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A Fotocópia na Universidade: Práticas de Leitura, Resumos de Cultura

Este texto discute a evolução da prática de leitura na universidade, passando de uma leitura coletiva e social, com empréstimos e circulação de livros, para uma leitura individualizada e centrada em textos selecionados pelos professores, reproduzidos por meio de máquinas de fotocópia. O documento oferece testemunhos históricos sobre a introdução da fotocópia como recurso pedagógico na universidade, sua importância na democratização do ensino e na transformação das relações entre professores e estudantes.

Tipologia: Resumos

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Carioca85
Carioca85 🇧🇷

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ISSN 0214-736X 185 Studia ZamorenSia, Vol. XIV, 2015
O texto e a fotocópia como instituição pedagógica:
práticas de leitura na universidade
Text and photocopy as educational institution:
reading practice at the university
Andréa Cristina Pavão bayma
Instituto de Educação de Angra dos Reis
Universidade Federal Fluminense
reSumo
Este artigo é um ensaio etnográfico longitudinal acerca dos usos da fotocópia como suporte de leitura
no espaço universitário em contexto de expansão do ensino superior no Brasil e o ingresso de estudan-
tes pouco familiarizados com a cultura escrita. Entende-se a reprodução de fragmentos para uso didáti-
co como instituição, nos termos de Malinowski. Através de estudo de campo, investigamos o papel das
oficinas de fotocópias dos campi de três universidades brasileiras. A partir de uma breve reflexão sobre
a leitura na era da reprodutibilidade técnica e do levantamento histórico da reprodução de textos para
fins didáticos no ensino superior, compreende-se que o uso de fragmentos relaciona-se com a prática
pedagógica de seminários e se mantém, independente da tecnologia de reprodução empregada. Con-
clui-se que esta instituição favorece a democratização do acesso ao conhecimento, mas requer que os
professores sejam leitores experientes e os estudantes autônomos, para que a aprendizagem seja efetiva.
PaLavraS CHave: Fotocópia, leitura, universidade.
reSumen
Este artículo responde a un ensayo etnográfico longitudinal sobre los usos de la fotocopia como so-
porte de lectura en la universidad en el contexto de la expansión de la enseñanza superior en Brasil y
en el acceso a ésta por parte de estudiantes poco familiarizados con la cultura escrita. Para ello se parte
de la definición de la reproducción fotocopiada de fragmentos de textos para uso didáctico como una
institución en los términos en la que ésta fue definida por Malinowski. El trabajo de campo investigó
el papel de las copisterías de los campus de tres universidades brasileñas. A partir de una breve reflexión
sobre la lectura en la era de la reproductibilidad técnica y del momento histórico de reproducción
de textos con fines didácticos en el ámbito universitario se constata que, independientemente de la
tecnología de reproducción empleada, el uso de fragmentos se mantiene vinculado a la práctica pe-
dagógica de los seminarios. Se concluye que esta institución favorece la democratización del acceso al
conocimiento, pero esto requiere que para que el aprendizaje sea efectivo los profesores sean lectores
expertos y los estudiantes autónomos.
PaLabraS CLave: Fotocopia, lectura, universidad.
abStraCt
This article is an ethnographic essay on photocopy uses as reading base at the academic environmen-
tal, in a context of higher education expansion at Brazil and the increase of admissions of students
less familiar with the written culture. The reproduction of fragments to didactic uses is understood as
institution, by Malinowski terms. The roles of photocopy workshops at the campi of three Brazilian
Universities were investigate through the field study. On this base and by a reflection on reading in
the era of mechanical reproduction and on history of this practice, it is understandable that the use
of fragments is related to seminars as pedagogical practice that is still remaining in an independent
way of technology. It is concluded that this institution is beneficial to a more democratic access to
knowledge. However it requires experts reading teachers and autonomous students to a more effective
learning process.
KeywordS: Photocopy, reading, university.
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ISSN 0214-736X 185 Studia ZamorenSia, Vol. XIV, 2015

O texto e a fotocópia como instituição pedagógica:

práticas de leitura na universidade

Text and photocopy as educational institution:

reading practice at the university

Andréa Cristina Pavão bayma

Instituto de Educação de Angra dos Reis Universidade Federal Fluminense

reSumo Este artigo é um ensaio etnográfico longitudinal acerca dos usos da fotocópia como suporte de leitura no espaço universitário em contexto de expansão do ensino superior no Brasil e o ingresso de estudan- tes pouco familiarizados com a cultura escrita. Entende-se a reprodução de fragmentos para uso didáti- co como instituição , nos termos de Malinowski. Através de estudo de campo, investigamos o papel das oficinas de fotocópias dos campi de três universidades brasileiras. A partir de uma breve reflexão sobre a leitura na era da reprodutibilidade técnica e do levantamento histórico da reprodução de textos para fins didáticos no ensino superior, compreende-se que o uso de fragmentos relaciona-se com a prática pedagógica de seminários e se mantém, independente da tecnologia de reprodução empregada. Con- clui-se que esta instituição favorece a democratização do acesso ao conhecimento, mas requer que os professores sejam leitores experientes e os estudantes autônomos, para que a aprendizagem seja efetiva.

P aLavraS CHave: Fotocópia, leitura, universidade.

reSumen Este artículo responde a un ensayo etnográfico longitudinal sobre los usos de la fotocopia como so- porte de lectura en la universidad en el contexto de la expansión de la enseñanza superior en Brasil y en el acceso a ésta por parte de estudiantes poco familiarizados con la cultura escrita. Para ello se parte de la definición de la reproducción fotocopiada de fragmentos de textos para uso didáctico como una institución en los términos en la que ésta fue definida por Malinowski. El trabajo de campo investigó el papel de las copisterías de los campus de tres universidades brasileñas. A partir de una breve reflexión sobre la lectura en la era de la reproductibilidad técnica y del momento histórico de reproducción de textos con fines didácticos en el ámbito universitario se constata que, independientemente de la tecnología de reproducción empleada, el uso de fragmentos se mantiene vinculado a la práctica pe- dagógica de los seminarios. Se concluye que esta institución favorece la democratización del acceso al conocimiento, pero esto requiere que para que el aprendizaje sea efectivo los profesores sean lectores expertos y los estudiantes autónomos.

P aLabraS CLave: Fotocopia, lectura, universidad.

abStraCt This article is an ethnographic essay on photocopy uses as reading base at the academic environmen- tal, in a context of higher education expansion at Brazil and the increase of admissions of students less familiar with the written culture. The reproduction of fragments to didactic uses is understood as institution, by Malinowski terms. The roles of photocopy workshops at the campi of three Brazilian Universities were investigate through the field study. On this base and by a reflection on reading in the era of mechanical reproduction and on history of this practice, it is understandable that the use of fragments is related to seminars as pedagogical practice that is still remaining in an independent way of technology. It is concluded that this institution is beneficial to a more democratic access to knowledge. However it requires experts reading teachers and autonomous students to a more effective learning process.

KeywordS: Photocopy, reading, university.

Andréa Cristina Pavão Bayma

Studia ZamorenSia, Vol. XIV, 2015 186 ISSN 0214-736X

introdução: a Leitura na era de Sua reProdutibiLidade téCniCa

Aqueles que insinuaram que Menard dedicou sua vida a escrever um Quixote contemporâneo caluniam sua límpida memória. Não queria compor outro Quixote –o que é fácil– mas o Quixote. Inútil acrescer que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se propunha co- piá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem –palavra por palavra e linha por linha– com as de Miguel de Cervantes. (Borges , Pierre Menard, Autor do Quixote, p. 32-33)

A intrigante epígrafe que abre este ensaio nos propõe uma reflexão a respeito da cópia. É possível lançar sobre prática tão criticada, «politicamente incorreta», sob o ponto de vista ético e sob o olhar das chamadas pedagogias críticas, uma perspectiva positiva? O personagem de Borges que, ao morrer, deixa entre uma extensa e surreal obra, a sua obra «interminavelmente heroica», «ímpar», «inconclusa» (fragmentos do clássico Dom Quixote de Cervantes), convence-nos de que tal empresa constitui «uma técnica nova, a arte retardada e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas^1 ». Ao «copiar» fragmentos da obra de Cervantes, não sendo Cervantes, desafiava-se Menard a revisitar Quixote com olhos contemporâneos e, apesar do total anacronismo, reafirmá-lo, reins- crevê-lo, relê-lo, de tal forma que o «Quixote» final possa ser compreendido como «uma espécie de palimpsesto, no qual devemos transluzir os rastos da prévia escritura^2 ». Temos, portanto, na cópia, uma metáfora da leitura, uma vez que, ao copiá-lo letra por letra, Menard relê Cervantes mais do que o reescreve. Podemos ainda inferir que, ao reescrever, estamos, de fato, lendo de uma forma muito especial, a partir do ponto de vista de quem escreve, do lugar do autor. Em uma de suas conhecidas cartas ao jovem aspirante a poeta, Rilke comenta ter copiado um soneto de Kappus, acrescentando o seguinte comentário: «venho agora oferecer-lhe esta cópia, porque sei como é importante e cheio de novas experiências rever um trabalho próprio copiado pela mão de outrem. Leia os versos como se fossem de outra pessoa e no fundo da alma há de sentir como são seus 3 ». Apesar das distâncias entre um autor e outro, parece fecundo fazermos uma aproximação entre a reescrita de Menard e a cópia de Rilke. Ambos empenham-se em ler, reler e dar a ler, em franca disposição de se colocar no lugar do autor, ao ponto mesmo de confundir-se com ele. Neste jogo entre o original e a cópia, no qual a cópia atualiza e se identifica com o original, a reflexão de Benjamin^4 a respeito dos efeitos da reprodutibilidade técnica sobre a obra de arte pode ser especialmente oportuna para o nosso objeto em particular: o uso das fotocópias no espaço universitário. Segundo o autor, a obra de arte sempre foi objeto de reprodução, mas a moderni- dade introduziu técnicas, como a imprensa e a litogravura, capazes de otimizar esta possibilidade. Embora Benjamin não tenha tratado especificamente da reprodução de textos, pensemos no ad- vento da imprensa na difusão do livro como obra prima. Benjamin diria que um manuscrito, por exemplo, teria valor aurático , enquanto sua reprodução adquire valor de exposição. E é fácil, por exemplo, imaginar a aura do manuscrito original de Quixote, tanto quanto prever a capacidade em encontrar leitores de sua cópia impressa, tão menos elaborada seja sua edição. Segundo o filósofo, aura seria «uma figura singular, composta de elementos espaciais e tempo- rais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja^5 ». A aura é este caráter único e a relação ao contexto da tradição com o qual se relaciona. E é da relação da obra com seu contexto que surge a ideia de culto. É conhecida, na história da leitura, a demonização das primeiras reproduções da Bíblia, por exemplo. Em plena reforma protestante, ler a palavra de

(^1) borGeS, Jorge Luis. «Pierre Menard, autor do Quixote». Em Ficções. Tradução Carlos Nejar. 5.ª ed. São Paulo: Globo, 1989, p. 38. (^2) Ibidem. (^3) riLKe, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. 19.ª ed. São Paulo: Globo, p. 54. (^4) benJamin, Walter. «A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica». Em: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (^5) Ob. cit, p. 170.

Andréa Cristina Pavão Bayma

Studia ZamorenSia, Vol. XIV, 2015 188 ISSN 0214-736X

UFB, onde pude colher informações adicionais em especial sobre o impacto das novas tecnolo- gias. Informações muito relevantes foram obtidas durante a observação participante no cotidiano destas três universidades enquanto lecionava, através de depoimentos espontâneos de centenas de estudantes ao longo destes anos de imersão no campo. Após a coleta sistemática de informações por alguns anos, pode-se dizer que se chegou ao conhecido «ponto de saturação», quando a obser- vação deixa de nos trazer dados novos. Na educação brasileira, há um forte dualismo. As escolas de educação básica pública, em sua maioria, têm qualidade bastante precária. As famílias de classe média e alta, portanto, buscam distinção através de instituições privadas que oferecem ensino capaz de reproduzir ou superar sua posição social. No ensino superior, esta relação tende a se inverter, sendo as instituições públicas de melhor qualidade do que as privadas. Assim, as vagas nestas universidades são muito disputadas e, perversamente, são os estudantes do sistema privado quem as ocupam, majoritariamente. Tam- bém se observa dualismo no interior das universidades públicas, entre os cursos de maior prestígio e aqueles cujas profissões são menos valorizadas. Políticas de ação afirmativa recentes, contudo, têm criado mecanismos variados para reverter esta situação. É neste contexto de expansão e de- mocratização de acesso ao ensino superior que se desenvolve esta pesquisa. A opção pelo estudo nos cursos de Pedagogia se dá, entre outras razões, por ser um dos cursos menos prestigiados e, por este motivo, concentrar maior porcentagem de estudantes de camadas populares com pouca familiaridade com a cultura escrita e dificuldade de aquisição de material escrito. A UCB é uma universidade privada de excelência acadêmica situada em um dos bairros com maior Índice de Desenvolvimento Humano da cidade do Rio de Janeiro. Fundada em 1941, oferece 52 cursos de graduação. Apesar do elevado custo de suas mensalidades, por ser filantrópi- ca, sempre reservou parte de suas vagas a estudantes de baixo poder aquisitivo, através de bolsas sociais. A partir de 1994, firmou um convênio com um pré-vestibular comunitário e o perfil de seus estudantes tornou-se ainda mais heterogêneo, recebendo, em especial nos cursos das Ciên- cias Humanas, estudantes negros, oriundos das camadas populares que, por receberem bolsas de estudos, são chamados de «bolsistas» pelos nativos. Foram observadas as principais oficinas de fotocópias da universidade durante o trabalho de campo, entre 2000 e 2004. As entrevistas em profundidade foram realizadas com estudantes do curso de Pedagogia, além da dona de uma oficina de fotocópias. A UPB é uma universidade pública estadual. Fundada em 1950, oferece 44 cursos de gra- duação. Trata-se também de uma universidade de excelência acadêmica, com a diferença de, por ser gratuita, atender a um público predominantemente de classes médias e populares. Através da Lei Estadual 4151/2003, estabeleceu cotas para ingresso de estudantes carentes com vistas à re- dução de desigualdades étnicas, sociais e econômicas. Entre os nativos, estes estudantes são deno- minados «cotistas». Foram observadas as oficinas de fotocópias do curso de Pedagogia. Com seus alunos foram realizadas entrevistas semi estruturadas, além de um survey. O trabalho de campo nesta universidade também se deu entre os anos de 2000 e 2004. A UFB é uma universidade pública federal. Fundada em 1960, oferece 136 cursos de gra- duação. A partir do «Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universi- dades Federais» (Reuni), instituído em 2007, se dá a criação de campi fora dos grandes centros urbanos, com o objetivo de democratizar o acesso ao ensino superior em um país de dimensões continentais. A UFB foi responsável pela maior expansão entre as universidades federais do Brasil. O trabalho de campo se desenvolveu entre 2009 e 2015 em uma pequena unidade no interior do estado do Rio de Janeiro, criada em 1992 e que, atualmente, oferece três cursos, atendendo a um número reduzido de estudantes, em sua maioria de origem popular. No modesto prédio deste campus não há uma única oficina de fotocópias. Um comerciante local, cuja loja situa-se em frente à universidade, aproveitando a demanda dos estudantes, adquiriu máquinas de reprodução e pas- sou a oferecer serviço de fotocópias com pastas de textos dos professores. Também aí se realizou observação participante. Foram entrevistados os estudantes do curso de Pedagogia desta unidade da UFB.

O texto e a fotocópia como instituição pedagógica: práticas de leitura na universidade

ISSN 0214-736X 189 Studia ZamorenSia, Vol. XIV, 2015

  1. breve HiStória da FotoCóPia na uCb

Por familiaridade, tive acesso a um informante que tem uma longa trajetória dentro desta universidade, tendo ali se graduado e iniciado sua carreira acadêmica. Indagado sobre a história das fotocopiadoras nesta instituição, o professor Alberto^9 diz lembrar-se muito bem da chegada da primeira máquina. No começo da década de 70, junto aos diretórios acadêmicos 10 , um livreiro que possuía uma modesta loja no centro histórico da cidade, abrira um pequeno ponto de venda de livros no diretório acadêmico da faculdade de Engenharia. Os títulos oferecidos concentravam- -se, pois, nesta área de conhecimento. Este livreiro era então conhecido como «Seu Silva» e teria dado origem, segundo o professor Alberto, a toda a linhagem de oficinas de fotocópias da univer- sidade dos diretórios acadêmicos. Decidi, portanto, buscar um informante de uma das oficinas mais requisitadas no campus, conhecida como « Xerox das Meninas^11 » com intuito de compreender melhor este processo. A responsável por esta oficina de fotocópias, Dona Marta, vem a ser a viúva de Seu Silva, e fez graduação em História nesta mesma universidade, nos anos 1970, sendo, assim, testemunha viva destas transições quanto ao acesso aos textos, tanto na situação de estudante, quanto na de organizadora de pastas de textos em seu negócio^12. Segundo Dona Marta, quando Seu Silva instalou seu ponto de venda exclusiva de livros, as má- quinas de fotocópias eram muito caras. Em meados dos anos 70, porém, «os militares iniciam uma política de importações». As primeiras fotocopiadoras importadas foram adquiridas por cartórios e prestavam-se, fundamentalmente, à reprodução de documentos e posterior autenticação. Nesta época, as máquinas eram caras, mas as cópias eram relativamente mais baratas, porque o preço do papel ainda não havia disparado, o que encarece muito o valor das reproduções nos dias de hoje^13. A primeira máquina que Seu Silva adquiriu foi uma «Delta», marca americana, e o uso mais frequente desta máquina pelos estudantes da universidade era a cópia de cadernos. Os depar- tamentos também encomendavam reproduções, normalmente de material burocrático: ofícios, fichas de inscrição de estudantes, etc. Além destes documentos, àquela época, havia uma grande procura por parte dos diretórios acadêmicos para reprodução de seus programas, panfletos, con- vocações para assembleias e afins. Depois da «Delta», começaram a ser importadas as primeiras «Nashua». Depois veio a «Ca- non» e «tantas outras multinacionais que começaram a invadir o mercado brasileiro». A última empresa a entrar no mercado brasileiro foi a «Xerox» que, no início, «era muito reservada». Mais tarde conquistou a maior fatia de participação no mercado, a ponto de tornar-se símbolo absoluto de fotocópia no Brasil, mesmo quando a máquina com a qual se faz a reprodução não seja uma Xerox.

(^9) A fim de proteger a privacidade dos entrevistados, optei pelo uso de nomes fictícios. (^10) Entidade estudantil que representa os alunos de um curso de graduação. Na UCB, há uma vila de casas para os diretórios, onde os estudantes se reúnem. A vila se localiza em uma área baixa do terreno da UCB. Na parte alta, há um amplo pátio sobre o qual se erguem os edifícios mais antigos do campus , sustentados por imponentes pilotis. Este espaço é comumente chamado, em termos nativos, por «pilotis» e, sendo lugar de grande circulação e encontro dos estudantes, tornou-se símbolo da própria universidade, especialmente por ter sido palco, em 1968, de manifestações estudantis contra a ditadura miliar. (^11) Categoria nativa. No Brasil, observa-se o largo uso da metonímia, através da qual, as fotocópias são identificadas com a marca que se tornou mais popular na reprodução de documentos, a Xerox do Brasil. Tanto as fotocópias como as lojas de fotocópias são denominadas pelos nativos por «xerox». Diz-se, por exemplo: «vou tirar xerox dos textos da aula de Fulano e depois te encontro no cafezinho », ou ainda: «fui na «Xerox das Meninas» , mas o texto não estava na pasta». (^12) Importante salientar que este encontro foi muito proveitoso, uma vez que Dona Marta é uma profissional re- flexiva, disposta e apaixonada por análises históricas e problematizações, em função de sua própria formação. Por tudo, considero Dona Marta uma «informante DOC», nos termos de William F oote-wHyte («Treinando a observação participante». Em GuimarãeS, Alba Zaluar (org.). Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980), ou seja; «indivíduo-chave», «colaborador privilegiado da pesquisa». (^13) A falta de uma política de democratização do acesso ao livro no Brasil é uma das responsáveis pelos altos custos do papel. Em países como a Colômbia, por exemplo, graças a políticas de incentivos fiscais, a edição de livros é consi- deravelmente menos custosa do que aqui.

O texto e a fotocópia como instituição pedagógica: práticas de leitura na universidade

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Interessante notarmos também que, ao comentar esta passagem das visitas dos professores, Dona Marta deixa transparecer sentimentos de orgulho e contentamento, como se a fotocópia, através da apropriação dos «ilustres professores», adquirisse maior prestígio. Dos diretórios acadê- micos, as fotocopiadoras sobem para os «pilotis» da universidade, ocupando espaço de destaque na vida acadêmica. O negócio se expande e novos comerciantes dividem o mercado. No final da década de 1970, o escaninho com as seis divisórias se tornara completamente in- suficiente para a intensa circulação de textos na loja (categoria nativa). Foram eles próprios, Dona Marta e Seu Silva, que decidiram organizar os textos nas pastas. Dona Marta elenca alguns fatores para justificar o incremento do uso das fotocópias entre os universitários a partir do final da década de 1970, dando ênfase àquilo que chama de massificação do ensino , ou seja, o resultado de uma política de ampliação do acesso da população à educação, observando o pressuposto da quantidade , em detrimento da qualidade. Segundo ela, a elevação do número de estudantes por sala de aula –o que em sua época de estudante não ultrapassava o nú- mero de 20– teve consequências diretas sobre a circulação de textos. Em primeiro lugar, a biblio- teca não dava conta desta demanda inflacionada. Além disso, o poder aquisitivo dos estudantes cai severamente com a crise econômica, bem como com a ampliação de acesso à universidade das camadas médias e baixas. Não apenas o poder aquisitivo diminui, como o mercado editorial no Brasil, segundo comentários de Dona Marta, mantém os preços dos livros em níveis proibitivos. Dona Marta acrescenta à sua análise, o fato de a importação de livros ainda ser muito onerosa à época. Além destes fatores, minha informante aponta a criação do sistema de créditos^14 que, segundo ela, foi «uma invenção do regime militar para desmobilizar os estudantes, que dificultou a troca de ideias e de experiências». Mais do que isso, a implantação do sistema de créditos, acrescido da massificação do ensino, ou seja, do aumento do número de estudantes em sala de aula, contribuiu, sustenta ela, fortemente para enfraquecer a estreita rede de relações que se estabelecia entre estu- dantes e professores na socialização de livros. Seguindo sua linha de raciocínio, se poderia dizer, então, que há um aumento do anonimato e do individualismo no universo acadêmico: «Por essa época, os professores foram deixando de dis- ponibilizar seus livros, porque os estudantes não devolviam e não havia mais como encontrá-los». A reprodução dos livros através das fotocópias torna os textos disponíveis ao uso particular, de modo que a leitura, na universidade, passa a relacionar-se ao ato de copiar. O livro deixa de ser um produto de massa e a fotocópia ocupa o lugar que o livro tivera ao lado dos manuscritos frente ao advento da imprensa de tipos móveis. Com a democratização do ensino, parece que, segundo este relato, aquilo que Chartier 15 cha- mou de comunidades de leitores , ou seja, redes de socialização de práticas de leitura, é abalado (ao menos nos moldes que se conhecia); diminuem-se os empréstimos e circulação de livros entre es- tudantes e entre estudantes e professores, tornando-se a leitura mais individualizada, o que é mais um dos fatores que favorece o incremento da utilização das fotocópias como recurso pedagógico, ainda segundo as análises de Dona Marta. As reflexões de Dona Marta sobre o surgimento das pastas de professores vão além da simples relação de causalidade com o aparecimento do recurso técnico. Este recurso poderia ter sido apro- priado por outras práticas, mas havia, no espaço universitário e, sobretudo na cena pedagógica de sala de aula, diversos elementos, conforme destacou, que contribuíram, em uma relação de reciprocidade com o recurso técnico, para o fortalecimento desta prática até adquirir valor social no meio acadêmico.

(^14) O sistema de créditos no ensino superior foi implementado pela Lei 5540/68 e permite que cada aluno construa o seu plano de estudos, de acordo com seus interesses e condições. Através deste sistema de organização, perde-se a ideia de turma como unidade ao longo de todo o curso, na medida em que as matrículas são individuais e por disciplina. (^15) CHartier, Roger. A ordem dos livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Tra- dução de Mary del Priori. Brasília: Editora UnB, 1999.

Andréa Cristina Pavão Bayma

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Em seu relato, em 2002, Dona Marta também abordou a questão da cobrança da observação da lei que garante os direitos autorais, proibindo a reprodução de um grande número do total de páginas de uma obra. Desde 1998, disse ela, «as editoras começaram a controlar e exigir o cumpri- mento da lei de proteção dos direitos autorais que já existia há mais tempo. A própria universidade condicionou a permanência das copiadoras no campus à assinatura de um termo de compromisso em não exceder a cota de 15% do número total de páginas de um volume». Além do termo de compromisso que assumiram com a universidade, Dona Marta recebia, à época, visitas de um inspetor, em nome da associação dos editores. Com estas mudanças, o prejuízo foi repassado aos estudantes que passaram a pagar mais caro pelas fotocópias, cujo custo torna-se especialmente pesado aos estudantes bolsistas.

  1. a reProdução Como inStituição PedaGóGiCa: daS PeCie medievaiS aoS textoS

Tomamos, aqui, o conceito de instituição cunhado por Malinowski 16 para compreender o Kula , como um sistema de valores tal como era concebido pela comunidade melanésia. Importa compreender, no nosso caso, assim como o sistema de trocas do Kula , as normas e regras que cons- tituem esta prática pedagógica da reprodução de textos para uso didático, compreender esta práti- ca como uma projeção parcial da totalidade da cultura e não como um de seus aspectos ou partes. Esta instituição envolve, fundamentalmente, três atores: os professores que disponibilizam os textos, os estudantes que os adquirem e os copistas^17. Os copistas são elemento chave na constitui- ção desta instituição, uma vez que atuam como mediadores entre professores e estudantes. Copista é também como eram chamados os monges responsáveis pela circulação da cultura escrita através da reprodução manual dos textos na idade média. Apesar de serem diretamente responsáveis pelo acesso aos textos sagrados, os copistas medievais pouco se envolviam subjetiva- mente com o material que reproduziam, até porque o modo de produção não o permitia. Sabe-se que a maioria dos monges copistas sequer conhecia o alfabeto, sendo, portanto, tecnicamente incapazes de ler o que copiavam. Além disso, para se garantir o segredo dos livros, não lhes era dado acesso aos textos integrais, incumbindo-se uns de copiar páginas pares e outros as ímpares. Castillo 18 chama atenção sobre a relação entre as práticas de leitura e seu suporte, por ocasião do surgimento das universidades medievais, havendo um deslocamento da leitura secular à leitura escolástica universitária. Segundo o autor, a leitura para fins de estudo reordenou a estrutura dos textos e sua forma de reprodução. Há um paralelo interessante entre a análise de minha infor- mante e os comentários de Castillo 19 sobre a evolução do sistema de ensino na idade média e sua relação com a reprodução de manuscritos. Segundo o autor, em um primeiro momento, as aulas eram predominantemente expositivas e os estudantes copiavam literalmente o que diziam seus mestres. Semelhante ao que descreveu Dona Marta, os melhores cadernos eram disponibilizados para serem copiados por outros estudantes. Prática que ainda se observa nos dias de hoje, espe- cialmente na educação básica. Posteriormente, ensina Castillo, adota-se um método de ensino…

«baseado na discussão em torno das obras e autores programados ao longo do curso, daí a função central desempenhada pelo livro como instrumento de trabalho e, em consequência, pela leitura. Esta deixou de ser ato através do qual se obtinha o alimento espiritual depositado nos escritos bí- blicos, como havia sido norma comum na alta Idade Média, e se converteu em uma experiência de conhecimento… [No interior desta racionalidade pedagógica, os professores universitários]

(^16) maLinowSKi, Bronislaw. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976. (^17) Categoria nativa: os copistas , segundo terminologia da informante, formam uma classe organizada, tendo, in- clusive, um sindicato próprio. São considerados copistas todos os operadores de fotocopiadoras. (^18) C aStiLLo GómeZ, Antonio. «En el viñedo del texto. Libro y lectura en la universidad medieval». Cuadernos del Instituto Antonio de Nebrija. 2002, 5, pp. 223-252. http://hdl.handle.net/10016/1029. Consultado em 04/10/2015. (^19) Ob. cit.

Andréa Cristina Pavão Bayma

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propício», inclusive «a coqueluche dos seminários», onde a informante realça diversos aspectos que, em conjunto, contribuem para o enfraquecimento das redes de relações entre professores e estu- dantes que formavam comunidades de leitores, espaços de socialização e empréstimos mútuos, associados às novas possibilidades técnicas. De modo geral, pode-se dizer que o espaço de uma loja de xerox destina-se ao acesso de textos , eleitos por professores e orientados para o uso pedagógico, para preparação de um seminário, para avaliação de leitura. As pastas , formadas por textos eleitos por professores, aproximar-se-iam das apostilas, das antigas antologias, das coletâneas, dos exemplares de pecie medievais, assim como dos próprios livros didáticos, orientando a prática pedagógica. Contemporaneamente, como veremos mais adiante, também se tem o problema das «cópias corrompidas», mas, segundo meus informantes, poucos professores controlam suas pastas e as matrizes deixadas com os copistas contemporâneos. Estes, por sua vez, normalmente têm pouca atenção ao conteúdo do que estão copiando. A respeito do possível interesse sobre o vasto e diversificado material que reproduz cotidiana- mente, se deu o seguinte diálogo com o copista de uma das lojas de reprodução da UPB:

«Sabe que eu nunca tinha pensado nisso… Esse é o meu trabalho, só isso. Mas já aconteceu de você ficar curioso sobre algum material em particular e querer lê-lo? Raramente, não dá nem muito tempo. Às vezes, eu dou uma olhadinha nos intervalos, entre um trabalho e outro. Nem jornal, que eu compro pra ler, eu consigo ler! Só no final do dia. É muito movimento».

No campus de interior da UFB, a situação é distinta. Por atender a um número muito re- duzido de estudantes, o contato do copista com os estudantes é muito estreito e, por ser muito «curioso», em seus próprios ter- mos, sempre que o movimento diminui, aproveita para ler um texto ou outro. Assim, ele passou a assumir outras tarefas como co- mentar os conteúdos dos textos e até orientar os estudantes sobre a programação dos cursos. Muito falador, gosta de conversar com os professores, é amigo pessoal de muitos alunos e é recorrente- mente homenageado nas cerimô- nias de formatura. Este copista desenvolve uma relação bastante paternalista com os estudantes facilitando o pagamento a prazo. Sabe-se, inclusive que muitos estudantes chegam a se formar sem honrar suas dívidas com este copista filantropo. Uma das alunas chegou a postar uma foto em seu Facebook , na qual podemos visualizar o interior da loja do comerciante com as pastas dos professores ao fundo. Em primeiro plano, a estudante, abraçada pelo copista, exibe o diploma recém conquistado. A postagem desta fotografia é muito significativa e expressa o reconhecimento que o copista tem para os estudantes em sua trajetória de formação. Uma entrevistada da UPB comentou que é muito importante manter boa relação com os copistas. Em horários de pico, nos intervalos das aulas, estudantes mais assíduos e mais próximos podem receber tratamento especial na execução de suas encomendas. Como vimos, a reprodução de trechos de livros para fins de estudo, responsável pela circu- lação de textos (ou pecie , nas universidades medievais) entre os estudantes, envolve professores e copistas, e funciona, atualmente, de forma semelhante à medieval: o professor seleciona uma

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bibliografia para a sua disciplina, separa os originais e cria uma pasta em uma oficina de fotocópia; no começo do semestre letivo, os professores costumam apresentar o programa do curso com a referida bibliografia, indicando em qual oficina se encontra a sua pasta. Ao longo do curso, os estudantes vão às copiadoras reproduzir os textos deixados pelos professores. Os textos como já foram descritos, são a unidade base de circulação do conhecimento no ensino superior. Segundo observações e entrevistas, há algumas regras básicas nesta instituição. Não levar a có- pia original da pasta é uma delas. Não é bem visto o professor que seleciona textos muito longos. O tamanho aceitável é de, no máximo vinte páginas, entre os estudantes de pedagogia. Espera-se que o professor visite sua pasta de tempos em tempos para ordená-la, o que pode ser tarefa trans- ferida ao monitor da disciplina. Este é o nosso kula : uma prática institucionalizada, cujas normas e regras descreveremos mais detalhadamente nas seções que se seguem.

  1. S obre oS uSuárioS daS oFiCinaS de FotoCóPia

Quanto aos usuários da loja , Dona Marta relatou que há muitas diferenças entre calouros e veteranos , entre o pessoal da graduação e da pós , em seus próprios termos: «Muitos calouros vem à loja sem saber qual texto precisam copiar para próxima aula e vêm se informar com a gente». Quanto à prática de copiar de uma só vez, no início do período, todos os textos disponíveis na pasta e encadernar, esta parece, segundo ela, uma medida mais recorrente entre os estudantes dos primeiros períodos:

«Talvez por sua inexperiência e falta de familiaridade ainda com a cultura da universidade… eles não conhecem como funciona a coisa (esta instituição). Eles vão com muita sede ao pote. Muitos vêm para universidade ainda impregnados da lógica da escola onde há mais tutela dos professores. Já tive notícia, através de uma professora, que um estudante recém-chegado à uni- versidade, no começo do período, lhe pediu a lista de material para dar para sua mãe comprar!»

Poucos trazem livros para copiar. Em geral, restringem-se às leituras orientadas pelos profes- sores e selecionadas na pasta. Segundo o ponto de vista de Dona Marta, uma maior autonomia começa a ser percebida entre os estudantes de pós-graduação: «mesmo em relação ao material das pastas, o estudante da pós, muitas vezes, faz suas próprias decisões, abre a pasta, analisa e escolhe o que quer, decidindo, muitas vezes, não fazer cópias de certos textos argumentando que não tem grande interesse para seu projeto, por exemplo. O uso das pastas pelos estudantes de graduação e, sobretudo, pelos calouros, é menos crítica. Eles têm menos autonomia e seguem religiosamente as orientações do professor. Quando não encontram o texto que deveria estar na pasta, também não se incomodam e nem se mexem para procurar na biblioteca ou em outras fontes, já têm a descul- pa para ler um texto a menos… eles encolhem os ombros e dizem: «ah, não tem… o quê que eu posso fazer? Não posso ler!». Outro exemplo é de uma estudante que, ao cruzar com seu profes- sor pelos pilotis, o aborda dizendo: «Professor… já tirei a cópia do texto…» Ao que o professor responde um pouco surpreso: «Muito bem!» e escuta, perplexo, a réplica da aluna: «É pra ler?». Dona Marta chama atenção também para atitudes que observa em sua loja : comumente re- clamam dos recursos que têm que dispor para adquirir os textos e, em muitos casos, quando os professores preparam longas apostilas^23 , os estudantes frequentemente fotocopiam apenas as partes que mais lhes interessam.

(^23) Termo nativo: como são chamadas as coletâneas de textos (quando agrupados, seja com uma espiral ou mesmo grampeados) que alguns professores preparam para suas disciplinas. Existe uma disputa semântica sobre este termo. Alguns calouros costumam chamar os textos de «apostila» e são corrigidos pelos veteranos. Apostila, para estes, remete às coletâneas escolares de textos produzidos para fins estritamente didáticos, com linguagem simplificada, muitas vezes escritos pelos próprios professores, o que se diferencia dos textos de autores indicados nas disciplinas dos cursos univer- sitários. Mas quando estes textos são encadernados, é aceitável chamá-los de apostila.

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pias, estas «cerimônias» não se restringem às anotações e marcas de leitura no próprio texto. Em casos especiais, pode haver a encadernação caprichosa e artesanal, passando pela organização em pastas do material fotocopiado. Sobretudo, a fotocópia como suporte permite fazer um fichamen- to da leitura, favorecendo a localização de algum trecho mais relevante em momentos futuros^25. É bem verdade, entretanto, que este tipo de organização do material fotocopiado é mais reco- rrente nas camadas privilegiadas, talvez até em função da facilidade de recursos para aquisição de pastas e lugar adequado para guardá-las. A maioria dos bolsistas diz procurar sistematizar as foto- cópias agrupando-as por disciplinas em envelopes plásticos, enquanto os critérios de organização deste material pela «elite», muitas vezes dizem respeito ao assunto, podendo acrescentar àquele «arquivo», textos adquiridos além das orientações pedagógicas. A falta de espaço físico nas residên- cias e mobiliário adequado leva os estudantes das camadas populares a «enfiar tudo no fundo do guarda-roupa quando acaba o semestre» sem um sistema de classificação eficiente, de modo que a recuperação deste material, quando se faz necessário no futuro, se torna, muitas vezes, inviável. Os dados colhidos na primeira fase da pesquisa junto à UCB e a UPB sobre os usuários das oficinas de fotocópia e o peso das fotocópias como suporte de leitura se reproduziram significa- tivamente na UFB, mais recentemente. Observaram-se as mesmas distinções entre os calouros e veteranos, bem como a preferência por este suporte de leitura. Uma estudante da UFB comentou no Facebook :

«Olha, de 5 professores com quem estudo no semestre pelo menos uns 2 disponibilizam (o texto em formato digital), ou se não tem o arquivo pra enviar ou gravado em CD, pendrive, etc. nos informam onde encontrar na internet. Eu gosto de ler mais o impresso, acho que já virou mania rs, mesmo com o arquivo digital acabo imprimindo em casa porque na aula o texto já vai marcado, com as anotações e também porque não tenho um dispositivo em que possa ler o texto com facilidade quando não estou no computador.»

Interessante registrar que o livro como objeto é extremamente valorizado entre as camadas populares, apesar das dificuldades em adquiri-lo e, possivelmente, por isso mesmo. Exemplar é o caso de uma estudante que, considerando um dos livros indicados pelo professor muito im- portante de se ter, mas, ao mesmo tempo, não dispondo de recursos financeiros para comprá-lo, fotocopiou-o integralmente e colou as páginas (frente e verso), reconstituindo-o como objeto, em brochura artesanal.

  1. a FotoCóPia Como inStituição de CirCuLação de textoS e a retóriCa do Leitor

Em um estudo de caso realizado entre estudantes frequentadores da biblioteca da Universida- de Sorbonne Nouvelle-Paris 3 e o uso que fazem das fotocópias, os autores, Alain Viala e Floriane Gaber^26 , fundamentam suas interpretações das práticas observadas sobre um esquema, por eles criado e nomeado, de retórica do leitor. A ideia norteadora, dizem os autores^27 , aproximando-se

e burguesa, em um sentido mais amplo e, segundo Pavão («Cómo se hace uno lector? Una etnografía de la carrera de usuarios de cultura escrita a través del análisis de ocho películas». Em: XIII Congreso de Antropología: «Periferias, fronteras y diálogos», 2014), constituem passo importante na trajetória de construção da carreira do indivíduo como usuário da cultura escrita. (^25) Segundo Paul LaFarGue («Introdução». Em. marx, Karl. O capital: extratos por Paul Lafargue. Tradução de Abguar Bastos. São Paulo: ConradEditora do Brasil. 2004. 140), Marx, por exemplo, fazia amplo uso deste recurso em seus próprios livros e afirmava: «Os livros são meus escravos e hão de servir-me de acordo com meus desejos e com toda a pontualidade». Diz ainda o autor que Marx «maltratava os livros, dobrava-os em ângulo, borrava-os e sublinhava tal ou qual trecho». Seu sistema de sublinhar, escreve Lafargue, «permitia-lhe ir ao assunto sempre que julgasse oportuno». A fotocópia permite, em última instância, que estes estudantes sejam senhores dos textos , servindo-se deles com total liberdade. Esta liberdade, certamente favorece o estudo. (^26) Em FraiSSe, E. Les étudiants et la lecture. PUF, Paris, 1993. (^27) Ob. cit., p. 157.

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–sem contudo tê-lo tomado como referência– das concepções de leitura e de leitor elaboradas por Chartier^28 , é que o leitor não se contenta em seguir a retórica que presidiu à elaboração do mate- rial que ele lê, mas segue uma retórica própria à situação da leitura em função das competências leitoras que são as suas, naquele dado momento. Neste esquema, os autores fazem uma homologia entre a retórica tradicional e o que eles no- meiam por retórica do leitor , elencando cinco fases deste processo: a primeira diz respeito à eleição do texto a ser lido; a segunda refere-se à orientação da leitura (os objetivos da leitura: para se infor- mar, para prestar exames…); a transposição seria a terceira fase desta retórica, que consiste na apro- priação do leitor de elementos do enunciado em seus próprios códigos; a quarta fase é nomeada por ação própria da leitura , tomada no sentido mais concreto do termo: se a leitura é feita de um só fôlego ou em fragmentos, se são tomadas notas ou não, etc.; a quinta e última fase consiste na memorização , seja psicológica ou material (como conservar as notas, o livro lido, os textos). De onde são recolhidos estes textos? De livros? Periódicos? Manuscritos? Como se dá a eleição destes textos? Em que sentido se dá a orientação destas leituras? De que forma estes conteúdos são transpostos? Quais são as ações , para utilizar o esquema criado por Viala e Gaber, ou os gestos de lei- tura , buscando as referências teóricas de Chartier, que caracterizam as especificidades desta prática de leitura universitária? E, por fim, como se conservam estes textos? Estes são os pontos que desenvolverei a seguir, na tentativa de descrever com o máximo de precisão, esta instituição.

  1. da eLeição doS textoS: o PaPeL do ProFeSSor

Uma das razões para privilegiar-se o texto e a produção de sentidos coletiva a partir de sua leitura tendo o professor como mediador, é proliferação desmesurada de publicações e de pu- blicações sobre as publicações. Chartier 29 chamará estas coletâneas, catálogos, inventários sobre leituras pré-existentes, de « bibliotecas sem paredes ». Ao analisar a aventura do livro em uma perspectiva histórica, do leitor ao navegador, Chartier nos chama atenção para a tensão entre a falta e o excesso , entre o papel da biblioteca de reunir e dispersar. Segundo o autor, «a proliferação textual pode se tornar obstáculo ao conhecimento. Para dominá-la, são necessários instrumentos capazes de triar, classificar, hierarquizar^30 ». Pode-se dizer que os procedimentos de leitura se tornaram mais complexos, exigindo do leitor, justamente, os critérios para elaborar a necessária seleção, se bem que, desde a idade média, a atuação do pro- fessor, como leitor experiente que indica textos selecionados, já tenha sido documentada no caso de institucionalização pedagógica das pecie. Com a inflação de textos na vida contemporânea, no entanto, a posse destes critérios, a capacidade de manipulá-los satisfatoriamente é, ainda mais, um elemento de distinção e hierarquização entre leitores na contemporaneidade: «Diante dessa mul- tiplicação, há aqueles que estão em condições de dominá-la porque sua cultura e os instrumentos que ela constitui permitem orientar-se racionalmente nesse mundo prolífico, e aqueles que, com- pletamente desarmados diante desta profusão, fazem as más escolhas e são como que asfixiados ou afogados pela produção escrita^31 ». Um bom leitor, escreve Lebrun 32 é «alguém que evita um certo número de livros, um bom bibliotecário é um jardineiro que poda sua biblioteca, um bom arquivista seleciona aquilo que

(^28) CHartier , Roger. A aventura do livro do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 1998. (^29) CHartier, Roger. A ordem dos livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Tra- dução de Mary del Priori. Brasília: Editora UnB, 1999. (^30) Ob. cit., p. 99. (^31) Ob. cit., p. 110. (^32) Em CHartier, ob. cit., p. 127.

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sobre os cuidados tomados pelo professor-organizador-autor, em registrar sua origem, ou seja, as referências de onde o texto foi capturado. Parece que a maioria dos professores costuma anotar, à mão, nos textos, as suas referências bibliográficas, mas também se tem notícias de que, muitas vezes, talvez pela falta de tempo, estas referências se perdem, ficando o texto afastado de sua uni- dade de origem e preso, portanto, à sua nova unidade, construída pelo professor para o seu curso específico. Poderíamos comparar as «pastas de textos», que são o conjunto de textos eleitos pelo professor responsável pela disciplina, ao conceito de biblioteca trabalhado por Calvino^34 em seu Por que ler os clássicos? , onde afirmará que cabe a cada leitor montar uma biblioteca ideal com seus próprios clás- sicos, com aqueles livros que se tornaram uma riqueza para quem os leu, que sempre terá algo a lhes dizer, que dá no que pensar, que surpreende, que estabelece uma relação pessoal com o leitor, em suma; aqueles livros, para os quais a leitura se constitui uma experiência^35. Além disso, um clás- sico seria uma obra que perdura no tempo e se insere em uma genealogia. Neste sentido, a pasta de textos não seria uma biblioteca? A biblioteca dos «clássicos» sob o ponto de vista daquele professor, no interior de uma determinada disciplina? Não estou querendo dizer aqui que os professores só elejam, necessariamente, «clássicos» de seu campo de conhecimento, mas os seus clássicos , nos ter- mos de Calvino. Tornar-se-á também aos estudantes, experiência, a leitura destes textos? Conforme depoimento da professora citado anteriormente, a seleção de textos da pasta é nor- teada pelos percursos de leitura do professor e, através desta nova ordem, desta nova unidade, o professor prescreve à turma aquela seleção. Mais do que isso, o professor conduz a leitura dos estu- dantes em função do seu próprio viés de leitura, o seu protocolo de leitura , nos termos de Certeau, procurando exercer, para atingir os seus objetivos pedagógicos, o controle, dentro do possível, da recepção da leitura por parte dos estudantes. Está claro que os textos se dão a múltiplas leituras, porém, aquela seleção só fará sentido se for orientada por um determinado fio condutor, ou seja, o protocolo de leitura pré-estabelecido pelo professor-autor daquela seleção, daquela disciplina, daquela pasta. Um exemplo: costumo selecionar para disciplina de Alfabetização I, um trecho do livro As palavras , de Sartre^36. Imagino que este texto possa ser incluído em cursos de letras, de filosofia, ou mesmo sobre o desenvolvimento psicológico infantil. Entretanto, este trecho ilumina o meu percurso de leitura sobre a questão do habitus de leitura, a dimensão sagrada da cultura escrita, a alfabetização como um rito de passagem e mais uns tantos outros pontos que me parecem impor- tantes no interior daquela disciplina. Se permito que os estudantes interajam livremente com este texto, corremos o risco de que venha parecer completamente inadequado, por exemplo, seguido de um trecho de Tristes Trópicos, onde Lévi-Strauss descreve o uso que um chefe nambiquara fez da escrita em um ritual de trocas. Ambos os textos antecedendo à leitura de Emília Ferreiro. É razoável supormos, porém, e a nossa prática docente de fato o comprova, que muitos es- tudantes encontram dificuldades em re-colher dos textos os elementos que o professor busca su- blinhar (digo metaforicamente mas, muitas vezes, os professores deixam à loja de fotocópia seus exemplares com todas as marcas de suas leituras pessoais) a fim de alinhavar a sua seleção, confe- rindo-lhe um sentido (que é, em geral, um sentido pré-estabelecido, com alguns desvios de rota mais ou menos aceitáveis). Podemos dizer, portanto, que o uso da fotocópia (seleção organizada na pasta) como insti- tuição pedagógica, pressupõe a ação tutelar do professor como se a leitura fosse um fármaco por ele prescrito ou, de forma mais amena, a mediação do professor. Uma das entrevistadas narra indignada que, diante da indicação de leitura do professor, que lhe pareceu muito difícil, buscou

tória da leitura e da formação do professor-leitor». Em: marinHo, Marildes (org.). Ler e navegar: espaços e percursos da leitura. Campinas: Mercado das Letras, ALB, 2001). (^34) C aLvino, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Cultrix, 1993. (^35) Utilizo-me aqui da discussão desenvolvida por Larrosa (1998), ao referir-se à dimensão formadora da leitura no sentido de transformar aquele que lê, constituindo-se, assim, em experiência. (^36) S artre, Jean-Paul. As Palavras. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

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na biblioteca uma outra obra sobre o mesmo assunto em «edições de divulgação^37 » e que, ao saber de sua auto prescrição, a professora desaprovara radicalmente sua iniciativa. Mais contempora- neamente, com a expansão do acesso à internet, nestes casos, os estudantes costumam recorrer a sites de ajuda a estudantes, alguns dos quais com simplificações grosseiras e mesmo equivocadas, igualmente desaconselhável pela maioria dos professores. Infelizmente, a seleção dos professores pode ser, também, bastante aleatória. Há casos, con- forme relatos de entrevistados, em que o professor, por inexperiência ou desconhecimento do campo, realiza uma seleção que não chega a formar uma unidade coerente. Algumas vezes, os textos selecionados ainda não lhes são familiares, tendo sido tomado como critério de seleção o seu projeto particular de leitura em andamento. Através de depoimentos espontâneos, tivemos conhecimento de professores que consultam as pastas de seus colegas para construir a bibliografia de suas disciplinas. Os estudantes entrevistados foram bastante críticos em relação aos professores que selecionam textos desta forma. Uma delas (UCB) comenta: «Sabe o que eles fazem? Colocam só coisa da pesquisa deles, coisa que não tem interesse pra gente, que não tem nada a ver com a matéria». Sobre a sua origem, os informantes e a observação revelam que os textos, em sua maioria, são retirados de livros. Também são utilizados artigos de periódicos. A porcentagem entre capítulos de livros e artigos depende do curso. Não houve diferenças significativas sobre o papel do professor na eleição dos textos entre as três universidades pesquisadas ao longo do período de pesquisa.

  1. a tranSPoSição: da Leitura à Produção de SentidoS

A transposição materializa-se, por exemplo, nos trabalhos escritos e nos seminários apresen- tados em sala ou nos trabalhos de final de curso. E o professor, como autor daquela determinada seleção e tutor da leitura de seus alunos, procura controlar esta transposição de acordo com seus objetivos pré-definidos. Está claro que há, nestas coletâneas, uma orientação, uma atitude tutelar do professor sobre a leitura e, mais especificamente, sobre a fase de transposição de leitura por parte do estudante. Mas não podemos desconsiderar que todo leitor é um furtivo caçador 38 que sempre encontra meios de subverter as orientações dos autores e editores no sentido de controlar sua construção de sentido, sua leitura. Mesmo assim, a palavra de autoridade do professor é muito forte e as suas indicações de leitura, a sua seleção proposta é uma forma de impor interpretações legítimas. É comum, por exemplo, a reclamação dos estudantes de que haviam desenvolvido uma ques- tão (no caso de uma avaliação do tipo prova) satisfatoriamente, mas que não estava de acordo com «aquilo que o professor queria». Retomemos à figura do «copista» trazida por Borges no início deste texto. Mais do que um gesto de escritura, encontro neste conto um gesto de leitura através da cópia, e de uma leitura autoral em oposição àquilo que poderíamos chamar de leitura-cópia^39. No início de sua empresa, Menard empenhou-se o mais que pode em ser Cervantes escrevendo Quixote, mas logo descobriu que desafio muito maior e muito mais relevante seria reescrever Quixote sendo Menard, um ho- mem do século XX. Dessa forma, Menard opta pela leitura autoral. Este parece ser um aspecto importante nesta fase da retórica do leitor , de como se dá a transposição. Há espaço nesta prática pedagógica para a leitura autoral ou a tutela do professor e seus protocolos de leitura prevalecem?

(^37) Livros de leitura fácil sobre temas de interesse geral destinados a leitores não especializados. No Brasil, um bom exemplo seria a popular coleção « Primeiros Passos » da editora Brasiliense. (^38) C erteau, Michel de. A invenção do cotidiano. Tradução de Ephraim F. Alves. 5a ed. Petrópolis: Vozes, 2000. (^39) Sobre este tema, especificamente, ver Pavão, Andréa ; meLLo, Maria Lúcia. «Práticas de leitura e escrita na es- cola Carmin: vivência ou experiência? Autonomia ou automação?». Em: Kramer, Sonia; oSwaLd , Maria Luiza (org.). Didática da Linguagem: ensinar a ensinar ou ler e escrever? 1.ª ed. Campinas: Papirus, 2001, pp. 113-142.

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descartar o prazer, tais práticas negam qualquer noção de gratuidade, que é suplantada pela ideia de trabalho e funcionalidade^42 ». Entre os gestos ou ações próprias que caracterizam a leitura enquanto estudo 43 , podemos citar: a fragmentação das leituras; os tempos cada vez mais reduzidos de leitura impostos pelos prazos muito justos das disciplinas, acrescidos do volume cada vez mais renovado de informações dispo- níveis; as diversas formas de marcação destes textos ; a prática de resenhar; fichar; selecionar trechos para futuras citações; o controle futuro da recepção, etc. Juliana, em sua entrevista, mostrou-me suas estratégias de leitura. Para lidar com a dificuldade de leitura fez um curso de leitura dinâmica onde aprendeu a marcar o texto de acordo com uma técnica em que são usados registros diferentes para os diversos níveis da leitura (tema principal marcado com um retângulo, argumentos que sustentam esta ideia com um círculo, etc.). Quando perguntei-lhe se não seria cansativo ler assim, ela apenas respondeu: «É uma técnica, só isso». Se valermo-nos da discussão sobre o prazer estético, este conjunto específico de ações de lei- tura parece remeter à oposição clássica entre prazer e trabalho , entre uti (uso) e fruti (prazer), tal como concebido por Santo Agostinho. Segundo Jauss^44 , pela estética marxista , a dissociação entre prazer e trabalho está na base da alienação, perda da noção da realidade em sua complexidade, de onde talvez possamos inferir que a leitura enquanto prática, que dissocia o prazer do trabalho, engendraria uma atividade alienada, na qual não há lugar para o gozo, o usu-fruir , e onde o uso, o caráter instrumental, supera qualquer outro nível de apreensão estética. Igualmente alienada seria a prática de leitura onde o prazer se sobrepõe ao trabalho, na outra ponta, como ocorre na idea- lização da leitura literária tão presente nos discursos oficiais de políticas de formação de leitores. Esta parece ser uma oposição muito presente na discussão do acesso à leitura no interior da luta de classes: de um lado, a leitura enquanto ócio e, de outro, como neg-ócio^45. A leitura aqui, talvez seja, predominantemente, uma poiesis , um dos três aspectos que caracteriza a experiência estética e que consiste no criar , no fazer , no agir , pressupondo um trabalho ativo do leitor. Os demais aspectos são a aisthesis , a relação sensual ( aísthesis , sensação) com a materialidade do texto e, por fim, a kátharsis , experiência através da qual, o leitor vai se projetar subjetivamente no texto, entrar no texto, emocionar-se, alterar-se. Nos relatos dos estudantes é recorrente a reclamação sobre a falta de tempo para «aprofundar na leitura», em seus próprios termos. Esta dimensão de leitura talvez esteja associada ao que chamamos de experiência , esta vivência que deixa marcas na memória de quem as vive, que o transforma. Creio que seja interessante buscarmos pensar a relação entre o leitor e o texto de forma dia- lética. Se, por um lado, através da recepção poética damos centralidade à subjetividade do leitor que transforma, por assim dizer, o que lê, construindo significados próprios, na recepção catártica ocorre o apagamento da subjetividade, a «leitura como uma experiência de formação», nos termos de Larrosa 46 , onde o leitor é transformado pelo texto. O que parece ocorrer, de acordo com os depoimentos e observações de campo, é que este trabalho de produção de significados a partir do que se dá a ler é marcadamente controlado na leitura enquanto estudo, na leitura pedagogizada. As instituições de ensino tendem a administrar a leitura, controlando a sua recepção através de inúmeras estratégias pedagógicas. Frente ao enorme volume de leituras, uma estudante da UPB comentou: «Não dá nem para pensar, eu leio como máquina, em todo lugar, especialmente na condução e, mesmo assim, não

(^42) FraiSSe, ob. cit. (^43) Em pesquisa realizada em uma escola de formação de professores (Pavão, ob. cit. 2001), foi analisado um conjunto de gestos e ações próprias relacionados à leitura e escrita sob orientação pedagógica onde se observa grande se- melhança com o observado entre estudantes universitários e que se distingue do conjunto de gestos e ações das práticas de leitura e escrita autônomas. (^44) JauSS, Hans Robert. «O prazer estético e as experiências fundamentais da poiesis, aisthesis e kátharsis». Em Lima, Luiz Costa. A literatura e o leitor-textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. (^45) CHauí, Marilena. Introdução a LaFarGue, Paul. O direito à preguiça. 2.ª ed. São Paulo: UNESP, 2000. (^46) LarroSa, Jorge. «Leitura e metamorphose». Em Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Porto Alegre: Contrabando, 1998.

Andréa Cristina Pavão Bayma

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dou conta de tudo. Leio tudo pela metade. É muita coisa. Uma coisa que a ajuda é o trabalho em grupo. Cada um fica com uma parte».

  1. a memoriZação

A memorização mecânica da descrição do objeto não se constitui em conhecimento do objeto. Por isso é que a leitura de um texto, tomado como pura descrição de um objeto é feita no sentido de me- morizá-lo, nem é real leitura, nem dela portanto resulta o conhecimento do objeto de que o texto fala (Paulo Freire^47 ). Com a boa intenção de socializar o material escrito a que tem acesso, o professor frequente- mente faz seleções muito extensas de trechos de livros que ele levou muitos anos para ler e que espera que sejam lidos de forma consistente e crítica em apenas seis meses. Sobre isso, Paulo Frei- re^48 pronuncia-se:

«Creio que muito de nossa insistência enquanto professores, em que os estudantes «leiam», num semestre, um sem-número de capítulos de livros, reside na compreensão errônea que às vezes temos do ato de ler. Em minha andarilhagem pelo mundo, não foram poucas as vezes em que jovens estudantes me falaram de sua luta às voltas com extensas bibliografias a serem muito mais «devoradas» do que realmente lidas ou estudadas. Verdadeiras «lições de leitura» no sentido mais tradicional desta expressão, a que se achavam submetidos em nome de sua formação cien- tífica e de que deviam prestar contas através do famoso controle de leitura. Em algumas vezes cheguei mesmo a ler, em relações bibliográficas, indicações em torno de que páginas deste ou daquele capítulo de tal ou qual livro deveriam ser lidas: “Da página 15 à 37”».

Algumas estratégias são observadas para conservação e classificação deste grande volume de textos, tais como o uso de fichários e arquivos de papelão. Entre o volume total de textos que o estudante coleciona, muitos são descartados ao final do período, quando muito, ironicamente, acabam sendo reutilizados como rascunho, suporte de produção de novos textos. Para Viala e Ga- ber^49 , a prática da reprodução através da fotocópia estaria relacionada, em parte, a um «compor- tamento fetichista». Os estudantes estocam «pilhas de papel que fazem volume e que garantem, talvez, um capital cultural importante, onde a presença material é visível, sem que seja, entretanto, necessariamente assimilada, digerida^50 ». A dificuldade imposta pelo suporte-fotocópia de busca através de um índice, por exemplo, sem dúvida compromete a função de conservação para consulta posterior. Do ponto de vista cognitivo, a memorização é prejudicada, na maioria das vezes por este excesso de leituras impostas nas várias disciplinas em um mesmo semestre. Entre os estudantes não-bolsistas há muitos que fazem a opção por reduzir o número de disciplinas para poderem de- dicar-se mais a cada uma delas. Outra grande diferença é a relação com o tempo. Por trabalharem, em sua maioria, acabam por estabelecer uma postura em relação ao texto puramente instrumental, buscando nele apenas o que possa vir a ser pedido futuramente, tal como aprenderam na escola nas aulas de Língua Portuguesa, nos exercícios de interpretação de textos. Perguntados sobre o que fica ao final das disciplinas, respondem: «Ah… é difícil dizer, mas é bem pouco. Sei lá, uns 10%, no máximo 20%».

(^47) Paulo Freire, ob. cit. , p. 17. (^48) Ibidem. (^49) Em FraiSSe, ob. cit. (^50) Em FraiSSe, ob. cit. p. 167.