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Análises de Narrativas: Práticas Sociais da Escolarização e Alfabetização, Notas de aula de Pedagogia

Um estudo sobre as práticas sociais relacionadas à escola, leitura e escrita, baseado na análise de narrativas de indivíduos. O autor explora as convergências e divergências nas oralidades e registros escritos, permitindo lançar hipóteses sobre as práticas sociais viabilizadas com o domínio de conhecimentos valorizados pela instituição escolar. O objetivo é refletir sobre as possibilidades da escola como participante e colaboradora no desenvolvimento e alcance de objetivos e desejos dos sujeitos.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
CURSO DE PEDAGOGIA – LICENCIATURA
Luciane Marcon Villa
“POR QUE MOTIVOS VOCÊ ESTÁ ESTUDANDO?”:
NARRATIVAS ORAIS E ESCRITAS DE ADULTOS QUE
FREQUENTAM A ESCOLA
Porto Alegre
2. Sem. 2010
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

CURSO DE PEDAGOGIA – LICENCIATURA

Luciane Marcon Villa

“POR QUE MOTIVOS VOCÊ ESTÁ ESTUDANDO?”:

NARRATIVAS ORAIS E ESCRITAS DE ADULTOS QUE

FREQUENTAM A ESCOLA

Porto Alegre

  1. Sem. 2010

Luciane Marcon Villa

“POR QUE MOTIVOS VOCÊ ESTÁ ESTUDANDO?”:

NARRATIVAS ORAIS E ESCRITAS DE ADULTOS QUE

FREQUENTAM A ESCOLA

Trabalho de Conclusão apresentado à Comissão de Graduação do Curso de Pedagogia – Licenciatura da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial e obrigatório para obtenção do título Licenciatura em Pedagogia. Orientadora: Profa. Dra. Luciana Piccoli

Porto Alegre

  1. Sem. 2010

RESUMO

Esta pesquisa analisa narrativas orais e escritas de adultos não alfabetizados ou não concluintes dos anos iniciais do Ensino Fundamental sobre os motivos que os mobilizam à frequência escolar. Através de um estudo de caso em duas turmas do Programa de Alfabetização de Adultos de uma instituição filantrópica da Grande Porto Alegre, na qual sou professora, foram realizadas gravações de voz dos participantes nas narrativas orais e de imagens das produções escritas, advindas do questionamento disparador: “Por que motivos você está estudando?”. Outra estratégia metodológica foi minha observação das aulas com registro em diário de campo, na qual pude ter acesso a outros motivos, descritos pelos alunos, como justificativas para a escolarização. Contando com o aporte teórico dos Estudos Culturais e dos Estudos do Alfabetismo, as análises, por meio da categorização das narrativas, que convergem ou divergem nas oralidades e nos registros escritos, permitiram lançar hipóteses a respeito das práticas sociais, de leitura e de escrita que os sujeitos acreditam ser viabilizadas com o domínio dos conhecimentos valorizados pela instituição escolar. Percebo que há narrativas aliadas aos “mitos do alfabetismo” e da escolarização; por outro lado, outras práticas contextualizadas justificam a frequência escolar, relacionadas ao desejo de possuir carteira de motorista, ao trabalho, à família, à aprendizagem do ler e escrever, à esfera da rua, à religiosidade, à autonomia do sujeito, ao uso de tecnologias.

Palavras-chave: Estudos Culturais. Alfabetização de adultos. Escolarização.

VILLA, Luciane Marcon. “Por que motivo você está estudando?”: narrativas orais e escritas de adultos que frequentam a escola. Porto Alegre: UFRGS,

  1. 53 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Pedagogia). Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. .

LISTA DE FIGURAS

  • Figura 1 – Registro escrito de Neivaldo (68 anos, aposentado e chacareiro.)
  • Figura 2 – Registro escrito de Roberta (40 anos, doméstica)
  • Figura 3 – Registro escrito de Betina (50 anos, dona de casa.)
  • farmácia) Figura 4 – Registro escrito de Jaqueline (57 anos, dona de casa e dona de
  • Figura 5 – Registro escrito de Cláudia (57 anos, pensionista e babá)...................
  • Figura 6 – Registro escrito de Alzemiro (69 anos, aposentado e pastor)...............
  • Figura 7 – Registro escrito de Diva (65 anos, aposentada e cozinheira)...............
  • Figura 8 – Registro escrito de Larissa (51 anos, recicladora.)...............................
  • costureira)............................................................................................................... Figura 9 – Registro escrito de Raila (78 anos, dona de casa, aposentada como
  • Figura 10 – Registro escrito de Querida (29 anos, auxiliar de limpeza).................
  • Figura 11 – Registro escrito de Dida (53 anos, dona de casa)...............................
  • Figura 12 – Registro escrito de Letícia (50 anos, dona de casa)...........................
  • Figura 13 – Registro escrito de Linda (40 anos, doméstica)..................................
  • Figura 14 – Registro escrito de Rosa de Sharon (49 anos, costureira)..................
  • trufas artesanais).................................................................................................... Figura 15 – Registro escrito de Carla (45 anos, desempregada – produtora de
  • Figura 16 – Registro escrito de Pedro (36 anos, tratador/treinador de cavalos)....
  • Figura 17 – Registro escrito de Cafuringa (50 anos, pintor automobilístico)..........

1 CAMINHADA ACADÊMICA E DOCENTE: DA INSPIRAÇÃO TEMÁTICA

Acredito que tudo o que pretendo pesquisar nesta proposta de trabalho de conclusão do curso de Pedagogia^1 tem como princípio a minha caminhada como docente desenvolvida em diferentes estágios curriculares^2 e extracurriculares^3 , constituída ao longo das direções que fui trilhando, configurada pelas escolhas das disciplinas eletivas^4 , por leituras realizadas... Não me envergonho ao confessar que a escolha pelo referido curso não foi consciente, mas por seleções relacionadas à minha afinidade com assuntos e conhecimentos associados à área das ciências humanas. Com o passar do tempo, fui me encontrando, ou melhor, fui encontrada, pelas propostas dos estágios extracurriculares. Comecei a pautar as aprendizagens do curso de graduação às práticas de sala de aula e ao desafio de valorizar e significar a iniciativa. A busca dos alunos^5 à escolarização me conduziu a tomar partido de escolhas, direções, focos, estudos, compreensões relativas à dedicação aos estudos propostos e às possibilidades, como já comentadas, proporcionadas pelo curso de Pedagogia. Leciono, na condição de estagiária extracurricular, há aproximadamente dois anos, em turmas de alfabetização de jovens e adultos em uma Instituição Filantrópica da Grande Porto Alegre. Nesta atividade, passaram por minhas intervenções seis turmas que abrangem do primeiro ao quinto ano do Ensino Fundamental, sendo intercaladamente três turmas do primeiro e segundo ano e outras três do terceiro ao quinto ano, divididas assim pela proposta institucional de priorizar a aceleração da aprendizagem.

(^1) Sou aluna do referido curso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com ingresso na licenciatura em Pedagogia no ano-semestre de 2007/1. 2 São nomeados “estágios curriculares”, no curso de Pedagogia da UFRGS, a prática docente realizada em período reconhecido, registrado no currículo obrigatório e não tendo remuneração. 3 Os “estágios extracurriculares” são uma modalidade de prática na qual os estudantes saem a campo, referendados por legislação pré-estabelecida, para colocar em prática seu aprendizado e adquirir experiência. Nesta proposta o trabalho é remunerado, frequentemente, com uma “bolsa-auxílio”. 4 5 Nomenclatura da UFRGS para as disciplinas em que as escolhas são de opção dos estudantes. Embora consciente do viés sexista da Língua Portuguesa, que usa o gênero gramatical masculino para se referir tanto a mulheres como a homens, optei por utilizar tal opção linguística por questões de facilidade de leitura.

Nesta trajetória docente e concomitantemente acadêmica, observo que muitas das realidades comentadas a partir da observação de outras colegas que exerceram práticas docentes nas mais diversas localidades da região metropolitana (Viamão, Alvorada, Guaíba, bairros de Porto Alegre...) apresentam características semelhantes em relação às comunidades atendidas nas classes da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Considero relevante explicitar que me direcionei a estas reflexões por conviver com adultos, os quais narram suas histórias de vida e justificam suas presenças na escola por resgate às interrupções provocadas pela família. Quase que unanimemente, os estudantes relatam ter abdicado da frequência aos bancos escolares em prioridade ao trabalho na roça, no trato com animais, ou nos afazeres domésticos com o objetivo de auxiliar no orçamento e ampliar as chances de uma melhor qualidade de vida. Diante disso, minha inquietação incide na crença de que a prática pedagógica escolar, por também não estar isenta na produção dos sujeitos, poderia ser mais produtiva no sentido de explorar e ampliar as perspectivas iniciais dos alunos, aquelas que, de certo modo, mobilizaram os sujeitos a se desacomodarem e a tomarem a iniciativa de participar de um programa de alfabetização escolar. Com referência a este enfoque, questiono sobre quais são as marcas identitárias que mobilizam jovens e adultos analfabetos ou não concluintes dos anos iniciais do Ensino Fundamental a frequentarem os bancos escolares. Quais são ou seriam estes motivos que provocam os alunos da classe onde leciono a ponto de eles desejarem e acreditarem que a participação escolar os complementará? Meu objetivo, através do levantamento de dados de uma pesquisa empírica, consiste em relacionar as buscas dos jovens e adultos e refletir sobre as possibilidades da escola como participante e colaboradora para o desenvolvimento e o alcance dos objetivos e desejos destes sujeitos. Sob estes aspectos, mobilizada por estes objetivos, realizei um estudo de caso em duas turmas do Programa de Alfabetização de Adultos de uma instituição filantrópica da Grande Porto Alegre, RS, Brasil, onde leciono como professora titular. Neste ambiente realizei gravações de voz entre os participantes, colhendo narrativas orais e de imagens das suas produções escritas, advindas do questionamento disparador: “Por que motivos você está estudando?”. Outra estratégia metodológica foi minha observação de aulas com registro em diário de campo, sob o qual pude ter

2 APRESENTAÇÃO DO AMBIENTE DA PESQUISA E DA JUSTIFICATIVA

METODOLÓGICA

Considerando relevante a explicitação metodológica utilizada para o levantamento de dados da pesquisa e não perdendo de vista que o material analisado é obtido a partir das interações em que eu, pesquisadora, ocupo o lugar de professora titular e, neste duplo papel, observo e registro em diário de campo, proponho e justifico, nesta seção, minhas escolhas pelos aportes teórico-metodológicos. Prezando pela localização do leitor no espaço de minha interação, apresento, em primeiro lugar, o ambiente de minha prática docente e investigativa para depois dissertar sobre a justificativa metodológica, constitutiva da segunda subseção, na qual caracterizo e justifico as estratégias utilizadas para o levantamento de dados, embasados na pesquisa qualitativa de cunho etnográfico.

2.1 SOMOS (RE)PRODUZIDOS PELOS “MUITOS OUTROS” COM OS QUAIS

CONVIVEMOS

Durante as práticas extracurriculares na EJA, realizei diversas intervenções pedagógicas e, a partir delas, fui me constituindo docente, realizando uma formação acadêmica recheada de questionamentos observados em sala de aula com a possibilidade e a interatividade da discussão no grupo de formação do curso de Pedagogia. Direcionei a minha pesquisa, como já comentado, para os sujeitos das atuais turmas do Programa de Alfabetização de Adultos de uma Instituição Filantrópica da Grande Porto Alegre, onde é de praxe a posição de professor no referido segmento ser ocupada por estagiários da Pedagogia sob a responsabilidade e auxílio de uma Orientadora Educacional. Por organizações de nomenclatura, as turmas de minha

atuação como docente são designadas: ALFA I e ALFA II^6 , compreendendo, respectivamente, 1º e 2º anos e 3º, 4º e 5º anos do Ensino Fundamental. O colégio funciona em três turnos, desenvolvendo cursos em Educação Básica, Educação Profissional e Educação de Jovens e Adultos. A faixa etária atendida na instituição é ampla e inicia aos cinco anos, não possuindo idade máxima para a participação em cursos. Suas dependências apresentam amplo ambiente de salas de aulas, equipadas com um computador para pesquisas e, nas salas onde acontecem os cursos da EJA, aparelhos audiovisuais. Na instituição, também há uma biblioteca para leituras, pesquisas bibliográficas e consultas via internet, sala multiuso com equipamento multimídia, dois laboratórios de informática e laboratório de ciências. A diversidade de elementos tecnológicos acredito ser um dos motivos pelos quais há uma preferência em estudar nesta instituição em detrimento de outras, visto que muitos estudantes, como veremos no material empírico analisado, buscam o ambiente escolar como recurso para compreender o uso das tecnologias. Se considerarmos o restante da estrutura, contamos ainda com três quadras para atividades físicas, horta, viveiro, pátios, área coberta para palestras de grande porte, laboratórios específicos para os cursos de eletrônica, administração, gastronomia, fuxico, patchwork. O desenvolvimento do curso de alfabetização permite, assim, a ampliação das possibilidades dos alunos para a participação nestes outros cursos, que complementam formações e criam alternativas de atuação profissional. Na escolha do local para a instalação deste colégio, há aproximadamente trinta anos, a seleção recaiu prioritariamente fundamentada com base no entorno, isto é, por tratar-se de localidade habitada por um significativo número de pessoas carentes e sem acesso à escolarização. Atualmente a comunidade caracteriza-se por pessoas que, em sua grande maioria, possuem moradia própria, empregos formais. Poucas, se não nenhuma rua deixa de ser asfaltada, há tratamento de água e esgoto. A localidade conta com posto de saúde, coleta de lixo, comércio... Considero significativo registrar que os alunos, em todos os níveis de ensino, são selecionados por critérios de residência próxima à escola, por situação de vulnerabilidade socioeconômica, o que muitas vezes aproxima as comunidades

(^6) ALFA é a denominação das turmas utilizada pela Instituição e abrevia a palavra “alfabetização”.

Como a instituição é vinculada a uma empresa privada, desde as primeiras trocas, realizadas entre a orientadora pedagógica e eu, a realidade empresarial fez-se presente em falas que exprimiam a necessidade de cumprirmos metas relacionadas à empregabilidade dos alunos, ou seja, as pessoas matriculadas deveriam possuir alguma atividade profissional, sejam elas autônomas, legais, provisórias, aceitando-se também aposentados. Outras exigências que nós – principalmente eu como educadora em contato direto com os alunos – deveríamos cumprir, seria o controle da evasão e da aprovação, não havendo indicativos de como efetuaríamos tais exigências. A característica de altos índices evasivos, corriqueira no segmento, acredito ser a maior dificuldade e desafio para os gestores do curso. Planos contra estas perdas são frequentemente elaborados e medidas de suporte escolar são desenvolvidas por mim enquanto professora titular, mas, quando surge uma proposta ou mudança de horário relacionada ao emprego, os alunos dão prioridades a elas, postergando seus desejos e objetivos verbalizados no início do curso. Com o meu foco direcionado para o público da EJA e considerando o período de minha atuação na Educação, observo que muitas das pessoas que frequentavam e frequentam o curso de Alfabetização de Jovens e Adultos são oriundas das regiões interioranas de nosso estado. As informações trazidas por elas, muitas vezes, configuram-se a partir de uma realidade de vida na qual contextos socioeconômicos dificultaram e até mesmo impediram a frequência aos bancos escolares. Devido às dificuldades financeiras, as migrações do interior para o meio urbano tornaram-se inevitáveis e, com elas, novas habilidades foram exigidas. Tais informações foram consideravelmente trazidas nas classes de minha atuação, mas no dia-a-dia sempre observei que as narrativas sobre estas justificativas das carências eram superadas por outras necessidades ainda não completamente conhecidas, as quais são objeto de pesquisa para este trabalho. Na tentativa de entender o que se passa, identifico que os sujeitos discentes, presentes no decorrer de meu estágio, possuem sonhos e projetos de futuro que incluem a escolarização, mas, em contrapartida, observo que cada vez mais aparecem dificuldades para a formação das turmas neste segmento na instituição de ensino. No ambiente de sala de aula, fazem-se presentes apenas 28 alunos. A demanda estabelecida pelas diretrizes educacionais federais previstas indicam, entretanto, uma

possibilidade de 80, se considerássemos as duas turmas que compõem os anos iniciais do Ensino Fundamental para jovens e adultos. O que tenho escutado dos alunos e de outras pessoas é a predominância de preconceitos sociais que os inibem de frequentar os bancos escolares. Dentre outros motivos, também escuto sobre a dificuldade de adequação nos horários dos empregos em relação aos oferecidos para a aprendizagem e a necessidade de realizar horas extras para complementar o salário e auxiliar no pagamento das despesas mensais. Durante o curso de Pedagogia e através de minha inserção na prática docente, percebi a gravidade desta situação que o movimento privado, as condições contemporâneas de trabalho e as exigências de produtividade provocam na formação escolar.

2.2 ARQUITETURA DA PESQUISA

Partindo do contexto institucional e comunitário descrito, tento viabilizar um levantamento de dados, na sala de aula de minha atuação, através da organização com base em uma abordagem qualitativa que, como descreve André (1995), é uma pesquisa que serve, desde sua raiz no século XIX, para o estudo dos fenômenos sociais e humanos. Iniciei a mobilização para o levantamento de dados com a ênfase no processo que estava provocando a frequência dos sujeitos nos bancos escolares e não pela crença na obtenção de produtos, resultados finais, os quais, segundo André (1995), são elementos importantes da pesquisa etnográfica. Através de conversa com a Orientadora Pedagógica da instituição, comuniquei-a do desafio que o último semestre do curso de Pedagogia me instituía. Apresentei a proposta de pesquisa embasada na curiosidade de analisar as narrativas mobilizadoras dos jovens e adultos que compunham as turmas de alfabetização em relação à frequência nos bancos escolares e frisei o sigilo ético que preservaria a identidade do colégio. Questionei-a, então, sobre a permissão de desenvolver esta pesquisa; ela, por sua vez, conversou com a diretora

foram realizadas gravações de voz dos participantes e de imagens das produções escritas, as quais foram mobilizadas a partir do questionamento disparador: “Por que motivos você está estudando?”. As turmas ALFA I e ALFA II elaboraram suas respostas para o referido questionamento em ocasiões distintas. A estratégia para a entrevista com os alunos, como explicitada, teve um momento oral e outro de proposta de produção escrita, em que promovi um espaço para a escuta atenta dos sujeitos que tentavam explicitar suas justificativas para o movimento de frequência escolar, conforme evidenciarei nos registros seguintes. Considero relevante justificar que, para esta pesquisa, utilizo o conceito de entrevista referendado por Silveira (2002, p.120), sob o qual é proposto que esta forma de levantamento de dados é constituída de “eventos discursivos complexos, forjados não pela dupla entrevistador/entrevistado, mas também pelas imagens, representações, expectativas que circulam no momento e situação de realização das mesmas e, posteriormente, de sua escuta e análise.” Na primeira turma, por constituir-se de 11 alunos frequentes, sete homens e quatro mulheres, priorizei que a proposta fosse desenvolvida no momento em que todos estivessem presentes, assim introduzi a pesquisa tendo como estratégia inicial a entrevista para que, posteriormente, fosse facilitado o registro escrito pessoal. Direcionei um a um a problemática supracitada: “Por que motivos você está retornando aos bancos escolares?” 7 , o questionamento em si sofria modificações, mas a essência mantinha-se e, em semicírculo, elaboramos uma conversa intercalada entre eu, professora, e cada um dos sujeitos. Não demorou muito para que a organização de locutores fosse constituída por um imenso debate em que, além dos presentes responderem a pergunta direcionada por mim, problematizaram questões como a vergonha de ser analfabeto e estar frequentando a escola depois de adulto em contraponto a outros que verbalizavam orgulho por estar estudando. A conversa foi gravada, os elementos das narrativas foram transcritos e organizados em um quadro para a minha análise, com base na minha interpretação do que foi verbalizado pelos alunos.

(^7) Este questionamento é diferente do título porque foi modificado ao longo da interação com os alunos, como explicitado no transcorrer da descrição metodológica.

Em um segundo momento, organizado no encontro do dia seguinte com a mesma turma, propus o registro escrito da resposta do questionamento disparador, composto pela mesma pergunta do início da entrevista. Disponibilizei folhas A4 sem pauta e orientei os educandos a datarem, a nomearem-na e a registrarem o questionamento apontado na lousa. Nesta turma observei, através de mapeamento das hipóteses de leitura e escrita realizadas há pouco mais de um mês antes dessa atividade, que os alunos encontravam-se em diferentes níveis de conceitualização da escrita^8 , motivo pelo qual o registro particular de cada um sofreu intervenções minhas. Destaco que, de forma alguma, auxiliei a escrita de qualquer outra coisa senão o verbalizado pelos educandos, esta prática de intervenção foi por mim desenvolvida naquele momento em que o registro escrito tornava-se significante e muitos alunos, justificando-se que depois eu tomaria nota do que escreveram como estratégia para não interferir no registro pessoal, sequer se disponibilizaram a fazê-lo. Os educandos que escreviam conforme a hipótese alfabética demonstraram tamanha insegurança pelo meu afastamento que defenderam a ideia de inutilidade de sua escrita, pois eu não a compreenderia, tendo que registrar novamente todo o dito. A prática da reescrita é comum diante de registros de caráter iniciais no processo de aquisição da língua escrita. Como explicitei para o grupo que não realizaria intervenções nos registros, ou seja, não modificaria suas formas de expressão, muitos negaram sua capacidade de produção escrita. Tomei, assim, a atitude de aproximar-me e provocá-los à utilização das habilidades que já conhecia em cada um. Em muitos momentos, após a aceitação da prática de escrita, a turma questionava-me sobre a representação escrita de fonemas, assim, muitas das produções apresentadas neste trabalho não representam fielmente as características dos níveis de escrita que os alunos têm no cotidiano. Tal intervenção não comprometeu, entretanto, o conteúdo dos textos, já que gravei a conversa estabelecida na elaboração da escritura com os alunos. Voltando-me para a descrição dos acontecidos, na turma ALFA II, enfatizo que estabeleci um caminho inverso. Priorizando a reflexão particular sobre os motivos que mobilizaram os discentes à frequência na escola, solicitei que o registro escrito, com o

(^8) Emília Ferreiro e Ana Teberosky, em Psicogênese da Língua Escrita (1999), organizam a gênese do processo de aquisição da escrita em cinco níveis (1, 2, 3, 4 e 5), sendo que o último caracteriza o final da evolução, no qual os sujeitos escrevem a partir do princípio alfabético.

vida, sonhos, inquietações, que representam os desejos dos jovens e adultos que frequentam as classes de alfabetização. Procurei, através da investigação de aspectos subjetivos, de motivações explícitas ou não, da mesma forma que foi utilizada a abordagem qualitativa, compreender uma “descrição narrativa dos padrões característicos da vida diária dos participantes sociais na sala de aula (...)” (Moita Lopes, 1996, p. 88). Nesta perspectiva, esta pesquisa apresenta características da etnografia que, segundo André (1995), é uma “descrição cultural”. A metodologia utilizada pelos Estudos Culturais pode-se valer de uma bricolagem de estratégias e instrumentos de pesquisa. Segundo Costa, Silveira e Sommer (2003), a etnografia, a análise textual e do discurso e muitos outros caminhos investigativos são inventados para poder compor os objetos e corresponder a seus propósitos. Neste sentido, considero relevante evidenciar que outra estratégia para o levantamento de dados desta pesquisa, para além da entrevista descrita anteriormente, foi a observação com registro em diário de campo, o qual fui desenvolvendo ao longo do período de levantamento de dados e no qual tomei nota de outros motivos justificados pelos alunos para terem voltado a estudar que não foram ditos na situação da entrevista. É justamente por estes variados elementos que este trabalho se configura como etnografia, pelo fato de ter acompanhado os sujeitos ao longo do processo investigativo. Procurei agir como pesquisadora na turma, não apenas como professora; assim, o cotidiano na sala de aula acabou sendo alterado potencialmente pela repercussão que as propostas de reflexão promoveram ao serem desenvolvidas. A atenção para o inusitado, o cuidado com as minhas falas, na tentativa de possibilitar que os sujeitos se sentissem mais à vontade frente à construção e à organização de suas narrativas sobre as suas mobilizações para a escolarização, inquietaram-me durante vários dias e fizeram-me refletir sobre o tanto que a etnografia mobiliza para a imersão, participação na cultura pesquisada. Na educação, o estudo descritivo, um dos elementos da etnografia, é focalizado em uma unidade, seja ela uma escola, um professor, ou professores, aluno(s) ou sala de aula. A “preocupação com o significado, com a maneira própria com que as pessoas vêem a si mesmas, as suas experiências e o mundo que as cerca” (André, 1995, p. 29)

é outra característica que justifica a etnografia como metodologia desta pesquisa, visto que, este estudo, para que seja reconhecido, antes de tudo, caracteriza-se com requisitos outros, configurando um “sistema bem delimitado” (André, 1995, p. 31). Busco, através da pesquisa etnográfica, a “formulação de hipóteses, conceitos, abstrações, teorias e não sua testagem” (André, 1995, p. 30), pois “quando os estudiosos das questões educacionais recorrem à abordagem qualitativa, eles buscavam uma forma de retratar o que se passa no dia-a-dia das escolas.” (André, 1997, p. 4). Encerro esta redação tendo por intermédio o início de uma maior compreensão do ser etnógrafo. Nesta escrita, a descrição aqui apresentada busca recuperar, (re)construir o vivido nos dias em que busquei intencionalmente dirigir um olhar diferenciado para o ambiente da sala de aula. Santos (2005) me auxilia na reflexão de que a ilusão do etnógrafo talvez seja a de que algum dia consiga esgotar completamente, por meio da narrativa, as possibilidades e todas as significações que esta cultura possa ter. Como ele, posso dizer que nenhuma cultura, nenhuma relação humana, conseguirá ser resumida, explicitada, justificada por meio de uma narrativa. As relações entre sujeitos, pensamentos, quereres e seres são construídas através de inúmeras interações e relações subjetivas. Não conseguirei, por mais esforço e dedicação que empreenda, dar conta de explicitar todas as possibilidades dos alunos frequentes na sala de aula, temática desta pesquisa. Meu olhar, minha interpretação da realidade também é constituído, construído pelas muitas (re)produções e pelos “muitos outros” com os quais convivo, o que também resulta em uma limitação de ser pesquisador.