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Uma teoria sobre as adivinhas tradicionais portuguesas, definindo-as como textos curtos que apelam a uma resposta encoberta na pergunta. O texto aborda a importância cultural dessas adivinhas, suas formas e estruturas, e as contradições que elas evidenciam. Além disso, discute a evolução da adivinha ao longo dos tempos e sua relação com a literatura oral.
Tipologia: Notas de estudo
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Ca r l o s N o g u e i ra U n i v e r s i d a d e d e L i s b o a
Palavras-chave: adivinha, literatura tradicional, estrutura. Keywords: riddle, traditional literature, structure.
A Arnaldo Saraiva
As adivinhas populares tradicionais que, no seu conjunto, constituem o adivinhan- ceiro são um dos mais importantes domínios do património cultural português de natu- reza verbal. Arnaldo Saraiva sintetiza de forma exemplar a indefinição terminológica que tem afectado esta «forma simples» (Jolles, 1976) «A designação “adivinha” cobre no uso comum e também no dos especialistas uma quantidade imensa e incerta de tex- tos diferenciados ou diferenciáveis que vão da adivinha própria ou impropriamente dita ao enigma, ao problema, ao puzzle, ao logogrifo, à armadilha (“catch question”), à per- guntinha, ao rébus, ao anagrama, ao acróstico e a outras espécies do que melhor pode- ríamos chamar discurso interrogativo ou problemático, ou simplesmente enigmática, ou enigmatística, que compreenderia a adivinhancística» (Saraiva, 1999: 433). A partir dos contributos teóricos de investigadores como André Jolles, Northrop Frye (1976: 109- 124), Tzevtan Todorov (1978: 223-245) e Arnaldo Saraiva (1999 e 1998), definiremos a adivinha como um texto verbal curto que apela a uma resposta, contida na pergunta de modo cifrado ou encoberto. A adivinha fornece pois uma definição, insinuante e engen- hosa, de algo conhecido, mas dissimulando-o, de forma a não permitir a localização imediata do referente. Como afirma Jolles, o verdadeiro objectivo da adivinha não é a solução, mas a resolução , quer dizer, o estado de iniciação do candidato a adivinho que acaba por encontrar a palavra-chave, depois de compreender a língua especial da adi- vinha que lhe proporcionou a decifração.
A adivinha portuguesa partilha das características do arquétipo universal, compre- endendo, genericamente, uma fórmula de introdução, um corpo central, que encerra a mensagem enigmática, e uma fórmula de conclusão. As fórmulas introdutória e conclu- siva apresentam, normalmente, uma função acessória e correspondem a expressões for- mulísticas sempre conhecidas, para manter vivo e imediatamente reconhecível o tom do jogo, integrado em esquemas preestabelecidos. «Que é, que é» ou «Qual é a coisa, qual é ela», que corresponde à fórmula galega «Que cousa é ela», são as fórmulas de intro- dução mais comuns. Quanto às fórmulas de remate, de ocorrência menos frequente, as mais usadas são «Adivinha, bacharel», «Não adivinhas/nem daqui a um mês» e «Não adivinhas este ano,/nem para o ano que vier,/só se eu disser», destinadas a diminuir a confiança psicológica do adivinhador, cujo estatuto ficará muito prejudicado, caso não encontre a resposta:
João Branco está no campo Sou branca de nascença, Lindos pucaretes, com cem resmas de papel. preta de geração, lindos ramos, ramalhetes, Adivinha, bacharel! barriguinha de cabaça, não se come com a colher, (Moutinho, 1990: 47) e dentinhos de turquês. não adivinhas este ano, não adivinhas nem para o ano que vier, nem daqui a um mês (ibid.:56) só se eu o disser^1.
O interrogado sujeita-se mesmo a uma ridicularização pública, se a adivinha incluir uma fórmula final como a que comparece nesta versão: «Que é, que é,/um velhinho,/muito encorrilhadinho,/apegado a um pauzinho?/nero, nero, uvas são, (ou - nerre, nerre )/passas são,/asno é/quem não adivinha o que isto é» (Lima, 1994: 119). O corpo central da adivinha, que concentra o enigma, é a sua parte fundamental. Em numerosas adivinhas prescinde-se da fórmula introdutória, da de conclusão ou mesmo das duas, sem que o texto perca identidade enquanto adivinha. Neste núcleo há, não raramente, dois elementos básicos, que nem sempre figuram juntos nem nas mes- mas proporções: um fornece elementos para a solução, o outro desconstrói a ordem apa- rentemente criada, negação que elimina as pistas efectivas: «Minha dama fidal- guinha,/de madeira é o seu comer;/mastigar e deitar fora,/engolir não pode ser». A contradição, expandida por vezes em autênticos paradoxos, pode firmar-se no próprio verso e percorrer toda a adivinha, procedimento retórico que complexifica o trabalho de descodificação:
(^1) Adivinha proveniente da recolha do património oral de Baião, distrito do Porto, por nós empreendida desde 1994. Outros textos dessa prospecção aparecem neste artigo sem indicação da fonte. Actualizámos, deste modo, o postulado segundo o qual é conveniente que pesquisador de literatura oral e crítico coin- cidam empiricamente, no sentido da optimização do trabalho analítico, dada a complexa e estreita liga- ção, neste âmbito cultural, entre texto, co-texto e contexto.
vras, do tipo «Uma meia meia feita,/outra meia por fazer;/diga-me lá, ó menina,/quan- tas meias vêm a ser», numa exploração hábil das potencialidades fónico-semânticas da língua. Outras aproveitam o género gramatical para desencadear a perplexidade do adi- vinho: «Fêmea sou de nascimento,/macho me fizeram ser;/hei-de morrer afogado/pra fêmea tornar a ser» (Lima, 1994: 100). Já aludimos àquelas que geram uma insinuação de natureza erótico-sexual, indicando movimentos, com uma solução absoluta e inesperada- mente inofensiva: «Em cima de ti me ponho,/em cima de ti me deito;/sem dar ao cu/ nada está feito». É um tipo muito comum, animado pela força da componente lúdica, indispensável para a estabilidade da psique colectiva, suscitando ora chufa ora escândalo (verdadeiro ou fingido). De grande poder evocativo são aquelas que assinalam com clari- dade a imagem que pode deixar no receptor a contemplação do objecto pedido, num apelo ao trabalho de imaginação apoiado na ilustração sensorial, na metamorfose dos objectos em signos: «Uma dama bem composta,/dois leões a estão mirando,/ao som destas castan- holas,/a roupa lhe estão tirando» (Moutinho, 1990: 21). Especialmente curiosas são as que incluem elementos onomatopaicos, às vezes ilisíveis do ponto de vista morfo-foné- mico, embora relacionados com a solução, como «ninguirininhim» (fome), que suscita a ideia de aflição, falta, outras mais lisíveis, dir-se-ia mesmo em ressonância infantil, como «cro co co» (galinha) (ibid.: 83 e 126). Algumas apresentam forma narrativa, um argu- mento logicamente encadeado, como se de uma autêntica história se tratasse, organizada por um narrador-personagem: «Uma casa edifiquei/onde viver cuidei./Cuidando que era segura,/foi tal a minha ventura;/numa donzela me formei,/saí por uma janela,/à morte me entreguei» (ibid.: 35): note-se o tom inventivo dado à narração do percurso do bicho- da-seda, em jeito de incidente pontual. Engenhosas são aquelas cuja solução assenta em sílabas, palavras ou sons (ou letras, nas versões escritas) estrategicamente colocados ao longo do texto, em geral falaciosamente conceptual, o que exige que o receptor apreenda desde o início o mecanismo do jogo, sob pena de não encontrar a resposta, ao dispersar- se pela realidade extralinguística: «No meio do mar estou,/não sou de Deus , nem do mundo ;/nem do inferno profundo.../Adivinha lá quem sou!» (Lima, 1994: 104). Por fim, sem a pretensão de ter esgotado todos os tipos de adivinha (em confluências nem sem- pre fáceis de apurar), poderíamos referir as adivinhas que consistem num simples – até certo ponto – problema aritmético, com ou sem recurso a jogos de palavras:
Bota e meia em cada pé, Carvalheira tem cem canos, quantas botas são? cada cano tem cem ninhos; cada ninho tem cem ovos: quantos são os passarinhos? (ibid.: 110-11)
Por se tratar de um género da literatura de transmissão oral, não admira que, ainda no plano da forma, a adivinha se submeta às leis da tradicionalidade: esquecido o autor, o texto enfrenta e incorpora todos os discursos anónimos (daí a autoria colectiva),
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transmitidos pela fala ao longo dos tempos, autorizando-se enquanto património colec- tivo e herança comunitária. Ao alcançar popularidade, a adivinha multiplica-se em tex- tos coetâneos de autoria colectiva, num equilíbrio constante entre duas forças antagó- nicas: uma de fixação, que tende para o «imobilismo nuclear»; e outra de criatividade versátil, definida pelo «enriquecimento desse mesmo modelo, com a ampliação das variantes até ao infinito» (Júnior, 1981: 39). Determinar o prototexto é, como se sabe, inviável, devido à instabilidade que carateriza toda a literatura oral. O que interessa assinalar é a repetição do já-dito, transformando-o, mesmo que de forma aparente ou efectivamente inócua («não tem fala» por «não come», por exemplo), mediante permu- tações, elipses, alterações nos elementos formais, estruturais ou conteudísticos (como a utilização ou não da fórmula preambular):
Tem pernas e não anda, Qual é a cousa, qual é ela, tem asas e não voa, que tem pernas e não anda, tem boca e não tem fala, tem boca e não come, tem cu e não caga (Moutinho, 1990: 35) tem asas e não voa? (Lima, 1994: 45).
Perante objectos de síntese tão numerosos e constitutivamente movediços, torna- se necessário procurar definir um quadro taxinómico que ordene, tanto quanto possí- vel, este vasto e desafiante material. Os mais atentos tratadistas da matéria seguem na classificação das adivinhas um destes dois métodos, nalguns casos com um certo grau de conjugação: a ordenação alfabética de acordo com as soluções dos textos compilados ou a organização baseada nas relações do homem com o meio envolvente. Antonio Machado y Alvarez (1881) e Joan Amades (s/d) para citarmos apenas investigadores ibéricos, adoptaram o primeiro método e José Leite de Vasconcelos, Francisco Rodríguez Marín e Augusto César Pires de Lima o segundo. Não dispomos em Portugal de uma sólida obra de referência sobre a adivinha – colecção ou estudo 2 –, apesar do copioso acervo já reunido, com destaque para Passatempo Honesto de Enigmas e Adivinhações (1603) de Francisco Lopes, obra de propósito moralizante e com tratamento literário, mas que se socorre da tradição oral; As Adivinhas Populares (1881) de Teófilo Braga; Cal é Coisa? Cal é ela? (1920) de Maria Valverde; Adivinhas Portuguesas (1921), recolhidas no Alentejo, de António Tomás Pires; O Livro das Adivinhas (1921) de Augusto César Pires de Lima, edição depois revista e comentada por Bertino Daciano; Adivinhas Portuguesas (1957) de Manuel Viegas Guerreiro; e Adivinhas Populares Portuguesas (1988; 6.ª ed. rev. e aumentada, 2000) de Viale Moutinho. Ora, todas estas colecções, que comportam textos que não são adivinhas, padecem de defeitos de transcrição (o mais comum decorre de uma imperfeita percepção do isossilabismo), de classificação
(^2) Cf., por exemplo, o estudo sobre alguns aspectos socioculturais da adivinha de P.e (^) Serafim Gonçalves das Neves, A. C. Pires de Lima e Bertino Daciano, in Douro Litoral , n.os^ I, II, V, VI, VII, VIII.
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IV. A Casa. Objectos de uso doméstico. Ferramentas e aparelhos V. Alimentos transformados VI. Problemas verbais (palavras, sílabas e letras) e problemas numerais
Se é certo que ninguém dúvida da constituição oral, popular ou tradicional da adi- vinha, não é menos verdade que o seu valor poético tem sido ignorado por teóricos e críticos da cultura e da literatura portuguesas. Continente, portanto, pouco ou nada explorado, com estruturas e formas múltiplas e plurais, heterogéneas, esta forma breve vale-se contudo de uma retórica, de uma estilística e de uma poética particulares e, muitas vezes, surpreendentes, ainda que não compareça como ilustração em trabalhos académicos específicos. No Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa , na entrada relativa à rima, da responsabilidade de Ettore Finazzi-Àgro, a adivinha é mesmo um dos exemplos fornecidos para fundamentar a afirmação «rima sem poesia» (Finazzi- Àgro, 1993). Ora, a grande maioria destes textos aparecem em forma versificada e com todos os mecanismos de semiotização ligados ao verso, a começar pela métrica, pelo ritmo e pela rima, para além de procedimentos estilísticos vários de natureza semântica (imagens, metáforas, comparações, antíteses, paradoxos, sinonímia, etc.), fónica (como a rima final ou interna, as aliterações e as assonâncias) e morfossintáctica (repetições, parataxe, vocabulário concreto, arcaísmos, populismos, oralismos, etc.). Este menos- prezo foi atenuado com o referido artigo de Arnaldo Saraiva, que defende e justifica a qualidade literária da «comum adivinha» com este exemplo:
Uma viúva presumida Toda de luto vestida E de flores coroada E do velho perseguida Quando o velho a persegue Ela faz a retirada. (Saraiva, 1999: 463)
Concordamos com Paco Martín, quando afirma, após relembrar que a linguagem é a mais elevada consecução do homem enquanto ser inteligente, que a adivinha «é unha (se non a máis) fermosa forma de emprega-la linguaxe dun xeito lúdico ó tempo que serve pra achegar ó individuo a conceptos ou fenómenos dificilmente comprensibles co uso exclusivo da razón i en condicións normais» (Martin, 1985: 10-11). A adivinha ergue-se supostamente a partir de uma linguagem incompreensível, asserção que remete para um dos seus aspectos capitais: a resposta reside, em muitos casos, numa reflexão sobre a própria linguagem, matéria flexível que pode ser moldada e reinven- tada artisticamente: «São cinco conichadores,/metidos na conichadeira,/mexidos co zeringalho,/co sumo da pernandeira» (Moutinho, 1990: 36). A comparação e, em parti- cular, a metáfora constituem recursos de grande criatividade e qualidade estética, pas-
síveis de evidenciar relações e fusões insuspeitadas entre as palavras, entre as coisas ou entre umas e outras. Uma vulgar garrafa, por exemplo, «tem um palmo de pescoço,/tem barriga e não tem osso» (ibid.: 36) e o telhado é«um terreno bem lavrado,/sem charrua nem arado» (ibid.: 37). Sujeita originalmente às regras da comunicação da literatura oral – comunicação concretizada em presença, isto é, com simultaneidade temporal entre as instâncias de produção e de recepção –, a adivinha adaptou-se à modernidade, aceitando sem pertur- bações o processo de comunicação diferida, característico da literatura consagrada (o leitor identifica-se com o receptor, ausente do momento da produção, actualizado por um escritor-autor). Com o aparecimento e a democratização da Internet, que suporta numerosos sítios dedicados à adivinha, divulgada também em edição electrónica, em cassete e em papel (pense-se na multiplicação de edições escolares), a recepção desta tradição comunal faz-se agora num quadro muito mais alargado do que no passado. Vê- se assim como o silêncio impresso ou digital não significa erosão irreversível, mas antes um ajustamento dinâmico e operante à «vocalidade» (Paul Zumthor). Se muitas delas eram ou são já cosmopolitas, como mostram as abordagens comparatistas de Teófilo Braga ou de Paco Martín, é de prever que esse número aumente substancialmente nos próximos tempos. Diremos, a concluir, que, pela sua composição orgânica, pela sua expressão técnica e pelos seus instrumentos de divulgação, hoje sobretudo radicados no ensino oficial pré-escolar e básico, a adivinha conquista facilmente a consciência colectiva, populari- zando valores imperecíveis, porque enraizados na natureza humana. A ambiguidade edificada por todos os processos retórico-estilísticos enunciados reflecte a absoluta plu- ralidade do mundo, espaço infinito de forças e de implicações complexas que escapam a qualquer esforço de categorização e de sistematização lineares. Através da adivinha, a dúvida instala-se e as coisas designadas pela linguagem perdem a sua dimensão uní- voca em favor da pulverização de sentidos, modificando radicalmente o conhecimento que o sujeito tem do universo. Ela encerra condensadamente uma importantíssima pers- pectiva que nos abre caminho para uma visão singular daquilo que, no nosso quoti- diano, nos aparece a cada passo como obscuro ou demasiado evidente e adquirido. Texto, portanto, que subverte e reinventa as estruturas mentais hierarquizadas, muito por acção de um estranhamento criador que valoriza outras visões do real. Dir-se-á mesmo que, na adivinha, se actualiza literalmente a proposta de Theodor Adorno, a propósito da sua Teoria Estética : do pendor enigmático da obra artística resulta que só se lhe possa aceder na sua condição de enigma.