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Guias e Dicas
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Reflexões sobre Imagens e Saberes em Educação: Infância, Diferença e Currículo no Cinema, Provas de Currículo

Uma pesquisa realizada sobre as imagens e sons produzidos e circulados em filmes, e suas influências sobre as práticas e conhecimentos de professores. O texto aborda as concepções de infância e diferença, questionando como elas são construídas e problematizadas. Além disso, o documento discute a importância de filmes em nos ajudar a pensar e desconstruir as ideias de currículo e educação.

O que você vai aprender

  • Como as narrativas de professores foram utilizadas na pesquisa descrita no documento?
  • Qual é a importância do cinema na construção de ideias sobre diferença e currículo?
  • Como as imagens e sons produzidas e circuladas em filmes influenciam as práticas e conhecimentos de professores?
  • Como a concepção de infância é construída e problematizada no documento?
  • Como as ideias de currículo e educação são desconstruídas no texto?

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Brasilia80
Brasilia80 🇧🇷

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PENSANDO INFÂNCIAS, DIFERENÇA E CURRÍCULO A PARTIR
DO FILME FILHOS DO PARAÍSO.
Dimas Santana Neves
1
João de Deus dos Santos
2
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
3
O bom de assistir esse filme é ver a realidade. poucos dias nós
começamos as aulas e eu vi a realidade de uma aluna minha que os pais não
procuraram falar. Eu vi essa aluna faltando, faltando. Ela foi passear um final
de semana na casa da avó e estava simplesmente esperando a avó receber a
aposentadoria para poder retornar. Faltou praticamente o mês todo de aula.
Não foi fazer o reforço. Agora vou ter que tirar do meu recreio para poder
ajudar. Então, às vezes o professor faz ficha, ficha, ficha e não vai na família
ver o porque ela tem dificuldade (Professora Japuíra
4
)
A epígrafe deste texto constitui parte inicial do desenvolvimento do projeto
“Cinema, Infâncias e Diferença: problematizando a educação, o cotidiano da escola e o
currículo”. Intenciona-se no projeto, pensar, por intermédio de filmes, as infâncias e a
diferença tendo como preocupação questões que afetam a educação, o cotidiano da
escola e o currículo.
Para a concretização da pesquisa criamos na Universidade do Estado de Mato
Grosso - UNEMAT, campus universitário de Cáceres “Jane Vanini”, o Ateliê de
Imagem e Educação - AIE. Uma das ações do Ateliê é realizar cineclubes, concebidos
como espaçostempos
5
destinados a ver, discutir e pensar a partir de filmes. Os
cineclubes m o intuito de potencializar as conversas entre os praticantespensantes,
percebendo, por meio delas, como os filmes desestabilizam concepções de diferença,
educação, currículo, cotidiano escolar, infâncias. A partir de “rodas de conversa”,
concebemos como esses diálogos tornam possível problematizar as experiências que os
1
Professor Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso UNEMAT, curso de pedagogia e
pesquisador do AIE.
2
Professor Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso UNEMAT, curso de pedagogia e
pesquisador do AIE.
3
Professora Adjunta da Universidade do Estado de Mato Grosso UNEMAT, curso de pedagogia e
Programa de Pós-Graduação em Educação e pesquisadora do AIE.
4
Objetivando garantir o anonimato dos professores e professoras, praticantespensantes da pesquisa,
optamos por nomeá-los com nomes de pássaros, mesmo tendo, todos, assinado Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido.
5
De acordo com Alves, a junção das palavras foi a melhor forma que encontrou “depois de usar outras,
para dizer da unidade indissociável de seus dois componentes, que na verdade precisam ser entendidos
como um só, na tentativa de superar a visão dicotomizada que herdamos da modernidade” (Alves, 2000).
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PENSANDO INFÂNCIAS, DIFERENÇA E CURRÍCULO A PARTIR

DO FILME FILHOS DO PARAÍSO.

Dimas Santana Neves^1 João de Deus dos Santos^2 Maritza Maciel Castrillon Maldonado^3

O bom de assistir esse filme é ver a realidade. Há poucos dias nós começamos as aulas e eu vi a realidade de uma aluna minha que os pais não procuraram falar. Eu vi essa aluna faltando, faltando. Ela foi passear um final de semana na casa da avó e estava simplesmente esperando a avó receber a aposentadoria para poder retornar. Faltou praticamente o mês todo de aula. Não foi fazer o reforço. Agora vou ter que tirar do meu recreio para poder ajudar. Então, às vezes o professor faz ficha, ficha, ficha e não vai na família ver o porque ela tem dificuldade (Professora Japuíra^4 )

A epígrafe deste texto constitui parte inicial do desenvolvimento do projeto

“Cinema, Infâncias e Diferença: problematizando a educação, o cotidiano da escola e o

currículo”. Intenciona-se no projeto, pensar, por intermédio de filmes, as infâncias e a

diferença tendo como preocupação questões que afetam a educação, o cotidiano da

escola e o currículo.

Para a concretização da pesquisa criamos na Universidade do Estado de Mato

Grosso - UNEMAT, campus universitário de Cáceres “Jane Vanini”, o Ateliê de

Imagem e Educação - AIE. Uma das ações do Ateliê é realizar cineclubes, concebidos

como espaçostempos^5 destinados a ver, discutir e pensar a partir de filmes. Os

cineclubes têm o intuito de potencializar as conversas entre os praticantespensantes ,

percebendo, por meio delas, como os filmes desestabilizam concepções de diferença,

educação, currículo, cotidiano escolar, infâncias. A partir de “rodas de conversa”,

concebemos como esses diálogos tornam possível problematizar as experiências que os

(^1) Professor Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, curso de pedagogia e pesquisador do AIE. 2 Professor Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, curso de pedagogia e pesquisador do AIE. 3 Professora Adjunta da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, curso de pedagogia e Programa de Pós-Graduação em Educação e pesquisadora do AIE. 4 Objetivando garantir o anonimato dos professores e professoras, praticantespensantes da pesquisa, optamos por nomeá-los com nomes de pássaros, mesmo tendo, todos, assinado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. 5 De acordo com Alves, a junção das palavras foi a melhor forma que encontrou “depois de usar outras, para dizer da unidade indissociável de seus dois componentes, que na verdade precisam ser entendidos como um só, na tentativa de superar a visão dicotomizada que herdamos da modernidade” (Alves, 2000).

filmes suscitaram, os sentimentos que engendraram e os acontecimentos/sentidos que

produziram.

Iniciamos as ações do AIE no segundo semestre do ano de 2015, momento em

que nos organizamos institucionalmente ao mesmo tempo em que mobilizamos

professores das redes públicas e privada de ensino do município de Cáceres-MT, que

trabalham com crianças, para participarem dos cineclubes, concebidos como

espaçostempos de formação continuada de professores. Divulgamos a ideia do projeto

em todas as escolas das zonas urbana e rural do município e abrimos a possibilidade de

cada escola indicar até 3 (três) nomes de professores para participarem da formação,

tendo a expectativa de, no máximo, 20 (vinte) participantes. Para nossa agradável

surpresa, recebemos 83 (oitenta e três) nomes de professores interessados em participar

do cineclube. Dada a demanda, optamos por deixar os dois primeiros encontros

decidirem o número de participantes. Este artigo é resultado das conversas

potencializadas no primeiro encontro do cineclube. Em nossa primeira reunião

convencionamos que as conversas, após a apresentação dos filmes, seriam filmadas,

gravadas e transcritas. Essas narrativas, em nossa pesquisa, são concebidas como

personagens conceituais , ou seja, através delas pretendemos compor outros

agenciamentos coletivos de enunciação que possam, quiçá, produzir outras formas de

subjetividade, que recusem a individualidade.

Partimos do princípio de que as escolas são atravessadas por redes educativas e

produtos comunicacionais. O espaçotempo da escola é habitado por

praticantespensantes (OLIVEIRA, 2012) que vivem na chamada “sociedade da

comunicação”. São pessoas constituídas por lógicas da informação, como dispositivo de

controle social (DELEUZE, 1992) que são, segundo Alves (2012), atualizadas,

rejeitadas e ressignificadas nas práticas cotidianas nos espaçostempos da educação

escolar e das inúmeras outras redes educativas que formamos e que nos formam. Assim,

compreendemos as imagens e sons produzidos pelos mais variados meios

comunicacionais e midiáticos, mais especificamente o cinema, como potências, na

medida em que criam a possibilidade de imaginar a existência, para além daquela que

nos rodeia, para além daquela que nos circunda; possibilita imaginar, assim, uma outra

história problematizada nas tramas da vida, para além da história praticada.

Com Deleuze, concebemos que cinema e realidade não são instâncias distintas

(GUÉRON, 2011). O cinema, nesse sentido, é descrito como uma potência, uma

A multiplicidade é ativa, é um fluxo, é produtiva. A multiplicidade é uma máquina de produzir diferenças – diferenças que são irredutíveis à identidade. A diversidade limita-se ao existente. A multiplicidade estende e multiplica, prolifera, dissemina. (SILVA, 2000, p. 100)

Assim, concebemos que a diferença não pode ser subordinada às relações de

representação de igualdade, de identidade, pois o que está em jogo, aqui, é a diferença

enquanto singularidade, ou seja: suas relações, que são devires; seus acontecimentos

que são hecceidades; seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; seu modelo

de realização, que é o rizoma; seu plano de composição, que constitui platôs; aos

vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização

(DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.8). Questionamos: diferença na diversidade ou na

multiplicidade? Como se compõe a concepção de diferença que habita o imaginário dos

praticantespensantes da Educação? Existe um lugar constituído em nosso imaginário

que seja destinado a habitá-la? É possível desnaturalizar esse lugar, pensando a partir de

filmes que abordam espaçostempos outros para a diferença?

Compreendemos, neste texto, que as imagens e sons veiculados no filme

iraniano Filhos do Paraíso, instigam nosso pensamento a pensar os “mundos culturais”

dos praticantespensantes (professores) em relação às infâncias, à diferença e ao

currículo bem como nos ajudam a problematizá-los, questioná-los, desmanchá-los,

esquadrinhá-los pensando, conjuntamente, que outros mundos, outras infâncias, outras

sexualidades, outras cores, outras multiplicidades/singularidades, podem constituir

diferença em nós; podem nos afetar, edificando outros modos de concebermos e

lidarmos com as infâncias e a diferença na educação, no cotidiano escolar e no

currículo.

O filme, intercessor que força^8 pensar.

Juntos aos praticantespensantes de cotidianos escolares do município de

Cáceres-MT, problematizamos conhecimentos e práticas por eles produzidos a partir da

intercessão de filmes que abordam as temáticas infâncias, diferença e currículo a partir

de outros contextos socioculturais. Partimos do princípio de que o filme apresenta

imagens, narrativas e sons que provocam nosso pensamento a pensar e que se afastam

(^8) Em contraposição a filosofia clássica, Deleuze nos diz que o que funda o pensamento é o encontro com algo violento que força a pensar. Para ele, “o que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a violência, é o inimigo, e nada supõe Filosofia” (DELEUZE, 1988, p. 230).

da pretensão de representar na mesma medida em que se constitui em potência criadora.

Nesse sentido, Deleuze e Guattari (2010, p. 79) nos inspiram nesta pesquisa ao nos

falarem de personagem conceitual enquanto “o devir ou o sujeito de uma filosofia” (...)

“verdadeiros agentes de enunciação”, ou, enquanto intercessor, cristal ou germe de

pensamento. Para eles, o essencial para o pensamento pensar são os intercessores.

Deleuze (1992) nos diz sobre esse personagem da vida:

O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê. E mais ainda quando é visível: Félix Guattari e eu somos intercessores um do outro. (DELEUZE, 1992, p 156)

A partir desse pensamento, tomaremos os filmes (Iranianos, Asiáticos,

Africanos, Norte-Americanos, Sul-Americanos, Europeus, dentre outros), como

personagens conceituais , ou intercessores, para nos exprimirmos e deixar com que eles

se exprimam em nós. Os personagens conceituais , intercessores de Deleuze, são

inspirações, também, para as pesquisas nos/dos/com os cotidianos. Segundo Alves

(2010), imagens e narrativas tornaram-se importantes intercessores para as pesquisas

nos/dos/com os cotidianos.

É nessa direção que afirmo que para as pesquisas nos/dos/com os cotidianos , as narrativas e as imagens de professoras e de outros praticantes dos espaçostempos cotidianos não podem ser somente entendidas, exclusivamente, como ‘fontes’ ou como ‘recursos metodológicos’. Elas ganham o estatuto, e nisso está sua necessidade, de personagens conceituais. Sem narrativas (sons de todo tipo) e imagens não existe a possibilidade dessas pesquisas. Assim, ao contrário de vê-las como um resto rejeitável, dispensável do que buscamos, é preciso tê-las, respectivamente, como personagens conceituais necessários aos processos que realizamos. (ALVES, 2010 p. 1203).

Compreendemos que, a partir das exibições dos filmes, iniciaremos uma

conversa com os praticantespensantes dos cotidianos sobre como nossas práticas e

conhecimentos são/foram construídos para, a partir do reconhecimento das mesmas

como produções práticoteóricas cotidianas, repensá-las e, quiçá, produzir outros

agenciamentos coletivos de enunciação, que possam produzir outras formas de

conceituais. Isso gera uma circustância em que o valor de uma conversa, como diz

Larrosa, não está no fato de que, ao final, se chegue ou não a um acordo. A conversa é

permeada por distinções. A arte da conversa consiste em sustentar a tensão entre as

diferenças... mantendo-as e não dissolvendo-as... e mantendo também as dúvidas, as

perplexidades, as interrogações... (LARROSA, 2003, p. 212). Essas conversas são

filmadas e gravadas, com prévia autorização dos participantes. As narrativas delas

advindas foram utilizadas, neste texto e na pesquisa, como personagens conceituais

para compreendermos os “mundos culturais” dos praticantespensantes dos cotidianos e

pensarmos as possibilidades propiciadas a partir das novas intercessões.

A partir das narrativas provocadas pelo filme Filhos do Paraíso , foram

engendradas possibilidades de novas práticas/saberes que serão, também, analisadas

posteriormente; e que algumas estão narradas nestes escritos.

O filme, intercessor que força a pensar. Pensar o que? Infâncias...

Os professores, os coordenadores, o diretor da escola... Às vezes a gente não sabe o que está se passando prá criança estar ali. Às vezes vai sem uniforme, chega atrasado, falta muito e a gente não sabe, né? Então, assim, nós não vemos porque esta chegando atrasado. Então, assim, outra questão é que ele, o menino, estava sendo resiliente mesmo nessa situação de estar sem o tênis, ele estava procurando resolver, sem os pais. (Professora Bem-te-vi). Eis um comentário provocado por um modo possível de recepção do filme Filhos do Paraíso. Esse filme, dirigido por Majidi Majidi, narra o cotidiano de uma família humilde do Irã, composta por Ali (Amir Farrokh Hashemian), o protagonista-menino de 9 anos, sua irmã Zahra (Bahare Seddiqi), um irmão-bebê, sua mãe doente e seu pai trabalhador pouco escolarizado. Trata-se de um enredo composto de inúmeras facetas, com possibilidade de múltiplos olhares interpretativos. Neste texto puxamos apenas um fio que se desenrola dos muitos que atravessam a trama. Fio esse que rondou as narrativas dos praticantespensantes que movimentaram o primeiro cineclube organizado pelo Projeto. Existe um dentro e um fora da escola?

O enredo do filme se passa a partir da cena em que Ali vai buscar o sapato de sua irmã que levou para consertar. No caminho de volta para casa, passa em uma venda para comprar, a crédito de sua mãe, algumas batatas. Deixa o sapato em uma sacola plástica na porta da venda e esse destacado equipamento escolar é recolhido, indevidamente, pelo coletor de lixo. O sapato perdido passa a ser um segredo dos dois irmãos que, para não inculcarem mais essa preocupação aos pais, passam a compartilhar, diariamente, o tênis de Ali em incansáveis idas e voltas da

escola. Esse acontecimento interconecta, também, toda uma história de vida que se transforma em obra de arte, tramada a partir da necessidade de um par de tênis, as exigências de uma instituição educativa e as múltiplas dimensões da construção de experiências de vida.

Zahra vai para a escola logo cedo e volta correndo para entregar o tênis a Ali, que, ansioso a espera. O caminho até a escola é longo e Ali, mesmo correndo, sempre, chega atrasado. Os atrasos constantes levam o diretor da escola a repreender Ali, sem se dar conta das condições que impossibilitam o cumprimento do horário.

A escola iraniana apresentada no filme foge pouco ao modelo de escolarização e aos interesses da sociedade apontados por Kant em sua Réflexion Sur I’Éducation. Para esse filósofo, “enviam-se em primeiro lugar as crianças à escola não com a intenção de que elas lá aprendam algo, mas com o fim de que elas se habituem a permanecer tranquilamente sentadas e a observar pontualmente o que se lhes ordena” (1962, p. 71). Nesses aspectos, o filme apresenta Ali como o aluno idealizado e a concepção de escola moderna como um dos conjuntos de máquinas eficazes, capazes de executar a relação de saber e poder, para que Ali possa se tornar cidadão. Nesse sentido, o filme representa papéis definidos de professor e aluno, espaços delimitados e tempos entrecortados e definidores de ações no contexto escolar. Horários, filas, obediência, silêncio, provas, disciplina de corpos e mentes, regulam, ordenam e controlam o cotidiano da escola. Tudo se passa como se existisse um lá e um cá. Um fora e um dentro da escola.

Na conversa após a exibição do filme um professor diz: Então, agora eu fico pensando nas salas de aula e na realidade da nossa escola. Tem alunos que faltam aula para cuidar de irmão. Tem muita carência também. Financeira sim, mas, além disso, não estou vendo mais empolgação para estudar e nem para crescer no amanhã. Você pergunta o que quer ser quando crescer e eles ainda não sabem e tão tudo ali... Eu acredito que nós temos de tentar botar uma sementinha de continuação no coração das crianças, não é só ficar trabalhando, mas motivar o seu amanhã e não ficar só esperando o avanço. (Professor Sabiá)

Que sentidos atribuímos às infâncias? Historicamente diferentes concepções são

atribuídas ao termo “infância”. Distintas abordagens interpretativas, díspares em seus

princípios, concordam em que seja um período da vida humana inaugurado no

nascimento e estendido até a puberdade. Concordam, também, que a ideia de infância

esteja vinculada à ideia de falta, de carência, de incompletude e inconsistência. Nesse

quadro, o adulto, considerado o outro da infância, estaria autorizado a preenchê-la,

completá-la, torná-la outra (Kohan, 2004). A criança, nesse sentido, trata-se de um

crianças que moram nas periferias das cidades e que trazem para a escola seus mundos

culturais? Esta professora responde:

Eu acho que a questão é bem social, não é? Eu estava olhando o filme e parecia que aquela realidade era só ali onde aquela família mora, mas não. Aquele momento em que o pai foi em busca de emprego, já mostra uma realidade aqui do Brasil. Então, a questão é social. É uma questão de nós estarmos olhando o todo, não é? Porque nós somos professores. (Professora Beija-flor)

Intencionalmente, o filme provocou a possibilidade de alargar nossa

compreensão sobre a relação da infância com a escola. Assim, a produção fílmica

funcionou como intercessora ao nosso pensamento, levando-nos a sair do encontro no

cineclube com a questão da professora Curió em nossa espreita:

Será que nós, professores, a partir de hoje, saindo daqui e assistindo esse filme, vamos refletir e pensar num amanhã melhor? Será que vai haver uma indagação para nós mesmos enquanto professores e que isso vai refletir em nosso trabalho, no nosso meio, no nosso dia-a-dia?

O filme, intercessor que força pensar. Pensar o que? Currículo...

Gostaria de dizer dessa concepção de infancia [...] porque, às vezes, a criança vai para a escola e o professor só quer passar conteúdo, conteúdo, e esquece de ter esses momentos, que poderia tirar vinte minutinhos de sua aula para fazer uma atividade lúdica. Não importa se é sexto ano, sétimo ano, oitavo ano, porque tá se perdendo esse negócio do brincar [...]. Pelo que estou vendo, a infância está se acabando. A gente vê o menino do filme, em casa ele só trabalha, e na escola também. E nós? A gente só quer passar atividade, conteúdo e ficar cobrando [...]. (Professora Garça Branca)

As conversas, como essa, oportunizadas pelo cineclube, estimularam-nos a

pensar, também, o currículo e as políticas curriculares. A partir das narrativas dos

praticantespensantes da educação, começamos problematizar a concepção hegemônica

de currículo, rediscutindo as potencialidades dos horizontes de construção de

sentido/significado. Assim, passamos a conceber essa edificação como aquilo que

se tece em cada escola com a carga que seus “praticantes”, como aprendemos com o historiador Michel de Certeau, trazem para cada ação pedagógica de sua cultura e de sua memória de outras escolas e de outros cotidianos nos quais vive (ALVES, 2011).

Logo, para essa autora, é nesse emaranhado de construção do cotidiano,

formado por múltiplas redes de subjetividades, que cada um de nós é aluno/aluna,

professor/professora. Com essa concepção, se desfaz a ideia de currículo como

“processo de racionalização de resultados educacionais, cuidadosa e rigorosamente

especificados e medidos” (BOBBIT, 1918, apud SILVA, 1999, p. 12); definição essa

que tem a fábrica como modelo institucional. O currículo pensado a partir das pesquisas

nos/dos/com os cotidianos problematiza o ideário da modernidade que institui papéis

definidos, marcados, esquadrinhados como de adulto/criança, negro/branco,

homem/mulher... Problematiza a cultura de massa que não deixa alternativa para que a

alteridade aconteça. Para Guattari,

Essa cultura de massa produz, exatamente, indivíduos: indivíduos normalizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão – não sistemas de submissão visíveis e explícitos, como na etologia animal, ou como nas sociedades arcaicas ou pré-capitalistas, mas sistemas de submissão muito mais dissimulados [...]. O que há é simplesmente uma produção de subjetividade. Não somente uma produção de subjetividade individuada – subjetividade de indivíduos – mas uma produção de subjetividade social, uma produção de subjetividade que se pode encontrar em todos os níveis da produção e do consumo. E mais ainda: uma produção de subjetividade inconsciente. A meu ver, essa grande fábrica, essa grande máquina capitalística produz inclusive aquilo que acontece quando sonhamos, quando devaneamos, quando fantasiamos, quando nos apaixonamos e assim por diante. Em todo caso, ela pretende garantir uma função hegemônica em todos esses campos. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 16).

Essa descrição da produção da subjetividade leva-nos a pensar como os sujeitos

  • dentre eles nós, que estamos praticandopensando o cotidiano educacional– são

produzidos material e espiritualmente. E nos leva a perceber, também, a escola, para

além de um aparelho ideológico do Estado (Altusser), como “um equipamento coletivo,

que opera por meio dos agenciamentos coletivos de enunciação” (GALLO, 2012, p.

215). Para Guattari e Rolnik (1986, p. 31), a subjetividade é produzida por

agenciamentos coletivos de enunciação. Logo, os processos de subjetivação não estão

centrados em agentes individuais; mas, implicam o funcionamento de máquinas de

expressão, que podem ser tanto de natureza extrapessoal e extraindividual (sistemas

maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos, etológicos, da

mídia...) como de natureza infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de

percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens...). É

nesse sentido, também, que as pesquisas dos/nos/com os cotidianos veem o currículo,

como uma máquina de subjetivação. Então, podemos refletir que

o currículo é o território constituído no qual os processos de subjetivação podem se materializar. É também o conjunto dos agenciamentos coletivos de enunciação, o conjunto das ações dos vários professores e demais membros da comunidade escolar, operando coletiva e concertadamente na produção das subjetividades dos estudantes”. (GALLO, 2012, p. 215-6).

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