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Este texto discute a importância do capital cultural na desigualdade escolar, além de destacar a importância da transmissão doméstica desse capital e sua relação com o 'sucesso escolar'. O autor também aborda as formas em que o capital cultural pode existir e as implicações desse capital para os detentores de capital econômico ou político.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de aula
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Tradução: Magali de Castro Revisão Técnica: Maria Alice Nogueira
Fonte: Bourdieu, Pierre, "Les trois états du capital culturel", publicado originalmente in Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, n. 30, novembro de 1979, p. 3-6.
para dar conta da desigualdade de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais, relacionando o "sucesso escolar", ou seja, os benefícios específicos que as crianças das diferentes classes e frações de classe podem obter no mercado escolar, à distribuição do capital cultural entre as classes e frações de classe. Este ponto de partida implica em uma ruptura com os pressupostos inerentes, tanto à visão comum que considera o sucesso ou fracasso escolar como efeito das "aptidões" naturais, quanto às teorias do "capital humano"^1. Os economistas têm o mérito aparente de colocar explicitamente a questão da relação entre as taxas de lucro asseguradas pelo investimento educativo e pelo investimento econômico (e de sua evolução). Entretanto, além de sua medida do rendimento do investimento escolar só levar em conta os investimentos e os benefícios monetários ou diretamente conversíveis em dinheiro, como as despesas decorrentes dos estudos e o equivalente em dinheiro do tempo dedicado ao estudo, eles também não podem dar conta da parte relativa que os diferentes agentes ou as diferentes classes concedem ao investimento econômico e ao investimento cultural por não considerarem, sistematicamente, a estrutura das chances diferenciais de lucro que lhes são destinadas pelos diferentes mercados, em função do volume e da estrutura de seu patrimônio (cf. em particular, G.S. BECKER, Human Capital, Nova York, Columbia University Press, 1964). Além disso, deixando de colocar as estratégias de investimento escolar no conjunto das estratégias educativas e no sistema de estratégias de reprodução, sujeitam-se a deixar escapar, por um paradoxo necessário, o mais oculto e determinante socialmente dos investimentos educativos, a saber, a transmissão doméstica do capital cultural. Suas interrogações sobre a relação entre a "aptidão" (ability) para os estudos e o investimento nos estudos provam que eles ignoram que a "aptidão" ou o "dom" são também produtos de um investimento em tempo e em capital cultural (Id., p. 63-66). Compreende-se, então, que, em se tratando de avaliar os benefícios do investimento escolar, só lhes resta se interrogar sobre a rentabilidade das despesas com educação para a "sociedade" em seu conjunto (social rate of return; p. 121) ou sobre a contribuição que a educação traz à "produtividade nacional" (the social gain of education as measured by its effects on national productivity; Id., p. 155). Essa definição tipicamente funcionalista das funções da educação, que ignora a contribuição que o sistema de ensino traz à reprodução da estrutura social, sancionando a transmissão hereditária do capital cultural, encontra-se, de
(^1) Ao falar de um conceito em si mesmo, como aqui, em lugar de fazê-lo funcionar, corre-se sempre o risco de ser, ao mesmo
tempo, esquemático e formal, isto é, "teórico" no sentido mais comum e mais comumente aceito deste termo.
fato, implicada, desde a origem, numa definição do "capital humano" que, apesar de suas conotações "humanistas", não escapa ao economicismo e ignora, dentre outras coisas, que o rendimento escolar da ação escolar depende do capital cultural previamente investido pela família e que o rendimento econômico e social do certificado escolar depende do capital social também herdado - que pode ser colocado a seu serviço. O capital cultural pode existir sob três formas: no estado incorporado , ou seja, sob a forma de disposições duráveis do organismo; no estado objetivado, sob a forma de bens culturais - quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas, que constituem indícios ou a realização de teorias ou de críticas dessas teorias, de problemáticas, etc.; e, enfim, no estado institucionalizado, forma de objetivação que é preciso colocar à parte porque, como se observa em relação ao certificado escolar, ela confere ao capital cultural - de que é, supostamente, a garantia - propriedades inteiramente originais.
A maior parte das propriedades do capital cultural pode inferir-se do fato de que, em seu estado fundamental, está ligado ao corpo e pressupõe sua incorporação. A acumulação de capital cultural exige uma incorporação que, enquanto pressupõe um trabalho de inculcação e de assimilação, custa tempo que deve ser investido pessoalmente pelo investidor (tal como o bronzeamento, essa incorporação não pode efetuar-se por procuração)^2. Sendo pessoal, o trabalho de aquisição é um trabalho do "sujeito" sobre si mesmo (fala-se em "cultivar-se"). O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da "pessoa", um habitus^3. Aquele que o possui "pagou com sua própria pessoa" e com aquilo que tem de mais pessoal, seu tempo. Esse capital "pessoal" não pode ser transmitido instantaneamente (diferentemente do dinheiro, do título de propriedade ou mesmo do título de nobreza) por doação ou transmissão hereditária, por compra ou troca. Pode ser adquirido, no essencial, de maneira totalmente dissimulada e inconsciente, e permanece marcado por suas condições primitivas de aquisição. Não pode ser acumulado para além das capacidades de apropriação de um agente singular; depaupera e morre com seu portador (com suas capacidades biológicas, sua memória, etc.). Pelo fato de estar ligado, de múltiplas formas, à pessoa em sua singularidade biológica e ser objeto de uma transmissão hereditária que é sempre altamente dissimulada, e até mesmo invisível, ele constitui um desafio para todos aqueles que lhe aplicam a velha e inextirpável distinção dos juristas gregos entre as propriedades herdadas (ta patrôa) e as propriedades adquiridas (epiktèta), isto é, acrescentadas pelo próprio indivíduo ao seu patrimônio hereditário; de forma que consegue acumular os prestígios da propriedade inata e os
(^2) Segue-se que, de todas as medidas do capital cultural, as menos inexatas são aquelas que tomam por padrão de medida o
tempo de aquisição - com a condição, certamente, de não o reduzir ao tempo de escolarização e de levar em conta a primeira educação familiar, dando-lhe um valor positivo (de um tempo ganho, de um avanço) ou negativo (de um tempo perdido e, duplamente , uma vez que será necessário gastar tempo para corrigir seus efeitos) segundo a distância em relação às exigências do mercado escolar (Seria necessário dizer, para evitar qualquer mal-entendido, que essa proposição não implica em qualquer reconhecimento do valor dos veredictos escolares e limita-se a registrar a relação que se estabelece, nos fatos, entre um certo capital cultural e as leis do mercado escolar? Talvez não seja inútil, todavia, recordar que as disposições marcadas com um valor negativo no mercado escolar podem ter um valor altamente positivo em outros mercados - e, em primeiro lugar, claro, nas relações internas à sala de aula). (^3) Segue-se que a utilização ou exploração do capital cultural coloca problemas particulares aos detentores do capital
econômico ou político, quer se trate de mecenas privados ou, em outro extremo, de empresários que empregam "quadros" dotados de uma competência cultural específica (sem falar dos novos mecenas do Estado): como comprar esse capital estreitamente ligado à pessoa sem comprar a pessoa - o que significaria privar-se do próprio efeito de legitimação que pressupõe a dissimulação da dependência? Como concentrar o capital - o que é necessário para certas empresas - sem concentrar os portadores desse capital - o que pode ter todo tipo de conseqüências negativas?
O capital cultural no estado objetivado detém um certo número de propriedades que se definem apenas em sua relação com o capital cultural em sua forma incorporada. O capital cultural objetivado em suportes materiais, tais como escritos, pinturas, monumentos etc., é transmissível em sua materialidade. Uma coleção de quadros, por exemplo, transmite-se tão bem (senão melhor, porque num grau de eufemização superior) quanto o capital econômico. Mas o que é transmissível é a propriedade jurídica e não (ou não necessariamente) o que constitui a condição da apropriação específica, isto é, a possessão dos instrumentos que permitem desfrutar de um quadro ou utilizar uma máquina e que, limitando-se a ser capital incorporado, são submetidos às mesmas leis de transmissão. Assim, os bens culturais podem ser objeto de uma apropriação material, que pressupõe o capital econômico, e de uma apropriação simbólica, que pressupõe o capital cultural. Por conseqüência, o proprietário dos instrumentos de produção deve encontrar meios para se apropriar ou do capital incorporado que é a condição da apropriação específica, ou dos serviços dos detentores desse capital. Para possuir máquinas, basta ter capital econômico; para se apropriar delas e utilizá-Ias de acordo com sua destinação específica (definida pelo capital científico e tecnológico que se encontra incorporado nelas), é preciso dispor, pessoalmente ou por procuração, de capital incorporado. Esse é, sem dúvida, o fundamento do status ambíguo dos "quadros": se acentuamos o fato de que não são os possuidores (no sentido estritamente econômico) dos instrumentos de produção que utilizam e que só tiram proveito de seu capital cultural vendendo os serviços e os produtos que esse capital torna possíveis, colocamo-Ios do lado dos dominados; se insistimos no fato de que tiram seus benefícios da utilização de uma forma particular de capital, colocamo-los do lado dos dominantes. Tudo parece indicar que, na medida em que cresce o capital cultural incorporado nos instrumentos de produção (e, pela mesma razão, o tempo de incorporação necessário para adquirir os meios que permitam sua apropriação, ou seja, para obedecer à sua intenção objetiva, sua destinação, sua função), a força coletiva dos detentores do capital cultural tenderia a crescer, se os detentores da espécie dominante de capital não estivessem em condições de pôr em concorrência os detentores de capital cultural (aliás, inclinados à concorrência pelas próprias condições de sua seleção e formação - e, em particular, pela lógica da competição escolar e do concurso). O capital cultural no estado objetivado apresenta-se com todas as aparências de um universo autônomo e coerente que, apesar de ser o produto da ação histórica, tem suas próprias leis, transcendentes às vontades individuais, e que - como bem mostra o exemplo da língua permanece irredutível, por isso mesmo, àquilo que cada agente ou mesmo o conjunto dos agentes pode se apropriar (ou seja, ao capital cultural incorporado). É preciso não esquecer, todavia, que ele só existe e subsiste como capital ativo e atuante, de forma material e simbólica, na condição de ser apropriado pelos agentes e utilizado como arma e objeto das lutas que se travam nos campos da produção cultural (campo artístico, científico, etc.) e, para além desses, no campo das classes sociais, onde os agentes obtêm benefícios proporcionais ao domínio que possuem desse capital objetivado, portanto, na medida de seu capital incorporado^5.
(^5) Tem-se, na maioria das vezes, reduzido a relação dialética entre o capital cultural objetivado (cuja forma por excelência é a escrita) e o capital cultural incorporado, a uma descrição exaltada da degradação do espírito pela letra, do vivo pelo inerte, da criação pela rotina, da graça pelo pesado.
O ESTADO INSTlTUCIONALIZADO
A objetivação do capital cultural sob a forma do diploma é um dos modos de neutralizar certas propriedades devidas ao fato de que, estando incorporado, ele tem os mesmos limites biológicos de seu suporte. Com o diploma, essa certidão de competência cultural que confere ao seu portador um valor convencional, constante e juridicamente garantido no que diz respeito à cultura, a alquimia social produz uma forma de capital cultural que tem uma autonomia relativa em relação ao seu portador e, até mesmo em relação ao capital cultural que ele possui, efetivamente, em um dado momento histórico. Ela institui o capital cultural pela magia coletiva, da mesma forma que, segundo Merleau- Ponty, os vivos instituem seus mortos através dos ritos do luto. Basta pensar no concurso que, a partir do continuum das diferenças infinitesimais entre as performances, produz descontinuidades duráveis e brutais, do tudo ao nada, como aquela que separa o último aprovado do primeiro reprovado, e institui uma diferença de essência entre a competência estatutariamente reconhecida e garantida e o simples capital cultural, constantemente intimado a demonstrar seu valor. Vê-se claramente, nesse caso, a magia performática do poder de instituir, poder de fazer ver e de fazer crer, ou, numa só palavra, de fazer reconhecer. Não existe fronteira que não seja mágica, isto é, imposta e mantida (às vezes, com risco de vida) pela crença coletiva. "Verdade aquém dos Pireneus; erro além". É a mesma diacrisis originária que institui o grupo como realidade, ao mesmo tempo, constante (ou seja, transcendente aos indivíduos), homogênea e diferente, pela instituição arbitrária e desconhecida como tal de uma fronteira jurídica, e que institui os valores últimos do grupo, aqueles que têm por princípio a crença do grupo em seu próprio valor e que se definem na oposição aos outros grupos. Ao conferir ao capital cultural possuído por determinado agente um reconhecimento institucional, o certificado escolar permite, além disso, a comparação entre os diplomados e, até mesmo, sua "permuta" (substituindo-os uns pelos outros na sucessão); permite também estabelecer taxas de convertibilidade entre o capital cultural e o capital econômico, garantindo o valor em dinheiro de determinado capital escolar. Produto da conversão de capital econômico em capital cultural, ele estabelece o valor, no plano do capital cultural, do detentor de determinado diploma em relação aos outros detentores de diplomas e, inseparavelmente, o valor em dinheiro pelo qual pode ser trocado no mercado de trabalho - o investimento escolar só tem sentido se um mínimo de reversibilidade da conversão que ele implica for objetivamente garantido. Pelo fato de que os benefícios materiais e simbólicos que o certificado escolar garante, dependem também de sua raridade, pode ocorrer que os investimentos (em tempo e esforços) sejam menos rentáveis do que se previa no momento em que eles foram realizados (com a modificação, de facto, da taxa de convertibilidade entre capital escolar e capital econômico). As estratégias de reconversão do capital econômico em capital cultural, que estão entre os fatores conjunturais da explosão escolar e da inflação de diplomas, são comandadas pelas transformações da estrutura das oportunidades de lucro asseguradas pelas diferentes espécies de capital.
BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação / Maria Alice e Afrânio Catani (organizadores) – Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, 2º edição. pp. 71-79.