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Este documento discute a pesquisa participante em antropologia, enfatizando a politica e etica da pesquisa de campo como diálogo de identidades/alteridades e seus vínculos com a constituição de comunidades interpretativas. A prática da pesquisa participante aglutina discursos e práticas de pesquisa qualitativa em ciências humanas, sendo que existem tendências e linhas teórico-metodológicas que se diferenciam. O texto compara pesquisa participante, pesquisa-ação e pesquisa-intervenção, questionando a neutralidade e objetividade do pesquisador e a gênese teórica e social dos interesses de pesquisa.
Tipologia: Notas de aula
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Psicologia USP, 2006, 17(2), 11-41. 11
Maria Luisa Sandoval Schmidt^2 Instituto de Psicologia - USP
Este artigo apresenta um conjunto de problemas postos à pesquisa que busca a colaboração de indivíduos, grupos e coletividades cuja experiência, pessoal e coletiva, se quer conhecer. Apoiando-se nas matrizes etnográficas da pesquisa participante em Antropologia, focaliza a política e a ética da pesquisa de campo como diálogo de identidades/alteridades e seus nexos com a constituição de comunidades interpretativas. Descritores: Pesquisa participante. Etnografia. Alteridade. Comunidades interpretativas.
m 1995, Boaventura de Sousa Santos (1999) publicou o artigo “Da idéia de universidade à universidade de idéias”, no qual analisava as crises de hegemonia, de legitimidade e institucional das universidades modernas, apre- sentando, ao final, uma pauta de transformações, em sua opinião, necessárias a uma digna sobrevivência destas instituições na chamada pós-modernidade.
Mutuamente implicadas, as crises de hegemonia, de legitimidade e institu- cional vêm se instalando nas universidades desde o final da Segunda Guerra Mun- dial e uma breve referência às suas características gerais concorre para uma melhor compreensão das propostas para seu enfrentamento sugeridas pelo autor e que interessam, particularmente, à discussão sobre o papel da pesquisa participante.
1 Este texto foi apresentado, originalmente, como ensaio na tese de livre docência En- saios indisciplinados: aconselhamento psicológico e pesquisa participante , defendida em agosto de 2005, junto ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 2 Docente do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia - USP. Endereço para correspondência: Rua Capote Valente, 964, apto11, São Paulo, SP. CEP 05409-002. Endereço eletrônico: maluschmidt@terra.com.br
Maria Luisa Sandoval Schmidt
A crise de hegemonia descreve a perda do domínio e, até certo ponto, da exclusividade da universidade na produção e transmissão do conhecimento que passa a ser requerido, também, na esfera da formação profissional, com- petindo, por um lado, com outras instituições profissionalizantes de ensino superior e, por outro, com a emergência de uma cultura média veiculada pelos meios de comunicação de massa.
A crise de legitimidade, por sua vez, expõe as contradições entre a in- tensa hierarquização dos saberes especializados que pede competências restri- tivas ao acesso e ao credenciamento para o ensino universitário e as exigências societárias de democratização das oportunidades de ingresso neste ensino.
Por fim, a crise institucional reside, principalmente, na tensão entre a reivindicação da autonomia universitária na definição de seus valores e obje- tivos e a pressão para que se submeta a critérios produtivistas e empresariais (Santos, 2004).
No texto de 1995, Boaventura de Sousa Santos ateve-se a considera- ções sobre as universidades públicas e buscou mostrar que estas, “longe de poder resolver as suas crises, tinham vindo a geri-las de molde a evitar que elas se aprofundassem descontroladamente” (Santos, 1999, p. 9). A ação das universidades frente às crises era, e em grande parte continua sendo, reativa, acrítica e imediatista, dispensado a reflexão sobre projeções de médio ou lon- go prazo.
Contra esta tendência de responder no curto prazo a problemas de fun- do que ameaçam a própria sobrevivência das universidades, o autor propôs, ao finalizar sua análise, um conjunto de teses que, como micro-utopia, investem no médio e longo prazo, sem os quais entende que, “a curto prazo, a universi- dade só terá curto prazo” (Santos, 1999, p. 230).
Destas teses, destacam-se, aqui, duas, cujos argumentos servem de base à discussão sobre o lugar da pesquisa participante na micro-utopia de uma universidade democrática e emancipatória. São elas: 1) a necessidade de uma dupla ruptura, por um lado, com o paradigma positivista de ciência e, por outro, com a hegemonia do saber científico em relação a outros saberes como o senso comum e a sabedoria popular; 2) a idéia de que a democratização da universidade, embora passando pela transformação das estruturas de poder
Maria Luisa Sandoval Schmidt
Uma cartografia destas singularidades exigiria o exame das representa- ções de ruptura e continuidade em relação às matrizes da pesquisa etnográfica que, na virada do século XIX para o XX, fundam a Etnografia e, portanto, a pesquisa participante, como disciplina científica. Autores como James Clifford (2002) ou George E. Marcus (1998), entre outros, fazem interpretações minucio- sas e profícuas destas matrizes antropológicas e seus desdobramentos históricos.
Embora seja tentador penetrar nas ramificadas sendas da história da Antropologia, buscando um maior esclarecimento sobre os caminhos da pes- quisa participante, para o tratamento dos temas e das questões que aqui serão propostos basta, talvez, a indicação, esquemática certamente, de dois modos de relação com a tradição etnográfica na configuração de pesquisas participan- tes: linhas teórico-metodológicas que se constituem por oposição à tradição etnográfica, supondo-se a si mesmas como descontinuidades críticas e inova- doras e tendências que retomam os problemas postos pelas práticas inaugu- rais no e do interior de pesquisas etnográficas. Estes modos, parece, ajudam a identificar, por um lado, peculiaridades e diferenças atribuídas às chamadas pesquisa-ação e pesquisa-intervenção que têm um largo trânsito na Psicologia e, por outro, a situar a pesquisa participante como pesquisa etnográfica. Mais ainda, ajudam a problematizar a dicotomia ruptura/continuidade, procurando mostrar que há continuidades na ruptura e rupturas na continuidade.
O pensamento de ruptura tende, neste caso, a ver a tradição como deposi- tária de todas as práticas, atitudes, valores e idéias que se quer combater por meio da novidade de práticas, atitudes, valores e idéias que este pensamento motiva.
O termo participante sugere a controversa inserção de um pesquisador num campo de investigação formado pela vida social e cultural de um outro, próximo ou distante, que, por sua vez, é convocado a participar da investigação na qualidade de informante, colaborador ou interlocutor. Desde as primeiras experiências etnográficas, pesquisador e pesquisado foram, para todos os efei- tos, sujeitos e objetos do conhecimento e a natureza destas complexas relações estiveram, e estão, no centro das reflexões que modelam e matizam as diferen- ças teórico-metodológicas.
O antagonismo da ruptura tende, por vezes, a simplificar a visão de alteridade e a capacidade auto-reflexiva dos etnógrafos clássicos; a adesão bu- rocrática a protocolos de pesquisa consagrados tende a obscurecer ou mesmo
Pesquisa Participante: Alteridade e Comunidades Interpretativas
negar a necessária negociação envolvida no encontro com o outro, bem como a necessária apreensão de si mesmo na relação com o outro.
Se o termo pesquisa participante pode abrigar o plural e o diverso que a compõem é porque pode abrigar a diversidade e a pluralidade de modos de vi- ver e pensar a alteridade e a auto-reflexão na produção do conhecimento sobre a diversidade humana. Posicionar-se em relação a este campo de diferenças é, por essa razão, participar do interjogo de alteridades e identidades que confor- mam cada maneira de pesquisar.
A posição que se quer abraçar ou clarear para conduzir a discussão sobre temas e idéias capazes de articular pesquisa participante, alteridade e comunidades interpretativas passa por um comentário sobre a pesquisa-ação e a pesquisa-inter- venção por comparação, confronto e complementação à pesquisa etnográfica.
A pesquisa-ação é exemplificada pela posição de Carlos Rodrigues Brandão para quem a Antropologia inventou um método participante, a obser- vação participante, sem que, contudo, tivesse se tornado, ela mesma, politica- mente participante. Sob a influência do marxismo, a observação participante que buscava “conhecer para explicar” o outro transmuta-se em pesquisa par- ticipante, procurando, então, “compreender para servir”. Convivência e com- promisso articulam-se para dar sentido a uma prática científica que participa do trabalho político das classes populares (Brandão, 1999).
As idéias de ação ou intervenção não são equivalentes, mas sugerem, além da presença do pesquisador como parte do campo investigado, a presença de um outro que, na medida em que participa da pesquisa como sujeito ativo, se educa e se organiza, apropriando-se, para a ação, de um saber construído coleti- vamente. A alteridade é visada como co-produtora da mudança social e convo- cada à participação e o pesquisador é obrigado a questionar sua pesquisa e sua pessoa na direção de um engajamento político com a luta popular. Neste ponto, segundo Brandão, a pesquisa participante é propriamente inventada e rompe, até certo ponto, com a tradição etnográfica inaugurada pela Antropologia que, embora “mergulhasse” no mundo do outro, desobrigava-se “das questões efeti- vamente sociais das condições de vida dos outros ” (Brandão, 1999, p. 12).
Abordando uma outra linha de filiações, na área da Psicologia, Rocha e Aguiar (2003) apontam Kurt Lewin como o iniciador das pesquisas de cam-
Pesquisa Participante: Alteridade e Comunidades Interpretativas
novas terminologias, pesquisa-ação e pesquisa-intervenção, nas quais a ques- tão do agir coletivo se torna essencial.
Michel Thiollent (1999), autor de referência no debate sobre metodo- logias qualitativas em ciências humanas, faz a distinção entre pesquisa partici- pante e pesquisa-ação, valendo-se desta identificação da pesquisa participante com o modelo da observação participante praticado nas experiências inaugu- rais da investigação antropológica e etnográfica. Assim, se, por um lado, a pes- quisa-ação constitui-se num tipo de pesquisa participante porque, em alguma medida, se serve da observação participante “associada à ação cultural, edu- cacional, organizacional, política ou outra”, por outro, dela se separa quando focaliza “a ação planejada, de uma intervenção com mudanças dentro da situ- ação investigada”, priorizando a participação do pólo pesquisado (Thiollent, 1999, pp. 83-84). Este argumento confina a pesquisa participante à esfera da observação participante que, para este autor, tratava de criar e “aperfeiçoar” os dispositivos que facilitassem a inserção do pesquisador no cotidiano habi- tual dos grupos pesquisados, com a finalidade de “observar fatos, situações e comportamentos que não ocorreriam ou que seriam alterados na presença de estranhos” (Thiollent, 1999, p. 83).
As noções de ação e intervenção que conferem especificidade teórica e metodológica a um tipo de pesquisa participante que se divorcia politicamente dos propósitos da matriz antropológica e etnográfica não esgotam os desdobra- mentos desta matriz no questionamento das relações entre “o pólo pesquisador e o pólo pesquisado”. E, mesmo, é possível que estas matrizes, lidas sob certa perspectiva, interroguem, criticamente, tais noções de ação e intervenção, pois não deixa de ser uma pretensão do pesquisador − psicólogo, sociólogo, educa- dor ou antropólogo − achar que um grupo ou uma classe social necessita de sua ajuda para agir politicamente, criar cultura e educar-se para a consciência de seus direitos. Há uma espécie de respeito pelo outro que se concretiza no interesse por seus modos de viver, sentir e pensar, sem cobrar que ele seja o que não é.
Esta observação vem só para reforçar a tese de que assim como a pes- quisa-ação e a pesquisa-intervenção realizam uma crítica do caráter relativa- mente objetivante das experiências etnográficas, as experiências etnográficas, por sua vez, oferecem argumentos críticos relevantes para uma avaliação dos propósitos destes modos de pesquisar. Porém, os principais motivos para fa-
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zer uma referência menos simplificadora às etnografias “modelares” são, por um lado, mostrar que alteridade e auto-reflexividade estiveram ali presentes, tensionando objetividade e subjetividade e construindo pontes entre o traba- lho de campo e a escrita etnográfica. Por outro lado, explicitar o contexto em que objetivos, procedimentos, textos e compromissos do trabalho etnográfico aparecem como problemas pertinentes à pesquisa participante que se quer par- ceira da democratização da universidade e da sociedade.
As noções de ação e intervenção não parecem ter o monopólio da crítica epistemológica e metodológica que vem transformando a pesquisa participante e a explicitação das mais radicais conseqüências da presença do pesquisador em campo e da consciência da alteridade deve muito ao trabalho etnográfico que faz justiça a uma tradição sem, contudo, apenas repeti-la.
Matrizes etnográficas
James Clifford (2002), no livro A experiência etnográfica , escreve dois instigantes ensaios sobre dois antropólogos, Malinowski e Griaule, cujas experiências, por caminhos diferentes, estão ligadas à fundação da discipli- na antropológica. Não são as únicas experiências a se destacar na tentativa de abrir a discussão sobre alteridade pelo viés da pesquisa etnográfica. São, contudo, experiências matriciais que, conduzidas pela sensível interpretação de Clifford, permitem uma visão da problemática e rica empreitada que é o encontro etnográfico.
No ensaio sobre Bronislaw Malinowski, Clifford parte da idéia, para ele inquestionável, de que a individualidade é articulada no interior de mundos de significação que são coletivos e limitados para, então, perguntar sobre como é possível historicizar a idéia de que o eu é construído culturalmente. Recorre, então, à história da Antropologia.
Na virada do século XIX para o XX, localiza-se o projeto de uma An- tropologia do indivíduo e da singularidade cultural, projeto que se opõe à ante- rior tendência de buscar a universalidade do homem nos estudos comparativos das diferentes culturas. É, ainda, nesta virada de séculos que a Antropologia moderna se institui como ciência.
Maria Luisa Sandoval Schmidt
Ao focalizar a escrita, Clifford aponta o caráter construtor do texto etno- gráfico: mais do que complementar ao trabalho de campo, o texto vem a ser, ain- da, um substituto para o “anseio de uma interlocução sincera” (2002, p. 122).
A edição do texto etnográfico que finalmente vem a público constrói e reconstrói “coerentes outros culturais e eus interpretativos”. Esta qualidade do texto etnográfico revela algumas características fundamentais do conheci- mento em ciências humanas: sua historicidade e seu cunho parcial. Citando Clifford (2002):
(...) as verdades das descrições culturais são significativas para específicas comuni- dades interpretativas em determinadas circunstâncias históricas. Assim, o “arran- car” ou “rasgar”, lembra-nos Nietzsche, é simultaneamente um ato de censura e de criação de significado, uma supressão de incoerência e contradição. As melhores ficções etnográficas são, como a de Malinowski, intricadamente verdadeiras; mas seus fatos, assim como todos os fatos nas ciências humanas, são classificados, contextualizados, narrados e intensificados. (p. 126)
A marca construtora do texto etnográfico é visível na projeção de identidades e alteridades e como mediadora de “mundos discrepantes de sig- nificado”. Nesse sentido, para a pesquisa participante que busca a compreen- são do outro, o texto tem o mesmo valor que têm a ação ou a intervenção para aquela que busca a conscientização ou a organização política do outro.
A escrita etnográfica produz efeitos de reconhecimento e desconheci- mento do outro, bem como de dominação e controle da experiência de cam- po, em benefício da arquitetura coerente das representações da alteridade e da constituição identitária de um intérprete legitimado.
Em Malinowski, duas “experimentações específicas com a escrita”, o livro Os argonautas do Pacífico Ocidental (1978) e Um diário no sentido estrito do termo (n.d.), permitem uma aproximação das tensões e complexida- des do encontro etnográfico: no primeiro, aparece a descrição da cultura tro- briandesa, do ponto de vista da instituição do Kula ; no segundo, uma explosão polifônica dos sentidos pessoais e subjetivos da vivência do pesquisador.
Para Clifford (2002), o diário de Malinowski obriga a enfrentar a com- plexidade dos encontros etnográficos e a “tratar todos os relatos textuais base- ados em trabalho de campo como construções parciais” (p. 107).
Pesquisa Participante: Alteridade e Comunidades Interpretativas
Estas construções parciais ingressam no mundo como condutoras sig- nificativas de representações da alteridade e da diversidade cultural, estabele- cem pontes ou mediações entre diferentes universos de vida social e o fazem desde um ponto de vista teórico e metodológico que é, ao mesmo tempo, po- lítico-ideológico.
O informante é o veículo para a objetivação de uma cultura nos termos de um sistema coerente de símbolos e práticas. Por isso, como transparece no diário de Malinowski, o informante é menos e mais do que um objeto de estudo: menos, porque não é dele que se trata, mas de sua cultura; mais, por- que é preciso conversar com ele, convencê-lo a colaborar, negociar posições e informações, aguardá-lo, entender o que ele diz e assim por diante. Este foi só um dos “problemas” que Malinowski teve que enfrentar: estar diante de um objeto de estudo que dependia de informantes com vontade própria, situados em seu próprio lugar de vida.
O intento de dominar e controlar o trabalho de campo é, também, o in- tento de dominar e controlar o informante, fazendo com que ele convirja para os objetivos da pesquisa. O mesmo desejo de domínio e controle recai sobre o pesquisador que, por meio do método, procura moldar-se como instrumento fidedigno e confiável de observação e interpretação do outro. Esta é a política da pesquisa de campo de Malinowski.
No plano ideológico, paradoxalmente, talvez, é a construção da cultura trobriandesa desde a perspectiva dos nativos que está em jogo: o pesquisador procura decifrar ou desvendar “objetivamente” os significados e a lógica das concepções e práticas nativas. Concomitantemente, como já se disse, trava o combate moral e psicológico de preservação de si como um outro que quer co- nhecer, sem se perder.
Nesta relação pesquisador/pesquisado percebe-se a presença de di- mensões negadas ou enquadradas em nome do método científico que então buscava uma fundação segura na esfera das ciências humanas: no informante, nega-se o valor do colaborador ou do interlocutor na construção do conheci- mento ou na interpretação da cultura; no pesquisador, o valor da auto-reflexi- bilidade como componente desta construção.
Pesquisa Participante: Alteridade e Comunidades Interpretativas
Considerando a cultura como performance, espetáculo, Griaule serve- se dos papéis e lugares designados pela Etnografia liberal da época colonialista para observar e documentar a cultura dogon, acumulando um conhecimento que irá se aprofundar a partir da mudança de postura que corresponde à fase de sua iniciação. Nesta fase, o pesquisador, que antes descrevia e documentava a cultura nos termos quase de um inquérito, desliza para a posição de transcritor do saber formulado, tradutor, exegeta e comentador. O informante, por sua vez, passa à posição de professor ou instrutor.
No parâmetro iniciático, a narrativa de iniciação confirma a competên- cia do pesquisador que textualiza o sistema tradicional de conhecimento dos dogon, dando oportunidade a uma reinscrição da ordem mítica numa escala mundana (Clifford, 2002).
Para Clifford, à guisa de conclusão desde comentário sobre a experiên- cia etnográfica de Griaule:
O paradigma de Griaule funcionou para transformar o papel do etnógrafo de obser- vador e documentador da cultura dogon em exegeta e intérprete. Ele preservou e re- formulou, no entanto, os temas dominantes de sua prática: a lógica do segredo, uma aspiração a um conhecimento exaustivo, uma visão do trabalho de campo como desempenho de papéis. Esse paradigma expressou também o sentimento, que se tem ao longo da carreira de Griaule, de que seus parceiros dogon foram poderosos agentes do processo etnográfico: inicialmente, exibindo táticas brilhantes e resistên- cia voluntariosa; depois, como professores e colegas. (Clifford, 2002, p. 219)
Estas duas experiências exemplares, brevemente referidas, são sufi- cientes para mostrar como o projeto de “cientifização” da observação partici- pante singulariza-se nestes encontros etnográficos: as normas metodológicas, quando confrontadas com a realidade do trabalho de campo e com a presença concreta e ativa do outro, tornam-se instáveis, precárias, como provam o ator- mentado diário de Malinowski e as críticas recebidas por Griaule em razão de suas heterodoxias metodológicas.
A crença realista nas descrições objetivas das culturas e a constituição identitária do pesquisador profissional estão intimamente ligadas, na fundação da Antropologia científica, à busca de objetivação da observação participante. Porém, em suas “falhas”, insinua-se a problemática do interjogo de identida- des e alteridades na configuração dos lugares de pesquisador e pesquisado e a
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tarefa auto-reflexiva que, na continuidade histórica da Antropologia, questiona tal crença e tal identidade.
A passagem, se assim se pode dizer, de uma Antropologia realista − “clássica”, localizada entre o final do século XIX e princípio do século XX − a uma Antropologia modernista − contemporânea, “filha” da Antropologia interpretativa dos anos 60 e 70 − deve muito ao quase desaparecimento das sociedades “exóticas”^3 relativamente isoladas e “preservadas” do início da Antropologia científica e às mudanças, em escala mundial, da dinâmica do contato intercultural e suas ressonâncias na diversidade e mobilidade das iden- tidades de indivíduos, grupos e coletividades.
Para Marcus e Fischer (1986), a Antropologia interpretativa toma a Etnografia clássica como referência para uma atualização da pesquisa parti- cipante baseada no trabalho de campo e na escrita do texto etnográfico, dis- cutindo, por um lado, a aspiração das etnografias realistas de elucidar o ponto de vista do nativo e, por outro, os processos de comunicação no trabalho de campo por meio dos quais os antropólogos se autorizavam a representar outros sistemas culturais em seus textos.
A escrita etnográfica experimental, conseqüência da revisão feita pela Antropologia interpretativa, lê os clássicos buscando suas possibilidades laten- tes, legitimando-se e se renovando na medida em que se localiza em relação à tradição da escrita etnográfica. O experimento é tido como uma reorientação e não como rompimento com a tradição etnográfica (Marcus e Fischer, 1986). Interessante neste liame com a tradição é a retomada crítica de temas reconhe- cidos no passado mas ignorados ou excluídos pela predominância de outras idéias em que estava mergulhado um certo “cientificismo”.
O contexto e a natureza desta reorientação em relação à tradição impor- tam sobremaneira à clarificação de um modo de teorizar e praticar a pesquisa
3 Marc Augé (1997) escreveu o seguinte sobre o fim do exotismo: “... certamente há sempre sociedades longínquas (do ponto de vista europeu) e há sempre ‘minorias’ cujos modos de vida e de pensamento podem estimular mais particularmente o interesse ou às vezes a agressividade daqueles que compõem a ‘maioria”; mas o exotismo está, de- finitivamente, morto ou morrendo. (...) Hoje o Planeta encolheu, a informação e as imagens circulam e, ao mesmo tempo, a dimensão mítica dos outros se apaga. Os outros não mais são diferentes: mais exatamente a alteridade permanece mas os prestígios do exotismo desapareceram” (p. 26).
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nógrafo não pode permanecer sólida e intata no estudo destes outros. O cená- rio da procura de um sentido do outro é solidário àquele da procura do sentido da pesquisa etnográfica. Por isso, a qualidade de seus experimentos é crítica, tornando mais explícitas metodologias participantes ética e politicamente sen- síveis às mútuas implicações do par identidade/alteridade.
Alguns traços comuns a estes experimentos são reconhecíveis e cabe aqui nomeá-los.
Primeiramente, é preciso admitir o quase desaparecimento dos “luga- res tradicionais” da investigação antropológica e, mesmo, mais recentemente, da antropologia de urgência (estudo de certos povos “em vias de desapareci- mento”).^4 Isto indica outras e novas localizações da Etnografia contemporâ- nea: as cidades, os novos movimentos religiosos, as regiões de fronteira, entre outras. Com isso, o outro, outrora distante no espaço e exótico, pode ser, agora, o habitante de uma mesma cidade ou bairro, o adepto de formas de religiosi- dade idiossincráticas ou o imigrante. Trata-se, na verdade, da multiplicação de outros, próximos e distantes, da aproximação do distante e do distanciamento do próximo, da possibilidade do outro alhures e do outro aqui.
Sobre a relação entre teoria e empiria, Augé (1997) avalia que na situ- ação atual a imposição do trabalho de campo à teoria é mais visível do que o inverso, ou seja, um enquadramento teórico das descobertas do campo, como era mais comum em tempos atrás. Esta observação de Augé é complementar à interessante pontuação de Marcus (1998) sobre o quanto a mudança dos conceitos do pesquisador é mais importante do que a mudança dos conceitos de seus interlocutores, na pesquisa de campo empreendida no espírito expe- rimental. O trabalho de campo, nesta perspectiva, serve menos à confirmação das teorias antropológicas e mais ao teste dos limites e das insuficiências dos conceitos familiares aos antropólogos. As relações entre mundo e experiência, texto e realidade, estrutura e ação tornam-se discutíveis e não há nenhuma teoria social dada ou tradicional capaz de colocar em ordem os paradoxos da homogeneização/diversificação, da localização/globalização e da singula- rização/universalização. Os desenhos metodológicos das pesquisas de campo,
4 Há, nesta observação, uma grande dose de ironia, pois para uma certa militância an- tropológica haveria grupos ou povos nativos “puros” que, pelo contato com outras culturas, tenderiam a desaparecer, ou seja, a perder sua “autenticidade original”.
Pesquisa Participante: Alteridade e Comunidades Interpretativas
bem como sua teorização, fragmentam-se e se multiplicam em sintonia com as singularidades de cada mundo estudado que, no entanto, em si, não serve como referência ou modelo unificador.
A chave para a crítica modernista é a procura de possibilidades da identidade e suas complexas expressões, confrontando a hegemonia de certas representações simplificadoras ou esquemáticas construídas, inclusive, no seio das teorias sociais dominantes. Nesse sentido, o experimentalismo etnográfico presta-se à construção de discursos contra-hegemônicos, baseados na polissemia e na polifonia das simultâneas representações de um mesmo fenômeno, grupo ou coletividade.
Metodologicamente, o recurso a diferentes vozes é acompanhado da valorização da memória e das biografias ou histórias de vida. A alternativa de etnografias baseadas em vozes encena a ética das relações entre pesquisador e colaborador ou interlocutor, pondo em curso concepções do encontro etno- gráfico como diálogo, negociação e interlocução culturais. Nesta alternativa, a ética das relações entre pesquisador e pesquisado é erigida, por um lado, a partir do interesse do pesquisador pelos sentidos e significados atribuídos por seu interlocutor à vida social e, por outro lado, na focalização do próprio encontro como processo de conhecimento. Nestas atitudes vislumbra-se uma abertura para considerar o outro como parceiro na construção de interpreta- ções da cultura e para empreender a reflexão sobre as relações de poder entre pesquisador e pesquisado, bem como sobre o sentido ou a utilidade da pes- quisa etnográfica para um e outro.
Marcus e Fischer (1986) vêem o experimentalismo etnográfico como uma tentativa da Antropologia cultural de cumprir, com autenticidade, suas promessas de representar as diferenças culturais e de usar o conhecimento como forma de crítica aos nossos modos de viver e de pensar.
É, fundamentalmente, como produtor de conhecimento e de crítica da cultura que o encontro etnográfico se justifica como prática de pesquisa parti- cipante.
O texto ou a escrita etnográfica, como já foi sugerido anteriormente, é o meio privilegiado de elaboração e transmissão deste conhecimento e desta crítica, unindo ou estabelecendo as pontes entre os dois momentos essenciais
Pesquisa Participante: Alteridade e Comunidades Interpretativas
científicos não, na Etnografia a necessidade de localização do autor faz com ela se aproxime da literatura.
A literatura é, portanto, um paradigma necessário ao texto etnográfi- co que, como quer Geertz, exibe um caráter híbrido, instalado que está entre a aspiração de criar um estilo, singularizando modos de ver e recortar uma paisagem empírica e intelectual e o desejo de comunicar fatos e idéias, articu- lando informações. Ao caráter híbrido do texto corresponde a ambivalência do escritor etnográfico.
El problema de la firma, tal como el etnógrafo tiene que afrontarlo, o tal como se enfrenta con el etnógrafo, exige a la vez la actitud olímpica del físico no autorial y la soberana auto-conciencia del novelista hiperautorial, sin permitir caer en ningu- no de los dos extremos. (Geertz, 1989a, p. 20)
Ainda, para Geertz, se a pesquisa etnográfica é, como experiência pes- soal, o processo por meio do qual o pesquisador busca situar-se entre outros que desconhece e não compreende de partida, o texto, por sua vez, é a tentativa de “formular a base na qual se imagina, sempre excessivamente, estar-se situado” (1989b, p. 23).
Uma condição do trabalho de campo é incorporar o outro e ser incor- porado por ele em alguma medida. Na escritura do texto não são só os conteú- dos cognitivos do encontro com o outro que voltam, cobrando uma elaboração compreensiva, explicativa ou interpretativa, mas a política e a ética deste en- contro, pedindo uma apreensão dos atos e atitudes que, quando embaraçosos do ponto de vista do modelo metodológico, tendem a ser omitidos ou “joga- dos” para as notas de rodapé, prefácios e posfácios.
A vocação da Etnografia, na atualidade, de construir sentidos para a alteridade, no regime itinerante e precário que caracteriza estes tempos, enseja o próprio experimento da pesquisa como auto-reflexivo e como local de arti- culação de diferentes mundos e de diferentes identidades/alteridades: como local possível de compreensão de uns diante de outros, do pesquisador diante do interlocutor e, vice-versa, do interlocutor diante do pesquisador. De tal for- ma que a pesquisa participante e o texto que dela deriva, produzindo efeitos de reconhecimento e desconhecimento de lugares de identidade e alteridade, produzem, também, efeitos de conhecimento no par pesquisador/interlocutor,
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efeitos de conhecimento de si, do outro e do processo de constituição do en- contro etnográfico, bem como de sua função ou utilidade para ambos.
Resta pensar de que maneira estas idéias trazidas das matrizes etnográ- ficas servem ao entendimento e à constituição de comunidades interpretativas.
Epistemologia pragmática, pesquisa participante e comunidades
interpretativas
A constituição de sentidos da alteridade, na prática da pesquisa partici- pante, como se viu, encontra-se, na atualidade, muito mais explicitamente de- finida como resultado do diálogo, da interlocução e da negociação cultural e interpessoal entre pesquisadores e pesquisados. A composição destes campos de pesquisa inclui alteridades próximas e/ou distantes e pesquisadores da Antro- pologia mas, também, de áreas envolvidas com a pesquisa qualitativa como a Geografia, a História oral, a Sociologia, a Terapia Ocupacional, a Economia, a Psicologia Social, a Psicologia Clínica Social, entre outras.
O encontro etnográfico é, ainda, encontro de diferenças de classe ou posição social, étnicas, de gêneros, geracionais, de pertencimentos sociocultu- rais, de especialidades e saberes.
Assim como se concebe os congressos e encontros científicos como ocasiões para o intercâmbio entre pares, é possível pensar os processos de pesquisa participan- te como oportunidades de intercâmbio intelectual entre pesquisadores profissionais e indivíduos, grupos ou coletividades próximos ou distantes do ambiente acadêmico.
A crítica do paradigma positivista e da hegemonia do saber científico é condição para a criação e sustentação de comunidades interpretativas das quais façam parte diferentes protagonistas ou sujeitos sociais, entre eles o pes- quisador acadêmico ou profissional.
Tomar a pesquisa participante como conjuntura propícia às comuni- dades interpretativas implica o questionamento das formas de pesquisar em ciências humanas, focalizando a ética e a política das relações entre pesqui- sador e pesquisado. Este último, o pesquisado, convidado a participar como colaborador e/ou interlocutor.