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e o malandro na música de Chico Buarque de Holanda. Isabel Travancas – IFCS-UFRJ. De Pedro Pedreiro ao Barão da Ralé – o trabalhador e o malandro na obra de.
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
Compartilhado em 07/11/2022
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De Pedro Pedreiro ao Barão da Ralé – o trabalhador e o malandro na obra de Chico Buarque de Holanda i
Este artigo procura analisar as categorias do trabalhador e do malandro na obra do compositor da música popular brasileira, Chico Buarque de Holanda à luz do clássico de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. A idéia é discutir em que medida é possível estabelecer uma relação entre as figuras masculinas presentes na música de Chico Buarque e os conceitos de “trabalhador” e “aventureiro” analisados pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda. Com isso, pretendo avaliar de que forma estas duas categorias – o trabalhador e o malandro - , esta última tão presente na literatura e na música popular brasileiras, apontam para uma construção da identidade nacional.
Palavras-chave : malandro, trabalhador, música, identidade nacional.
“Sou apenas o pai do Chico” Sérgio Buarque de Holanda
Discutir o processo da construção da identidade nacional foi objeto de algumas obras fundamentais das ciências sociais no Brasil. Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda são dois marcos na história da reflexão sobre a plasticidade brasileira. Malandro, trabalhador, vagabundo, operário, “macunaíma”, pícaro. Qual a representação do homem brasileiro presente na música popular, particularmente nas canções de Chico Buarque?
Escolhi investigar estas categorias na música popular brasileira porque acredito que ela é um locus privilegiado de expressão de valores, ideologias e sentimentos nacionais. Além disso, penso que a música tem um papel fundamental na cultura brasileira. Não é à toa que o escritor e crítico literário Silviano Santiago afirmava em
mulheres, Chico tornou-se em vida um mito. Nascido em 1944, no Rio de Janeiro, membro da classe média brasileira, filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda e Maria Amélia Césário Alvim, Chico cresceu em ambiente intelectual e musical. Leu os clássicosii^ na adolescência, ouviu muito rádio na infância e músicos e artistas freqüentavam sua casa. Começou a cursar em 1963 Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP abandonada em 1965 para seguir a carreira musical. Era a época da Bossa Nova, do Cinema Novo, dos CPCs, do Teatro de Arena. Período de grande efervescência cultural e no qual Chico Buarque se inseriu. Sua primeira canção Tem mais sambaiii^ é de 1964. Ela abre uma fase na música do compositor que vou denominar ingênua-romântica, e inclui músicas como Pedro pedreiro , Rita , Meu refrão , A banda , Olê Olá, Noite dos Mascarados, Com açúcar com afeto , músicas para Morte e vida severina de João Cabral de Melo Neto, Carolina, Januária e Roda viva. Esta última de 1967 é um marco em sua carreira e simboliza o momento de ruptura. Ela dá título à peça teatral de sua autoria que causou muito impacto tanto pela agressividade do texto, quanto pela direção ousada de Zé Celso Martinez Correa. O enredo apresentava a desmistificação de um ídolo popular e tinha o mesmo efeito sobre seu autor. Chico deixava de ser visto como o “bom menino” de A banda e Carolina.
A partir de 1969 sua carreira e vida pessoal entram em nova fase. A banda alcança enorme sucesso e depois de participar de festivais e programas de Tv, o compositor embarca para a Itália, onde reside um ano em um exílio voluntárioiv. É dessa segunda fase - que dura até 1975 - outra de suas músicas emblemáticas: Construção. Também são deste período: Apesar de você , Quando o carnaval chegar , Agora falando sério , Partido alto , Sem açúcar , Vai trabalhar vagabundo e as músicas da peça censurada Calabar. Várias destas músicas apresentam uma mudança em seu estilo musical e poético da primeira fase. O Brasil vive o período da ditadur militar com a censura atuando intensamente e a repressão fortalecendo sua luta contra a oposição, da qual Chico fazia parte, ainda que nunca tenha se filiado a nenhum partido político. É dentro deste contexto que o artista cria a figura de Julinho da Adelaide, pseudônimo do compositor que servirá de tática para driblar a censura.
De 1976 a 1989 Chico Buarque “abandona” uma linguagem mais agressiva e/ou de protesto e entra em uma fase mais poética em que as mulheres serão tema de inúmeras músicas. São dessa época: O que será , Mulheres de Atenas (música da peça
Gota d’Água ), Angélica , as músicas de Os Saltimbancos , as músicas para a Ópera do Malandro , para o balé O grande circo místico , o samba-enredo Vai passar , Bancarrota Blues , Linha de montagem , A volta do malandro , entre outras. Chico se tornou um compositor consagrado nacional e internacionalmente, seus discos alcançam enormes vendagens e seus shows atraem um grande público Seu último show As cidades , por exemplo, ao terminar a sua excursão pelo país em 2000 tinha sido visto por mais de 120 mil pessoas.
A última fase que começa em 1989 com o disco Chico Buarque traz um compositor mais maduro e mais lírico, privilegiando em suas canções o poeta, o compositor e a própria música. A canção Paratodos que dá título ao CD lançado em 1993 expressa muito bem esta idéia: “Vou na estrada há muitos anos, sou um artista brasileiro”. Suas letras apontam para uma maior interiorização e preocupação com as questões da arte e do artista, muitas vezes através de uma dimensão metafísica como em Tempo e Artista.
Ainda que possa parecer um tanto esquemático, penso que essa divisão da obra do artista em quatro fases demonstra um percurso realizado por Chico Buarque onde há predominâncias e ênfases maiores em determinados momentos, algumas vezes em função do contexto social brasileiro, e em outros consequência de sua própria trajetória pessoal.
Para fins de análise, selecionei dez músicas que privilegiassem o trabalhador ou o malandro. Vale salientar que estou focando minha questão nas letras das canções, sem esquecer entretanto que elas foram escritas para serem acompanhadas de uma melodia, e portanto, para serem cantadas e ouvidas. Vou tratar dessas músicas como produção literária, como poesia, ainda que não pretenda aqui estabelecer nenhum juízo de valor entre letra de música e literatura, nem entrar na discussão se estas canções podem ou não ter um status poético. A obra de Chico Buarque apresenta uma riqueza poética, um refinado trabalho com a palavra que expressa não só a visão de mundo de um artista sensível como antenado com seu tempo.
As músicas de Chico Buarque possuem algumas características. De um lado uma vertente lírica e poética e de outro uma de crítica social. Sua preocupação central é revalorizar a palavra, como um artesão da linguagem. Outra marca do compositor é a importância da narrativa. Suas canções em geral contam histórias ou descrevem cenas
a tragédia para sua obra. É a história do operário que não vê solução nem saída para sua vida dura de trabalho.
Visão esta bastante semelhante a do historiador Sérgio Buarque de Holanda e expressa em Trabalho & Aventura (1984: 13). Sérgio Buarque ao apresentar estes dois tipos sociais presentes no Brasil colonial vai buscar na tipologia de Max Weber(1974) sua inspiração. Weber ao definir o que chama de “ tipos ideais ” não está preocupado com o sentido lógico do termo, nem com a noção de algo que deva ser seguido como modelo exemplar, mas sim com o conceito a ser utilizado como ferramenta metodológica para se entender as relações entre os homens e suas ações.
Voltando a Sérgio Buarque, este define o trabalhador como ” aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar. O esforço lento, pouco compensador e persistente, que, no entanto, mede todas as possibilidades de esperdício e sabe tirar o máximo proveito do insignificante, tem sentido bem nítido para ele. Seu campo visual é naturalmente restrito. A parte maior do que o todo.”
Ao analisar a letra de Cotidiano , por exemplo, em que o marido trabalhador é o narrador que descreve a sua rotina, repetitiva e desgastante, ao mesmo tempo em que pontua seu dia-a-dia com a presença de sua mulher; pode-se notar seu desejo de abandonar esta “vida dura de trabalho”. Entretanto, ele resiste à idéia. ” Todo dia eu só penso em poder parar/meio-dia eu só penso em dizer não/ depois penso na vida pra levar/ e me calo com a boca de feijão .”
O que remete novamente à categoria social do trabalhador de Sérgio Buarque de Holanda(1984:13) e principalmente à sua ética. “ Existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral, positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro - audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem - tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo ”.
É exatamente a divisão entre estas duas éticas que é explicitada em Com açúcar, com afeto. A canção conta a rotina do marido sob o ponto de vista da mulher: “ você diz que é um operário/ vai em busca do salário/ pra poder me sustentar / ”. Entretanto não é a ética do trabalho que ele segue. “ Qual o quê/ no caminho da oficina/ há um bar em cada esquina/ pra você comemorar/ sei lá o quê .”
Tanto as músicas de Chico Buarque quanto o ensaio de Sérgio Buarque sobre as raízes da nossa construção social apresentam uma perspectiva crítica em relação à sociedade brasileira. Se Sérgio Buarque vai buscar em nosso passado colonial predatório com marcas arcaicas como uma sociedade patriarcal e personalista que privilegia a esfera privada em detrimento da esfera pública; Chico Buarque traça um retrato da atualidade brasileira em que os valores individualistas da sociedade capitalista terão grande influência no país, ao mesmo tempo em que o exercício da cidadania em seu sentido mais completo será raro e fugidio.
Ambos estão reforçando na música e ciências sociais – a idéia de ausência de uma ética do trabalho. Esta ausência, se por um lado, pode produzir o aventureiro e o malandro- tipos sociais mais próximos da lógica do prazer e da busca de felicidade -; por outro, aponta também para uma ojeriza ao trabalho, no que este tem de exploração de mão de obra e, portanto, uma recusa de ser “engolido” pelo sistema que lhe oferece uma vida sacrificada e miserável, resquícios de uma sociedade escravista.
O Malandro na praça
Escolhi cinco letras do compositor que trazem o malandro e/ou vagabundo como tema. Malandro quando morre (1965), Partido alto (1972), Vai trabalhar vagabundo (1975), Homenagem ao malandro (1977) e A volta do malandro ( 1985). Um dado interessante a ressaltar é o fato de tanto o trabalhador quanto o malandro não merecerem música alguma na quarta fase, posterior a 1989. Outro ponto a salientar é como Chico Buarque dá um tratamento semelhante ao malandro e ao vagabundo, aparecendo como sinônimos, quando não são. Segundo o Aurélio(1986), vagabundo significa vadio, desocupado e ocioso, enquanto que malandro é o indivíduo esperto, vivo, astuto, que não trabalha e abusa da confiança dos outros.
Todas as cinco canções contam histórias de figuras masculinas sob ângulos distintos. As três que trazem a palavra malandro no título permitem que se trace uma trajetória do malandro buarquiano de 1965 a 1985. Em Malandro quando morre o compositor busca humanizar este personagem, descrevendo a cena de sua morte com o pai e a namorada/mulher chorando, apontando para o universo “relacional” brasileiro nos termos de Da Matta(1987). Este malandro não é anônimo, sem laços afetivos ou sem espaço físico e social. “ Velho chorando/ malandro do morro era seu filho/ (...) Moça chorando/ que o verdadeiro amor sempre é o que morre ”. Não é narrado para o
ambiente “ entre deusas e bofetões/ entre dados e coronéis/ entre parangolés e patrões ” e com seus atos característicos “caminhando na ponta dos pés/ como quem pisa nos corações ”. É o malandro que Da Matta(1981:204) identifica em Pedro Malasartes. “ E o malandro é um ser deslocado das regras formais da estrutura social, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás definido por nós como totalmente avesso ao trabalho e altamente individualizado, seja pelo modo de andar, falar ou vestir-se ”. É possível visualizar o andar do malandro de Chico Buarque, assim como é possível associá-lo ao submundo dos jogos e cabarés. E ao afirmar que “ o malandro é o barão da ralé ” ele reúne aristocracia e marginalidade em um mesmo tipo social. Ralé significando a camada mais baixa da sociedade, a escória.
Esse malandro remete diretamente ao aventureiro de que fala Sérgio Buarque de Holanda(1984:13). Tipo social distinto do trabalhador. “ Para uns, o objeto final, a mira de todo esforço, o ponto de chegada, assume relevância tão capital, que chega a dispensar, por secundários, quase supérfluos, todos os processos intermediários. Seu ideal será colher o fruto sem plantar a árvore.” A mentalidade expressa é a do indivíduo que só se preocupa com os fins e não se interessa pelo trabalho que gastará para realizá-lo. Embora o historiador esteja se referindo aos povos ibéricos no período da colonização e a forma como foram sendo influenciados e formando o que ele denominou “ plasticidade social” ; pode-se prosseguir neste fio condutor para chegar ao Brasil atual onde ainda há espaço para o aventureiro.
Em 1972 Chico Buarque compôs Partido alto , música bastante irreverente, que utiliza uma linguagem extremamente coloquial, - na qual alguns termos foram censurados - onde ironiza a identidade nacional, ridicularizando-a ao exagero. Creio que esta letra aponta para duas referências. De um lado o personagem Leonardo de Memórias de um sargento de milícias e de outro para Macunaíma.
Como o protagonista do romance de Manuel Antônio de Almeida, este “brasileiro” age de acordo com seus impulsos ao sabor do vento e do destino. “ Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio/ dou pernada a três por quatro e nem me despenteio .” Ou seja, ele reage aos laços afetivos, não está imune aos sentimentos, e pressente um destino. É Antonio Cândido(1993:23) quem salienta este aspecto do romance em seu texto “ Dialética da malandragem ”. “ Ele é espontâneo nos atos e estreitamente aderente aos fatos que o vão rolando pela vida. Isto o submete, como a
eles, a uma espécie de causalidade externa, de motivação que vem das circunstâncias e torna o personagem um títere, esvaziado de lastro psicológico e caracterizado apenas pelos solavancos do enredo .” Ainda que o personagem da música de Chico Buarque não seja tão esvaziado psicologicamente, ele está submetido a um destino, mesmo que contrariado e infeliz com este. E o mentor deste destino é Deus a quem ele se refere do início ao fim da canção, o inquirindo de tal escolha, no caso ser brasileiro. “ Deus é um cara gozador, adora brincadeira/ pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro/ mas achou muito engraçado me botar cabreiro/ na barriga da miséria, eu nasci brasileiro .”
Surgem também na canção alguns elementos destacados por Antonio Candido (1993:47) no romance de Manuel Antonio de Almeida como a subversão da ordem e a ausência de culpa que “ criam um universo que parece liberto do peso do erro e do pecado. Um universo sem culpabilidade e mesmo sem repressão, a não ser a repressão exterior.” E o compositor dá voz ao protagonista : “ Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia / Deus me deu muita saudade e muita preguiça / Deus me deu pernas compridas e muita malícia / Pra correr atrás de bola e fugir da polícia / Um dia ainda sou notícia”. Aos poucos, ao longo da estrofe, Chico Buarque vai misturando os ingredientes reconhecidos da nossa identidade como a saudade, a preguiça, a malícia característica do malandro, o amor pelo futebol e o desprezo pela lei. Isso tudo somado ao objetivo de ganhar fama e notoriedade, fugindo do anonimato. Aqui parece inevitável uma associação ainda que rápida com a obra clássica de Mário de Andrade: Macunaíma (1981). A meu ver, há muito do personagem do escritor paulista em Partido alto. O personagem da música se descreve afirmando: “ Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio/ pele e osso simplesmente quase sem recheio ”. Em outra fala que poderia ser atribuída ao anti-herói Macunaíma : “ Jesus Cristo inda me paga, um dia ainda me explica/ como é que pôs no mundo esta pobre titica .”
A última música selecionada - Vai trabalhar vagabundo - traz uma ordem imperativa em seu título, como se mandasse o indivíduo sair dessa vida vadia e ociosa e buscasse trabalho, ao mesmo tempo em que no desenrolar da narrativa ironiza com esta opção. Ridiculariza o trabalho e a rotina do trabalhador que tem necessidade de documentos, de economizar, de enfrentar a fila da previdência, os quais irão sufocá-lo. E o obrigam a largar os prazeres: o jogo e as mulheres. “ Prepara o teu documento/
brasileira. ”. Chico Buarque apresenta em suas canções estes dois tipos sociais com toda carga de poesia e “brasilidade”. Ele não está falando de um trabalhador qualquer, nem de um malandro apátrida, ainda que ambos estejam presentes em inúmeras sociedades. Há uma preocupação em sua obra de localizar este homem e o próprio artista: “ Vou na estrada há muitos anos/ Sou um artista brasileiro. ”
Neste sentido penso que é possível aproximar duas obras de áreas distintas como a história e a música por oferecerem, cada uma delas, a sua leitura do homem brasileiro. O próprio Sérgio Buarque de Holanda (1984:13) salienta um aspecto relevante em relação à construção dessas representações. “ Entre estes dois tipos não há, tanto uma oposição absoluta como uma incompreensão radical. Ambos participam em maior ou menor grau, de múltiplas combinações e é claro que, em estado puro, nem o aventureiro, nem o trabalhador, possuem existência real fora do mundo das idéias. Mas também não há dúvida que os dois conceitos nos ajudam a situar e a melhor ordenar nosso conhecimento dos homens e dos conjuntos sociais. “. Portanto, não importa buscar o contexto em sentido estrito, nem saber se existe um malandro à brasileira como é descrito em suas canções, mas perceber o quanto elas iluminam a realidade.
Penso que a música de Chico Buarque traz em sua poesia inúmeras representações do malandro e do trabalhador. Não há uma oposição rígida entre os dois tipos. Há alguma coisa de malandro no trabalhador, assim como o malandro pode começar a trabalhar. O malandro do compositor é um personagem sedutor e até simpático. Chico não desvaloriza este tipo social, ao contrário sua música mistura o sonho e a fantasia com a dura realidade da vida. Em alguns momentos é como se ele, ao descrever a vida sacrificada e sem esperança do operário de Construção ou mesmo de Pedro Pedreiro , cansado de esperar o músico compreendesse a opção pela malandragem. Malandragem que se mostra com muitos tons e nuances.
Antônio Cândido (1984: XIV) em seu prefácio a Raízes do Brasil , ressalta como marco importante na obra de Sérgio Buarque o “ Jogo dialético”. Os tipos sociais que ele define têm movimento e se completam, não são estáticos, nem devem ser compreendidos como modelos ou estereótipos do brasileiro. O que também pode ser dito sobre os vagabundos, os operários, os malandros e os pedreiros de Chico Buarque. Há um movimento em sua música que se apropria destes tipos para dar a eles uma nova feição. Como bem afirmou Lilia Schwarcz (1995: 60) em seu artigo sobre mestiçagem e
identidade nacional. Ao se referir ao malandro de Chico Buarque a antropóloga afirma que “ é a estrutura que carrega singularidades, mas se altera no e em contexto; que se atualiza sem perder certas persistências.” É o malandro na praça outra vez.
O malandro protagonista de Memórias de um sargento de milícias que A. Cândido”(1993: 53) elege como marco da brasilidade - elogiando essa brasilidade e seu caráter nacional - é idealizado, sem dúvida. “ Na limpidez transparente do seu universo sem culpa, entrevemos o contorno de uma terra sem males definitivos ou irremediáveis , regida por uma encantadora neutralidade moral. “. Perspectiva esta bem diversa da de Sérgio Buarque que considera a influência do aventureiro, do gosto pela aventura responsável pelas nossas fraquezas, pela cultura da personalidade, pela “ tibieza de nossas formas de organização” , pela repulsa ao trabalho e ausência de hierarquia. O historiador está interessado em analisar quais as consequências da presença e influência do aventureiro. A seu ver, ele deixou marcas profundas na sociedade brasileira que vai se constituir dando ênfase na idéia de integração e com o predomínio de uma cultura personalista, na qual o espaço público não é valorizado e a ética do trabalho é desprezada. Produzindo uma pátria formada por malandros, pedreiros, barões da ralé, vagabundos e operários cuja originalidade e dinâmica cultural precisam continuar a ser discutidas. E cantadas... “A nossa pátria mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações / Seus filhos erravam cegos pelo continente / Levavam pedras feito penitentes / Erguendo catedrais /.”
i (^) Este artigo foi elaborado inicialmente como trabalho de final de curso da disciplina Estrutura Social do Brasil, ministrada pelo Prof. Gilberto Velho,no PPGAS do Museu Nacional em 1999. 2 Estimulado por seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, Chico leu na adolescência Balzac, Camus, Stendhal, Flaubert, Gide, Sartre, Tolstói e Dostoiévski (Holanda: 1989: 19)
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ABSTRACT: The present article is na attempt to analyse the role of two characters, the worker and the scoundrel in the songs of Brazilian popular musician Chico Buarque de Holanda based on Sérgio Buarque de Holanda`s classic work “Raízes do Brasil”. We aim to discuss whether it is possible to establish a relationship between the male figures in the songs of Chico Buarque and the concepts of the “cordial man”, the “worker” and the “adventurer” created by historian Sérgio Buarque de Holanda. By doing so, we intend to discuss in which way these two categories – the worker and the scoundrel, the last one a constant presence both in Brazilian literatura and in popular music – help in building a national identity.
Uniterms : worker, scoundrel, music, national identity
Isabel Travancas – é jornalista, mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional- UFRJ e doutora em Literatura Comparada pela UERJ. É autora dos livros: O Mundo dos Jornalistas e O livro no jornal , respectivamente sua dissertação de mestrado e tese de doutorado. Atualmente é professora no Departamento de Antropologia Cultural do IFCS-UFRJ e da Universidade Estácio de Sá.