Baixe Urbanização e Pobreza Urbana: Desafios e Perspectivas e outras Esquemas em PDF para Crescimento, somente na Docsity!
MIKE DAVIS
PLANETA DE FAVELAS
A involução urbana e o proletariado informal
Em algum momento do ano que vem, uma mulher vai dar à luz na favela de
Ajegunle, em Lagos; um rapaz fugirá de sua aldeia, no oeste de Java, para as luzes
brilhantes de Jacarta; e um fazendeiro partirá com a família empobrecida para um
dos inumeráveis pueblos jovenes de Lima. O evento exato não importa e passará
sem sequer ser notado. Ainda assim, representará um divisor de águas na história
humana. Pela primeira vez, a população urbana da Terra será mais numerosa que
a rural. Na verdade, dada a imprecisão dos recenseamentos no Terceiro Mundo,
essa transição sem paralelo pode já ter ocorrido.
A Terra urbanizou-se ainda mais depressa do que previra de início o Clube
de Roma em seu relatório sabidamente malthusiano de 1 972, Limits of growth
[Limites do crescimento]. Em 1 950, havia 86 cidades no mundo com mais de um
milhão de habitantes; hoje, são 400 e, em 20 1 5, serão pelo menos 550. Na verda-
de, as cidades absorveram quase dois terços da explosão populacional global desde
1 950 e crescem hoje no ritmo de um milhão de bebês e migrantes por semana.
A população urbana atual (3,2 bilhões de pessoas) é maior que a população total
do planeta em 1 960. Enquanto isso, no mundo todo o campo chegou a sua po-
pulação máxima (3,2 bilhões de pessoas) e começará a encolher a partir de 2020.
Como resultado, as cidades serão responsáveis por todo o crescimento popula-
cional futuro da Terra – espera-se que seu ponto máximo, cerca de 1 0 bilhões de
habitantes, seja atingido em 2050.
(^) UN Population Division, World urbanization prospects, the 2001 revision (Nova York, 2002). (^) Population Information Program, Population reports: meeting the urban challenge , v. XXX, n. 4, outono [quarto trimestre] de 2002, p. 1. (^) Wolfgang Lutz, Warren Sandeson e Sergei Scherbov, “Doubling of world population unlikely”,
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O CLIMATÉRIO URBANO
Onde estão os heróis, os colonizadores, as vítimas da Metrópole?
Brecht, registro no Diário, 1921
Desse aumento mundial, 95% ocorrerá nas áreas urbanas dos países em
desenvolvimento, cuja população dobrará para quase 4 bilhões de pessoas na pró-
xima geração. (Na verdade, a população urbana combinada da China, da Índia
e do Brasil já é mais ou menos igual à da Europa somada à da América do Norte.)
O resultado mais notado será o desenvolvimento de novas megacidades com mais
de 8 milhões de habitantes e, ainda mais espetaculares, hipercidades com
mais de 20 milhões de habitantes (a população urbana mundial estimada na
época da Revolução Francesa). Em 1 995, só Tóquio atingira incontestavelmente
esse patamar. Em 2025, segundo a Far Eastern Economic Review , a Ásia, sozinha,
poderá ter dez ou onze conurbações desse tamanho, como Jacarta (24,9 mi-
lhões), Daca (25 milhões) e Karachi (26,5 milhões). Xangai, cujo crescimento foi
congelado durante décadas pela política maoísta de suburbanização deliberada,
poderia ter até 27 milhões de moradores em sua imensa região metropolitana
estuarina. Enquanto isso, prevê-se que Mumbai (Bombaim) atinja 33 milhões
de habitantes, embora ninguém saiba se concentrações tão gigantescas de po-
breza são sustentáveis em termos biológicos ou ecológicos.
Mas, se as megacidades são as estrelas mais brilhantes do firmamento urba-
no, três quartos do fardo do crescimento populacional será suportado por cidades
pouco visíveis de segundo nível e por áreas urbanas menores – lugares onde, como
enfatizam os pesquisadores da ONU, “há pouco ou nenhum planejamento para
acomodar tais pessoas e prestar-lhes serviços”. Na China (oficialmente 43% urbana
Nature , n. 387, 19/6/1997, p. 803-4. No entanto, a população da África subsaariana triplicará, e a da Índia dobrará. (^) Global Urban Observatory, Slums of the world: the face of urban poverty in the new millenium?
(Nova York, 2003), p. 10. (^) Embora não se duvide da velocidade da urbanização global, a taxa de crescimento de cidades
específicas pode frear-se repentinamente com o atrito do tamanho e da aglomeração. Um caso famoso de uma dessas “reversões de polarização” é a Cidade do México, que todos previam que atingiria 25 milhões de habitantes na década de 1990 (a população atual é, provavelmente, de 18 ou 19 milhões). Ver Yue-man Yeung, “Geography in an age of mega-cities”, International Social Sciences Journal , n. 151, 1997, p. 93. (^) Ver o ponto de vista de Yue-man Yeung, “Viewpoint: integration of the Pearl River delta”, International Development Planning Review , v. 25, n. 3, 2003. (^) Far Eastern Economic Review, Asia 1998 Yearbook , p. 63. (^) UN-Habitat, The challenge of the slums: global report on human settlements 2003 (Londres, 2003), p. 3.
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Por exemplo, os deltas dos rios Pérola (Hong Kong–Guangju) e Yang-tsé (Xangai),
juntamente com o corredor Beijing–Tianjin, estão se transformando rapidamente
em megalópoles comparáveis a Tóquio–Osaka, ao baixo Reno ou a Nova York–
Filadélfia. Mas esse pode ser apenas o primeiro estágio do surgimento de uma
estrutura ainda maior: “um corredor urbano contínuo que se estende do Japão/
Coréia do Norte até o oeste de Java”. Xangai, quase com certeza, irá então se unir
a Tóquio, Nova York e Londres como uma das “cidades mundiais” que controlam
a rede global de fluxos de capital e informação. O preço dessa nova ordem urbana
será a desigualdade cada vez maior em e entre cidades de diferentes tamanhos e
especializações. Guldin, por exemplo, cita interessantes discussões chinesas sobre
a possível substituição, hoje em dia, do antigo abismo de renda e desenvolvimento
entre a cidade e o campo por uma lacuna igualmente básica entre as cidades pe-
quenas e as gigantes litorâneas.
DE VOLTA A DICKENS
Vi hostes inumeráveis, condenadas à escuridão, à sujeira,
à pestilência, à obscenidade, ao sofrimento e à morte precoce.
Dickens, “A December vision”, 1850
A dinâmica da urbanização no Terceiro Mundo recapitula e confunde os pre-
cedentes da Europa e da América do Norte no século XIX e início do século XX.
Na China, a maior revolução industrial da história é a alavanca de Arquimedes que
desloca uma população do tamanho da européia das aldeias rurais para cidades
cheias de fumaça e arranha-céus. Como resultado, “a China deixa[rá] de ser o país
predominantemente rural que foi por milênios”. Na verdade, o grande óculo do
Centro Financeiro Mundial de Xangai pode, daqui a pouco, olhar para um vasto
mundo urbano jamais imaginado por Mao, nem, aliás, por Le Corbusier. Mas, na
maior parte do mundo em desenvolvimento, faltam ao crescimento das cidades o
poderoso motor industrial-exportador da China e sua enorme importação de ca-
pital estrangeiro (hoje em dia, equivalente à metade do investimento estrangeiro
total no mundo em desenvolvimento).
(^) Yue-man Yeung e Fu-chen Lo, “Global restructuring and emerging urban corridors in Pacific
Asia”, em Lo e Yeung (orgs.), Emerging world cities in Pacific Asia (Tóquio, 1996), p. 41. (^) Guldin, Peasant , cit., p. 13. (^) Wang Mengkui, assessor do Conselho de Estado, citado no Financial Times , 26 de novembro de 2003. Desde as reformas de mercado do final da década de 1970, estima-se que quase 300 milhões de chineses mudaram-se das áreas rurais para as cidades. Espera-se que mais 250 ou 300 milhões os sigam nas próximas décadas ( Financial Times , 16/12/2003).
Planeta de favelas 1 5
Em conseqüência, a urbanização em outros lugares foi radicalmente desli-
gada da industrialização e até do desenvolvimento propriamente dito. Alguns
argumentariam que esta é a expressão de um pendor inexorável: a tendência in-
trínseca do capitalismo informatizado de desvincular o crescimento da produção
do crescimento do nível de emprego. Mas, na África subsaariana, na América
Latina, no Oriente Médio e em partes da Ásia, a urbanização sem crescimento
é mais claramente herança de uma conjuntura política global – a crise da dívida
externa do final da década de 1 970 e a subseqüente reestruturação das economias
do Terceiro Mundo pelo FMI nos anos 1 980 – do que lei férrea do avanço da tec-
nologia. Além disso, a urbanização do Terceiro Mundo continuou em seu ritmo
velocíssimo (3,8% ao ano entre 1 960 e 1 993) durante os anos difíceis da década
de 1 980 e do início da de 1 990, apesar da queda do salário real, da alta dos preços
e da disparada do desemprego urbano.
Essa expansão urbana “perversa” contradisse os modelos econômicos ortodo-
xos, que previam que o feedback negativo da recessão urbana retardaria ou até re-
verteria a migração do campo. O caso africano foi especialmente paradoxal. Como
as cidades da Costa do Marfim, da Tanzânia, do Gabão e de outros países cuja eco-
nomia se contraía 2% a 5% ao ano conseguiram ainda manter um crescimento po-
pulacional anual de 5% a 8%? Obviamente, parte do segredo é que as políticas de
desregulamentação agrícola e “descampesinação” impostas pelo FMI (e hoje pela
OMC) aceleraram o êxodo da mão-de-obra rural excedente para as favelas urbanas,
ainda que as cidades deixassem de ser máquinas de empregos. O crescimento da
população urbana, apesar do crescimento econômico urbano zerado ou negativo,
é a face extrema do que alguns pesquisadores rotularam de “superurbanização”.
É apenas uma das várias ladeiras inesperadas para as quais a ordem mundial neo-
liberal empurrou a urbanização do milênio.
É claro que a teoria social clássica, de Marx a Weber, acreditava que as grandes
cidades do futuro seguiriam os passos industrializantes de Manchester, Berlim e
Chicago. Na verdade, Los Angeles, São Paulo, Pusan e, hoje, Ciudad Juárez, Bangalore
(^) Josef Gugler, “Introduction – II. Rural-urban migration”, em Gugler (org.), Cities in the developing
world: issues, theory and policy (Oxford, 1997), p. 43. Para uma visão contrária, que contesta os dados geralmente aceitos do Banco Mundial e da ONU sobre as taxas de urbanização elevadas e contínuas da década de 1980, ver Deborah Potts, “Urban lives: adopting new strategies and adapting rural links”, em Carole Rakodi (org.), The urban challenge in Africa: growth and management of its large cities (Tóquio, 1997), p. 463-73. (^) David Simon, “Urbanization, globalization and economic crisis in Africa”, em Rakodi, Urban challenge , cit., p. 95. (^) Ver Josef Gugler, “Overurbanization reconsidered”, em Gugler, Cities in the developing world ,
cit., p. 114-23. Em contraste, a economia anterior dominante na União Soviética e na China maoísta restringia a migração interna para as cidades e, assim, tendia à “suburbanização”.
Planeta de favelas 1 7
sobre a distribuição de renda ou bem-estar [despesas ou consumo] em mais de
90% da população do mundo”.)
Slums também é incomum em sua honestidade intelectual. Um dos pesqui-
sadores ligados ao relatório contou-me que “os tipos de ‘Consenso de Washington’
(Banco Mundial, FMI etc.) sempre insistiram em definir os problemas das fa-
velas globais não como resultado da globalização e da desigualdade, mas como
resultado do ‘mau governo’ ”. No entanto, o novo relatório rompe a seriedade e a
autocensura tradicionais da ONU para condenar abertamente o neoliberalismo,
em especial os programas de ajuste estrutural do FMI.
A direção principal das intervenções nacionais e internacionais durante os últi- mos vinte anos na verdade aumentou a pobreza urbana e as favelas, elevou a exclusão e a desigualdade e enfraqueceu a elite urbana em seu esforço de usar as cidades como motores do crescimento.
Slums , é verdade, negligencia (ou guarda para outros relatórios do UN-Habitat)
algumas das questões mais importantes sobre o uso da terra causadas pela superurba-
nização e pelo assentamento informal, como o espalhamento, a degradação ambiental
e os perigos urbanos. Também deixa de lançar luz sobre os processos que expulsam
a mão-de-obra do campo e de incorporar uma literatura volumosa e de crescimento
rápido sobre a dimensão sexuada da pobreza urbana e do emprego informal. Mas, afo-
ra essas pequenas objeções, Slums é um documento valiosíssimo que dá destaque às
descobertas insistentes da pesquisa diante das autoridades institucionais das Nações
Unidas. Se os relatórios do Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática
constituem um consenso científico sem precedentes sobre os perigos do aquecimento
global, Slums parece ser um alerta igualmente enfático sobre a catástrofe global da
pobreza urbana. (Algum dia um terceiro relatório talvez examine o terreno sinistro
da interação dos dois.) E, para os propósitos desta resenha, constitui um arcabouço
excelente para o exame inicial dos debates contemporâneos sobre urbanização, econo-
mia informal, solidariedade humana e ação histórica.
(^) Branko Milanovic, True world income distribution 1988 and 1993 , Banco Mundial (Nova York, 1999).
Milanovic e seu colega Schlomo Yitzhaki foram os primeiros a calcular a distribuição de renda mun- dial com base em dados de pesquisas com famílias de cada país. (^) O Unicef, para ser justo, criticou durante anos o FMI, destacando que “centenas de milhares de crianças do mundo em desenvolvimento deram a vida para pagar a dívida de seus países”. Ver The state of the world’s children (Oxford, 1989), p. 30. (^) Slums , cit., p. 6. (^) Supõe-se que um estudo assim examinaria, de um lado, os riscos urbanos e o colapso da infra-estrutura e, de outro, o impacto da mudança climática sobre a agricultura e a migração.
1 Mike Davis
A URBANIZAçÃO DA POBREZA
A montanha de lixo parecia estender-se até muito longee então,
aos poucos, sem demarcação nem fronteira visível, virava outra coisa.
Mas o quê? Uma coleção de estruturas, confusa e sem caminhos.
Caixas de papelão, compensado e tábuas podres, carcaças de carros
enferrujadas e sem vidros tinham sido amontoados para formar habitações.
Michael Thelwell, The harder they come , 1980
A primeira definição conhecida e publicada da palavra inglesa slum *^ surgiu no
Vocabulary of the flash language [Vocabulário da linguagem vulgar], em que é sinôni-
mo de racket ou “comércio criminoso”. No entanto, nos anos da cólera nas décadas
de 1 830 e 1 840, os pobres moravam em slums , em vez de praticá-los. Uma geração
depois, identificaram-se slums na América e na Índia, em geral reconhecidos como
fenômeno internacional. O “ slum clássico” era um lugar pitoresco e sabidamente
provinciano, mas em geral os reformadores concordavam com Charles Booth que
todos se caracterizavam por um amálgama de habitações dilapidadas, excesso de
população, pobreza e vício. É claro que, para os liberais do século XIX, a dimensão
moral era fundamental, e a favela era considerada, acima de tudo, um lugar onde
o “resíduo” social apodrecia num esplendor imoral e quase sempre turbulento. Os
autores de Slums descartam as calúnias vitorianas, mas fora isso conservam a defi-
nição clássica: excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inade-
quado a água potável e esgoto sanitário e insegurança da posse da terra.
Essa definição multidimensional é, na verdade, um padrão bem conservador
do que qualifica uma favela; muitos leitores ficarão surpresos pela conclusão da
ONU, contrariando o que se vê, de que somente 1 9,6% dos mexicanos urbanos
moram em favelas. Mas, mesmo com essa definição restritiva, Slums estima que,
em 200 1 , havia pelo menos 92 1 milhões de moradores de favelas: população qua-
se igual à do mundo todo quando o jovem Engels aventurou-se pela primeira vez
pelas ruas miseráveis de Manchester. Na verdade, o capitalismo neoliberal multi-
plicou exponencialmente o famoso slum Tom-All-Alone de Dickens em A casa so-
turna. Os moradores de favela constituem espantosos 78,2% da população urbana
dos países menos desenvolvidos e o total de um terço da população urbana glo-
bal. Extrapolando a estrutura etária da maioria das cidades do Terceiro Mundo,
pelo menos metade da população favelada tem menos de vinte anos^0.
(^) Prunty, Dublin slums , cit., p. 2. (^) Slums , cit., p. 12. (^) Slums , cit., p. 2-3. (^0) Ver A. Oberai, Population growth, employment and poverty in Third World mega-cities (Nova York,
- (^) No português atual, pode ser traduzida por “favela”, “cortiço”, “área residencial miserável”. (N. T.)
200 Mike Davis
desse planeta-favela sejam ao mesmo tempo totalmente intercambiáveis e esponta-
neamente únicos, como os bustees de Kolkata, os chawls e zopadpattis de Mumbai,
os katchi abadis de Karachi, os kampungs de Jacarta, os iskwaters de Manila, as
shammasas de Cartum, os umjondolos de Durban, os intra-murios de Rabat, as
bidonvilles de Abidjan, os baladis do Cairo, os gecekondus de Ancara, os conven-
tillos de Quito, as favelas do Brasil, as villas miseria de Buenos Aires e as colonias
populares da Cidade do México. São os antípodas tenazes das paisagens genéri-
cas de fantasia e dos parques temáticos residenciais – os burgueses “Offworlds”
[mundos de fora], de Philip K. Dick – nos quais a classe média global cada vez
mais prefere se enclausurar.
Enquanto, por um lado, o modelo clássico do slum era o cortiço decadente
do centro da cidade, as novas favelas, por sua vez, localizam-se, em geral, na orla
das explosões espaciais urbanas. É claro que o crescimento horizontal de cidades
como México, Lagos ou Jacarta foi extraordinário e que o “alastramento das fave-
las” é um problema tão grande no mundo em desenvolvimento quanto o alas-
tramento dos subúrbios de classe média nos países ricos. A área construída de
Lagos, por exemplo, dobrou numa só década, entre 1 985 e 1994 . O governador
do estado de Lagos disse a jornalistas, no ano passado, que “cerca de dois terços
dos 3577 km² da superfície terrestre total do estado podia ser classificada como
barracos ou favelas”. Realmente, como escreve um correspondente da ONU,
boa parte da cidade é um mistério [...] auto-estradas sem iluminação passam por des- filadeiros de lixo fumegante antes de dar lugar a ruas de terra que volteiam entre du- zentas favelas, os esgotos correndo com dejetos não-tratados [...] Ninguém sequer sabe com certeza o tamanho da população – oficialmente são seis milhões, mas a maioria dos especialistas estima-a em dez milhões – e, menos ainda, o número de assassinatos a cada ano [ou] a taxa de infeçcão pelo HIV.
Além disso, Lagos é, simplesmente, o maior entroncamento do corredor de
70 milhões de favelados que se estende de Abidjan a Ibadan – provavelmente a
maior área de solo coberta de pobreza urbana em nosso planeta.
(^) Salah El-Shakhs, “Toward appropriate urban development policy in emerging mega-cities in
Africa”, em Rakodi, Urban challenge , cit., p. 516. (^) Daily Times of Nigeria , 20/10/2003. Lagos cresceu de forma mais explosiva que todas as outras grandes cidades do Terceiro Mundo, com exceção de Daca. Em 1950, tinha apenas 300 mil habitantes, mas depois cresceu quase 10% ao ano até 1980, quando reduziu o ritmo para cerca de 6% – ainda bem veloz – durante os anos de reajuste estrutural. (^) Amy Otchet, “Lagos: the survival of the determined”, Unesco Courier , junho de 1999. (^) Slums , cit., p. 50.
Planeta de favelas 201
É claro que a ecologia da favela gira em torno da oferta de espaço para assen-
tamento. Winter King, num estudo recente publicado na Harvard Law Review ,
afirma que 85% dos moradores urbanos do mundo desenvolvido “ocupam pro-
priedades ilegalmente”^0. Em última instância, a indeterminação da propriedade
da terra e/ou a propriedade frouxa do Estado foram as brechas pelas quais uma
vasta porção da humanidade despejou-se nas cidades. Os modos de assentamento
das favelas variam num grande espectro, das invasões de terra disciplinadíssimas
da Cidade do México e de Lima aos mercados de aluguel de organização complexa
(mas muitas vezes ilegal) nos arredores de Beijing, Karachi e Nairóbi. Até em
cidades como Karachi, onde a periferia urbana pertence formalmente ao governo,
“lucros imensos oriundos da especulação imobiliária [...] continuam a se acumu-
lar no setor privado à custa das famílias de baixa renda”. Na verdade, a máquina
política nacional e local costuma aceitar o assentamento informal (e a especulação
privada ilegal) enquanto conseguir controlar a compleição política das favelas e
receber um fluxo regular de propinas ou aluguéis. Sem títulos formais de proprie-
dade da terra ou da casa própria, impõe-se aos moradores das favelas uma depen-
dência quase feudal de autoridades e líderes partidários locais. A deslealdade pode
significar expulsão ou até o arrasamento de um bairro inteiro.
Enquanto isso, o fornecimento da infra-estrutura de sobrevivência arrasta-se
bem atrás do ritmo da urbanização, e, muitas vezes, as áreas de favela periurba-
nas não oferecem nenhum serviço público nem saneamento básico. Em geral,
as áreas pobres das cidades latino-americanas têm melhor prestação de serviços
básicos que as do sul da Ásia, que, por sua vez, costumam ter serviços urbanos
mínimos, como fornecimento de água e eletricidade, que faltam a muitas favelas
africanas. Como em Londres no início da época vitoriana, a contaminação da água
por dejetos humanos e animais é a causa das doenças diarréicas crônicas que ma-
tam pelo menos dois milhões de crianças urbanas todos os anos. Estimados 57%
dos africanos urbanos não têm acesso a saneamento básico, e, em cidades como
Nairóbi, os pobres precisam usar “banheiros voadores” (defecar num saco plásti-
co). Em Mumbai o problema do saneamento é definido pela proporção de um
(^0) Winter King, “Illegal settlements and the impact of titling programmes”, Harvard Law Review ,
v. 44, n. 2, setembro de 2003, p. 471. (^) Nações Unidas, Karachi , série “Population growth and policies in megacities” (Nova York,
1988), p. 19. (^) A ausência de infra-estrutura, no entanto, cria incontáveis nichos para trabalhadores infor-
mais: vender água, transportar excrementos, reciclar lixo, fornecer gás de cozinha, e assim por diante. (^) World Resources Institute, World resources: 1996-97 (Oxford, 1996), p. 21. (^) Slums of the world , cit., p. 25.
Planeta de favelas 203
ONU alertam que, em 2020, “a pobreza urbana no mundo chegará a 45% a 50%
do total de moradores de cidades”.
O “BIG BANG” DA POBREZA URBANA
Depois de sua risada misteriosa, mudaram rapidamente de assunto
para outras coisas. Como as pessoas lá em casa vinham sobrevivendo ao PAE?
Fidelis Balogun , Adjusted lives , 1995
A evolução da nova pobreza urbana foi um processo histórico não-linear. O
acréscimo lento de cortiços e barracos ao invólucro da cidade é marcado por tem-
pestades de pobreza e explosões de construção de favelas. Em sua coletânea de his-
tórias Adjusted lives [Vidas ajustadas], o escritor nigeriano Fidelis Balogun descreve
a chegada do Programa de Ajuste Estrutural (PAE) do FMI, em meados da década
de 1 980, como equivalente a uma grande catástrofe natural, destruindo para sem-
pre a antiga alma de Lagos e “reescravizando” os nigerianos urbanos.
Parecia que a lógica esquisita desse programa econômico era que, para devolver a vida à economia moribunda, todo o suco tinha antes de ser esPAEmido da maioria desprivilegiada dos cidadãos. A classe média logo desapareceu, e os montes de lixo dos poucos cada vez mais ricos tornaram-se a mesa da multiplicada população dos abjeta- mente pobres. O escoamento dos cérebros para os países árabes ricos em petróleo e para o mundo ocidental transformou-se numa torrente.
O lamento de Balogun sobre “privatizar a todo vapor e ficar mais faminto a
cada dia” e sua enumeração das conseqüências malévolas do PAE soariam instan-
taneamente familiares aos sobreviventes não só dos outros trinta PAEs africanos
como também de centenas de milhões de asiáticos e latino-americanos. Os anos
1 980 – quando o FMI e o Banco Mundial usaram a alavancagem da dívida para
reestruturar a economia da maior parte do Terceiro Mundo – foram a época em
que as favelas tornaram-se um futuro implacável não só para os migrantes rurais
pobres como também para milhões de habitantes urbanos tradicionais, desaloja-
dos ou jogados na miséria pela violência do “ajuste”.
Como enfatiza Slums , os PAEs foram “de natureza deliberadamente antiur-
bana” e projetados para reverter qualquer “viés urbano” que existisse nas políticas
de bem-estar social, na estrutura fiscal ou nos investimentos governamentais.
(^) Slums of the world , cit., p. 12. (^) Fidelis Odun Balogun, Adjusted lives: stories of structural adjustment (Trenton, New Jersey, 1995), p. 80. (^) The challenge of slums , cit., p. 30. Os teóricos do “viés urbano”, como Michael Lipton, que inventou
204 Mike Davis
Em toda parte o FMI, agindo como delegado dos grandes bancos e apoiado pelos
governos Reagan e Bush, ofereceu aos países pobres o mesmo cálice envenenado de
desvalorização, privatização, remoção dos controles da importação e dos subsídios
aos alimentos, redução forçada dos custos com saúde e educação e enxugamen-
to impiedoso do setor público. (Um famoso telegrama de 1 985 de George Shultz,
Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, a oficiais do USAID no exterior ordena-
va: “Na maioria dos casos, as empresas do setor público têm de ser privatizadas”.)
Ao mesmo tempo, os PAEs devastaram os pequenos proprietários rurais ao
eliminar subsídios e expulsá-los, no esquema “ou vai ou racha”, para o mercado
global de commodities dominado pelo agronegócio do Primeiro Mundo.
Como ressalta Ha-Joon Chang, os PAEs, de maneira hipócrita, “chutaram a
escada” (ou seja, as tarifas e os subsídios protecionistas) que as nações da OCDE
empregaram historicamente em sua própria subida da agricultura para os bens
e serviços urbanos de alto valor agregado. Slums afirma a mesma coisa quando
argumenta que “a principal causa isolada do aumento da pobreza e da desigual-
dade nas décadas de 1 980 e 1 990 foi o recuo do Estado”. Além das reduções
diretas impostas pelos PAEs aos gastos e à propriedade do setor público, os
autores da ONU destacam a diminuição mais sutil da capacidade do Estado que
resultou da “subsidiaridade”: a descentralização do poder entre os escalões mais
baixos do governo e, em especial, as ONGs ligadas diretamente às principais
entidades de auxílio internacional.
Toda a estrutura aparentemente descentralizada é estranha à noção de governo representativo nacional que tão bem serviu ao mundo desenvolvido e, ao mesmo
a expressão em 1977, argumentam que a agricultura tende a ser subcapitalizada nos países em de- senvolvimento, e as cidades, relativamente “sobre-urbanizadas”, porque as políticas fiscais e finan- ceiras favorecem a elite urbana e distorcem o fluxo dos investimentos. No limite, as cidades seriam vampiros do campo. Ver Lipton, Why poor people stay poor: a study of urban bias in world development (Cambridge, 1977). (^) Citado em Tony Killick, “Twenty-five years in development: the rise and impending decline of market solutions”, Development Policy Review , v. 4, 1986, p. 101. (^) Deborah Bryceson, “Disappearing peasantries? Rural labour redundancy in the neoliberal
era and beyond”, em Bryceson, Cristóbal Kay e Jos Mooij (orgs.), Disappearing peasantries?: rural labour in Africa, Asia and Latin America (Londres, 2000), p. 304-5. (^) Ha-Joon Chang, “Kicking away the ladder. Infant industry promotion in historical perspec-
tive”, Oxford Development Studies , v. 31, n. 1, 2003, p. 21. “A renda per capita dos países em de- senvolvimento cresceu 3% ao ano entre 1960 e 1980, mas somente cerca de 1,5% entre 1980 e 2000 [...] Os economistas neoliberais, portanto, defrontam-se aqui com um paradoxo. Os países em desenvolvimento cresceram muito mais depressa quando usaram ‘más’ políticas durante 1960-90 do que quando usaram políticas ‘boas’ (ou pelo menos ‘melhores’) nas duas décadas seguintes” (p. 28).
206 Mike Davis
Na América Latina, os PAEs (muitas vezes implementados por ditaduras mi-
litares) desestabilizaram a economia rural e arrasaram o emprego e a habitação
urbanos. Em 1 970, as teorias “foquistas” guevaristas de rebelião rural ainda se
adequavam a uma realidade continental em que a pobreza do campo (75 milhões
de pobres) ofuscava a das cidades (44 milhões). No entanto, no final da década de
1 980, a imensa maioria dos pobres ( 11 5 milhões em 1 990) morava em colonias e
villas miseria urbanas, em vez de fazendas ou aldeias (80 milhões).
Enquanto isso, a desigualdade urbana explodia. Em Santiago, a ditadura de
Pinochet arrasou favelas e expulsou antigos ocupantes radicais, obrigando as fa-
mílias pobres a se tornarem allegadas , amontoando-se – às vezes duas ou três
famílias – na mesma moradia alugada. Em Buenos Aires, a participação do decil
mais rico na renda total, que era de dez vezes a do decil mais pobre em 1 984,
aumentou para 23 vezes em 1989 . Em Lima, onde o valor do salário mínimo
caiu 83% durante a recessão do FMI, o percentual de famílias abaixo da linha de
pobreza aumentou de 1 7% em 1 985 para 44% em 1990 . No Rio de Janeiro, a
desigualdade, medida pelos coeficientes Gini clássicos, disparou de 0,58 em 1981
para 0,67 em 1989 . Na verdade, em toda a América Latina a década de 1980
aprofundou os vales e elevou os picos da topografia social mais contrastada do
mundo. (Segundo um relatório de 2003 do Banco Mundial, os coeficientes Gini
são 1 0 pontos mais altos na América Latina que na Ásia; 1 7,5 pontos mais altos
que na OCDE; e 20,4 pontos mais altos que na Europa oriental.)
Em todo o Terceiro Mundo, os choques econômicos dos anos 1 980 obrigaram
os indivíduos a reagrupar-se em volta dos recursos somados da família e, princi-
palmente, da capacidade de sobrevivência e da engenhosidade desesperada das
mulheres. Na China e nas cidades em industrialização do sudeste da Ásia, mi-
lhões de moças escravizaram-se às linhas de montagem e à miséria fabril. Na
África e na maior parte da América Latina (com exceção das cidades da fronteira
norte do México), essa opção não existiu. Em vez disso, a desindustrialização e
a dizimação dos empregos masculinos no setor formal obrigaram as mulheres
a improvisar novos meios de vida como montadoras pagas por peça, vendedo-
ras de bebidas, camelôs, faxineiras, lavadeiras, catadoras, babás e prostitutas. Na
(^) ONU, World urbanization prospects , p. 12. (^) Luis Ainstein, “Buenos Aires: a case of deepening social polarization”, em Gilbert, Mega-city
in Latin America , cit., p. 139. (^) Gustavo Riofrio, “Lima: mega-city and mega-problem”, em Gilbert, Mega-city in Latin America ,
cit., p. 159; e Gilbert, Latin American city , cit., p. 73. (^) Hamilton Tolosa, “Rio de Janeiro: urban expansion and structural change”, em Gilbert, Mega- city in Latin America , cit., p. 211. (^) Banco Mundial, Inequality in Latin America and the Caribbean (Nova York, 2003).
Planeta de favelas 207
América Latina, onde a participação das mulheres urbanas na força de trabalho
sempre foi menor que em outros continentes, o surto de mulheres nas atividades
informais terciárias durante a década de 1 980 foi especialmente dramático. Em
relação à África, onde o símbolo do setor informal são as mulheres que abrem bi-
roscas e vendem produtos agrícolas nas ruas, Christian Rogerson nos recorda que
a maioria dessas trabalhadoras informais não é autônoma nem economicamente
independente, mas trabalha para outras pessoas^0. (Essas redes onipresentes e
cruéis de microexploração, com pobres explorando os muito pobres, costumam
ficar ocultas nas descrições do setor informal.)
A pobreza urbana também foi maciçamente feminilizada nos países do antigo
Comecon depois da “liberação” capitalista em 1 989. No início da década de 1 990,
a extrema pobreza dos antigos “países de transição” (como a ONU os chama) dis-
parou de 1 4 milhões de pessoas para 1 68 milhões: uma pauperização em massa
quase sem precedentes na história. Se, no balanço global, essa catástrofe econô-
mica foi em parte compensada pelo mui louvado sucesso da China na elevação
da renda de suas cidades litorâneas, o “milagre” do mercado chinês foi comprado
com “um aumento enorme da desigualdade salarial entre os trabalhadores urba-
nos [...] no período entre 1 988 e 1 999”. As mulheres e as minorias ficaram parti-
cularmente em desvantagem.
É claro que, em teoria, a década de 1 990 deveria ter corrigido os erros dos anos
1 980 e permitido às cidades do Terceiro Mundo recuperar o terreno perdido e fe-
char os abismos de desigualdade criados pelos PAEs. A dor do ajuste seria seguida
pelo analgésico da globalização. Com efeito, a década de 1 990, como Slums observa
ironicamente, foi a primeira em que o desenvolvimento urbano global aconteceu
segundo parâmetros quase utópicos de liberdade de mercado neoclássica.
Durante a década de 1 990, o comércio continuou a se expandir num ritmo quase sem precedentes; áreas antes vedadas se abriram e as despesas militares diminuíram. [...] Todos os insumos básicos da produção ficaram mais baratos com a queda rápida dos juros, juntamente com o preço das commodities básicas. Os fluxos de capital foram
(^) Orlandina de Oliveira e Bryan Roberts, “The many roles of the informal sector in develop-
ment”, em Cathy Rakowski (org.), Contrapunto: the informal sector debate in Latin America (Albany, 1994), p. 64-8. (^0) Christian Rogerson, “Globalization or informalization? African urban economics in the
1990s”, em Rakodi, Urban challenge , cit., p. 348. (^) Slums , cit., p. 2. (^) Albert Park et al., “The growth of wage inequality in urban China, 1988 to 1999”, documento estimativo do Banco Mundial, fevereiro de 2003, p. 27 (citação); e John Knight e Linda Song, “Increasing urban wage inequality in China”, Economics of Transition , v. II, n. 4, 2003, p. 616 (discriminação).
Planeta de favelas 20
desprotegido e com baixos salários”. “O crescimento d[este] setor informal”, decla-
ram sem rodeios, “é [...] resultado direto da liberalização.”
Na verdade, a classe trabalhadora informal global (que se sobrepõe mas não
é idêntica à população favelada) tem quase um bilhão de pessoas, constituindo a
classe social de crescimento mais rápido e mais sem precedentes da Terra. Desde
que o antropólogo Keith Hart, que trabalhava em Accra, criou o conceito de “setor
informal” em 1 973, uma imensa literatura (que, em sua maior parte, não distin-
gue microacumulação de sub-subsistência) enfrentou os formidáveis problemas
teóricos e empíricos envolvidos no estudo das estratégias de sobrevivência dos
pobres urbanos. Há, no entanto, o consenso básico de que a crise da década de
1 980 inverteu as posições estruturais relativas dos setores formal e informal, pro-
movendo a busca informal da sobrevivência como novo meio de vida principal da
maioria das cidades do Terceiro Mundo.
Alejandro Portes e Kelly Hoffman avaliaram recentemente o impacto geral
dos PAEs e da liberalização sobre a estrutura de classes urbana e latino-americana
a partir da década de 1 970. De modo coerente com as conclusões da ONU, verifi-
caram que, desde então, tanto os funcionários públicos quanto o proletariado for-
mal se reduziram em todos os países da região. Em contraste, o setor informal da
economia, junto com a desigualdade social geral, expandiu-se de forma dramática.
Diversamente de alguns pesquisadores, eles fazem uma distinção fundamental
entre a pequena burguesia informal (“a soma dos donos de microempresas in-
formais, que empregam menos de cinco trabalhadores, mais os profissionais e
técnicos que trabalham por conta própria”) e o proletariado informal (“a soma dos
trabalhadores autônomos, menos profissionais liberais e técnicos, com emprega-
dos domésticos e trabalhadores pagos e não-pagos de microempresas informais”).
Demonstram que esse primeiro estrato, os “microempresários” tão louvados nas
escolas de administração norte-americanas, costumam ser profissionais desalo-
jados do setor público e trabalhadores especializados demitidos. Desde a década
de 1 980, cresceram de 5% para 1 0% da população urbana economicamente ativa,
tendência que reflete “o empreendedorismo forçado imposto aos ex-assalariados
pelo declínio do emprego no setor formal”.
No geral, de acordo com Slums , os trabalhadores informais são cerca de dois
quintos da população economicamente ativa do mundo em desenvolvimento.
(^) Slums , cit., p. 40, 46. (^) Keith Hart, “Informal income opportunities and urban employment in Ghana”, Journal of
Modern African Studies , v. II, 1973, p. 61-89. (^) Alejandro Portes e Kelly Hoffman, “Latin American class structures: their composition and change during the neoliberal era”, Latin American Research Review , v. 38, n. 1, 2003, p. 55. (^) Slums , cit., p. 60.
210 Mike Davis
Segundo os pesquisadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento, a eco-
nomia informal emprega atualmente 57% da força de trabalho latino-americana
e oferece quatro de cada cinco novos “empregos”^0. Outras fontes afirmam que
mais da metade dos indonésios urbanos e 65% dos moradores de Daca subsistem
no setor informal. Do mesmo modo, Slums cita pesquisas que comprovam que
a atividade econômica informal responde por 33% a 40% do emprego urbano na
Ásia, 60% a 75% na América Central e 60% na África. Com efeito, nas cidades
subsaarianas a criação de “empregos formais” praticamente deixou de existir. Um
estudo da OIT sobre o mercado de trabalho urbano do Zimbábue durante o ajuste
estrutural “estagflacionário” do início dos anos 1 990 descobriu que o setor formal
só criava 1 0 mil empregos por ano, em contrapartida a uma força de trabalho ur-
bana que crescia em mais de 300 mil indivíduos por ano. Slums estima, ainda,
que um total de 90% das novas vagas urbanas da África na próxima década virão,
de algum modo, do setor informal.
Os gurus do moto perpétuo do capitalismo, como o incontrolável Hernando
de Soto, podem ver essa população enorme de trabalhadores marginalizados,
funcionários públicos demitidos e ex-camponeses como, na verdade, uma col-
méia frenética de ambiciosos empreendedores desejosos de direitos formais de
propriedade e espaço competitivo não-regulamentado, mas faz bem mais senti-
do tomar a maioria dos trabalhadores informais como desempregados “ativos”,
que não têm escolha senão subsistir de algum jeito para não passar fome. É
pouco provável que os estimados 1 00 milhões de crianças de rua – que nos descul-
pe o señor De Soto – comecem a emitir ações e negociar obrigações futuras sobre a
venda de chicletes. E a maior parte dos 70 milhões de “trabalhadores flutuantes”
(^0) Citado em Economist , 21/3/1998, p. 37. (^) Dennis Rondinelli e John Kasarda, “Job creation needs in Third World cities”, em Kasarda e
Allan Parnell (orgs.), Third World cities: problems, policies and prospects (Newbury Park, Califórnia, 1993), p. 106-7. (^) Slums , cit., p. 103. (^) Guy Mhone, “The impact of structural adjustment on the urban informal sector in Zimbabwe”,
Issues in development , documento para discussão n. 2, Organização Internacional do Trabalho (Genebra, sem data), p. 19. (^) Slums , cit., p. 104. (^) Orlandina de Oliveira e Bryan Roberts enfatizam corretamente que os estratos inferiores da força de trabalho urbana deveriam ser identificados “não só pelo título de suas ocupações ou pelo emprego formal ou informal, mas pela estratégia da família para obter renda”. A massa de pobres urbanos só consegue existir mediante a “soma dos rendimentos, a divisão da moradia, da alimentação e de outros recursos” com familiares ou conterrâneos (“Urban development and social inequality in Latin America”, em Gugler, Cities in the developing world , cit., p. 290). (^) Estatística sobre crianças de rua: Natural History , julho de 1997, p. 4.