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Guias e Dicas
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Comparativo: Pensamento Espontâneo vs. Psicologismo e Formalismo em Schopenhauer e Kant, Manuais, Projetos, Pesquisas de Lógica

Neste documento, o autor defende a noção de pensamento espontâneo e autônomo contra o psicologismo e o formalismo, enfatizando a importância do conteúdo do pensamento e as preocupações relacionadas ao estilo e escrita. O artigo contextualiza a abordagem atual com citações de schopenhauer e confronta-a com a dedução transcendental de kant. O texto destaca a diferença entre o pensamento vivo e o mimético, além de explorar as semelhanças entre a noção de pensamento próprio de schopenhauer e a lógica transcendental de kant.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Pernambuco
Pernambuco 🇧🇷

4.2

(45)

225 documentos

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VOLLET, Lucas Ribeiro. Pensar por si mesmo [...]
Revista Opinião Filosófica, Porto Alegre, v. 03; nº. 02, 2012
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Pensar por si mesmo: as
considerações de
Schopenhauer sobre estilo
e escrita no contexto da
dedução transcendental
das categorias
Thinking for oneself: Schopenhauer on style and
writing in the context of the transcendental
deduction of the categories
Lucas Ribeiro Vollet
1
Resumo: O objetivo deste artigo será discutir as semelhanças e analogias entre os escritos de
Schopenhauer compilados sob o nome de A arte de escrever, e a consagrada dedução transcendental
das categorias na Crítica da Razão Pura de Kant.
Palavras-chave: pensamento, estilo, espontaneidade, dedução transcendental, psicologia.
Abstract: This paper will discuss the similarities and analogies between the writings of
Schopenhauer compiled under the name The art of writing, and the transcendental deduction of
the categories in the Kant’s Critique of Pure Reason.
Keywords: thought, style, spontaneity, transcendental deduction, psychology.
Introdução: O pensamento e a faculdade de julgar
de início nos decidimos por separar o que, nos dois textos dos autores
mencionados, serve para exibir o núcleo substancial em que o resto do trabalho será baseado.
Trata-se do uso da noção kantiana de faculdade de julgar e espontaneidade, assim como as noções de
pensamento que se podem extrair dos textos compilados de Schopenhauer. No segundo capítulo
arriscamos uma defesa da noção de pensamento espontâneo e autônomo contra o
psicologismo e o formalismo. Por fim, ensaiamos uma fundamentação mais ampla da analogia
entre Kant e Schopenhauer nos baseando principalmente no que esse último filósofo chama de
“pensar o problema da existência”. Nessa última parte nos atrevemos a penetrar em alguns
problemas mais profundos da Crítica da Razão Pura.
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Doutorando do departamento de Lógica e Epistemologia da UFSC. E-mail: luvollet@gmail.com.
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VOLLET, Lucas Ribeiro. Pensar por si mesmo [...]

Pensar por si mesmo: as

considerações de

Schopenhauer sobre estilo

e escrita no contexto da

dedução transcendental

das categorias

Thinking for oneself: Schopenhauer on style and

writing in the context of the transcendental

deduction of the categories

Lucas Ribeiro Vollet^1

Resumo : O objetivo deste artigo será discutir as semelhanças e analogias entre os escritos de Schopenhauer compilados sob o nome de A arte de escrever , e a consagrada dedução transcendental das categorias na Crítica da Razão Pura de Kant. Palavras-chave : pensamento, estilo, espontaneidade, dedução transcendental, psicologia.

Abstract : This paper will discuss the similarities and analogies between the writings of Schopenhauer compiled under the name The art of writing , and the transcendental deduction of the categories in the Kant’s Critique of Pure Reason. Keywords : thought, style, spontaneity, transcendental deduction, psychology.

Introdução: O pensamento e a faculdade de julgar

Já de início nos decidimos por separar o que, nos dois textos dos autores mencionados, serve para exibir o núcleo substancial em que o resto do trabalho será baseado. Trata-se do uso da noção kantiana de faculdade de julgar e espontaneidade , assim como as noções de pensamento que se podem extrair dos textos compilados de Schopenhauer. No segundo capítulo arriscamos uma defesa da noção de pensamento espontâneo e autônomo contra o psicologismo e o formalismo. Por fim, ensaiamos uma fundamentação mais ampla da analogia entre Kant e Schopenhauer nos baseando principalmente no que esse último filósofo chama de “pensar o problema da existência”. Nessa última parte nos atrevemos a penetrar em alguns problemas mais profundos da Crítica da Razão Pura.

(^1) Doutorando do departamento de Lógica e Epistemologia da UFSC. E-mail: luvollet@gmail.com.

VOLLET, Lucas Ribeiro. Pensar por si mesmo [...]

Ao falar sobre a escrita e o estilo, Schopenhauer transparece uma preocupação com o conteúdo que é comunicado antes do que com uma avidez para vender receitas de produção em massa de livros supostamente bons. Tal efeito seria mesmo o oposto do preconizado – segundo o autor, os bons livros não são produzidos em massa e nem tem tiram vantagem de cair no gosto popular das massas. Essa ênfase no conteúdo aponta, nas digressões schopenhaurianas sobre o estilo e a escrita, preocupações relativas ao caráter do pensamento veiculado ao texto. Segundo o autor o juízo resoluto só pode se originar de um conteúdo maduro e esse, por sua vez, só habita uma mente em que não há nada de supérfluo e onde tudo se entrelaça em uma unidade orgânica. Ora, se o bom estilo da linguagem só pode acontecer paralelamente ao bom uso do juízo, não espanta a correlação entre o mau juízo, a má escrita e a massificação da literatura. Schopenhauer não esconde seu desprezo por aqueles que apenas escrevem por dinheiro ou qualquer outro motivo diferente do assunto tratado: do conteúdo pensado e julgado. Comentaremos algumas citações com o propósito de contextualizar melhor a presente abordagem e confrontar com o argumento da dedução transcendental de Kant, o que é o objetivo desse artigo. No entanto, mesmo entre os escritores pouco numerosos que realmente pensam a sério antes de escrever, é extremamente reduzida a quantidade daqueles que pensam sobre as próprias coisas, enquanto os demais pensam apenas sobre livros, sobre o que os outros disseram. (...) Em contrapartida, aqueles que são estimulados pelas próprias coisas tem seu pensamento voltado para elas de modo direto (2005, p. 58). Neste trecho destacamos especialmente a diferença enfatizada entre o pensamento vivo, dirigido às próprias coisas, e uma espécie de pensamento mimético exercitado por aqueles que tratam o assunto como algo de subalterno, voltando seus esforços antes ao que tomam emprestados de outros livros, ou o que podem conservar entre aspas, isto é, a mera matéria sem forma. A citação de Kant a seguir tem o propósito de expor uma visão similar e corresponde à nossa intenção de avaliar a perspectiva de Schopenhauer dentro do contexto da filosofia transcendental: Por isso um médico, um juiz, um político pode ter na cabeça muitas e belas regras patológicas, jurídicas ou políticas, a ponto de poder ser professor meticuloso das mesmas; mas na aplicação ainda assim infringi-la-á facilmente, quer porque lhe falte capacidade natural de julgar (se bem que não entendimento), podendo na verdade compreender o universal in abstrato, mas não poder distinguir se um caso pertence in concreto ao mesmo (KANT, 1996, p. 142). Outra citação de Schopenhauer – retirada do artigo Pensar por si mesmo – é aqui oportuna para preparar-nos para o desfecho desse mesmo parágrafo de Kant: As obras de todas as mentes realmente capazes se distinguem das restantes pelo caráter de resolução e determinação, do qual provém a clareza, porque tais pessoas sempre souberam de modo claro e determinado o que queriam expressar, seja em prosa, seja em verso ou em sons musicais. (...) O sinal característicos dos espíritos de primeiro nível é a espontaneidade de seus juízos (2005, p. 49). Outro trecho de Schopenhauer: “A leitura não passa de um substituto do pensamento próprio. Trata-se de um modo de deixar que seus pensamentos sejam conduzidos por andadeiras por outra pessoa” (2005, p. 42). E, então, Kant novamente:

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geral emprega um objeto qualquer (um “objeto em geral”, como a variável proposicional dos lógicos modernos) enquanto que a lógica transcendental considera seu objeto também segundo sua origem no entendimento, portanto, de acordo com regras do seu uso a priori para distinguir o caso particular do geral na faculdade do juízo. A lógica transcendental trabalha com um “objeto a priori ”, que habita a mente antes de qualquer experiência e que regula tematicamente a aplicação da faculdade de julgar (embora, como Kant mostra mais tarde, esse uso regulativo se opõe a um constitutivo)^3. Advertidamente, não se deve confundir isso com a coisa em si : esse objeto a priori é, apenas isso, o tema regional a priori do pensamento 4. Em outras palavras, ele dá apenas as formas da aplicação a priori da faculdade do juízo, desdobradas em princípios transcendentais que correspondem ao uso esquemático das categorias puras. A filosofia transcendental possui a peculiaridade de que, além da regra (ou antes, a condição universal de regras) dada no conceito puro do entendimento, pode ao mesmo tempo indicar a priori o caso ao qual deve ser aplicada. A causa dessa sua preeminência, nesse ponto, sobre todas as outras ciências didáticas (com exceção da matemática) reside no fato de tratar com conceitos que devem se referir a priori a seus objetos. (KANT, 1996, p. 143) Como uma matéria a priori não pode ser tirada da experiência, resta que seja originada do próprio intelecto, ou melhor, do modo como a matéria se liga à unidade sintética da apercepção transcendental que é, em outras palavras, através das categorias puras que selecionam a região intuitiva do conhecimento a priori , independente dos elementos contingentes da experiência, embora devam se aplicar sempre à experiência possível. Não irei apoiar o projeto kantiano e nem comentar seus resultados a respeito das proposições sintéticas a priori. O que interessa nos limites desse trabalho é que a lógica transcendental trabalha com um conteúdo originado do próprio pensamento, que pertence àquilo que o sujeito doa na aquisição do conhecimento, e não meramente no que coleta nos objetos. Assim prega a revolução copernicana na filosofia. A importância da lógica transcendental é que além de prescrever a regra, ela prescreve o caso a priori a que deve ser aplicada. Assim ela ultrapassa em importância a lógica geral que, além de não poder indicar senão um objeto aleatório, uma região meramente formal, ainda pode se emaranhar em problemas insolúveis – dialetizações – quando o conteúdo que entretém está fora do campo da experiência possível, a exemplo dos raciocínios escolásticos que preenchiam as formas silogísticas com conceitos que não encontram um correlato na intuição.

(^3) A demanda por um “objeto a priori ” (uma matéria tirada diretamente do pensamento) deve ser cumprida para o sucesso do projeto crítico: o de provar a possibilidade dos juízos sintéticos a priori. Isto é, a possibilidade de juízos que, não obstante falem das coisas 4 – e, portanto, não sejam meramente analíticas – fale sobre elas a priori. Naturalmente, Kant não é ingênuo para acreditar que os casos a priori , ou seja, o conteúdo a priori , seja o mesmo que exemplos empíricos a priori , absurdos tal como “mesas a priori ” ou “cachorros a priori ”, como se existisse alguma necessidade para que alguns casos contingentes ocorressem e não outros – o que constituiria um uso não transcendental dos princípios para a faculdade do juízos, mas um metafísico. Isso seria mesmo desconcertante, embora pense que os esforços de Stuart Mill para dar cidadania à indução dêem alguma perspectiva de sucesso para perceber certas “tendências empíricas” que se sobressaem sobre outras – o que desembocaria em uma teoria da probabilidade empírica como a de Carnap. Enquanto que para Kant, que rejeita taxativamente a indução como fonte de validade, a filosofia transcendental é assistida por uma etapa de investigação sobre o modo de comportamento a priori dos objetos, isto é, do modo como devem se comportar a fim de serem anexados a uma subjetividade transcendental e, portanto, para serem conhecidos e pensados de maneira genuína. Assim, no fundo, o conteúdo a priori não é o mesmo que exemplos contingentes metafisicamente tomados como necessários, mas sim, certo tipo de esquema que caracteriza os tipos de combinações e movimentos objetivamente permitidos, isto é, permitidos dentro dos limites do afixamento a uma imaginação transcendental – ou esquematização. Um exemplo do modo revolucionário de tratar esse problema: para Kant só há movimentos objetivos se forem subordinados à ordem causal, uma vez que só segundo uma regra que determina os elementos a priori presentes no movimento (isto é, os elementos necessários presentes na passagem de um evento a outro), os fenômenos ligados ao tempo podem ser tematizados por uma experiência, isto é, ligados a um “eu penso”.

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Ora, os preceitos de Schopenhauer se adaptam com muita folga ao contexto da filosofia transcendental, uma vez que nos textos considerados aqui aquilo que ele chama de “pensamento” foge completamente a uma mera operação psicológica ou lógica, sendo, na verdade, um ato de espontaneidade, de decisão, resolução, característica do ato que se liga aos juízos na formulação destes a fim de que não fiquem privados de um “eu penso”^5. O pensamento, para Schopenhauer, está intimamente ligado à espontaneidade do ato de pensar, e, como veremos no último capítulo, liga-se também à consciência do problema da existência e nisso se afasta do mero pensamento lógico (exemplificado pela lógica geral, para falar como Kant) ou psicológico. Aproxima-se, assim, do pensamento tal como enunciado na lógica transcendental, isto é, a capacidade espontânea de julgar ligado a uma subjetividade transcendental. Falarei mais detidamente do problema da existência e da sua ligação necessária com o ato de pensar – sempre que o pensamento é genuíno e não mera cópia – mais adiante, com maiores recursos. Por enquanto, é o bastante revisar o que já obtemos. Fica patente que pensar, em sentido próprio, a saber, ligando o juízo à unidade sintética da apercepção, ao contrário do mero empréstimo do que é pensado coletivamente, em massa – que constitui mais reflexos psicologicamente condicionados do que pensamentos próprios – esse pensar , como dizia, é idêntico a ter o conteúdo presente na mente, isto é, saber a que caso aplicá-los a priori. Distingue-se assim de toda sorte de imitações ou juízos em que o conteúdo está apenas materialmente presente, entra artificialmente no contexto da nossa experiência, não de acordo com nossas próprias categorias e, por conseguinte, não dá uma base a priori para que julguemos em novos contextos de aplicação. Esses últimos são juízos que podem até serem verdadeiros, mas sua verdade não está ligada a um conhecimento, isto é, à legitimação programada pelas categorias puras, que o ligariam a um eu penso transcendental. Portanto, são como pensamentos que não pertencem ao sujeito que os pensa. Há trechos na obra de Schopenhauer considerada que se coadunam com essa definição: A peruca é o símbolo mais apropriado para o erudito puro. Trata-se de homens que adornam a cabeça com uma rica massa de cabelo alheio porque carecem de cabelos próprios. Da mesma maneira, a erudição consiste num adorno com uma grande quantidade de pensamentos alheios, que evidentemente, em comparação com os fios provenientes do solo mais próprios, não assentam de modo tão natural, nem se aplicam a todos os casos ou se adaptam de modo tão apropriado a todos os objetivos, nem se enraízam com firmeza, tampouco são substituídos de imediato, depois de utilizados, por outros pensamentos provenientes da mesma fonte (2005, p. 22). Quero citar também um trecho do diálogo entre Fedro e Sócrates no livro de Platão, no interesse de ampliar ainda mais o contexto filosófico em que essa noção de pensamento se desenvolve e insinuar a importante tradição que está aqui tacitamente sendo seguida. SÓCRATES: - Ouve: se alguém viesse procurar teu amigo Erixímaco ou o pai dele, Acumeno, e lhe dissesse: ‘eu sei fazer muitas coisas com o organismo de um homem; sou capaz de fazer com que ele transpire ou sinta frio, sei provocar vômitos quando isso me parece oportuno e obrigá- lo a evacuar quando quero’(...) – que supões que responderiam eles? (...)

(^5) Ver a seção 16 da Crítica da Razão Pura, na Dedução Transcendental, chamada “Da unidade sintética da apercepção: “Portanto, todo múltiplo da intuição possui uma referência necessária ao eu penso, no mesmo sujeito em que esse múltiplo é encontrado” (KANT, 1996, p. 121)

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No entanto, o público dirige sua atenção muito mais para a matéria do que a forma, e justamente por isso permanece sempre atrasado em sua formação mais elevada. Essa tendência se revela da maneira mais ridícula nas obras poéticas, quando a atenção se volta com todo cuidado para os acontecimentos reais ou para as circunstâncias pessoais que deram ensejo à criação poética (2005, p. 64). Schopenhauer se dirige ao juízo de críticos de arte. De fato, tal tendência só foi acentuada em nossos tempos, onde a imputação da responsabilidade autoral é feita por intermédio de uma vulgar consideração das inclinações autorais, na pretensão psicologista de que um autor que escreve sobre os vícios de um judeu é invariavelmente um anti-semita, ou de que, para escrever sobre as qualidades de um judeu deve ser ele próprio um simpatizante do judaísmo. A psicologia, para lidar com a questão do pensamento, é sempre inadequada, pois trabalha com a ideia de que o pensamento é interpretável por regras que regulam os atos particulares e empíricos que acompanham o conteúdo pensado. Assim, o seu conteúdo seria adquirido apenas por meio do acumulo de experiência que habita um invólucro mental ocasionalmente, em suas circunstâncias empíricas. Com o que, de acordo com a visão da psicologia, um alemão não pode ser informado do que pensou um chinês, não devido a motivos cognitivos, mas por motivos relacionados ao conjunto de situações empíricas ocasionais que os separou temporal e espacialmente – pois suas caixas mentais e os registros empíricos de cada uma são inacessíveis. A visão da psicologia é sempre limitada, pois confunde o pensamento com a mera sucessão de ocorrências empíricas da vida mental. Ou, o que é outra forma de dizê-lo, o aborda de acordo com uma orientação natural. Voltando ao desafio, como dizia, esse diz respeito à caracterização do que é pensar em sentido próprio, dar valor espontâneo a uma matéria disponível – moldar o caos dos sentidos – integrá-la a um sistema mental orgânico. Nas palavras muito expressivas de Kant, isso é dar unidade ao múltiplo. Kant atribuiu à sensibilidade a capacidade de reter o múltiplo das ocorrências, enquanto ao pensamento dedicou a capacidade de subsumir esse múltiplo, algo como digeri-lo – em uma expressão dessa vez usada por Schopenhauer. A seqüência de citações a seguir será exposta no intuito de dar perspectiva a mais essa semelhança entre as doutrinas dos dois autores aqui considerados, enriquecendo nosso sistema de analogias. A primeira foi tirada dos anuais dos cursos de lógica geral , a seção O conhecimento em geral: É também costume chamar a sensibilidade de faculdade inferior, e o intelecto, ao contrário, de superior, porque a sensibilidade só dá ao pensamento o mero material, ao passo que o entendimento dispõe sobre esse material e o submete a regras ou conceitos (KANT, 2003, p. AK36) E eis o que Schopenhauer diz a respeito: Um livro nunca pode ser mais do que a impressão dos pensamentos do autor. O valor desses pensamentos se encontra ou na matéria, portanto naquilo sobre o que se pensou, ou na forma, isto é na elaboração da matéria, portanto naquilo que ele pensou sobre aquela matéria. (2005, p. 63) Ambos estão comprometidos com uma visão onde o pensamento está ligado antes de tudo a um ato de espontaneidade, não de mera recepção passiva. Aquilo que se recebe é disposto no tempo e no espaço como um múltiplo dado, ao passo que o pensamento os determina, lhes submetendo a uma função de unidade. Além disso, há uma conseqüência

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importante do que foi dito que não está explícita. Notadamente, o fato de que o pensamento alheio, quando recebido, não constitui mais do que um múltiplo, isto é, um conteúdo ainda sem unidade, como um complexo intuitivo antes de ser determinado. Pretendo deixar isso claro na citação a seguir: Podemos admitir uma verdade empírica a partir do testemunho alheio, com a mesma certeza que se a tivéssemos atingido por meio do facto da nossa experiência própria. Há algo de enganoso na primeira espécie de saber empírico, mas na segunda também o há (KANT, 2003, p. AK47). Ora, com efeito, o conteúdo apreendido sem passar pelo pensamento próprio é sempre avulso, isto é, isolado de um contexto regional específico – embora possa ser artificialmente ligado a uma região específica, como a da psicologia ou da biologia, tratando o pensamento como um fenômeno subordinado aos fenômenos psicológicos e biológicos. Não ignoro, porém, que no cotidiano possa ser disseminada informação desse tipo. A fofoca é um exemplo de informação que passa de boca para ouvido sem qualquer participação do pensamento, ou do contexto regional a priori de sua síntese. O contexto regional de uma fofoca não é idêntico ao mote de conteúdo experimental; é, ao contrário, a própria circunstância – as intrigas familiares, etc. – provocando por isso uma reação material psicológica, como o escândalo, a repugnância, etc. Por isso ela chega à mente de maneira avulsa e violenta, não acrescentando nada de profundo e profícuo e, ainda por cima, envenena a mente com o excesso de conteúdo recortado e retalhado – versões sempre superficiais dos fatos – ao sabor das inclinações dos veículos empíricos (os caixotes psíquicos, ou biológicos) que a transportam. Disse “veículos empíricos”, pois não se trata em absoluto de seres pensantes e originais, mas meros receptáculos contingentes que poderiam ser trocados por gravadores eletrônicos ou papagaios com prejuízo mínimo para o argumento. Schopenhauer não chega a falar nesses termos, mas tudo parece sugerir que concordaria em atribuir aos enciclopedistas o mesmo caráter de uma fofoqueira. Eis uma citação de peso: Pessoas comuns e superficiais podem nos oferecer, graças à matéria, livros muito importantes, uma vez que o tema só era acessível a elas. É o caso, por exemplo, das descrições de países distantes, de fenômenos naturais raros, de experimentos realizados por elas, de histórias das quais foram testemunhas ou cujas fontes tiveram tempo e dedicação para investigar e estudar (2005, p. 64). Assim também um fofoqueiro, com um talento acoplado à espionagem, pode nos oferecer matéria que nenhum outro, até mesmo por motivos de discrição, teria acesso^7. Ele é capaz de encontrar matérias em regiões desconhecidas mesmo dos cientistas, embora de maneira mais superficial. Outras vezes apenas os próprios cientistas dispõem dos instrumentos para colher matéria: instrumentos técnicos, como os microscópios e telescópios de última geração, ou metodológicos, como estruturas de interpretação para codificar fenômenos através da matéria de termos mais econômicos ou convenientes a uma região paradigmática. Importante notar que as estruturas de interpretação científicas são sempre materiais. Por mais

(^7) Entretanto, é uma matéria supérflua, pois recortada ao sabor de suas inclinações particulares. A forma como fofoqueiros pensam essa informação é primeiramente repartida e depois costurada ao sabor de suas inclinações de modo que ao fim, é disponibilizada uma mera versão dos fatos, editados com ênfase nos aspectos que mais interessam ao locutor para provocar escândalo ou outras reações desse teor. Ou então adquirem toda a informação de forma bruta, sem nenhum esforço para dar-lhes uma forma comunicável e passível de ser somada ao tesouro de pensamentos comuns da humanidade , restringindo seu escopo a um grupo que compartilha as mesmas inclinações privadas – por exemplo, um grupo de empregados desejoso de falar mal do patrão.

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tem seu fundamento material (seja técnico ou metodológico) de codificação trocado ou comprometido. A inclinação também cumpre um papel forte aqui: é por isso que só esperamos que gostem de novelas as pessoas a quem as novelas apelam a algum setor de suas inclinações psicológicas. Não é à toa também que a produção de obras ruins se baseia em critérios de publicidade baixos, a fim de seduzir os leitores potenciais. A esses pseudo-autores resta ter um conhecimento de história ou de psicologia, para que não lhes falte matéria para caçar e persuadir seus leitores. No entanto, para os autores que realmente pensam, a matéria é apenas uma condição subalterna. Esses se tornam públicos não pelo número de leitores seduzidos, mas pela clareza e fluência do que é escrito, isto é, pela forma como atingem o objeto. A todos aqueles que pensarem por si mesmos será dada a oportunidade de reviver (repensar) o assunto, pois poderá compartilhar dessa forma que é universal: “por isso, no fundo todos os que pensam por si mesmos estão de acordo, e sua diferença provém apenas da diversidade dos pontos de vista” (SCHOPENHAUER, 2005. p. 47). Todas essas objeções têm um efeito demolidor contra o psicologismo empírico^8. E contra o formalismo lógico poderia se objetar algo parecido. As meras fórmulas estruturais podem ser seguidas e emprestadas, porém, para serem realmente pensadas necessitam de um esforço de outro tipo, a saber, o esforço de ligar o pensamento ao ato fenomenológico fundamental do eu penso transcendental, de modo que se anexe o juízo ao sujeito de um modo inseparável – o sujeito responde pelo juízo de uma maneira não contingente (isto significa ele ser o sujeito do pensamento). Como resumi aqui sem nenhuma elegância o que é talvez um dos núcleos do argumento transcendental, desculpo-me prometendo que voltarei a ele mais adiante na alusão ao problema da existência, onde meu intento é justamente o de lembrar o quanto o ato espontâneo de pensar está endividado com uma subjacente teoria das imputações a um sujeito – tal como exposto na dedução transcendental^9. Anexando essas considerações ao que era nosso assunto primário, diremos que enquanto as fórmulas são provenientes sempre de origem arbitrária, o pensamento tem, não obstante, uma origem fixa – um sujeito de direito. Lembro novamente que estou seguindo aqui a teoria das imputações autorais como se pode encontrá-las em germe já na dedução transcendental, mais especificamente, na segunda seção da dedução dos conceitos puros do entendimento, Da possibilidade de uma ligação em geral : Todavia, a ligação ( conjunctio ), de um múltiplo em geral jamais nos pode vir dos sentidos e, por conseguinte, tampouco estar ao mesmo tempo contida na forma pura da intuição sensível; pois tal ligação é um ato da

(^8) Não quero parecer negligente com respeito aos tipos de psicologia não totalmente empíricos e positivistas, como os ramos da psicanálise, cujas considerações sobre o inconsciente ultrapassam o mero empirismo das relações psicológicas atuais e concretas. Porém me parece que mesmo esse inconsciente permanece no mesmo nível naturalista que as outras formas de psicologia quando comparada com uma teoria epistemológica – com sua dose de metafísica permitida – genuína, pois nessas a verdadeira preocupação é somente o pensamento livre de todo condicionamento. O behaviorismo, por sua vez, parece se dedicar em extrair o pensamento das circunstâncias empíricas em que ele ocorre, a fim de estudar o pensamento como fato sui generis. Mas nesse caso, não obstante o esforço para considerar o pensamento depurado dos acidentes que lhe acompanham, não é ainda um estudo epistemológico, já que o que é capturado como assunto é ainda uma ocorrência mental e não o ato espontâneo do juízo. Por essa razão coloquei toda a psicologia no mesmo saco, como mera teoria das ocorrências mentais incapaz de dar uma definição de pensamento no sentido estrito – tarefa que já foi da metafísica, passou à epistemologia com a revolução Copernicana na filosofia feita em Kant e hoje parece estar mais próxima da filosofia da linguagem. 9 Sem esquecer que essas imputações devem ser exploradas no contexto mais amplo da dialética transcendental e da responsabilidade de crer naquilo em que, não obstante não se pode conhecer – o conceito de Deus – é o fundamento da possibilidade de conhecer todo o resto. Mas esse será o tema do último capítulo.

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espontaneidade da capacidade de representação e, visto que se tem que denominar a esta entendimento para diferenciá-la da sensibilidade, toda ligação – quer possamos ser dela conscientes, quer não, quer seja uma ligação do múltiplo da intuição ou de vários conceitos e, na primeira, de uma intuição sensível ou não – é uma ação do entendimento que daremos o nome de síntese para, mediante isso, ao mesmo tempo observar que não podemos nos representar nada ligado no objeto sem o termos nós mesmos ligado antes, sendo dentre todas as representações a ligação a única que não pode ser dada por objetos, mas constituída unicamente pelo próprio sujeito em um ato de espontaneidade (KANT, 1996, p. 120). Essa é outra citação essencial para compreender o primeiro capítulo do artigo. Podemos dizer que a proposição, ou juízo, isto é, a entidade universal detentora de valor de verdade fixo, é própria de um sujeito de direito. A capacidade de julgar é, então, diferente da mera capacidade de usar fórmulas; e apenas a primeira exercita o pensamento. Segundo Schopenhauer as fórmulas (como as da álgebra) são como as sátiras, simulacros de fatos contados por um comediante a fim de deixar-lhes vivo como mera paródia do original. As fórmulas podem ser usadas em qualquer momento e podem inclusive ser retiradas e postas novamente dentro do contexto, de maneira que um compilador pode fazer uso de fórmulas profissionalmente sem estar de fato pensando, isto é, sem estar de fato exercitando uma atitude proposicional – a faculdade do juízo, ligada a uma subjetividade. As fórmulas são bastardas; uma espécie de Frankenstein que ganha vida por um pai emprestado, uma maneira artificial de pensar, isto é, pensar sem imputar a responsabilidade a um agente autoral fixo (um pai verdadeiro, um sujeito de direito): A sátira deve, assim como a álgebra, operar com valores abstratos e indeterminados, não com valores concretos ou grandezas definidas. No caso de homens vivos ela deve ser evitada, tanto quanto os exercícios de anatomia; sob pena de arriscar a pele e a vida deles (SCHOPENHAUER, 2005, p. 68).

3. O pensamento como consciência do problema metafísico

Acima me dediquei a distanciar o que se entende por pensamento tanto do psicologismo quanto do formalismo lógico. Ambos retinham o defeito de ligar o pensamento a um sujeito de origem contingente, casual (ilustrado com o exemplo de um gravador), ou com a mera matéria colateralmente ligada a uma estrutura formal; assim, tal pseudo-pensamento não tinha origem fixa e seria melhor caracterizado como, em um caso, impressão psicológica e no outro, artifício matemático ou uso de fórmula. Não ignoro que a lógica moderna e a filosofia analítica, tão radical quanto poderia ser nesse sentido, chega ao ponto de negar que a forma lógica de uma proposição tenha alguma relação com o sujeito que a profere, declarando, portanto, algo como o desaparecimento da subjetividade nas investigações sobre o formalismo lógico. Além de pronunciar a impossibilidade de juízos sintéticos a priori e decretar a refutação, talvez prematura, do idealismo transcendental. Não vou discutir esse ponto. Restrinjo-me a dizer o que é relevante para esse trabalho, a saber, que também nesse caso a lógica é algo quase virtual, menos que um espectro. Nos dois casos, no entanto, quer tratando-se do formalismo mórbido, quer tratando-se do psicologismo, não existe um pensamento fresco, maduro, cujo conteúdo é sentido de uma extremidade a outra na mente, fazendo eco em todo o espírito, sem deixar nada faltando nem sobrando. Diante do que foi visto acima, a chave dessa diferença – entre a

VOLLET, Lucas Ribeiro. Pensar por si mesmo [...]

descobrir a que indivíduos podemos premiar com a propriedade de atingir um nível de aprofundamento substancial com as questões metafísicas. Penso que nos textos de Schopenhauer citados aqui já há uma espécie de distribuição seletiva dessa propriedade. Parece-me que perscrutando a obra de Schopenhauer iremos encontrar um escrúpulo muito zeloso para com a definição de “pensamento”. Tanto, a ponto de aparentar eventualmente que o autor está disposto a ceder tal qualidade apenas a um grupo muito reduzido a que chama de gênios. Assim, seguindo o fio de seu pensamento, os verdadeiros promotores da humanidade, que transportam o pensamento pelos séculos, são apenas os gênios. Mas esse ponto não é passível de uma decisão simples, já que não é tão evidente que Schopenhauer tenha preferência ao conceito de gênio que ao de sujeito no que diz respeito ao “pensar” nas alternâncias semânticas de sinônimos ao longo de seu texto. Em todo o caso, para não me desviar de toda afirmação através de uma cautela quase pusilânime, me comprometo pelo menos com a afirmação de que o aparecimento de um pensamento genuíno está enredado em condições transcendentais, caracterizadas por questões metafísicas que povoam tanto a Crítica da Razão Pura quanto a obra de Schopenhauer. Escolhi neste último capítulo apenas duas citações de peso para apoiar essas minhas digressões, a primeira de Schopenhauer, a segunda de Kant: Quando consideramos como é vasto e próximo de nós o problema da existência, essa existência ambígua, fugidia, semelhante a um sonho – um problema tão grande e tão próximo, que encobre e sobrepõe todos os outros problemas e finalidades logo que tomamos consciência dele

  • e quando consideramos que todos os homens, com exceção de alguns poucos, não são claramente conscientes desse problema, nem parecem perceber sua existência, mas se preocupam antes com qualquer outro assunto e vivem apenas no dia de hoje sem levarem em conta a duração não muito longa de seu futuro pessoal, seja renegando expressamente esse problema, ou contentando-se em relação a ele com algum sistema de metafísica popular; digo, quando consideramos tudo isso, podemos chegar à conclusão de que o homem só pode ser chamado de ser pensante em um sentido muito amplo (SCHOPENHAUER, 2005, p. 53). Mas entre o conhecimento de um objeto e a mera pressuposição de sua possibilidade, há um meio-termo, a saber, um fundamento empírico ou racional para a admissão da última, relativamente a uma ampliação necessária do campo dos objetos possíveis, além daqueles cujo conhecimento nos é possível. Essa necessidade só ocorre no caso de o objeto ser conhecido como prático e praticamente necessário (...). Essa pressuposição praticamente necessária de um objeto é aquela possibilidade do bem supremo como objeto do arbítrio e, portanto, também da condição dessa possibilidade (Deus, imortalidade, liberdade) – é uma necessidade subjetiva de admitir a realidade do objeto por causa da determinação necessária da vontade (KANT, 2003, p. AK68). Essas citações trazem à superfície dois aspectos dignos de alusão. O primeiro é que o problema da existência é mencionado de forma a deixar livre a decisão sobre o modo como é abordado – esse artigo é justamente a exposição de duas maneiras de abordá-lo: o problema do pensamento próprio, do estilo, da forma de pensar (nos escritos compilados de Schopenhauer), e a subjetividade transcendental contida nas reflexões conhecidas por dedução transcendental das categorias de Kant. Como essa citação deixa livre a abordagem do problema, me sinto menos endividado por colocar Schopenhauer dentro da tradição de filosofia transcendental, cuja vasta dimensão permite abranger pelo menos o grosso da teoria exposta na obra de Schopenhauer através de analogias e semelhanças. Essas analogias ganham um aspecto mais legítimo quando pensamos que ambos os autores tinham um interesse mais amplo no problema metafísico (em Schopenhauer, o problema da existência, em Kant: o problema dialético). O outro aspecto é

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que assim se explica parcialmente porque o problema da existência deve ser revivido de geração a geração, e porque, ademais, ele não precisa ser feito sempre à maneira de Kant através de uma analítica do entendimento; assim como porque é mais importante que seja feio individualmente, antes que sacrificado em proveito de uma metafísica dogmática e popular.

Referências Bibliográficas

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Abril Cultural,

KANT, Immanuel. Manual dos cursos de Lógica geral. Trad. Fausto Castilho. Campinas – SP: Editora Unicamp; Uberlândia: Edufu, 2003.

SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Trad. Pedro Sussekind. L&PM Editores, 2005

PLATÃO, Fedro. Trad. Alex Marins. Martin Claret, 2003.