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Este documento explora as implicações da produção artística de marcel duchamp, especialmente em relação aos objetos ready-made, e sua contribuição para a compreensão da arte na contemporaneidade. O texto também questiona a dimensão conceitual na expressão artística contemporânea, abordando as repercussões da produção artística de duchamp na identificação ontológica da arte lato senso e na identidade da própria obra de arte no universo artístico contemporâneo.
Tipologia: Exercícios
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Faculdade de Belas Artes
Dissertação para obtenção do grau de Mestre em Estudos Artísticos: Teoria e Crítica da Arte
Orientador: Professor Hélder Gomes
Resumo
Este trabalho pretende constituir o aprofundamento da reflexão sobre algumas questões consideradas fundamentais que decorrem da produção artística contemporânea. Tem por objecto, assim sendo, o estudo das implicações que parte da produção artística de Marcel Duchamp, particularmente no que se refere ao objecto ready-made , pode ter tido na compreensão daquilo que a arte se tornou na contemporaneidade. O ready-made duchampiano surge como pré-texto e concretização de algumas relações que fazem a cena da arte na contemporaneidade, ou seja, reavalia o papel do artista e o modo como este se relaciona com o objecto artístico, com as instituições e com o próprio público especializado e não especializado. A relação estética e conceptual existente entre estes diferentes pólos do universo artístico relativamente à obra de arte, confirma a existência de uma identidade e de um valor ao objecto artístico que não poderá ser dissociado do contexto em que é pensado, a contemporaneidade.
Introdução
O trabalho de Marcel Duchamp continua a lançar diversas questões sobre a realidade artística dos dias de hoje pela actualidade de alguns dos seus trabalhos que, como gestos paradigmáticos, vêm afirmar o carácter expandido da ideia de arte. O legado criativo de Marcel Duchamp continua, dessa forma, a contribuir para a reflexão sobre a identidade e o valor da arte na actualidade. A questão da arte não retiniana, questão maior neste trabalho, será equacionada menos em oposição relativamente a um tipo de expressão artística que se poderia pensar retiniano, mas enquanto realidade sujeita a determinados processos artísticos dos quais decorre uma expansão referencial sem precedentes. Alguns trabalhos de Marcel Duchamp irão ser problematizados a partir de uma questão maior, da qual outras desta decorrem, na medida em que não cremos numa realidade estanque ou em questões formuladas isoladamente. Assim sendo, a questão de uma concepção não retiniana da arte lato sensu poderá ser pensada com uma sua dimensão conceptual, ou seja, do ponto de vista de uma valorização maior de aspectos que escapam à pura visualidade e mesmo a conceitos quando pré-determinados culturalmente. São estes conceitos que se ligam à ideia de Belo, de Perfeição e, por extensão, de Verdade como condição de existência do objecto artístico enquanto tal. Marcel Duchamp integra, desde cedo, alguns círculos artísticos que posteriormente deram origem à concepção teórica e prática de algumas vanguardas históricas artísticas, como é o caso da pintura cubista ou da considerada anti-arte Dada. As primeiras produções de Marcel Duchamp datam do início do século XX e podem enquadrar-se formalmente no universo pictural Impressionista. No final desta década, tenta seguir alguns dos postulados da estética pictural cubista, movimento este particularmente inventivo no que se refere à questão da representação não retiniana do homem e do mundo. Marcel Duchamp, no seguimento desse percurso, contacta com movimentos artísticos que levam a cabo um questionamento radical relativamente à própria ideia de arte no seio da ideia Modernista. Esse questionamento surge menos ao nível do meio de expressão que por via formal, na medida em que grande parte do que foi a produção modernista conserva ainda a sua especificidade entre os diferentes meios de representação em arte. No caso da pintura cubista, a título de exemplo, apresenta-se já uma realidade cindida, múltipla,
artista, produção e recepção especializada e não especializada. A sensibilidade que faz a cena artística contemporânea, conservando a sua especificidade e indexação histórica, continua o mesmo processo de questionamento relativamente aos limites entre as diversas dimensões que atribuem uma identidade, ainda que variável, ao universo artístico. Desta forma, obras concebidas como o ready-made ou o ready- made assistido, impõem determinadas questões com que se debate, desde as suas próprias preocupações, a criação contemporânea. A partir de referências autorais diversas, que em diferentes tempos se posicionam relativamente ao ser na forma como existe do ponto de vista estético, reflecti-mos sobre a realidade artística quer enquanto produção, quer enquanto um público, tentando dar seguimento ao estudo da arte contemporânea. Da mesma maneira, a partir de um tipo de expressão artística que continua a marcar a sensibilidade contemporânea, tentaremos reflectir sobre a própria sensibilidade contemporânea. A voz de Duchamp ouvir-se-á como a de um receptor da sua própria obra no paradigma artístico dos anos cinquenta e sessenta, quando começa a produzir discurso sobre o seu trabalho e se começam a construir novas linguagens a partir do mesmo por parte de artistas de uma nova geração. Na primeira parte deste estudo, questões relativas ao facto de Duchamp ter abandonado a pintura, assim como, o aparecimento do ready-made, como uma nova forma de entender o objecto artístico, iram ser pensadas a partir de outras questões que se ligam à percepção e à representação do homem na contemporaneidade. Para o efeito, contamos com contribuições fundamentais de autores como Henri Bergson, Immanuel Kant, Hegel, Umberto Eco e Lyotard. Na segunda parte, tentando detectar e perceber implicações de um tipo de produção artística considerado paradigmático no que se refere à própria ideia de arte, constitui, da mesma maneira, objecto do presente trabalho, o questionar da dimensão marcadamente conceptual da expressão artística contemporânea. Como tal, algumas relações fundamentais que fazem o universo artístico, iram ser (re)equacionadas ao nível da produção artística, recepção crítica especializada e não especializada, assim como do ponto de vista das instituições que acolhem a expressão artística na contemporaneidade. Assim sendo, contamos com a colaboração de pensadores que, em diálogo com as questões lançadas na primeira parte pelos autores já mencionados, vão ajudar no desenvolvimento deste trabalho. São estes Thierry de Duve, Hélder Gomes, Dominique Chateau e Adorno, por entre outros aos quais recorremos quase inevitavelmente. Constituem estas as questões a aprofundar no presente trabalho, tendo em conta as
repercussões da produção artística de Duchamp na identificação ontológica da arte lato senso , bem como da identidade da própria obra de arte no universo artístico contemporâneo.
outro lado, a nossa concepção de mundo chega a dispersar no espaço tudo o que se conta directamente, pode presumir-se que o tempo, entendido no sentido de um meio em que se distingue e onde se conta, é apenas espaço^2 A questão do espaço pode ser entendida por Bergson como o resumo do que determinadas sensações partilham entre si, isto é, segundo a ideia de uma multiplicidade sensitiva indiferenciada que considera como elementos qualitativos. Rigorosamente admitir-se-á que a duração interna, percepcionada pela consciência, se confunde com o encaixar de factos de consciência, uns nos outros, com o enriquecimento gradua do eu, mas … o tempo que os nossos relógios dividem em parcelas iguais, este tempo, dir-se-á é outra coisa: é uma grandeza mensurável, e por consequência, homogénea^3 ou A ciência só incide no tempo e no movimento com a condição de eliminar, antes de mais, o elemento essencial e qualitativo – do tempo a duração, e do movimento a duração -^4 Nesta medida, pelo facto de a noção de tempo constituir-se na consciência ou ser um dado que não pode ser pensado sem uma dimensão psicológica, o termo operativo com que o autor pretende pensar componentes como a memória, a percepção e a afecção é a duração , componente imaterial que não pode ser medida ou prevista. O tipo de consciência descrita por Bergson sobre a forma como percepcionamos o real, constitui-se de dois tipos. Partindo do princípio que a natureza comunica determinado tipo de sensações que acrescem em qualidade e/ou intensidade às do indivíduo, são estes fenómenos que ocorrem à superfície da consciência, que se ligam à percepção dos objectos, à forma como lidamos com eles, ou à forma como se trata a captação de um movimento. Ao sermos afectados por fenómenos de origem externa, o que conservamos sobre cada uma dessas representações são sensações ou memória, que vão dar origem a elementos internos e mais profundos, os de segundo tipo. « É que quanto mais se desce nas profundidades da consciência, menos se tem o direito de tratar os estados psicológicos como coisas que se justapõem»^5 ou seja, que possam ser divisíveis e com isso ganhar sentido ou lógica. É à intensidade da sensação devolvida que atribuímos maior ou menor trabalho, afirma, da mesma maneira, Bergson. Deste ponto de vista, tudo sucede na consciência, tudo se constitui como um estado psicológico, em oposição, a título de exemplo, às concepções teóricas de matriz materialista de autores como La Mettrie. Ainda Bergson: « associamos então a uma certa qualidade do efeito a ideia de uma certa quantidade da causa, e finalmente
2 BERGSON – Op. cit. p. 70 3 BERGSON – Op. cit. p. 77 4 BERGSON - Idem 5 BERGSON – Op. cit. p. 15-
como acontece em toda a percepção adquirida , pomos a ideia na sensação, a quantidade da causa na qualidade do efeito»^6 , isto é, temos a tendência de tornar grandeza quantitativa ou extensiva, algo da ordem das sensações, mudanças qualitativas de onde decorrem modificações na alma do sujeito: « os sentimentos estéticos proporcionam-nos exemplos mais impressionantes da intervenção progressiva de elementos novos na emoção fundamental e que parecem aumentar-lhes a grandeza embora se limitem a modificar-lhes a natureza»^7. A sensação é princípio de liberdade para Bergson, não é passível de ser medida, dividida, uma vez que não se dá num espaço homogéneo: « a vossa ilusão sobre este ponto é o hábito adquirido de acreditar na percepção imediata de um movimento homogéneo num espaço homogéneo»^8. A sensação constitui-se de movimento e duração ou durée como formulado no original por Bergson: « o que é duração pura exclui toda a ideia de justaposição, de exterioridade recíproca e de extensão»^9 Assim sendo, é de forma mediada que poderemos abordar determinadas realidades particulares às quais somos mais sensíveis. Através do processo de interpretação de representações como o são as obras de arte, tentamos dar corpo a problemáticas que se relacionam directamente com o meio cultural de onde emergimos. Por via conceptual, e desde logo compreendendo os seus limites, a relação estética e conceptual com o mundo integra um jogo perpétuo de sensações-representações que se pensam umas às outras. O interesse de mencionar Bergson neste trabalho, tem que ver com a certeza muito aguda de que nenhuma realidade se poderá mostrar ao conceito de forma plena, muito embora possa igualá-lo em abstracção.
6 BERGSON – Op. cit. p. 36 7 BERGSON – Op. cit. p. 17 8 BERGSON – Op. cit. p. 39 9 BERGSON – Ibidem
artísticas mais actuais. Não será necessário aguardar por declarações bastante póstumas de Duchamp, por sinal, sobre a intencionalidade do autor a partir do autor, para que se possa depreender este aspecto.
A importância atribuída ao objecto em detrimento do modo como este é concebido, origina o repensar da formação artística como via necessária para a produção de arte e com isso, todas as escolas que foram fazendo a História da Arte até à contemporaneidade. Por outro lado, a recepção das obras do ponto de vista individual, na ausência desse campo de referências ou convenções universalizantes que a categorizavam outrora, torna-se absolutamente conceptual. Em Aristóteles da Poética , um texto canónico relativamente a toda a criação europeia ocidental e que extrapola grandemente a ideia de como bem produzir uma tragédia, encontramos de forma exemplar o modo como à noção de Belo na obra corresponde a ideia de ordem, e dessa forma, mais se aproxima da própria ideia de Verdade. A ideia de Belo é produzida de acordo com o princípio de verosimilhança e da necessidade, elementos estes essenciais, à letra, para a possibilidade de um tipo de expressão que visa ensinar algo. Neste caso, o texto de Aristóteles, imbuído de um forte sentido pedagógico, visava ensinar os tragediógrafos a educar o povo grego. Efectivamente, na Poética a beleza reside na dimensão e na ordem^10 , a obra de arte consiste num todo orgânico e somente desta forma poderá ser fiel a pressupostos de carácter axiológico que antecedem as produções artísticas. Aristóteles utiliza a metáfora do belo animal para exemplificar um tipo de concepção artística fundada numa ideia de harmonia, serenidade, lógica ou organização interna na soma das suas partes como imagem de um todo orgânico perfeitamente integrado. A ideia de Belo compunha-se de uma articulação necessária entre forma e conteúdo. Quanto mais adequada fosse essa relação, mais perfeita poderia considerar-se a própria obra porque com maior eficácia cumpriria a sua função de carácter pedagógico. Estes pressupostos vão ser postos em causa, sendo objecto de ironia ou mesmo
10 ARISTÓTELES – Poética. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 51
ignorados/relativizados no processo de questionamento levado a cabo pela produção da modernidade artística, por um lado, e por Duchamp e seus contemporâneos. Os primeiros por via do conteúdo vão problematizar a forma como temos acesso ao real, sendo que a representação, na modernidade, torna-se explicitamente impressionista, lato senso. Na arte contemporânea, esse questionamento surge não só por via da representação, mas também através da forma que essa representação assume. Podemos referir o ready-made puro como imagem deste tipo de gesto, em que o tipo de objecto artístico não é já passível de ser categorizado/entendido enquanto pintura ou escultura quer do ponto de vista de quem produz, como do ponto de vista da sua recepção. O que se torna importante referir, da mesma maneira, é o facto de o ready-made não surgir a partir da fusão de diferentes meios de expressão artística, como um híbrido construído a partir de elementos que poderemos identificar como retirados do universo pictural e outros de um outro, como poderá ser a integração da imagem em movimento num possível ready-made. O ready-made constitui uma obra de arte dentro do universo ready-made e no sentido da arte em geral: A atribuição às obras de arte de uma forte dimensão conceptual, ou de outras não referíveis à estrita dimensão formal que suporta o juízo de gosto (…) exige que a recepção se faça por referência a um mais vasto quadro de referência^11_._ Segundo Dominique Chateau, o carácter estético da obra de arte na contemporaneidade acaba por ser confundido ou mesmo por se dissolver na dimensão conceptual do objecto: a recepção conceptual funde-se com a recepção estética^12 , na medida em que, podemos considerar que a ênfase atribuída ao carácter conceptual da obra não permite a separação destas duas esferas de uma mesma realidade. De facto, existem implicações ao nível da reflexão sobre a obra de arte quando se procede a um tipo de análise baseado na divisão entre forma e conteúdo, conteúdo e continente, significado e significante. A arte contemporânea, neste caso, acaba por rejeitar ou mostrar-se indiferente a este tipo de abordagens de carácter mais sistemático, na medida em que, como refere Chateau, quer ao nível da recepção, e diremos que o mesmo sucede ao nível da produção da obra, a dimensão estética parece (con)fundir-se com a dimensão conceptual. Se tomarmos como exemplo a Porta-Garrafas de Duchamp, um ready-made puro, no sentido em que é um objecto retirado do mundo não artístico e somente seleccionado pelo artista, não é já possível encarar aquele objecto como tendo uma forma desligada de uma escolha ou decisão por parte do artista. A intervenção na construção da obra mostra-se diminuta, ao
11 GOMES, Hélder – Relativismo Axiológico e Arte Contemporânea, De Marcel Duchamp a Arthur C. Danto, Critérios de Recepção das Obras de Arte, Porto: Edições Afrontamento, 2004, p. 35 12 «à la réception conceptuelle se mêle la réception esthétique» In CHATEAU, Dominique – Op. cit. p. 10
A análise do trabalho de Duchamp não pode ser apartada do contexto em que surge. Toda a representação reflecte, inevitavelmente, um carácter contextual porque surge a partir de referências de uma dada época e cultura. É relevante o facto de ter sido em 1912, na primeira metade do século XX, que o artista decide abandonar a pintura, na medida em que, é este um momento absolutamente marcado pelas vanguardas históricas artísticas. Neste paradigma artístico, surgem bem homogeneizados pela História da Arte e pelos próprios manifestos de alguns destes colectivos, movimentos como o Impressionismo, o Expressionismo, o Fauvismo, o Cubismo. Alguns destes colectivos artísticos produzem documentos de que são exemplo o Manifesto Futurista de 1909, o Manifesto Cubista de 1913 e os manifestos Dada escritos em Zurique em 1918 e 1919. Os protagonistas do Modernismo consideravam que o real estaria imbuído de uma dinâmica controlável no sentido em que o homem desempenha um papel determinante na História. Não existe nada que lhe seja exterior. Assim sendo, enquanto avanço do ponto de vista técnico e conceptual, ou seja, sendo a própria História superada a todo o momento através da inventividade de cada movimento artístico relativamente ao que lhe precederia, os artistas escrevem os seus manifestos como se escrevessem a própria realidade. Cada estilo prediria a morte do anterior numa sucessão linear no tempo, cada estilo seria qualitativamente superior em termos técnicos e conceptuais de entendimento do próprio real, por ser possível integrar a inexorabilidade do seu decorrer. Da (im)possibilidade de se declararem mortes sucessivas no mundo da arte, quer no que se refere aos estilos, quer em relação a períodos históricos, refere Hélder Gomes com propriedade: Estaremos diante de uma singular tensão necrófila que habita este particular domínio da cultura e que exige a permanente afirmação teleológica da sua morte - como um organismo que por antecipação se alimentasse do seu próprio cadáver^15.
G. W. Friedrich Hegel (1770-1831), na concepção que apresenta de filosofia da História, poderá, de facto, aproximar-se do tipo de ideia acima descrito no que se refere à dinâmica intrínseca que cada momento histórico apresenta quando linearmente compreendido. Se cada momento histórico sucede ao anterior por superação, através de um salto progressivo perfeitamente identificável pelo homem, acontece que a própria história supera as suas
15 GOMES, Hélder – Op. cit. p. 26
contradições internas e consegue alcançar uma dada homogeneização, condição de possibilidade no sentido de um avanço qualitativamente superior em que se resolvem momentaneamente as contradições existentes nesse processo dialéctico. No século XIX, Hegel surge com uma noção dialéctica da totalidade. A dialéctica é o movimento pelo qual o espírito, a razão e o divino se realizam através da história. Esse movimento percorre três fases: a tese/afirmação/posição, a negação ou antítese e a negação da negação ou síntese. Este processo traduz a própria dinâmica da história ou do real e, na medida em que nada ocorre fora da história, é através da preservação daquilo que se constitui enquanto passado e, simultaneamente, através do que se constitui como diferente ou outro, que a própria civilização se vai edificando. É do ponto de vista da construção de uma narrativa que, sucessivamente, se vai construindo uma dada cultura que passa a constituir produção e revelação do espírito absoluto na história. Este percurso dos povos é apresentado como um caminho necessário rumo à ideia de liberdade. A Filosofia da arte, por seu lado, surge como parte necessária da filosofia, incluindo-se na ideia de um todo e deverá ser pensada enquanto parte de uma totalidade orgânica, que torna a si própria para renovar o seu sentido de verdade e confere valor aos restantes campos da filosofia como a si mesma. Esse fim, a arte o tem -no em comum com a religião e com a filosofia, mas segundo essa modalidade bastante particular que ela expõe … é a liberdade do conhecimento pensante que se eleva^16 A Filosofia da Arte integra igualmente todo um processo de auto-conhecimento do ser e do mundo porque é uma sua representação. é somente nessa sua liberdade que a bela arte se torna arte verdadeira, e não começa a concretizar essa missão a mais alta até que se adeqúe à esfera comum que partilha com a religião e a filosofia por ser e ser somente um meio específico de transportar-se para a consciência e de exprimir o divino ou os interesses humanos mais profundos, as verdades mais gerais dos espíritos^17 Para Hegel, a história, e a história da arte em particular, constitui um dos momentos da consciência de todo este processo, consciência no sentido da passagem dos meros sentimentos
16 «Cette destination, lart l
a en commun la religion et la philosophie, mais selon cette modalité très particulière qu’il expose … c’est la liberté de la connaissance pensante que sémancipe de cet _ici-bas_ » In HEGEL – **Cours d'esthétique**. Trad. Jean-Pierre Lefebvre et Veronika von Schenck. Vol. 1. Paris: Aubier, 1995, p. 21 17 «c’ est seulement dans cette sienne liberté que le bel art devient art véritable, et il ne commence à remplir sa mission _la plus haute_ que lorsqu’ il s
est placé dans la sphère commune qu’il partage avec la religion et la philosophie pour être et être seulement une manière spécifique de porter à la conscience et d`exprimer le divin les intérêts humains les plus profonds, les vérités plus englobant de l’esprits…» In HEGEL – Op. cit. p. 13
superior ao belo natural: Ora a superioridade do espírito e da sua beleza artística sobre a natureza não é uma superioridade simplesmente relativa: mas é o espírito somente que é aquilo que é verdadeiro e compreende tudo em si, de modo que toda a coisa bela é verdadeiramente bela porque ela participa dessa entidade superior e é um seu produto …^21 ( itálico do autor que transpomos para negrito - itálico ) Perante esta matriz de pensamento, a forma como a pintura vai ser trabalhada a partir dos seus próprios processos, no Modernismo, parece espelhar o que foi defendido por Clement Greenberg, questão a referir adiante no presente trabalho em contraponto com outro paradigma artístico no qual incluímos Duchamp e a contemporaneidade artística. É pois possível transpor a concepção de filosofia da História em Hegel enquanto narrativa na qual a História da Arte inscreve linearmente cada movimento artístico em dada cultura. Tendo como critério os seus aspectos mais gerais. Aspectos estes que particularizam cada movimento artístico através do que cada trabalho, adentro do mesmo, poderá ter em comum com os restantes desse movimento e não pela sua diferença. José -Augusto França^22 pode ser considerado figura maior deste tipo de abordagem sobre a arte ao longo dos tempos. É desta forma, por outro lado, que se podem compreender as sucessivas recusas de importantes trabalhos de Duchamp no início do seu percurso artístico por parte da escola cubista e mesmo por parte de outros artistas. Primeiro com Nu descendo uma escada (nº2) ( Nu descedant un éscalier (nº2)), pintura considerada disruptiva relativamente ao estilo já canonizado cubista (ironicamente em pleno desenvolvimento criativo) e, posteriormente, A Fonte ( Fountain) no Salão dos Independentes de Nova Iorque, pelo facto deste objecto não ter ainda qualificação possível enquanto obra de arte perante uma comunidade artística específica. Apesar desta reacção, é possível observar em Duchamp do início do século algumas características partilháveis com as restantes manifestações artísticas em desenvolvimento à época, por explorar algumas ideias da estética cubista. Não é menos verdade que alguns dos mais importantes aspectos da inventividade que caracterizam a referida época ocorrem ainda dentro de uma forma bastante tradicional de expor. A perspectiva que se cinde, e dessa forma se desmultiplica na expressão cubista, ocorre ainda limitada pela moldura modernista.. Assim sendo, deveríamos, perante uma leitura hegeliana da filosofia da história, pensar o trabalho de
21 «Or la supériorité de lesprit et de sa beauté artistique sur la nature n’est pas une supériorité simplement relatif : mais c
est l’esprit seulement qui est ce qui est véritable et comprend tout en soi, de sorte que toute chose belle est véritablement belle pour autant qu’elle participe de cette entité supérieure et en est le produit…» In HEGEL – Op. cit. p. 7 22 FRANÇA, José - Augusto – História da Arte Ocidental. Lisboa: Livros Horizonte, 2006
Duchamp, à época como uma atitude criativa de retaguarda? Ou será que se trataria já de uma atitude justamente vanguardista, como nos fazem crer alguns teóricos contemporâneos?
Esta ideia de fim da arte é já bastante premente aquando de diversas experiências-limite levadas a cabo durante o período do Modernismo, algumas inclusive apostavam, efectivamente, no fim simbólico, diga-se, da arte pela arte, como é o caso de várias intervenções Dada. Este colectivo declarou-se efectivamente antiartístico, antiliterário e antipoético^23. O que, do meu ponto de vista, torna distante um universo relativamente ao outro, tem que ver com o facto de Duchamp operar uma mudança que, precisamente, não tem como horizonte a morte ou a não institucionalização da arte, mas a efectiva alteração do modo como se poderá conceber o objecto artístico no que se refere ao momento da sua produção, recepção simples ou crítica adentro do universo artístico. Dessa forma, não estará em causa somente um pressuposto transversal a diversos momentos de expressão artística, em diversos momentos da sua história, o do choque necessário e permanente pela negação da arte. Essa dimensão existe na obra de Duchamp, não como construção de um fim, antes como um meio. A dimensão conceptual inegável nos seus trabalhos é a via para se poderem (re)equacionar vários dos postulados da própria ideia de arte e dessa forma, dar seguimento à permanente busca de uma identidade. Será nesta busca incessante em que, efectivamente, o universo artístico se vê ampliado, (re)pensado, (re)conceptualizado, que a obra de Marcel Duchamp deverá ser estudada. Essa será a diferença a estabelecer entre uma mudança conjuntural na história da arte e uma outra de carácter paradigmático, a que poderá ser pensada a partir de Duchamp: onde o Modernismo opera uma transformação formal invulgarmente inventiva, Duchamp opera uma transformação conceptual ( … ) por outro lado, e ainda que o ready- made implique uma revalorização do médium, análoga aquela que Clement Greenberg irá sistematizar como teoria do Modernismo, o médium é em Duchamp, e ao contrário do programa modernista subordinado e função do enquadramento conceptual^24. Após 1912 e com o advento dos ready-made, a forma constitui uma espécie de véu de Maia que não diz o objecto, que não permite ao receptor utilizar elementos a priori que facilitem a integração da obra numa dada tradição artística. Contudo, isso não quer significar que a forma desse objecto ou a representação que o artista re-apresenta seja irrelevante para a compreensão dessa realidade. Penso que é perfeitamente problematizável a questão da
23 MICHELI, De Mario – Las vanguardias artísticas del siglo XX. Madrid: Alianza Editorial, 1983, p. 155 24 GOMES, Hélder – Op. cit. p. 25-