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Análise do romance Cordilheira de Daniel Galera: Modernidade e Literatura, Notas de aula de Literatura

Este artigo analisa o romance cordilheira, de daniel galera, em relação às características da produção e comercialização literária contemporânea, destacando a tensão entre os paroxismos da modernidade e a capacidade dos departamentos de letras em promover a circulação de textos criativos desconectados da reificação comercial. Através da perspectiva de christopher lasch e néstor garcía canclini, o artigo examina a relevância de buenos aires no romance, a narrativa heterodiegética e a influência da complexidade da história moderna na arte.

O que você vai aprender

  • Qual é a relevância de Buenos Aires no romance Cordilheira?
  • Como as observações de Lasch sobre a arte moderna se aplicam ao romance Cordilheira?
  • Quais são as tendências que o discurso do personagem alinha no romance Cordilheira?
  • Como o conceito de heterodiegética é aplicado no romance Cordilheira?
  • Como o romance Cordilheira de Daniel Galera reflete os paroxismos da modernidade na produção literária?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Garrincha
Garrincha 🇧🇷

4.1

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ROMANCE SOB ENCOMENDA: PAROXISMOS DA MODERNIDADE
NA OBRA CORDILHEIRA, DE DANIEL GALERA
ROMANCE UNDER ORDER: PAROXISMS OF MODERNITY
IN THE WORK CORDILHEIRA, BY DANIEL GALERA
João Victor Leite Melo
34
RESUMO
Neste artigo, procederemos à análise do romance Cordilheira, de Daniel Galera (2008),
apontando algumas características da produção e comercialização literária contemporânea,
assinaladas pelo antropólogo argentino Néstor García Canclini (1995) e pelo historiador
norte-americano Christopher Lasch (1986). Nosso objetivo é mostrar que, se por um lado,
desde o final do século passado a arte contemporânea, contaminada pela lógica de mercado,
apresenta certos paroxismos que podem ser verificados nas composições literárias hodiernas,
por outro, as faculdades de Letras têm, em estado latente, a potencialidade para promover a
circulação de textos criativos, alheios à reificação comercial.
Palavras-chave: Cordilheira; Daniel Galera; Literatura Contemporânea; Crítica
ABSTRACT
In this paper, we analyze the work Cordilheira, by Daniel Galera (2008), pointing out some
characteristics of contemporary literary production and marketing, which had exposed by the
Argentine anthropologist Néstor García Canclini (1995) and the American historian
Christopher Lasch 1986). Our aim is to show that if, on the one hand, since the end of the last
century contemporary art, contaminated by market logic, has certain paroxysms that can be
verified in today's literary compositions, on the other hand, the faculties of Letters have the
potentiality to promote the circulation of creative texts, unrelated to commercial reification.
Keywords: Cordilheira; Daniel Galera; Contemporary Literature; Criticism
1. ROMANCE SOB ENCOMENDA
Em nossas metrópoles dominadas pela desconexão,
atomização e falta de sentido podem existir
histórias?
35
À pergunta posta em epígrafe, o romance intitulado Cordilheira, do escritor paulistano
Daniel Galera (2008), responderia que sim. Entretanto, neste artigo discorreremos sobre as
condições discursivas e mercadológicas com as quais foi possível operar a feitura e
publicação de tal obra.
34
Universidade Federal do Espírito Santo; e-mail: joaoxv11@gmail.com
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Néstor García Canclini, 1995, p. 133.
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ROMANCE SOB ENCOMENDA: PAROXISMOS DA MODERNIDADE

NA OBRA CORDILHEIRA , DE DANIEL GALERA

ROMANCE UNDER ORDER: PAROXISMS OF MODERNITY

IN THE WORK CORDILHEIRA , BY DANIEL GALERA

João Victor Leite Melo^34

RESUMO

Neste artigo, procederemos à análise do romance Cordilheira , de Daniel Galera (2008), apontando algumas características da produção e comercialização literária contemporânea, assinaladas pelo antropólogo argentino Néstor García Canclini (1995) e pelo historiador norte-americano Christopher Lasch (1986). Nosso objetivo é mostrar que, se por um lado, desde o final do século passado a arte contemporânea, contaminada pela lógica de mercado, apresenta certos paroxismos que podem ser verificados nas composições literárias hodiernas, por outro, as faculdades de Letras têm, em estado latente, a potencialidade para promover a circulação de textos criativos, alheios à reificação comercial. Palavras-chave: Cordilheira; Daniel Galera; Literatura Contemporânea; Crítica

ABSTRACT In this paper, we analyze the work Cordilheira, by Daniel Galera (2008), pointing out some characteristics of contemporary literary production and marketing, which had exposed by the Argentine anthropologist Néstor García Canclini (1995) and the American historian Christopher Lasch 1986). Our aim is to show that if, on the one hand, since the end of the last century contemporary art, contaminated by market logic, has certain paroxysms that can be verified in today's literary compositions, on the other hand, the faculties of Letters have the potentiality to promote the circulation of creative texts, unrelated to commercial reification. Keywords: Cordilheira; Daniel Galera; Contemporary Literature; Criticism

1. ROMANCE SOB ENCOMENDA

Em nossas metrópoles dominadas pela desconexão, atomização e falta de sentido podem existir histórias?^35

À pergunta posta em epígrafe, o romance intitulado Cordilheira , do escritor paulistano Daniel Galera (2008), responderia que sim. Entretanto, neste artigo discorreremos sobre as condições discursivas e mercadológicas com as quais foi possível operar a feitura e publicação de tal obra.

(^34) Universidade Federal do Espírito Santo; e-mail: joaoxv11@gmail.com (^35) Néstor García Canclini, 1995, p. 133.

Em coleção intitulada Amores expressos , a editora “Companhia das Letras” patrocinou a ida de dezessete escritores a dezessete cidades ao redor do mundo, os quais assinaram um contrato que os comprometia a escrever um livro quando retornassem ao Brasil, e submetê-lo à publicação findo o prazo preestabelecido. Daniel Galera foi enviado a Buenos Aires e, de acordo com o site da editora^36 , ele foi o primeiro viajante a entregar seu romance. Na seção dedicada à divulgação da obra, consta ainda que “ao contrário do que isso poderia sugerir, o livro não transparece essa rapidez”. Contudo, o autor da sinopse conclui seu texto dizendo que “a interação da protagonista com as demais personagens não escapa de um certo artificialismo”. Ora, estamos falando de um romance escrito sob encomenda, com prazo de entrega e cláusulas contratuais. Se o próprio mecanismo da proposta já não é suficiente para esperarmos uma obra de ficção constrangida pelo artificialismo não só da arte como também da empreita pré-determinada pela indústria, o que será que o autor da sinopse quis dizer com “um certo artificialismo”? Longe de interpretarmos essa afirmação como uma crítica equivocada, abordaremos algumas passagens do romance, baseados na perspectiva de Christopher Lasch (1986), exposta no livro O Mínimo Eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis , concernente à constatação de que a arte contemporânea encontra-se em convulsão ontológica e representativa, assim como em algumas considerações sobre o narrador flaneur , contidas na obra Consumidores e cidadãos; conflitos multiculturais e globalização , de Néstor García Canclini (1995). Esses autores afirmam que há no fazer artístico contemporâneo uma saturação de recursos e um desgaste das engrenagens criativas, as quais, se para o consumidor leigo passam despercebidas, para o estudioso de literatura configuram um fenômeno sintomático da lógica de mercado, na qual o fazer literário é visto como um negócio, capaz de gerar produtos lucrativos. O fato de a própria editora emitir uma nota pública dizendo sobre a rapidez com que Galera executou o serviço para o qual foi contratado poderia fazer supor que a história já devia estar pronta, ou, pelo menos, já muito bem desenvolvida, bastando-lhe apenas acrescentar certas descrições da paisagem a que foi exposto, sob o patrocínio da referida empresa. Não pretendemos com isso dizer que houve má-fé do autor. Muito pelo contrário,

(^36) Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2013/08/conheca-os-livros-que-resultaram-do- projeto-amores-expressos-4228979.html

Anita, dizia que “[ela] tinha que ter dado para muito mais caras do que [deu] nessa vida e isso [lhe] fazia falta agora” (p. 19)^39. Temos aí delineada a configuração de uma possibilidade narrativa ordinária, cuja imersão no comum dialoga com as tendências da estética minimalista, como desenvolveremos mais adiante. Depois de terminar seu relacionamento com Danilo e ter sido convidada à 33ª Feira do Livro de Buenos Aires, por conta da recém lançada tradução de seu romance para o castelhano, durante a viagem Anita só pensava em “algum homem meio narigudo, magro e atlético [...] sussurrando cafajestadas, para então montar em cima [dela] e meter com força até esporrar no colo do [seu] útero e então desaparecer da [sua] vida” (p. 15). De acordo com a personagem, essa imagem era interrompida pela preocupação de “no que diabos ia dizer no dia seguinte, para uma plateia de argentinos que não falam português, a respeito de um romance que por vezes mal lembrava de ter escrito” (p. 15). Após ter chegado ao aeroporto de Buenos Aires, Anita foi recebida pelo funcionário da editora que financiara sua visita ao país. Ao tentar explicar em que consistia o coquetel no qual ela deveria comparecer, ele disse que estariam presentes alguns outros escritores brasileiros e outras personalidades que participariam da Feira do Livro, como “o adido cultural, o próprio embaixador, alguns autores e editores argentinos, gente de instituições culturais e quejandos” (p. 34). Percebendo o desinteresse de Anita, ele acrescentou que “não seria necessário ficar muito, apenas o bastante para que [lhe] apresentassem a meia dúzia de pessoas diretamente responsáveis pela promoção da cultura Brasileira na Argentina” (p. 34). Chama-nos a atenção, nesta passagem, a revelação que a personagem principal faz ao leitor logo em seguida: “eu tinha um segredo por ora inconfessável: não estava nem aí para o meu livro, nem para a editora dele e muito menos para a promoção da cultura brasileira no exterior”. Ao fazer tal declaração pela voz de Anita, Daniel Galera vai ao encontro daquilo que Philip Roth, citado por Christopher Lasch (1986, p. 117), disse sobre alguns romancistas da modernidade, como se segue:

Em seu desconcerto e desagrado, muitos escritores abandonam os grandes fenômenos sociais e políticos de nossos tempos e tomam o eu como tema [...] na tentativa de manter vivo o empreendimento artístico em uma época terminal.

(^39) Quando houver entre parênteses somente a indicação da página, entenda-se que a referência é da obra Cordilheira , de Galera, 2008.

Mesmo que o “eu” da personagem não represente necessariamente a idiossincrasia do próprio autor, a fala egoística que perpassa todo o romance permite-nos entrever a pertinência das observações feitas por Lasch, segundo o qual “esmagado pela complexidade da história moderna, o artista bate em retirada rumo a uma espécie de discurso solipsista que não representa uma tentativa de compreensão, mas, principalmente, de afirmação do eu” (LASCH, 1986, p. 118). Cumpre assinalar que o desdém da personagem “pelo livro, pela editora e pela promoção da cultura brasileira no exterior” ocorria não em prol de idealizações com maior envergadura moral ou intelectual, mas sim pelo simples capricho de ter um filho a todo o custo, fosse com quem fosse. Vinte páginas à frente, encontra-se na fala de dois personagens alguns argumentos que ilustram bem aquilo que estamos chamando de paroxismos da modernidade, pois, assim que chegou à Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, no auditório onde aconteceria a palestra de Anita a respeito de seu recém lançado livro em solo argentino, intitulado Descrições da Chuva , havia uma mesa principal com quatro assentos: um para o editor do romance, um para Lúcia Merello – autora e crítica argentina, estudiosa da literatura contemporânea brasileira – e outro para Nicanor Benegas, editor de uma revista paraguaia de literatura latino-americana. Os organizadores do evento solicitaram que Anita escolhesse um capítulo de seu livro para ser lido no dia de sua palestra, e ela pediu que lessem o último. Feita a leitura, o texto foi comentado por Lúcia Merello, que concluiu sua apreciação da seguinte forma:

Com Descrições da Chuva Anita von der Goltz Vianna não apenas se inscreve na tradição de uma literatura feminina que evoca tanto Clarice Lispector quanto Lygia Fagundes Telles, mas usa-a como um trampolim para alcançar novas alturas ou, numa metáfora mais em harmonia com o romance, mergulhar em águas ainda não desbravadas. Ao narrar com imensa habilidade a história de uma jovem brilhante e emocionalmente instável que se entrega a uma relação intensa com um professor de seu curso pré-universitário, Vianna revela como ama uma geração de mulheres para as quais o amor romântico dá lugar a um novo tipo de sentimento. Para Magnólia, o amor não é cego nem idealizado. A completude amorosa é apenas uma fator dentro de uma busca mais generalizada por realização pessoal e afirmação de identidade. Ou pelo menos é o que parece, até que o lado mais irracional e visceral da paixão se impõe quebrando qualquer ilusão de controle dos protagonistas, cujo destino inevitável é a fuga e o isolamento (p. 48-49).

Após tal discurso, a personagem principal responde, mentalmente, nestes termos: “Era um monte de besteiras. Clarice Lispector. Haja paciência” (p. 49). Podemos ver nisso um exemplo de que, algumas vezes, parte da crítica literária comercial ainda obedece a um impulso maniqueísta que flutua entre a bajulação supérflua e o engajamento ideológico apedrejador. Ambos os modos acabam prestando um desserviço à

absoluta dos membros de cada grupo e satanizam os que exercem a crítica ou a dissidência” (CANCLINI, 1995, p. 120). O romance de Galera não se coaduna – nem este que estamos analisando nem tampouco o que sua personagem escreveu – a nenhuma vertente política ou filosófica explícita que não seja o niilismo ou a ênfase na qualidade aleatória da experiência individual superficial. No entanto, a ficção parece denunciar que a defesa da “pureza” se impõe em muitos países, constituindo uma “oposição às correntes modernas que buscam relativizar o específico de cada etnia e nação a fim de construir formas democráticas de convivência, complementação e governabilidade multicultural” (CANCLINI, 1995, p. 120). Outro aspecto apontado por Canclini a respeito da tentativa de narrar o multiculturalismo na modernidade, que vai ao encontro da proposta levada a cabo por Galera, é o intento de representar a cidade a partir de um passeio por ela. De acordo com o antropólogo, no século XIX e princípio do XX, as crônicas jornalísticas estavam imbuídas de um estilo narrativo denominado flaneur , expressão com que os franceses designam o apreço pela deambulação nas cidades. Inspirado pela paisagem, o cronista inventariava o sentido da vida urbana e o orgulho monumental dos signos de desenvolvimento comercial moderno (CANCLINI, 1995, p. 126). O romance Cordilheira está permeado por este tipo de perspectiva narrativo- descritiva, como pode ser visto nos três excertos que selecionamos abaixo. Tendo tomado um táxi para voltar ao hotel em que estava hospedada em Buenos Aires, Anita faz a seguinte descrição:

Depois de meia hora numa autoestrada, passamos por uma grande placa pregando a reconquista das Malvinas e entramos na cidade. Já estava escuro e o cenário não me provocou nenhum estranhamento inicial, pelo menos até chegarmos, após demorado percurso por ruas engarrafadas, à região central onde amplas avenidas, prédios públicos imponentes de arquitetura neoclássica afrancesada, obeliscos e alguns marcos turísticos me deram certeza de estar em outro país. O Hyde Park Hotel era um três-estrelas no Microcentro, área que minhas prévias fuçadas internéticas tinham revelado ser o centro financeiro e administrativo de Buenos Aires, uma amontoado de quarteirões regulares divididos por ruas estreitas que às sete horas da noite eram como gargantas barulhentas e luminosas ladeadas por prédios altos, entupidas de gente, comércio, veículos e uma concentração nauseante de partículas de carbono no ar (p. 33).

Citando Julio Ramos^40 nas observações que faz sobre o estilo flaneur de compor narrativas, Canclini atenta para o fato de que não se trata apenas de um modo aleatório de experimentar a cidade, mas sim,

(^40) RAMOS, Julio. Desencuentros de la modernidad em América Latina : literatura e política en el sieglo XIX.

um modo de representá-la, de vê-la e relatar o visto. Ao flanar, o indivíduo urbano, privatizado, se aproxima da cidade com olhos de quem vê um objeto em exibição. Daí que a vitrine se converta em objeto emblemático para o cronista (CANCLINI, 1995, p. 127).

Assim como os cronistas dos dois séculos anteriores mencionados por Canclini, o romancista em questão também descreve a cidade ancorando observações pontuais da geografia urbana em um trajeto verossímil, cuja ambientação, apesar de superficial, ilustra a “mercantilização moderna e sua espetacularização no consumo” (CANCLINI, 1995, p. 127). Poucas páginas mais adiante, a personagem principal intercala novamente sua autodiegese com a perspectiva do flaneur , desta vez mais sensível à paisagem humana, porém, com a mesma indiferença do turista enfastiado:

Passei em frente à Casa Rosada, que estava em reforma, com parte de sua fachada escondida atrás de andaimes e tapumes. Na Plaza de Mayo, um protesto. Uma bandeira argentina gigante estava sendo desenrolada no chão da praça. Me entregaram um adesivo. “ No a las papeleras. Municipalidad de Gualeguaychu ”, um protesto contra a instalação de fábricas de papel. Fui até Puerto Madero e caminhei pelo calçadão. O rio de la Plata estava logo ali, em tese, mas uma vegetação feita de um capim muito denso e alto bloqueava a visão das águas em toda a extensão que percorri. Barraquinhas e trailers de choripán vendiam sanduíches na rua, com grelhas fumegantes cobertas de pedaços de carne e linguiças. Comprei um refrigerante light e sentei no muro do calçadão, de onde pude vislumbrar um cemitério de milhares de embalagens de plástico multicoloridas boiando na água parada. Depois andei mais um pouco. O tempo todo tinha a sensação de estar indo em direção a lugar nenhum. Aquela parte de Buenos Aires me parecia tão grande (p. 38).

A esta altura, fazemos nossas as palavras de Canclini quando ele diz que o estilo flaneur muitas vezes apresenta apenas “reinvenções fragmentárias de bairros ou zonas, superações pontuais do anonimato e da desordem” (CANCLINI, 1995, p. 133). Como último exemplo, citaremos a passagem em que Anita, já perto da metade do romance, conhece um fã, chamado José Holden, que acabou se tornando seu amante. Na esperança de que o sujeito pudesse vir a ser pai de seu tão desejado filho, ela decide aceitar o convite de ir visitá-lo em sua casa. A descrição da paisagem que precede o encontro ganha corpo da seguinte forma:

A casa de Holden ficava em Palermo Viejo, perto da avenida Santa Fe, numa parte do imenso bairro que permanecia fora do alcance dos restaurantes finos, da butiques e da boemia sofisticada que aglomerava portenhos e turistas. A rua Ciudad de la Paz cruzava com a Dorrego e erguia-se numa pequena ponte de mão dupla com as pistas divididas por uma faixa de cocorutos amarelos. A ponte era coberta por uma estrutura de vigas de metal cruzadas e passava por cima dos trilhos. À esquerda e à

México: FCE, 1989, p, 28.

Para mim, esse modo de ver as coisas tinha pelo menos duas falhas. Em primeiro lugar, se o destino opera por um mecanismo de compensações, é certo que ele também compensa nossos momentos de felicidade e conquista com algumas rasteiras bem dadas, mas Xanda ficava furiosa quando eu chamava sua atenção para esse fato. A seu ver, as noções do bem e do destino eram exclusivamente interligadas. A balança pendia apenas para um lado, o lado conveniente. Se acontecia de pender para o outro, era sob o efeito de algum tipo de conspiração benigna cujas razões o futuro haveria de nos revelar [...]. A segunda falha era a seguinte: com um pouco de criatividade e convicção, inúmeras tramas de causa e efeito podem ser desenhadas por diferentes pessoas, ou até mesmo por uma única pessoa, para relacionar dois ou mais fatos determinados (p. 73).

O pretendido sabor novidadeiro na afirmação de que, se ao mal sucede o bem, o contrário também seria verdade, já havia sido trabalhado por Tomás Antônio Gonzaga (1744 -

  1. nos poemas do ciclo de Marília, onde o eu-lírico, resignado aos desmandos da paixão, frente à variabilidade do estado de coisas, adverte a amada nestes termos:

Minha bela Marília, tudo passa, A sorte desse mundo é mal segura, Se vem depois dos males a ventura, Vem depois dos prazeres a desgraça.^41

É notável que o irracionalismo pré-romântico do século XVIII volte a figurar na letra de um escritor moderno com requintes de verdade existencial. Constatações desse tipo leva- nos a concordar com Lasch que já argumentava, há pouco mais de três décadas, que “a arte contemporânea é uma arte terminal não porque toma as situações extremas como tema, mas porque a experiência terminal ameaça solapar a própria possibilidade de uma interpretação criativa da realidade (LASCH, 1986, p. 118). Ao repisar o solo já batido pela produção de outrora, o autor corrobora os prognósticos de Lasch. Ademais, tal reflexão sobre a sucessão fenomenológica da vida soa um tanto frágil para aqueles que compreendem não haver recompensas ou punições para os atos, mas sim consequências. Por detrás da nulidade da existência ensaiada pela personagem, cujas elucubrações são sempre subterfúgios estéreis para justificar a si mesma o seu desejo inexplicável de tornar-se mãe, à custa de uma aventura solitária e tediosa, os argumentos beiram à tendência literária conhecida como existencialismo, sem no entanto alcançar os efeitos reflexivos daquela escola. Observemos, à guisa de conclusão, mais esta passagem, na qual a personagem continua argumentando contra as convicções de sua amiga:

(^41) Esses são os quatro primeiros versos do poema “Minha bela Marília” (GONZAGA, 1985, p. 76).

É comum ficarmos sem compensação nenhuma para um desastre, uma agressão, um erro, uma doença, o fim de um amor, a perda de uma pessoa amada. É uma questão de perspectiva ou de fé. Nascemos com um prazo limitado para interpretar o mundo. Fazemos o que podemos. O legado de todos que nos precederam nesse esforço pode ajudar a ou confundir, e em última instância ninguém nunca prova nada. Atribuir um propósito superior a um lance qualquer da vida é construir uma ficção muito pessoal. Dar sentido ao mundo é um ato criativo. Uma visão de mundo é uma narrativa (p. 74).

Uma vez mais, concordamos com Lasch quando ele afirma que grande parcela da ficção contemporânea encena “a dificuldade de manter incólume o eu, num mundo sem significado ou padrões coerentes, onde a busca de modelos e conexões volta-se para si própria, em círculos solipsistas cada vez mais estreitos” (LASCH, 1986, p. 141). O leitor do romance segue na expectativa de que algo extraordinário acontecerá, porém, as relações entre as personagens, que relegam toda a especulação racional existencial a um segundo plano, como se a frivolidade das ações e dos desejos fosse a característica mais urgente a ser narrada, dão corpo a uma história pretensiosamente urbana. José Holden era fã de Anita simplesmente pelo fato de ela ter escrito sobre uma personagem, chamada Magnólia, que acaba matando o seu namorado, empurrando-o de um penhasco. Holden, um escritor frustrado, queria dar fim à própria vida do mesmo modo, ou seja, desejava que uma mulher apaixonada por ele fizesse o mesmo. Como Anita se recusasse a tal insanidade, argumentando que ela não era a personagem que criara, Holden suicida-se em sua presença, durante uma excursão que fizeram à Patagônia. Com o estresse da cena, Anita acaba abortando o filho que era fruto dos eventuais encontros dos dois. Depois disso, ela volta ao Brasil e não se sabe mais o que acontece, pois o romance termina com a personagem chegando em casa e seu antigo companheiro dizendo “fique para sempre!”, ao que ela sinaliza recusar com seu último turno de fala: “Tarde demais, Danilo. A gente teve um problema de sincronia” (p. 175). A jovem escritora talentosa, idealizada por Galera, “bate em retirada rumo ao mundo de sua própria imaginação mas, finalmente, perde mesmo a capacidade de distinguir entre o seu reino interior e o mundo que a rodeia” (LASCH, 1986, p. 145). Mais ainda, “a sua única esperança de sobrevivência encontra-se na fuga, no descompromisso emocional, numa recusa em tomar parte em qualquer tipo de vida coletiva ou mesmo nas complicações normais do relacionamento humano cotidiano” ( ibidem ).

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura : uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

GALERA, Daniel. Cordilheira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. Org. Lúcia Helena. São Paulo: Agir, 1985.

LASCH, Christopher. O Mínimo Eu : sobrevivência psíquica em tempos difíceis. Tradução de João Roberto Martins Filho. São Paulo: Brasiliense, 1986.