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PIEPER Josef - Que e? filosofar, Notas de estudo de Filosofia

Que e? filosofar

Tipologia: Notas de estudo

2014
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JOSEF PIEPER
QUE
É
FILOSOFAR?
Tradução
Francisco de
Ambrosis
Pinheiro Machado
Edições
Loyola
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JOSEF PIEPER

QUE É FILOSOFAR?

Tradução

Francisco de Ambrosis

Pinheiro Machado

Edições Loyola

Título original: Ji. Was heisst philosophieren? Vier Vorlesungen, in Josef Pieper, Werke in acht Banden. Band 3: Schriften zum Philosophiebegriff, Hamburg, Felix Meiner, 2004, 15-75. © Felix Meiner Verlag, Hamburg, 1995. ISBN: 3-7873-1666-

PREPARAÇÃO: Maurício B. Leal REVISÃO TÉCNICA: Marcelo Perine DIAGRAMAÇÃO: So Wai Tam REVISÃO: Sandra G. Custódio

CONSELHO EDITORIAL: Ivan Domingues (UFMG) Juvenal Savian (UNIFESP) Marcelo Perine (PUC-SP) Mario A. G. Porta (PUC-SP) Rogério Miranda de Almeida (PUC-PR)

Edições Loyola Rua 1822 nº 347 - Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 - 04218-970- São Paulo, SP (§) (11) 6914- ® (11) 6163- Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: Joyola@loyola.com.br Vendas: vendas@loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. ISBN: 978-85-15-03327- © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2007

SUMÁRIO

capítulo 1 A FILOSOFIA E O MUNDO DO TRABALHO 7

capítulo li O OBJETIVO DA FILOSOFIA .............................................. 23

capítulo Ili MEIO AMBIENTE E MUNDO ............................................ .. (^39)

capítulo IV TRADIÇÃO, TEOLOGIA E FILOSOFIA ................................ .. 55

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Mas, por ser uma questão fil~fica, também não poderá ser respondida de modo definitivo, pois pertence justamente à essência de uma questão filosófica o fato de não podermos receber nas mãos a resposta como "verdade acabada" (segundo as palavras de Parmênides), tal como se colhe uma maçã. Nesse sentido, será tratada mais adiante a estrutura de esperança da filosofia e do filosofar em geral. Não vamos, portanto, prome- ter uma definição manipulável, nem uma resposta que apreen- da o objeto por todos os lados. Numa primeira aproximação, pode-se dizer o seguinte: fi- losofar consiste em uma ação na qual o mundo do trabalho é ultrapassado. Trata-se portanto, em primeiro lugar, de definir o que se entende aqui por "mundo do trabalho" (Arbeitswelt), para então determinar o que significa o "ultrapassar" (Über- schreiten) desse mundo do trabalho. O mundo do trabalho é o mundo cotidiano do trabalho, o mundo da utilização, da serventia a fins, do rendimento, do exercício de funções; trata-se do mundo da necessidade e da renda, o mundo da fome e do modo de saciá-la. O mundo do trabalho é dominado pelo objetivo de realização da "utilidade comum". É mundo do trabalho na medida em que trabalho tem o mesmo significado de atividade útil (sendo então simul- taneamente próprio desta o caráter de atividade e de esforço). O processo de trabalho é o processo da realização da "utilidade comum". Tal conceito não deve ser igualado ao de bonum commu- ne: a "utilidade comum" é uma parte essencial do bonum commune, mas este é muito mais geral. Ao bonum commune per- tence, por exemplo (como diz Tomás de Aquino^2 ), o fato de existir pessoas que se entregam à vida inútil da contemplação; pertence o fato de que se pratique a filosofia - na medida em que, justamente, não se pode dizer que meditação, contempla- ção, filosofia sirvam à "utilidade comum".

  1. Comentário ao Livro de sentenças de Pedro Lombarda 4 d. 26, 1, 2.

8 1 que é filosofar?

Hoje, certamente, bonum commune e "utilidade comum" são dados cada vez mais como idênticos, assim como é certo (o que dá no mesmo) que, de acordo com isso, o mundo do trabalho começa a se tornar, ou ameaça tornar-se, sempre mais exclu- sivamente o nosso mundo em geral. A reivindicação do mundo do trabalho torna-se cada vez mais total, abarcando progres- sivamente toda a existência humana. Se é correto dizer que o filosofar é um ato que transcende e ultrapassa o mundo do trabalho, então nossa questão "que é filosofar?", indagação tão "teórica" e "abstrata", torna-se de re- pente e sem querer uma questão extremamente atual do ponto de vista histórico. Necessitamos dar somente um passo, no pensamento e também geográfico, para nos encontrarmos em um mundo no qual o processo do trabalho, o processo da rea- lização da "utilidade comum" determina toda a esfera da exis- tência humana. É necessário apenas saltar uma linha limítrofe, muito próxima tanto interna como externamente, para se al- cançar o mundo total do trabalho, no qual conseqüentemente não existiriam mais filosofia e filosofar autênticos. Supondo que seja correto o enunciado, filosofar significa transcender o mundo do trabalho e, portanto, faz parte da essência do ato filosófico justamente não ser próprio deste mundo das utilida- des e eficiências, da necessidade e do rendimento, desse mundo do bonum utile, da "utilidade comum", mas ser, por princípio, incomensurável com ele. De fato, quanto mais total se torna a reivindicação do mundo do trabalho, tanto mais grave vem à tona essa incomensurabilidade, esse não-pertencimento. E tal- vez possamos dizer que esse agravamento e esse perigo a partir do mundo total do trabalho são o que caracteriza propriamen- te a situação da filosofia hoje, quase mais que sua problemática de conteúdo. A filosofia adquire - necessariamente! - cada vez mais o caráter do estranho, do mero luxo intelectual, até do autenticamente insustentável e do que não deve ser levado a sério, quanto mais a reivindicação do mundo do trabalho coti- diano domina o homem de maneira exclusiva.

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Todavia, primeiramente deve-s!i&fizer algo ainda sobre essa incomensurabilidade do ato filosófico, desse transcender o mun- do do trabalho que acontece no filosofar. Deve-se falar mais uma vez a respeito disso de modo bem concreto. Lembremo-nos das coisas que dominam hoje o cotidiano do trabalho do homem, do nosso cotidiano. Não é necessário aqui nenhum esforço especial do pensamento para torná-lo presente: encontramo-nos drasticamente no interior desse coti- diano. Trata-se, portanto, primeiro da corrida e da caça diária da existência física crua, corrida por alimentação, vestuário, mo- radia etc. Depois, o cuidado que vai além do indivíduo (e simul- taneamente o condiciona), as necessidades de uma nova ordem mundial e de progresso - sobretudo em nossa pátria, mas tam- bém no mundo. Lutas de poder pela utilização dos bens da Terra, conflitos de interesse nas coisas grandes e pequenas. Por todo lado, tensão extrema e sobrecarga - abrandadas somente de modo aparente mediante diversões e pausas rapidamente absolvidas: jornal, cinema, cigarro. Não é necessário continuar a esboçar essa situação. Todos conhecemos muito bem o aspec- to deste mundo. Não significa de modo algum que precisamos olhar somente para essas culminações críticas que se apresen- tam justamente nos dias de hoje. Trata-se simplesmente do mundo do trabalho do dia-a-dia, no qual se deve trabalhar ener- gicamente, no qual fins muito concretos são impostos e reali- zados, com objetivos que devem ser visados por um olhar paralisante, direcionado para o que está perto e mais próximo. Longe de nós querer desvalorizar esse mundo do cotidiano do trabalho a partir de algum suposto ponto de vista superior da filosofia. Por isso é preciso afirmar rigorosamente que esse mundo do trabalho cotidiano pertence essencialmente ao mun- do do homem, que justamente nesse mundo do trabalho são realizados os fundamentos de sua existência física, sem os quais nenhum homem pode existir! Imaginemos que entre as vozes que preenchem os locais de trabalho e o mercado - ("como se

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pode adquirir esta ou aquela coisa necessária para a existência cotidiana?", "de que modo adquirimos isso?", "onde existe tal produto?") -, de repente uma voz se levante com a questão: "Por que existe sobretudo o ente e não antes o nada?" - com esse antiqüíssimo clamor de admiração filosófico que Heidegger^3 designou como a questão fundamental de toda metafísica! Será necessário dizer expressamente o quanto essa questão do filó- sofo é incomensurável relativamente ao mundo cotidiano do trabalho, da utilidade e da serventia a fins? Se essa questão fosse expressa de modo imediato e inesperado entre os homens da produção e do sucesso, não seria considerado um louco aque- le que interroga? Em tais contraposições extremas, porém, a diferença realmente existente torna-se clara. Fica claro como com aquela questão foi dado um passo que transcende e remete para além do mundo do trabalho. A questão filosófica em sen- tido autêntico atravessa o limiar que encerra sob si o mundo do cotidiano burguês do trabalho. No entanto, o ato filosófico não é a única maneira de rea- lizar esse "passo além". A voz da autêntica poesia não é menos incomensurável com o mundo do trabalho do que a questão do filósofo: Immer steht der Baum in Mitt und Enden, Vogel singen und in Gottes Lenden Ruht der Kreis der Schiipfung selig aus 4.

  1. Martin HEIDEGGER, Was ist Metaphysik?, Frankfurt, 1943. Aliás, a for- mulação não é nova; ela se encontra também em LEIBNIZ, Pourqui il y a plustôt quelque chose que rien?, in ID., Philosophische Schriften, Darmstadt, 1965, V. I, P· 426.
  2. "Na árvore majestosa cantam os pássaros E no coração de Deus descansa feliz a criação". Konrad WErss, ln exitu (versos iniciais); publicado pela primeira vez na coletânea de poesiaDie cumdische Sibylle, München, 1921. Posteriormente aces- sível nas obras completas pela Editora Kõsel: Konrad Wmss, Gedichte. 1914- 1939, München, 1961.

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mundo do trabalho: essa "poesia" n~ ultrapassa, nem mesmo aparentemente (e é claro que o filosê'ff'ar autêntico tem mais em comum com as ciências exatas particulares do que com essa pseudopoesia!). Por fim, há uma pseudofilosofia cuja característica é justa- mente esta: nela o mundo do trabalho igualmente não é ultra- passado. Em Platão^6 , Sócrates pergunta ao sofista Protágoras: Que ensinas aos jovens que de ti se aproximam? E Protágoras responde: Comigo aprende-se prudência, seja em questões pri- vadas, particularmente como administrar do melhor modo o próprio lar, seja nas questões públicas, como atuar melhor pelo discurso e pela ação no Estado. Essa é a problemática clássica da filosofia como saber de formação, uma filosofia aparente, sem transcendência. Pior ainda, todas essas realizações enganosas concordam no fato de não só não ultrapassarem, mas também de, justa- mente, fecharem o mundo ainda mais e de modo mais defini- tivo sob o limiar do cotidiano; de encarcerarem de vez o ho- mem no mundo do trabalho. Desse modo, todas essas pseudo- formas, sobretudo a pseudofilosofia, são algo muito pior, mui- to mais sem esperança que o fechamento ingênuo do homem mundano diante do não-cotidiano. Aquele que mergulha inge- nuamente no mundo cotidiano do trabalho pode um dia ainda ser atingido pela força do abalo escondida em uma questão genuína do filósofo, ou em uma poesia. Porém, um sofista, um pseudofilósofo não pode ser abalado! Voltemos, no entanto, a nossa questão inicial. Ao se inda- gar sobre a essência verdadeira da filosofia, questiona-se com isso justamente para além do mundo do trabalho. Assim, já está claro que essa questão e a sua posição hoje, na medida em que precisamente o mundo do trabalho se apresenta com uma pretensão de totalidade até então desconhecida no Ocidente,

  1. PLATÃO, Protágoras 318 a 6ss.

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possui uma agudeza histórica especial. Não se trata aqui, não obstante, de uma crítica de época. No fundo, está em pauta um desacordo perene. A risada da criada trácia, ao ver Tales de Mileto, o observa- dor do céu, cair no poço, é para Platão a resposta típica da razoabilidade fixa do cotidiano diante da filosofia. E essa ane- dota da criada trácia encontra-se no começo da filosofia oci- dental. E "em todas as circunstâncias" (assim está no Teeteto de Platão), o filósofo torna-se alvo de galhofa, "não apenas por parte das criadas da Trácia, como de todo o povo, levando-o sua falta de experiência a cair nos poços e na mais triste confusão" 7 • Platão, porém, não se expressa somente e nem acima de rudo num discurso proposicional e em tese formal, mas fala por figuras. É o caso de Apolodoro, uma figura secundária (tal como parece num primeiro momento) nos diálogos Fédon e Banquete. Apolodoro é um daqueles jovens acriticamente entu- siasmados em torno de Sócrates, nos quais Platão talvez qui- sesse apresentar-se a si mesmo. No Fédon é narrado sobre Apo- lodoro que ele, quando Sócrates na prisão levou a taça de cicuta à boca, foi o único entre os presentes a cair em um choro e em soluços incessantes. Diz Fédon: "Deves saber, com efeito, que homem é ele e qual seja o seu feitio" 8 • De si mesmo, diz Apolo- doro, no Banquete^9 , que desde muitos anos se dedicou fervoro- samente a saber a cada dia o que Sócrates disse e fez, e que "anteriormente, rodando ao acaso e pensando que fazia algu- ma coisa, eu era mais miserável que qualquer outro". Agora, porém, encontra-se de modo extremado entregue a Sócrates e à filosofia. Na cidade, chamam-no de Apolodoro "louco". Esbra- veja contra todos os outros e contra si mesmo, à exceção de um único, Sócrates. Tomado por completa ingenuidade, anuncia

  1. ID., Teeteto, 174 a-e.
  2. ID., Fédon, 59 b.
  3. ID., Banquete, 172 e 4ss.

a filosofia e o mundo do trabalho 1 15

por todos os cantos como seria "feli~acima de toda a medida" se pudesse ele mesmo falar sobre fi'f)sofia ou ouvir um outro. E depois fica novamente infeliz, pois não alcançou ainda o que queria: ser como Sócrates. Esse Apolodoro encontra um dia alguns amigos de então, justamente aqueles que agora o cha- mam de louco, raivoso. Trata-se, como Platão nota explicita- mente, de homens de negócios, de dinheiro, que sabem exata- mente como se faz algo e "estão inteiramente convencidos de produzir algo" no mundo. Esses amigos pedem a Apolodoro para narrar algo a respeito dos discursos sobre o amor proferi- dos em um banquete na casa do poeta Agaton. É claro que esses homens do dinheiro e bem-sucedidos de modo algum pretendem ser instruídos sobre o sentido do mundo e da exis- tência - menos ainda por Apolodoro! É antes o interesse pelo picante ou pelo humorístico, pelo dito de modo belo, pela ele- gância formal da discussão que está em jogo aqui. Apolodoro não se ilude sobre possíveis "interesses filosóficos" de seus interlocutores. Diz-lhes na cara como se compadece deles: "pois pensais fazer algo quando nada fazeis. Talvez também vós me considerais infeliz, e creio que é verdade o que presumis; eu, todavia, quanto a vós, não presumo, mas bem sei". Mesmo as- sim, não se nega a relatar a respeito dos discursos sobre o amor. Não pode silenciar: "se vós assim o desejais, devo fazê-lo" - deve-se considerá-lo um raivoso! E então Apolodoro narra jus- tamente o Banquete! O Banquete de Platão tem precisamente a forma de discurso indireto, de um relato - a partir da boca de Apolodoro! Penso que se deu pouca importância ao fato de Platão trazer à palavra seus pensamentos mais profundos por meio desse jovem extremado, que se regala em um entusiasmo acrítico, por meio desse estudantezinho fervorosíssimo - e, além disso, diante de um círculo de ouvintes de homens de dinheiro e sucesso, nem capazes, nem desejosos de receber esses pensa- mentos ou ao menos de levá-los a sério! Há algo de desesperan- çado nessa situação, uma tentação para o desespero contra o

16 1 que é filosofar?

qual (esta é decerto a opinião de Platão) somente a procura juvenil inabalada pela sabedoria, a autêntica philosoph~a pode manter-se firme. Em todo caso, Platão não poderia exprimir de maneira mais clara a incomensurabilidade de princípio do filo- sofar e do mundo do trabalho auto-suficiente e cotidiano. Todavia, esse aspecto negativo é só uma face daquela inco- mensurabilidade. A outra face chama-se: liberdade. A filosofia é "inútil" no sentido de aproveitamento e aplicação imediatos

  • isso é um lado. O outro consiste no fato de a filosofia não se deixar usar, de não ser disponível para fins que estejam fora dela mesma, de ser ela mesma um fim. Filosofia não é um saber de funcionário, mas, como disse John Henry Newman 10 , saber de gentleman. Não saber "útil", mas "livre". Essa liberdade, po- rém, significa que o saber filosófico não recebe legitimação a partir de sua utilidade e de sua aplicabilidade, de sua função social, de sua referência à "utilidade comum". Exatamente nes- se sentido era pensada a "liberdade" das artes liberales, artes li- vres - em oposição às artes serviles, artes servis, que, tal como afirma Tomás de Aquino, "são ordenadas para uma utilidade a ser alcançada mediante uma atividade" 11 • Filosofia, porém, é desde sempre entendida como a mais livre entre as artes livres (as "Faculdades dos artistas" [Artistenfakultat], assim denomina- das na Idade Média segundo as artes liberales, são idênticas às atuais Faculdades de Filosofia [Philosophischen Fakultat]). Assim, se digo que o ato filosófico ultrapassa o mundo do trabalho ou se digo que o saber filosófico é inutilizável ou, ainda, que filosofia é uma "arte livre'', digo sempre a mesma coisa. Essa liberdade cabe às ciências particulares somente na medida em que são empreendidas de modo filosófico. Aqui se encontra também, tanto histórica como objetivamente, o senti- do autêntico da liberdade acadêmica (pois "acadêmico" signifi- 10. John Henry NEWMAN, The Idea of a University, Discourse V, 5. 11. TOMÁS DE AQUINO, Comentário à Metafísica de Aristóteles 1, 3 (n. 59).

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posição e todo fomento consciente ...,;reórico", nomeadamente neste sentido pleno (visando de modo puramente receptivo, sem o vestígio de uma intenção de transformar as coisas, antes, precisamente ao contrário, pronto para fazer depender o sim e o não da vontade unicamente da realidade do ser que se mani- festa no conhecimento da essência)-, "teórico", nesse sentido não enfraquecido, só poderá ser o olhar humano quando o ente, o mundo for-lhe algo mais do que o campo, o material, a matéria-prima da atividade humana. "Teoricamente", no senti- do pleno, poderá olhar na realidade somente aquele para quem o mundo é de algum modo digno de veneração, criação final em sentido estrito. Somente nesse solo germina o "puramente- teórico" pertencente à essência da filosofia. Desse modo, seria uma união última e profunda, mediante a qual a liberdade do filosofar e, portanto, o filosofar mesmo tornam-se intimamen- te possíveis! E não é de admirar que a decadência daquela rela- ção de mundo, daquela união (por força da qual o mundo é visto como criação e não como mera matéria-prima), ande pas- so a passo com a decadência tanto do caráter autenticamente teorético da filosofia como também da sua liberdade e da supe- rioridade sobre o funcional. Há uma linha direta de Francis Bacon, que disse: "saber e poder são uma coisa só" e "o sentido de todo saber é a dotação da vida humana com novas invenções e remédios" 14 - passando por Descartes, que no Discurso sobre o método já formula de modo polêmico sua intenção de colocar no lugar da antiga filosofia "teórica" uma filosofia "prática'', mediante a qual poderíamos "nos tornar senhores e proprietá- rios da natureza" 15 -, até a conhecida formulação de Karl Marx de que a filosofia até agora só viu sua tarefa em interpretar o mundo, trata-se, doravante, de transformá-lo.

  1. Francis BACON, Novum Organum I, 3; I, 81.
  2. René DESCARTES, Discurso sobre o método, 6.

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Esse é o caminho no qual historicamente a destruição da filosofia se consuma - mediante a destruição de seu caráter teórico, cuja destruição por sua vez se baseia no fato de que o mundo cada vez mais é visto como a mera matéria-prima da ação humana. Se o mundo não é mais visto como criação, en- tão não pode haver mais theoria em sentido pleno. Junto com a theoria, porém, decai também a liberdade do filosofar e vêm a primeiro plano a funcionalização, o tão-somente "prático", a dependência de uma legitimação a partir da função social; vem a destaque o caráter de "trabalho" da filosofia, da que ainda continua a ser chamada de filosofia. Nossa tese, que agora deve ter recebido um contorno mais claro, justamente diz que pertence à essência do ato filosófico ultrapassar o mundo do trabalho. Essa tese, na qual de modo inclusivo tanto a liberdade como o caráter teórico da filosofia são afirmados, não nega o mundo do trabalho (ela antes o pressupõe expressamente como necessário), mas afirma: a ver- dadeira filosofia funda-se na crença de que a riqueza autêntica do homem não se encontra na satisfação das necessidades, nem em "que nos tornemos senhores e proprietários da natureza", mas em sermos capazes de ver o que é - a totalidade daquilo que é. A filosofia antiga afirma que essa é a máxima plenitude que podemos atingir: que em nossa alma se inscreva a ordem da totalidade das coisas existentes 16 - um pensamento que a tradição cristã recebeu no conceito de visio beatifica: "O que não

verao os^ -^ que veem,^ aque^1 e^ que tu d^ o ver''"'.

  1. Cf. TOMÁS DE AQUINO, De Veritate 2, 2.
  2. GREGÓRIO MAGNO, apud TOMÁS DE AQUINO, De Veritate 2,2.

a filosofia e o mundo do trabalho 1 21

O OBJETIVO DA FILOSOFIA

Quem filosofa dá um passo além do mundo do trabalho cotidi- ano. O sentido de um passo, porém, é determinado menos pelo ponto de partida que pelo ponto de chegada. Continuamos, portanto, a indagar: para onde vai o filosofante ao transcender o mundo do trabalho? Evidentemente, ultrapassa uma fronteira: que tipo de região é essa que se encontra além da fronteira? E como se relaciona o campo no qual o ato filosófico avança com o mundo que justamente por meio desse mesmo ato filosófico é superado e ultrapassado? Será aquele campo o "autêntico" e o mundo do trabalho o "inautêntico"? Será o "todo" em contra- posição à "parte"? A verdadeira realidade em contraposição a uma realidade meramente aparente ou sombra do real? Seja qual for a resposta dada a essas questões particulares, em todo caso ambos os campos, o do mundo do trabalho e aque- le no qual o ato filosófico avança ao ultrapassar o mundo do trabalho, pertencem ao mundo do homem, que portanto possui uma estrutura evidentemente articulada de modo poliédrico. Eis, portanto, nossa próxima questão: de que espécie é o mundo do homem? - uma questão que obviamente não pode ser respondida sem levar em consideração o próprio homem.

1 23

"aceitava-se em geral que todos os anjnais dotados de olhos percebiam os mesmos objetos". Uexkütr'descobriu que isso ocor- re de modo totalmente diverso: "Os ambientes dos animais" assim afirma Uexküll2, "não se identificam à ampla natureza'. mas a um habitat estreito, escassamente mobiliado". Por exem- plo: deveríamos pensar que uma gralha poderia, pelo fato de possuir "olhos na cabeça", ver um gafanhoto, para ela um ob- jeto especialmente desejado, sempre que o recebesse à vista ou, dizendo de modo mais cuidadoso, sempre que aparecesse dian- te de seus olhos. Mas não é isso que ocorre! Ocorre na verdade o seguinte (cito novamente Uexküll): "A gralha é completamen- te incapaz de ver um gafanhoto imóvel[ ... ] Vamos supor aqui, primeiramente, que a forma do gafanhoto em repouso é bem conhecida pela gralha, mas não pode reconhecê-lo devido à grama que se lhe sobrepõe, tal como nós temos dificuldade de reconhecer uma forma a partir de imagens ocultas em outras imagens (Vexierbilder). Somente no salto é que a forma, segun- do essa concepção, se livra das imagens secundárias. Após ou- tras experiências, no entanto, deve-se supor que a gralha não reconhece de modo algum a forma do gafanhoto em repouso, mas só quando a forma está em movimento. Isso explicaria o imobilismo de muitos insetos. Se a forma em repouso não está presente em absoluto no mundo perceptivo do inimigo perse- guidor, então, pelo imobilismo escapam em segurança do cam- po de visão do inimigo e não podem nem ser encontrados por meio de busca" 3 • Esse meio restrito (Ausschnittmilieu), no qual o animal se encontra, por um lado, totalmente adaptado, por outro, total- mente preso (de tal modo que não pode de modo algum ultra- passar o limite - pois "nem sequer pela procura", ainda que

  1. lbid., p. 76.
  2. lo., Streifzüge durch die Umwelten von Tieren und Menschen Berlin 1934 p. 40. ' ' '

26 i que é filosofar?

dotado de um órgão de busca equipado aparentemente para tal, pode encontrar um objeto que não corresponda ao princí- pio de seleção desse .mundo a~imal) -'. es_sa realida~e-restrita (Ausschnitt-Wzrklzchkezt), determmada e limitada mediante a fi- nalidade biológica do indivíduo ou da espécie, é denominada por Uexküll meio ambiente (em oposição a "ao redor" [Umge- bung]; em oposição também a mundo [Welt]). O campo de rela- ção do animal não é o seu ao redor, menos ainda o seu mundo, mas seu "meio ambiente" neste sentido determinado: um mun- do no qual algo é deixado de fora, um meio recortado, no qual seu possuidor ao mesmo tempo está adaptado e trancado. Talvez alguém se pergunte agora o que tudo isso tem a ver com nosso tema "que é filosofar?". A relação, porém, não é tão distante e indireta quanto parece. Estamos perguntando sobre 0 mundo^ do^ homem,^ e este é o^ aspecto^ sob^ o^ qual^ o conceito de meio ambiente de Uexküll se torna diretamente interessante, particularmente porque, segundo a opinião de Uexküll, nosso mundo humano "de maneira alguma pode pretender ser mais real que o mundo da percepção dos animais" 4. Portanto, o ho- mem a princípio está limitado, do mesmo modo que o animal, a seu meio ambiente, ou seja, ao meio restrito que foi seleciona- do do ponto de vista da adequação a fins biológicos. Também o homem não poderia perceber algo colocado fora desse meio ambiente e "nem mesmo encontrar pela busca" (como uma gralha não pode encontrar um gafanhoto em repouso). Poder- se-ia, certamente, indagar: como é possível que tal ser, limitado a seu meio ambiente, preso a ele, poderia empreender pesquisa sobre o meio ambiente? No entanto, não pretendemos provocar polêmicas. Vamos deixar esse ponto num primeiro momento e indagar, voltando nosso olhar para o homem e para o mundo que lhe é ordenado, de que espécie e de que força é a capacidade de relação do ser

  1. lo., Die Lebenslehre, Potsdam/Zürich, 1930, p. 131.

o objetivo da filosofia 1 27

humano? Dissemos que a capacidadJ:Ae percepção dos ani- mais é, em contraposição ao mundo vegetal, uma força de rela- ção nova e mais ampla. Não se deve talvez agora reconhecer a maneira própria do homem, há muito denominada capacidade de conhecimento espiritual, como um modo novo, não realizá- vel no campo da vida vegetal e animal, de se colocar em rela- ção? E a essa capacidade de relação, essencialmente diferente, não está associado também um campo de relação, isto é, um mundo com dimensões essencialmente de outro tipo? Deve-se responder a essa questão que, de fato, a tradição filosófica do Ocidente compreendeu a faculdade do conhecimento espiri- tual, e justamente a definiu como faculdade de se colocar em relação com a totalidade das coisas existentes. Como foi dito, isso não significa uma mera característica, mas uma determi- nação essencial, uma definição. O espírito, segundo sua essên- cia, não é determinado tanto pela característica da não-cor- poreidade, mas primariamente pela capacidade de relação dire- cionada à totalidade do ser. Espírito significa uma faculdade de relação com tal amplidão e tal abrangência de força, que o campo de relação associado a ele a princípio ultrapassa as fron- teiras do meio ambiente. Pertence à natureza do espírito que seu campo de relação seja o mundo. O espírito não possui meio ambiente, possui mundo. É da natureza do ser espiritual rom- per os limites do meio ambiente e, portanto, superar ambas as coisas: a adaptação e a limitação (aqui já aparece aquilo que é, ao mesmo tempo, libertador e ameaçador, dado diretamente com a essência do espírito). No livro de Aristóteles Sobre a alma^5 se lê: "Agora pretende- mos, resumindo o que foi dito até agora sobre a alma, enunciar mais uma vez: a alma é no fundo todo o ser" - um enunciado que se tornou na antropologia da alta Idade Média uma locução francamente estabelecida: anima est quodammodo omnia, a alma é

  1. III, 8.431 b 21.

28 1 que é filosofar?

ern certo sentido tudo, o todo. "Em certo sentido": nomeadamen- te a alma é de tal modo tudo na medida em que é capaz de, conhe- cendo, se colocar em relação com a totalidade dos seres (e conhecer algo significa: tornar-se realmente idêntico ao que é conhecido). A alma espiritual está, assim afirma Tomás de Aquino em Sobre a verdade, essencialmente disposta a "convenire cum omni ente"^6 , convirá conformar-se com todo os seres, a entrar em relação com a totalidade daquilo que possui ser. "Qualquer outro ser possui somente uma participação fragmentária no ser", enquanto o ser dotado de espírito "é capaz de apreender o ser total" 7 • Na medida em que há espírito, "é possível que em um único ser a perfeição do todo completo possua existência (Dasein)"^8 Eis pois a afirmação da tradição ocidental: possuir espíri- to, ser espírito, ser espiritual, tudo isso significa: existir em meio à realidade total, voltado à da totalidade do ser, vis-à-vis de l'univers. O espírito não vive "num mundo" ou em "seu" mun- do, mas "no" mundo. Mundo no sentido de visibilia omnia et invisibilia [totalidade do visível e do invisível]. Espírito e realidade total são conceitos recíprocos, que res- pondem um ao outro. Não se pode "possuir" um sem o outro. A tentativa de atribuir ao homem superioridade sobre o meio ambiente, de dizer que o homem possui um mundo (não um meio ambiente), sem porém falar de sua espiritualidade; mais que isso, a tentativa de afirmar que esse fato (de que o homem possui mundo e não um mero meio ambiente) não tem nada a ver com o outro fato de que o homem é um ser dotado de espírito - essa tentativa é empreendida no livro muito comen- tado e abrangente de Arnold Gehlen O homem. Sua natureza e sua posição no mundo^9 Gehlen volta-se, com razão, contra Uexküll:

  1. TOMÁS DE AQUINO, De Veritate 1,1.
    1. lo., Summa contra Gentiles 3, 112.
  2. lo., De Veritate 2,2.
    1. Der Mensch. Seine Natur und seine Stellung in der Welt, Berlin, 1940.

o objetivo da filosofia 1 29

Vimos que existem graus de "muriâps": o inferior, o mun- do das plantas, é limitado já espacialmente à proximidade de contato; sobre este sobrepõe-se o meio ambiente dos animais; por fim, abrangendo por sobre todos esses mundos pequenos e parciais, o mundo associado ao espírito, o mundo autêntico enquanto totalidade do ser. A essa hierarquia dos mundos cor- respondem os campos de relação, portanto, vimos que há uma hierarquia das capacidades de relação: quanto mais abrangente a faculdade de relação, tanto mais extensamente dimensio- nado é o campo de relação, o "mundo" subordinado. A essa seqüência gradual dupla deve-se acrescentar agora um terceiro elemento constitutivo: o fato de que à capacidade de relação mais forte corresponde um grau mais elevado de interioridade; que, portanto, a faculdade de relação é mais abrangente e mais ampla na mesma medida em que o portador da relação é "mais dotado de interioridade"; que à faculdade de relação mais bai- xa corresponde não só a forma mais baixa de mundo, mas também o menor grau do ser-em-si, enquanto ao espírito como faculdade de relação dirigida para a totalidade do ser deve também corresponder o modo mais supremo do ser-em-si. Quanto mais abrangente a capacidade de se remeter ao mun- do do ser objetivo, tanto mais profundamente a capacidade de tal abrangência está ancorada no interior do sujeito. Onde existe um grau mais elevado de "amplidão de mundo", especial- mente de orientação para a totalidade, aí também é alcançado o grau máximo de fundação-em-si-mesmo, que é o próprio do espírito. Assim, ambas as coisas juntas perfazem a essência do espírito: não somente a faculdade de relação dirigida ao totum do mundo e da realidade, mas também a capacidade exterior do estar em si mesmo, do em-si-mesmo, da independência, da autonomia - precisamente aquilo que na tradição ocidental desde sempre é caracterizado como ser pessoa, como persona- lidade. Possuir um mundo, ser remetido à totalidade das coi-

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sas existentes só pode ser atributo de um ser fundado em si mesmo, não um quê, mas um quem, um eu-mesmo, uma pessoa. Agora chegou o momento de lançar um olhar retrospecti- vo à questão da qual partimos. Eram duas, uma mais próxima, outra mais distante. A mais próxima: de que espécie é o mundo do homem? A mais distante: que é filosofar? Antes, porém, de retomá-las, mais uma nota sobre a estru- tura do mundo associado ao espírito. Não é somente por meio da ampla distensão espacial que o mundo do ser espiritual se diferencia do meio ambiente do ser não-espiritual (em geral não se presta atenção a isso no debate sobre mundo e meio ambiente). Não é somente por meio da "totalidade das coisas", mas simultaneamente por meio da "essência das coisas" que o mundo associado ao espírito se constitui. Por isso é que o ani- mal está limitado em um meio recortado, pois a essência das coisas se mantém oculta para eles. E somente porque o espírito é capaz de alcançar a essência das coisas é-lhe dado apreender a sua totalidade - cujo contexto a antiga ontologia compreendeu: assim como o universo, também a essência das coisas é "univer- sal". Tomás de Aquino afirma: "porque é capaz de apreender o universal, a alma espiritual possui a capacidade do infinito" 12 • Quem, ao conhecer, alcança a essência universal, a essência to- tal das coisas, adquire justamente a partir disso um ponto de vista de onde a totalidade e o todo do ser, de todas as coisas existentes tornam-se acessíveis e visíveis. No conhecimento es- piritual atinge-se a posição de um posto avançado ou ainda alcançável, a partir do qual o campo do universo pode ser visto. Aqui se abre um campo para o qual só podemos lançar um olhar de passagem, mas que conduz ao centro de uma doutrina filosófica do ser, do conhecer, do espírito. Agora, no entanto, voltemos às questões que nos propuse- mos responder. Primeiro, a questão mais próxima: de que es-

  1. Suma teológica I, 76, 5 ad 4.

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pécie é o mundo do homem? É o mun!Jo associado ao espírito o mundo do homem? Deve-se responéfe"r: o mundo do homem é a realidade total, o homem vive em meio e em face da totali- dade das coisas existentes, vis-à-vis de l'univers - enquanto e na medida em que o homem é espírito! No entanto, ele não só não é puramente espírito, mas é espírito finito. Assim, a essência das coisas e a totalidade destas não lhe são dadas de maneira definitiva e perfeita, mas "em esperança ". Voltaremos a isso adiante. Antes de mais nada, o homem não é espírito puro. Pode-se enunciar essa frase com diversos acentos. É usual enunciá-la no modo de lamento - uma acentuação que costuma ser tomada, por cristãos e não-cristãos, como especificamente cristã. A frase pode também ser enunciada de tal modo que diga: com certeza o homem não é espírito puro, mas o "homem autêntico" é a alma espiritual. Essas opiniões, todavia, não têm apoio nenhum na tradição doutrinal clássica no Ocidente cristão. Em Tomás de Aquino há, a esse respeito, uma formulação muito aguda e pouco conhecida. Ele faz a si mesmo a seguinte objeção: "A finalidade do homem é o assemelhar-se perfeitamente a Deus. Mais do que a alma unida ao corpo, será porém a alma separa- da do corpo a mais semelhante a Deus, que é incorpóreo. E, por isso, as almas no estado de beatitude última serão separadas do corpo". Essa objeção revela a tese de que o homem autêntico seria a alma espiritual, tese que, por assim dizer, é coroada com o brilho tentador de um argumento teológico. A essa objeção, responde Tomás de Aquino da seguinte maneira: "A alma uni- da ao corpo é mais semelhante a Deus do que a alma separada, porque possui de modo mais perfeito a sua natureza própria" 13

  • uma frase não tão simples de ser compreendida, na qual está afirmado não só que o homem é corpóreo, mas até mesmo, em certo sentido, que a própria alma é corpórea.
    1. TOMÁS DE AQUINO, De potentia 5, 10, ad 5.

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Se, no entanto, é assim, se o homem essencialmente "não é só espírito", se o homem é, não p_or causa de -~m fracasso, nem de um retrocesso de seu ser autêntico, mas positivamente e do modo mais genuíno, um ser no qual o campo da vida vegetal, animal e espiritual se ligam em uma unidade, então o homem também vive essencialmente não só em face da realidade total, do mundo total das essências, mas seu campo de relação é um entrelaça- mento entre "mundo" e "meio ambiente", entrelaçamento ne- cessário, de acordo com a natureza do homem. Porque o ho- mem não é espírito puro, não pode viver unicamente "nas estre- las", vis-à-vis de l'univers. Pelo contrário, ele necessita do teto so- bre a cabeça, precisa do meio ambiente próximo e familiar do cotidiano, carece da proximidade sensível do concreto, da ade- quação na forma justa das relações costumeiras - e~ uma p~ lavra: pertence a uma vida realmente humana tambem o meio ambiente (no sentido em que este se diferencia de mundo). Todavia, pertence ao mesmo tempo à essência do homem corpóreo-espiritual o fato de que a alma espiritual informa os âmbitos do vegetativo e do sensitivo, ~e tal modo que até a alimentação do homem é algo muito diferente da dos animais (sem contar que no âmbito humano existe o "banquete", que é algo inteiramente espiritual). A alma espiritual informa de tal maneira todos os demais âmbitos que mesmo quando o ho- mem "vegeta" isso só é possível em função do espírito (a planta não "vegeta", assim como o animal!). E mesmo esse não-huma- no a auto-inclusão do homem no meio ambiente (quer dizer, no' mundo restrito determinado pelos fins vitais imediatos), mesmo essa degeneração só é possível por força de uma dege- neração espiritual. Humano, ao contrário, significa conhecer além das estrelas, perceber além do invólucro da adequação costu- meira ao cotidiano a totalidade das coisas existentes, além do meio ambiente o mundo que o abrange. Com isso, porém, demos de modo inteiramente inespera- do o passo para a primeira questão, para nossa questão propria-

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tempo se indague a respeito da essênçl: do conhecer, da verda- de ou mesmo apenas da essência do ensinar. O que significa, em absoluto e em seu fundamento último, ensinar? Alguém pode dizer: um homem não pode em absoluto realmente ensi- nar; assim como quando um doente se recupera, não foi (^0) médico que o curou, mas a natureza cuja força curativa (talvez) o médico apenas libertou. Outro pode dizer: É Deus quem en- sina interiormente - por ocasião do aprendizado humano. Sócrates poderia dizer: o mestre só faz com que o aprendiz, recordando-se, "adquira o saber a partir de si mesmo'', "não há aprendizado, somente reminiscência" 15 • Finalmente, outro po- deria afirmar: nós, humanos, estamos todos diante da mesma realidade; o mestre aponta para ela, o aprendiz, o ouvinte então a vê por si mesmo. O que fazemos aqui, o que está em jogo? Algo organizatório no quadro de uma série de conferências. Algo apreensível e investigável por meio da fisiologia e da psicologia. Algo entre Deus e o mundo. Eis, portanto, o que é próprio e diferenciador de uma ques- tão filosófica: que nesta vem à tona aquilo que perfaz a essên- cia do espírito, o convenire cum omni ente, a conveniência com tudo o que existe. Não se pode questionar e pensar filosofica- mente sem que entre em jogo a totalidade do ser, o todo das coisas existentes, "Deus e o mundo".

  1. PLATÃO, Mênon 85 d 4; 82 a ls.

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MEIO AMBIENTE E MUNDO

Dissemos que é próprio do homem necessitar adaptar-se ao "meio ambiente" e, ao mesmo tempo, estar orientado para o "mundo", para a totalidade do ser; e que é da essência do aro filosófico transcender o "meio ambiente" e penetrar no "mundo". Isso, no entanto, não pode significar que exista aí, por as- sim dizer, espaços separados e que o homem possa sair de um e adentrar no outro. Não é assim, como se existissem coisas caracterizadas por possuírem seu lugar no "meio ambiente" e outras que não ocorrem no "meio ambiente", mas somente na outra região, a do "mundo". Obviamente, meio ambiente e mun- do (por mais que utilizemos estes conceitos) não são duas regiões separadas da realidade, de modo que o indagador filosófico saísse de uma região e entrasse na outra! O filosofante não vira o rosto quando, no ato filosófico, transcende o meio ambiente do cotidiano do trabalho. Não tira o olhar das coisas do mun- do do trabalho, das coisas concretas, sujeitas a fins, manuseáveis do cotidiano. Não olha em outra direção a fim de ali então enxergar o mundo universal das essências. Não. Antes é para esse mundo mesmo, que se encontra diante de nossos olhos, visível, palpável, que a contemplação

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filosófica se dirige. Porém, esse mundC?.&~ssas coisas, esse esta- do de coisas são questionados de um modo especial. São ques- tionados em sua essência última, universal, total, e assim o horizonte da questão se torna horizonte da realidade total. A questão filosófica dirige-se inteiramente a "isso" ou "aquilo" que está diante dos olhos, não a algo que esteja "fora do mun- do" ou "em outro mundo" além do mundo da experiência do dia-a-dia. No entanto, a questão filosófica pronuncia: o que é "isso" em geral e em última análise? Platão^1 diz: o que o filósofo anseia saber não é se te causo injustiça ou tu a mim, mas o que é justiça em geral; não é se um rei proprietário de muito ouro é feliz ou não, mas o que é dominação, felicidade, miséria em geral - em geral e em última análise. O questionar filosófico, portanto, dirige-se inteiramente para o que se encontra cotidianamente diante dos olhos. Po- rém: isso que se encontra diante dos olhos torna-se, para quem indaga daquele modo, transparente e translúcido, perde sua compacidade, sua conclusividade aparente, sua obviedade. As coisas mostram uma face estranha, desconhecida, não-familiar e profunda. O Sócrates interrogador, que sabe tirar de repente a obviedade das coisas, compara-se ele mesmo com o peixe- elétrico cujo choque faz paralisar. Todo dia falamos que este é "meu" amigo, esta é "minha" esposa, "minha" casa, que, por- tanto, "possuímos" ou "temos" tudo isso. De repente, ficamos estupefatos: "possuímos" de fato todos esses "bens"? Podem, em geral, ser possuídos? O que significa em geral e em última análise possuir algo? Filosofar significa: distanciar-se, não das coisas do dia-a- dia, mas das interpretações correntes, das valorações corriquei- ramente válidas dessas coisas. E isso não em função de alguma decisão de se diferenciar, de ser "diferente" da maioria, mas pelo fato de que de repente uma nova face das coisas vem à

  1. ID., Teeteto, 175 e lss.

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tona. Trata-se exatamente desse estado de coisas: nas próprias coisas que estão cotidianamente à mão torna-se perceptível o rosto mais profundo do real (não numa esfera do "essencial" destacada contra o cotidiano, ou como quer que se a chame); portanto, diante do olhar dirigido às coisas encontradas na experiência cotidiana se apresenta o não-cotidiano, o que não é mais óbvio nessas coisas. É exatamente a esse estado de coisas que está associado aquele acontecimento interior no qual se colocou há muito o início do filosofar: a admiração. "Pelos deuses, Sócrates, causa-me grande admiração o que tudo isso possa ser, e só de considerá-lo, chego a ter vertigens"

  • exclama o jovem matemático Teeteto depois de Sócrates, o questionador astuto e benévolo, surpreendente e paralisante (paralisado pela admiração!). E no diálogo Teeteto de Platão^2 , continua a resposta irônica de Sócrates: "Estou vendo, amigo, que Teodoro não ajuizou erradamente tua natureza, pois a admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a filosofia". Neste ponto, na serenidade matinal e totalmente sem cerimônia, quase de passagem, foi trazido à palavra pela primeira vez o pensamento que, atravessando a história da filosofia, se tornou um lugar-comum: o começo da filosofia é a admiração. No fato de que o filosofar começa na admiração, eviden- cia-se, por assim dizer, o caráter fundamentalmente não-bur- guês da filosofia. Pois a admiração é algo não-burguês (seja-nos permitido, não inteiramente sem constrangimento, recorrer a essa terminologia que se tornou corrente). O que significa o emburguesamento em sentido espiritual? Antes de tudo, o se- guinte: que alguém tome o meio ambiente próximo, determi- nado pelas finalidades da vida, de modo tão definitivo e com- pacto, a ponto de as coisas que encontra não serem mais capa- zes de se tornar transparentes. O mundo das essências, maior,
  1. Ibid., 155 e-d.

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