a coletividade, e não apenas para os eventuais contratantes in concreto”.^46 Duas questões merecem atenção. A primeira delas diz respeito aos critérios para o reconhecimento da vulnerabilidade, além daqueles tradicionalmente identificados pela doutrina. Em especial, para efeito da interpretação do art. 29 do CDC, a depen- dência econômica como critério para reconhecimento da vulnerabilidade. Afirma a jurisprudência que “em uma relação interempresarial, para além das hipóteses de vulnerabilidade já consagradas pela doutrina e pela jurisprudência, a relação de dependência de uma das partes frente à outra pode, conforme o caso, caracterizar uma vulnerabilidade legitimadora da aplicação da Lei 8.078/1990, mitigando os rigores da teoria finalista e autorizando a equiparação da pessoa jurídica compradora à condição de consumidora”.^47 Esta vulnerabilidade por dependência econômica, conforme já foi sustentado, não pode ser reconhecida por simples necessidade do produto ou serviço no processo produtivo da pessoa que se pretenda qualificar como consumidora. A dependência resultará da ausência de substitutos, do elevado custo ou das dificuldades concretas de substituição daquele fornecedor por outro concorrente. Da mesma forma, note-se que a questão do reconhecimento in concreto da vulnerabilidade pode envolver dilação probatória, o que restringirá, eventualmente seu exame às instâncias ordinárias, dados os requisitos de admissibilidade do recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça.^48 3.2.2. Função interpretativa A segunda função do princípio da vulnerabilidade (ou do reconhecimento da vulnerabilidade, nos termos em que define o art. 4º, I, do CDC) se dá na inter- pretação de normas legais de proteção do consumidor e do próprio contrato de consumo (função interpretativa). A obtenção do direito a partir de uma visão sis- temática pressupõe o controle teleológico do resultado da interpretação da norma, de modo a assegurar sua coerência com o próprio conjunto de valores que formam o sistema.^49 O direito do consumidor e sua matriz normativa – o CDC – fundam-se no reconhecimento de sua vulnerabilidade para legitimar a intervenção tutelar do (^46) STJ, RMS 27.541/TO, 2ª T., j. 18.08.2009, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 27.04.2011. (^47) STJ, AgInt no AREsp 1415864/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 04/05/2020, DJe 07/05/2020. (^48) STJ, AgInt no AREsp 1476190/RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, j. 10/03/2020, DJe 17/03/2020; REsp 567.192/SP, Rel. Min. Raul Araújo, 4ª Turma, j. 05/09/2013, DJe 29/10/2014. (^49) CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 187 e ss.
Cap. 8 • PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE (^) | 251 consumidor, senão a razão pela qual tenha adotado o comportamento, para o que o reconhecimento da sua vulnerabilidade também implica a avaliação da capacidade para adoção da conduta necessária para evitar o dano (e.g. pode ser que o consumidor tenha agido de determinado modo, causando o dano, porque não lhe foi informado o comportamento esperado, o qual também não tinha como prever). O mesmo se diga nas situações em que consumidor não presta ao fornecedor informação rele- vante, caso em que, reconhecida sua vulnerabilidade, perquire-se sobre a existência de um dever de prestá-la ou de responder à pergunta que lhe tenha de ser feita (e.g. a anamnese médica e o dever de declaração inicial do risco no seguro). Ainda é de referir, neste caso, a interpretação do que se considere constrangi- mento ou ameaça, elementos nucleares para caracterização da cobrança abusiva de dívidas (art. 42 do CDC), cuja concreção deve ter em conta a condição específica do consumidor. No tocante à interpretação do contrato, o art. 47 do CDC define que “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”, regra que é fundamentada no princípio da vulnerabilidade, ademais porque devem “ser postas de modo a evitar falsas expectativas, tais como aquelas dissociadas da realidade, em especial quanto ao consumidor desprovido de conhecimentos técnicos”.^52 Um olhar contemporâneo da realidade do mercado de consumo e das normas de proteção previstas pela legislação ao sujeito vulnerável na relação de consumo vem sustentando uma heterogeneidade da posição do consumidor, a reclamar uma diferen- ciação na sua proteção conforme as qualidades subjetivas que apresentam. Em breve síntese, este argumento sustenta a necessidade de maior proteção a consumidores de menor capacidade cognitiva, sobretudo devido a sua formação, e menor poder de negociação, em relação a consumidores em melhor posição cultural ou econômica. Ou, por outro lado, a diferenciação definida não mais por critérios subjetivos relativos à pessoa do consumidor, mas a partir de situações especiais de risco.^53 O propósito da diferenciação entre consumidores orienta-se, predominante- mente, no reconhecimento de situações que apresentam características ainda mais intensas de debilidade do consumidor, como ocorre na vulnerabilidade agravada de determinados grupos (e.g. consumidores crianças, idosos, doentes, analfabetos). Contudo, esta mesma diferenciação orientada a promover a efetividade da proteção do consumidor (reconhecendo aspectos específicos da sua vulnerabilidade) pode ser vista em sentido oposto, para reduzir o nível de proteção de consumidores que alegadamente ostentem melhores condições de conhecimento e informação sobre a relação de consumo, e defesa dos seus interesses. Neste caso, a versão de um con- sumidor razoável e atento acaba sendo estabelecida para mitigar a proteção legal. Exemplo deste argumento é a determinação, para o consumidor, de um ônus de se informar. Reconhecida nos estudos mais recentes associados ao direito civil e (^52) STJ, REsp 1344967/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. 26/08/2014, DJ 15/09/2014. (^53) GRUNDMAN, Stefan. A proteção funcional do consumidor: novos modelos de consumidor à luz de teorias recentes. Revista de direito do consumidor, v. 101. São Paulo: RT, set.-out./2015, p. 17-42.
(^252) | DIREITO DO CONSUMIDOR – 30 ANOS DO CDC empresarial (relações paritárias), compreende a imputação de comportamento para que faça tudo o que estiver razoavelmente ao seu alcance para se auto informar. Não constitui, todavia, dever, mas ônus, uma vez que não se trata de um comportamento exigível, de modo que seu descumprimento pode dar causa à limitação ou exclusão de eventual responsabilidade do titular do dever de informar.^54 Note-se que o ônus de se informar é expressão de comportamento diligente dos contratantes, afirmado em contratos paritários. A pergunta é se será possível reconhecê-lo nos contratos de consumo, em vista da vulnerabilidade do consumidor. É induvidoso que, frente a quantidade de informações disponíveis, o cumpri- mento do dever de informar do fornecedor exige não apenas diligência e técnica, organizando a prestação de informações ao consumidor em vista de sua relevância, e quanto ao conteúdo, tempo e modo que permitam sua adequada compreensão.^55 Afinal, o dever de prestar informação ao consumidor tem o propósito de assegurar sua autonomia da vontade.^56 Não há como se exigir que toda a informação seja prestada, mas toda a infor- mação relevante. Por outro lado, não é irrazoável exigir que o consumidor detenha informações sobre fatos notórios em determinadas circunstâncias, o que na respon- sabilidade por acidentes de consumo, por exemplo, poderá concentrar-se no exame de eventual culpa exclusiva da vítima (será preciso dizer que o fogo queima, ou a água molha?). Isso não equivale, contudo, a reconhecer um ônus de se informar ao consumidor. A pergunta prossegue sendo sobre a existência e o conteúdo do dever do fornecedor de prestar a informação (dever de informar), não de um comporta- mento imputável (ainda que não exigível) do consumidor de se informar. O próprio exemplo examinado pela doutrina, colhido dos tribunais, merece atenção. Trata-se de caso de pacote de viagem internacional contratado em agência de turismo, no qual o consumidor, ao apresentar-se para check-in e embarque, é surpreendido com a exigência de passaporte. A decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, no caso, foi o de reconhecer descumprimento do dever de informar da agência de turismo que contratou o pacote; compara-se à decisão estrangeira que em situação análoga, deixou de reconhecer o dever de informar da agência de turismo, cujo conteúdo variado não implicava prestar informação sobre a exigência de passaporte.^57 Nestes dois casos, contudo, o que se discute é o conteúdo do dever de informar, que se concentra no comportamento devido/esperado do fornecedor. Nas relações de con- sumo, é impróprio imputar-se ao consumidor um dever de se informar.^58 No direito (^54) Veja-se, neste sentido, a excelente tese de: TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O princípio da boa-fé no direito civil. São Paulo: Almedina, 2020, p. 264-265. (^55) MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2019, p. 375. (^56) GRUNDMAN, Stefan. Informação, autonomia da vontade e agentes econômicos no direito dos contratos europeu (2002). Revista de direito do consumidor, v. 58. São Paulo: RT, abr.- -jun./2006, p. 275-303. (^57) TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O princípio da boa-fé no direito civil. São Paulo: Almedina, 2020, p. 268-269. (^58) Conforme jurisprudência ao “impõe ao fornecedor uma obrigação de diligência na ativida - de de esclarecer o consumidor, sob pena de desfazimento do negócio jurídico ou de res- ponsabilização objetiva por eventual dano causado, ao passo que, num sistema jurídico