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Capítulo I: O Que Faz as Pessoas Infelizes?, Exercícios de Psicologia

Bertrand russell discute a infelicidade humana, observando que animais são felizes com boa saúde e suficiente comida, enquanto humanos não o são, mesmo em circunstâncias favoráveis. Ele analisa diferentes tipos de infelicidade, causados em parte pelo sistema social e em parte pela psicologia individual. Russell sugere que a felicidade pode ser alcançada através de mudanças na vontade do indivíduo.

Tipologia: Exercícios

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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CAPÍTULO I
O Que Torna as Pessoas Infelizes?
Os animais são felizes desde que tenham boa saúde e bastante
comida. Tem ‑se a impressão de que os seres humanos deveriam sê ‑lo
em iguais circunstâncias, mas tal não sucede, pelo menos na maioria
dos casos, no nosso mundo moderno. Se o leitor é infeliz, está natu‑
ralmente preparado para admitir que a sua infelicidade não é uma
exceção. Se é feliz, pergunte a si mesmo quantos dos seus amigos o
são. E, quando os analisar, habitue ‑se à arte de ler nas fisionomias e
procure ser recetivo à disposição daqueles que encontra no decurso
da vida quotidiana. Blake dizia:
Uma marca em cada rosto eu vejo,
Marca de fraqueza, marca de sofrimento.
Ainda que por razões diferentes, em toda a parte verá pessoas
infelizes. Suponhamos que o leitor se encontra em Nova Iorque, a
mais típica das grandes cidades modernas. Detenha ‑se, por mo
mentos, numa rua movimentada, durante as horas do trabalho; as
sista, num fim de semana, ao movimento de uma das principais
artérias; ou vá à noite a uma sala de dança. Liberte ‑se do seu pró
prio eu e deixe ‑se penetrar sucessivamente pela personalidade das
pessoas que o rodeiam. Descobrirá que cada uma dessas multidões
diferentes tem as suas inquietações próprias. Na azáfama da hora
do trabalho, verá ansiedade, concentração excessiva, dispepsia,
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CAPÍTULO I

O Que Torna as Pessoas Infelizes?

Os animais são felizes desde que tenham boa saúde e bastante comida. Tem‑se a impressão de que os seres humanos deveriam sê‑lo em iguais circunstâncias, mas tal não sucede, pelo menos na maioria dos casos, no nosso mundo moderno. Se o leitor é infeliz, está natu‑ ralmente preparado para admitir que a sua infelicidade não é uma exceção. Se é feliz, pergunte a si mesmo quantos dos seus amigos o são. E, quando os analisar, habitue‑se à arte de ler nas fisionomias e procure ser recetivo à disposição daqueles que encontra no decurso da vida quotidiana. Blake dizia:

Uma marca em cada rosto eu vejo, Marca de fraqueza, marca de sofrimento.

Ainda que por razões diferentes, em toda a parte verá pessoas infelizes. Suponhamos que o leitor se encontra em Nova Iorque, a mais típica das grandes cidades modernas. Detenha‑se, por mo‑ mentos, numa rua movimentada, durante as horas do trabalho; as‑ sista, num fim de semana, ao movimento de uma das principais artérias; ou vá à noite a uma sala de dança. Liberte‑se do seu pró‑ prio eu e deixe‑se penetrar sucessivamente pela personalidade das pessoas que o rodeiam. Descobrirá que cada uma dessas multidões diferentes tem as suas inquietações próprias. Na azáfama da hora do trabalho, verá ansiedade, concentração excessiva, dispepsia,

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falta de interesse por tudo o que seja alheio à sua luta, incapacidade para se divertir, ignorância a respeito dos seus semelhantes. Em qual‑ quer estrada num fim de semana, verá homens e mulheres que gozam uma vida confortável, alguns mesmo bastante ricos, empenhados na perseguição do prazer. Essa perseguição é feita por todos em anda‑ mento uniforme, o andamento do carro mais vagaroso da fila; é im‑ possível ver a estrada por causa dos outros carros, ou olhar em volta e contemplar a paisagem, com receio dos acidentes; todos os ocu‑ pantes de todos os automóveis vão absorvidos pelo desejo de ultra‑ passar o carro que vai à frente, mas não o podem fazer por causa da multidão; se o seu pensamento se evade dessa preocupação, o que pode suceder àqueles que não vão ao volante, um aborrecimento ir‑ reprimível apodera‑se logo deles e marca nas suas feições o habitual descontentamento. Às vezes poderá surgir na estrada um carro cheio de gente de cor que mostre verdadeira alegria, mas tal comportamen‑ to provoca a indignação dos restantes e o carro excêntrico acabará por cair nas mãos da polícia, depois de sofrer algum acidente: não é permitido divertirem‑se em dia de folga. Observe agora as pessoas num local de diversões noturnas. Todos chegam decididos a serem felizes, com a mesma inflexível resolução de quem decidiu não fazer escândalo no dentista. Julga‑se geralmen‑ te que a bebida e a intimidade conduzem à alegria; assim, as pessoas embebedam‑se rapidamente e procuram não reparar quanto os seus companheiros lhes desagradam. Depois de ingerirem suficiente quantidade de bebidas, os homens começam a chorar e a lamentar‑se por serem indignos, moralmente, do amor das suas mães. Tudo o que o álcool faz por eles é libertar‑lhes o sentimento de culpa, que a ra‑ zão abafa nos momentos normais. As causas destes diferentes géneros de infelicidade residem em parte no sistema social e em parte também na psicologia do indivíduo — que, por sua vez, é em larga medida um produto do sistema social. Já em tempos escrevi acerca das mudanças no sistema social indis‑ pensáveis ao aumento da felicidade. Não é pois minha intenção falar neste volume da abolição da guerra, da exploração económica e da educação na crueldade e no medo. Descobrir um sistema que permita evitar a guerra é uma necessidade vital para a nossa civilização; mas nenhum sistema será viável enquanto os homens forem tão infelizes

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pelo contrário, amo a vida; poderia quase dizer que a cada ano que passa a amo mais. Isso deve‑se em parte ao facto de ter descoberto as coisas que mais desejava e de ter alcançado muitas delas a pouco e pouco, em parte também por ter afastado de mim, felizmente, cer‑ tos objetos de desejo, essencialmente inacessíveis, tais como a aqui‑ sição de um conhecimento absoluto num ou noutro campo, mas principalmente por me preocupar menos com a minha própria pes‑ soa. Como tantos outros que tiveram uma educação puritana, eu ti‑ nha o hábito de meditar nos meus pecados, nas minhas loucuras e nas minhas imperfeições. Julgava‑me — sem dúvida com razão — um sujeito miserável. A pouco e pouco, porém, aprendi a ser indiferente a mim próprio e às minhas deficiências; comecei a concentrar cada vez mais a minha atenção nos objetos exteriores: a situação do mun‑ do, os vários ramos do saber, as pessoas pelas quais sentia afeição. É certo que os interesses exteriores comportam também muitas possi‑ bilidades de sofrimento: o mundo pode ser mergulhado em guerra; o saber, em certa direção, pode ser difícil de adquirir; os amigos po‑ dem morrer. Mas os sofrimentos desta ordem não destroem a quali‑ dade essencial da vida como os que resultam da aversão por si mes‑ mo. Além disso, todo o interesse exterior incita a qualquer atividade, o que é um ótimo preventivo contra a tristeza enquanto esse interes‑ se permanece vivo. O interesse por si próprio, pelo contrário, não conduz a qualquer atividade de caráter progressivo. Pode levar al‑ guém a escrever um diário, a fazer psicanálise ou talvez a tornar‑se monge. Mas o monge não será feliz enquanto a rotina do mosteiro não o fizer esquecer a sua própria alma. A felicidade que ele atribui à religião, alcançá‑la ‑ia igualmente como varredor de ruas, desde que fosse obrigado a sê‑lo sempre. Uma disciplina exterior é o único caminho da felicidade para esses desafortunados cujo egocentrismo é demasiado profundo para se curarem de outra maneira. Há egocentrismos de várias espécies. Podemos considerar o peca‑ dor, o narcisista e o megalómano os três tipos mais comuns. Quando falo em «pecador», não penso no homem que comete pecados; pecados são cometidos por toda a gente ou por ninguém, conforme a definição que dermos à palavra. Penso, sim, no homem que é absorvido pela ideia do pecado. Esse homem está perpetua‑ mente exposto à sua própria desaprovação, que, se é religioso, inter‑

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preta como a desaprovação de Deus. Tem de si uma imagem de co‑ mo pensa que devia ser, e essa imagem está em contínuo conflito com o conhecimento que tem de si mesmo. Embora o seu pensamen‑ to consciente se tenha libertado há muito das máximas aprendidas no colo materno, o seu sentimento de culpa, profundamente mergulhado no inconsciente, emerge de lá com o sono ou a embriaguez, e pode ser suficientemente forte para lhe roubar o gosto por todas as coisas. No fundo, aceita ainda todas as proibições que lhe ensinaram na in‑ fância: blasfemar é pecado, beber é pecado, ser astucioso nos negó‑ cios é também pecado, e, acima de tudo, o sexo é pecado. Natural‑ mente, esse homem não se priva de alguns desses prazeres, mas envenena‑os a todos com o sentimento de que eles o degradam. O único prazer que desejaria ardentemente era o de ser aprovado e acariciado pela sua mãe, como se recorda de ter sido na infância. Mas como tal prazer não está ao seu alcance, sente que nenhum outro tem importância; e uma vez que precisa de pecar, decide fazê‑lo profundamente. Quando procura o amor, espera dele a ternura mater‑ nal, mas não pode aceitá‑la, porque a imagem da mãe o impede de respeitar qualquer mulher com quem tenha relações sexuais. Então, na sua desilusão, torna‑se cruel, arrepende‑se depois da sua cruelda‑ de, e recomeça de novo o ciclo infernal de pecados imaginários e de remorsos reais. Esta é a psicologia de muitos réprobos aparentemen‑ te endurecidos. O que os guia no mau caminho é a devoção a um objeto inacessível (a mãe ou quem a substitua), juntamente com o ridículo código moral que lhes foi inculcado na infância. Libertar‑se da tirania das primitivas crenças e afeições é o primeiro passo para a felicidade dessas vítimas da «virtude» materna. O narcisismo é, de alguma maneira, o contrário do sentimento de culpa: consiste no hábito de se admirar e no desejo de ser admirado. Dentro de razoáveis limites, é absolutamente normal e não deve ser deplorado; somente em excesso se torna nocivo. Em muitas mulhe‑ res, especialmente nas que pertencem às classes mais altas, a capaci‑ dade de amar é completamente aniquilada e substituída por um po‑ deroso desejo de serem amadas por todos os homens. Quando uma tal mulher está certa do amor de um homem, perde todo o interesse por ele. A mesma coisa sucede, embora menos frequentemente, com os homens; o exemplo clássico é o herói de As Ligações Perigosas.