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Este documento discute a longa história da divisão entre o pensamento político de direita e esquerda, traçando suas raízes até a assembleia dos estados gerais de 1789. Ele questiona as ideias comuns sobre o que significa ser de direita ou esquerda e explora as ideias clássicas de autores como frédéric bastiat e igor teo. O texto também examina a relação entre o liberalismo e o estado, e o papel das tradições e costumes na sociedade.
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Yuri de Matos Mesquita Teixeira^1 * RESUMO A discussão acerca do pensamento político “de direita” e “de esquerda” é antiga e remonta a mais de dois séculos, desde, pelo menos, a Assembleia dos Estados Gerais de 1789, no período da Revolução Francesa. A dicotomia tem ganhado cada vez mais força no debate político atual. Malgrado haja diversas teorias acerca do pensamento esquerdista, as ideias “de direita” não parecem ser adequadamente divulgadas e, dentro do senso comum, quase sem- pre são postas como sendo pensamentos de pessoas retrógradas e preconceituosas. O presente artigo tem como finalidade apontar qual é, de fato, o pensamento que guia os “direitistas”, rompendo com a ideia equivocada do senso comum. Palavras-chave: Ciências Sociais e Filosofia Política; Cor- rentes do pensamento político; Direita; esquerda. ABSTRACT The discussion about “right” and “left” political thinking is old and dates back more than two centuries ago, at least since the Es- tates General in 1789, in the period of the French Revolution. The dichotomy of this political thoughts has increasing in the political debate nowdays. Although there are several theories about the “left-wing” thinking, “right-wing” ideas do not seem to be adequa- tely disseminated and, within common sense, are almost always 1 *^ Membro do grupo de pesquisa em Direito Eleitoral e Democracia da Escola Judiciária Eleitoral da Bahia em associação com a Universidade Federal da Bahia. Mestrando em Direito pela Univer- sidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera. Bacharel em Direito pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão. Analista Judiciário - Área Judiciária
ESCOLA JUDICIÁRIA ELEITORAL DA BAHIA considered to be thoughts of retrograde and prejudiced people. The purpose of this article is to point out what, in fact, is the thinking that guides the “right-wingers”, breaking with the mistaken idea of common sense. Keywords: Social Sciences; Political philosophy; Political views; Right-wing; Left-wing. 1 INTRODUÇÃO - O (EQUIVOCADO) SENSO COMUM ACERCA DA DIREITA E DA ESQUERDA “Comunista”, “esquerdopata”, “fascista”, “conservador”, “retró- grado”, “neoliberalzinho”...essas são expressões que vêm sendo utilizadas nos últimos anos no Brasil (em especial, após as eleições de 2016), para ofender pessoas que se posicionam – ao menos, em tese – em espectros políticos de polos diferentes. O leitor sabe identificar quais dessas “alcunhas” são utilizadas quando se quer dizer que alguém é “de direita” ou “de esquerda”. Mas, afinal, o que seria o pensamento político “de direita”, e o que seria o de “esquerda”? Igor Teo, no livro intitulado “Entre a Esquerda e a Direita – uma reflexão política”, diz que “ser de direita” é concordar com o capitalismo e suas instituições.^2 Para ele, quem é de direita acredita nos valores do individualismo, da meritocracia e da primazia do lu- cro. “Em alguns casos ainda é possível ver sujeitos que defendam seus valores mais radicais, como o tradicionalismo da família (ser contra modelos diferentes de família que o heterossexual nuclear), o machismo (ser contra a igualdade de direitos entre homens e mulheres), entre outros”.^3 Por outro lado, diz que “ser de esquerda” é uma questão de percepção. “É perceber que os direitos dos trabalhadores, dos negros, das mulheres, dos homossexuais, dos pobres são direitos fundamentais. É perceber que o capitalismo é um sistema que explora os recursos naturais do planeta até causar sua completa destruição”,^4 além de que, mesmo que o modelo liberal tenha pontos 2 ARRAIS, Rafael; CARVALHO, Alfredo; TEO, Igor. Entre a Esquerda e a Direita : uma reflexão política. [S. l.]: Textos para Reflexão, 2016. E-book. p. 7. 3 Ibidem. 4 Ibidem, p. 8.
ESCOLA JUDICIÁRIA ELEITORAL DA BAHIA Pelo visto, se a ideia que prevalece no senso comum estiver correta, então Fidel Castro em hipótese alguma pode ser alguém “de esquerda”. Mas, como também era contra o capitalismo e o sistema liberal, tampouco pode ser considerado alguém “de direita”. E o que dizer de autores clássicos, como Frédéric Bastiat?^7 Em 1850 escreveu um livro denominado “A Lei”, no qual são abordadas as bases do pensamento liberal. E nesta obra, o autor expressa- mente critica o fato de, na França pós-revolucionária, se falar de “sufrágio universal” quando nem todos os franceses podiam votar, notadamente as mulheres. Bastiat faz essa constatação criticando o fato de determinado grupo de indivíduos – o que hoje se deno- minaria “a elite” – se apropriarem da lei e impedirem que um maior número de pessoas possa participar da vida política justamente para defender e manter seus interesses mesquinhos. Ora, tem-se aqui um autor, considerado um dos mais clássi- cos dos liberais, atacando a “espoliação” da lei por um grupo de poderosos que busca manter seus interesses, excluindo milhões de pessoas – notadamente mulheres – da participação política. Seria Bastiat “de esquerda”? Como, se ele defende ferrenhamente o liberalismo? Ademais: a definição acima é por demais simplista e ignora a possibilidade de ambas as ideias coexistirem. É dizer: é plena- mente possível que alguém defenda os direitos dos trabalhadores, dos homossexuais, negros, mulheres e também seja a favor do liberalismo, do capitalismo, da meritocracia etc. É o caso, por exemplo de Luiz Felipe Pondé, um dos maiores filósofos brasileiros da atualidade, que afirmou expressamente o seguinte: “Sou conservador e sou contra o projeto da cura gay e a favor do casamento gay”.^8 Mais uma vez, se adotado o conceito acima retratado, Luiz Felipe Pondé seria “de esquerda” – pois a favor dos direitos dos homossexuais. Mas como isso é possível se ele mesmo diz con- servador? 7 BASTIAT, Frédéric. A lei : por que a esquerda não funciona? As bases do pensamento liberal. Tradução de Eduardo Levy. Barueri, SP: Faro Editorial, 2016. E-book. n. p. 8 PONDÉ, Luiz Felipe. Sou conservador e sou contra o projeto da cura gay e a favor do casamen- to gay. [São Paulo], 29 maio 2016. Twitter: Luiz Felipe Ponde @lf_ponde. Disponível em: https:// twitter.com/lf_ponde/status/737072032102395905. Acesso em: 10 jun. 2021.
ARTIGOS INEDITOS E o que dizer do político Fernando Silva Bispo, mais conhecido como “Fernando Holiday”, eleito vereador de São Paulo em 2016 e reeleito em 2020 como um dos cinco mais bem votados daquele município?^9 Negro e assumidamente homossexual, ele defende as bandeiras do liberalismo político – sendo ojerizado por muitas lideranças de esquerda por conta disso. Como, então, posicioná-lo ideologicamente? Chamar de “capitãozinho do mato nazista”, como fez o sempre candidato à presidência da república, Ciro Gomes, ao vivo em uma rádio,^10 com certeza não é correto – a conduta é bastante reprovável. Aliás, para alguém que se declara “de esquerda” como o próprio Ciro Gomes, chamar um negro de “capitãozinho do mato”^11 soa bastante estranho. Tudo isso revela que o conceito acima utilizado acerca do que é “ser de direita” e “ser de esquerda” está errado. Errado porque não se pode misturar pautas – como direitos dos trabalhadores, direitos das mulheres, legalização do aborto etc. - como sendo exclusivamente de um dos lados. Um liberal “de direita” pode ser a favor ou contra o aborto. Como, então, diferenciar o que é esquerda e direita? É esta a temática do presente artigo, que tem por objetivo esclarecer as prin- cipais ideias que norteiam estes campos do pensamento político. 2 SER “DE DIREITA” E “SER DE ESQUERDA Norberto Bobbio^12 ensina que “direita” e “esquerda” são ter- mos antitéticos que há mais de dois séculos são empregados para designar o contraste entre as ideologias e os movimentos em que se divide o pensamento político. 9 SIQUEIRA, André. Quem são os vereadores mais votados na cidade de São Paulo. Jovem Pan , São Paulo, 16 nov. 2020. Política. Disponível em: https://jovempan.com.br/noticias/politica/quem- sao-os-vereadores-mais-votados-na-cidade-de-sao-paulo.html. Acesso em: 10 jun. 2021. 10 CIRO chama Holiday de “capitãozinho-do-mato nazista” e vereador rebate. Publicado pelo ca- nal Jovem Pan News. [S. l.]: [s. n.], 2019. 1 vídeo (4 min). Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=L7JATkMj7CM. Acesso em 10 jun. 2021. 11 BRANDINO, Géssica; DELFIM, Rodrigo Borges. Ciro chama Holiday de “capitãozinho do Mato” e vereador o acusa de racismo. Folha de São Paulo, São Paulo, 18 jun. 2018. Poder. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/ciro-gomes-chama-vereador-fernando-holiday- de-capitaozinho-do-mato.shtml. Acesso em: 10 jun. 2021. 12 BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda : razões e significados de uma distinção política. Tradu- ção de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: UNESP, 1995. p. 31.
ARTIGOS INEDITOS em duas visões distintas da relação humana: aquela defendida por Thomas Hobbes e aquela por Jean-Jacques Rousseau. Isso porque Rousseau acreditava que o ser humano, em seu estado primitivo, é bom por natureza. O que o corrompe é a estrutura do processo civilizatório “O homem nasceu livre, e em toda parte se encontra sob ferros”.^17 Isto posto, todas as mazelas sociais que são encontradas no mundo (desigualdade social e econômica, machismo, homofobia, xenofobia etc.) são causadas não pelo ser humano em si, mas sim pela própria sociedade. São as instituições sociais que fazem com que alguém, nascido livre e bom, ao se relacionar com outro indivíduo, acabe se corrompendo pelas relações de poder de que passa a gozar. Aqui está a base do pensamento da esquerda. O ser humano é bom, mas há um “sistema” que o corrompe. O pensador de es- querda “acredita que o mundo é deficiente em sabedoria e justiça, e que a falha reside não na natureza humana, mas nos sistemas de poder estabelecidos. Ele se opõe ao poder estabelecido, como o defensor da ‘justiça social’ que retificará a antiga queixa dos oprimidos”.^18 Dentro dessa ideia de deficiência dos sistemas sociais esta- belecidos está o conceito de estrutura e superestrutura defendido por Karl Marx. Afirma o autor que “não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência”.^19 Com isso, defende que no decorrer das relações sociais traçadas em suas vidas, os homens contraem laços que são necessários e independentes de suas vontades, os quais acabam ganhando “vida própria” e, assim, passam a fazer parte da identidade/consciência do indivíduo que se insere no meio social. Dentre essas relações, a mais marcante, para a teoria mar- xista, é a forma como os indivíduos se relacionam para a produ- ção econômica. O “conjunto dessas relações de produção forma 17 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Heitor Afonso Gusmão Sobrinho. Joinville, SC: Clube de Editores, 2020. E-book. n. p. 18 SCRUTON, Roger. Pensadores da Nova Esquerda. Tradução de Felipe Garrafiel Pimentel. São Paulo: E Realizações, 2014. p. 15. 19 MARX, Karl. Uma Contribuição para a Crítica da Economia Política. [S. l.]: [s. n.], 2012. E-book. Obra de Domínio Público. n. p.
ESCOLA JUDICIÁRIA ELEITORAL DA BAHIA a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social”.^20 Portanto, as ordens jurídica, econômica e até mesmo religiosa nada mais seriam que a consciência coletiva desenvolvida pelas pessoas para manter a ordem econômica vigente – no caso, o ca- pitalismo. Aquelas (as superestruturas) ganham vida para justificar esta (estrutura econômica). Não à toa sempre se vê autores e ativistas políticos identifi- cados com o posicionamento de esquerda proferindo palavras de ordem “contra o sistema” e “abaixo o sistema”. Acreditam, portanto, que reformando a sociedade e suas instituições, esse “sistema” ruirá e o ser humano finalmente se livrará de seus grilhões opressores, voltando a um estado de bondade natural em que todos serão livres e iguais, cooperando mutuamente. Diametralmente oposta é a visão de Thomas Hobbes. Cético desta visão do “bom selvagem”, Hobbes afirma que o “homem é lobo do próprio homem”.^21 As pessoas carregam dentro de si vícios que as levam a sempre buscar seus interesses acima dos outros, o que conduz a “uma guerra de todos contra um, e de todos entre si”.^22 É por isso que defendia um Estado que monopolizasse o uso da força e assim impedisse que as pessoas retornassem a este estado animalesco, onde a vida em sociedade seria bastante difícil. Vê-se, pois, que um lado (Rousseau), acredita que o ser hu- mano é bom, mas que as estruturas sociais nas quais ele se insere acabam por corrompê-lo. Já o outro (Hobbes), é cético em relação a toda esta bondade inata do ser humano, acreditando que em verdade este possui muitos vícios e que são necessárias institui- ções para controlar certas condutas para o bom desenvolvimento da vida humana em sociedade. Eis, portanto, a diferença entre esquerda e direita – ao menos a aqui defendida. É uma diferença de percepção – nisto, ao menos, Igor Teo estava certo. Mas uma percepção acerca da natureza hu- mana: se inatamente boa – mas corrompida “pelo sistema” -, ou se 20 MARX, Karl, loc. cit. 21 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Tradução de Eleonora Magalhães de Gusmão. Joinville, SC: Clube de Editores, 2020. p. 4. E-book. 22 HOBBES, Thomas. Leviatã : ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 2. ed. [S. l.]: Lebooks Editora, 2020. p. 5. E-book.
ESCOLA JUDICIÁRIA ELEITORAL DA BAHIA Talvez em outro artigo se busque explanar as diversas formas de pensamento da esquerda. Como o atual trabalho tem como objetivo apontar as ideias que giram em torno da direita, vamos a elas então. 2.1 O PENSAMENTO DA DIREITA – ENTRE O LIBERALISMO E O CONSERVADORISMO Conforme dito acima, o pensamento de Thomas Hobbes é aquele que marca o que vem a ser chamado de “pensamento da direita”, ou seja: o ser humano possui vícios e é preciso instrumentos de controle para combatê-los e assim permitir o bom desenvolvi- mento da vida em sociedade. Dentre dessa visão, encontramos as correntes de pensamento político do liberalismo e do conservadorismo. 2.1.1 O LIBERALISMO Para o senso comum, “liberal”^25 é alguém que acredita no mercado (isto é, na “lei da oferta e procura”) e na meritocracia (o in- divíduo tem direito àquilo que, com suas próprias forças, conseguiu conquistar), de modo que o Estado seria (quase) desnecessário. Tal visão – que é equivocada, desde já se advirta – foi apre- sentada de forma bastante clara pelo ex-presidente Lula, em en- trevista concedida à revista Carta Capital em 19/05/2020, quando falou: “Ainda bem que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus porque esse monstro está permitindo que os cegos enxerguem, que os cegos comecem a enxergar, que apenas o Estado é capaz de dar solução a deter- minadas crises”.^26 25 É certo que há discussão acerca dos diversos tipos de liberalismo. Há o chamado liberalismo clássico (cujas principais ideias foram lançadas no século XVIII) e o “neoliberalismo”, debatido já no século XX e que tem como objetivo adaptar as ideias clássicas às exigências de um Estado regulador e cada vez mais assistencialista. Nada obstante, como o próprio termo “neoliberal” é algo difuso e polêmico, neste artigo, os termos “Liberal” e “Liberalismo” serão utilizados para se referir tanto ao pensamento clássico (século XVIII) quando ao mais moderno (século XX e XXI). 26 “AINDA bem” que “monstro” do coronavírus veio para demonstrar necessidade do Estado, diz Lula. G1, Brasília, 19 maio 2020. Política. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noti- cia/2020/05/19/ainda-bem-que-monstro-do-coronavirus-veio-para-demonstrar-necessidade-do-es- tado-diz-lula.ghtml. Acesso em 10 jun. 2021.
ARTIGOS INEDITOS Deixando de lado a polêmica envolvendo o “lado positivo do coronavírus” – esse julgamento ficará a cargo do leitor -, o certo é que Lula estava fazendo críticas às políticas e ideias (tidas por) liberais que atualmente parecem sondar a maioria dos gestores brasileiros – e seus eleitores. Ocorre que a intervenção do Estado em situações de crise e em momentos de necessidade é algo defendido pela doutrina liberal, e não por ela repudiada. O problema é que o senso comum – sem- pre problemático e carente de informações – imagina que o liberal é um anarcocapitalista, isto é, alguém que considera que o Estado não deveria sequer existir e que todas as soluções seriam ditadas pelo mercado. Isso é falso. “Fake News”, nos dizeres de hoje. O liberalismo acredita sim na livre iniciativa e na economia de mercado. Ocorre que, como muito bem lembram Rose e Milton Friedman,^27 a liberdade econômica (ou seja, liberdade de merca- do, de livre iniciativa e livre propriedade etc.) é apenas uma das facetas do liberalismo político. Se o liberalismo fosse comparado a um edifício, a liberdade econômica seria “apenas” uma de suas diversas pilastras. Há outras, como a liberdade religiosa, liberdade de manifestação intelectual, liberdade política, liberdade afetiva/ sexual, etc. No caso de uma destas ser destruída, há o sério risco de todo o edifício ruir. Não à toa, os supracitados autores afirmam que: “A liberdade econômica é uma condição essencial para a liberdade política. Ao possibilitar que as pessoas cooperem umas com as outras sem coerção nem comando central, tal liberdade reduz a área sobre a qual é exercido o poder político”.^28 Do mesmo modo, Ludwig von Misses vai dizer que “é incorreto interpretar a atitude do liberalismo, em relação ao estado, ao afir- mar-se que essa doutrina deseja limitar a sua esfera de atividades possíveis ou que abomina, em princípio, toda atividade executada pelo estado”.^29 A propósito, em esclarecedora passagem de sua obra, o mencionado autor afirma: 27 FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose. Livre Para Escolher : uma reflexão sobre a relação entre liberdade e economia. Tradução de Ligia Filgueiras. Rio de Janeiro: Record, 2015. E-book. n. p. 28 FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose, loc. cit. 29 VON MISES, Ludwig. Liberalismo. São Paulo: LVM Editora, 2017. p. 65. E-book.
ARTIGOS INEDITOS Ora, se o Estado tem a obrigação de defender o indivíduo de ameaças externas e internas, é de todo óbvio que ele também tem o dever de defender os cidadãos de algo tão terrível como uma pandemia – Lula está errado, portanto. O liberalismo defende que os seres humanos são iguais entre si e por conta disso gozam de liberdade. A liberdade pode ser ma- nifestada de diversas formas (liberdade política, religiosa, sexual, cultural, econômica, etc.), desde que o uso dessa liberdade não possa atingir a esfera de liberdade de outro indivíduo. Daí vem o ditado popular “a minha liberdade termina onde a sua começa”. Os liberais, ao contrário do que acredita o ex-presidente su- pracitado, não são contra o Estado, mas afirmam que este deve ter uma atuação reduzida – são contra o “gigantismo estatal” -, tendo como função principal a defesa do indivíduo para que este possa usufruir, dentro de uma situação de igualdade de oportunidade perante os demais, a sua liberdade. Para quem pensa no liberalismo de acordo com o senso comum, pode até parecer espantoso se deparar com a expressão “igualdade de oportunidade”. Mas sim, o liberalismo acredita que, para o indivíduo desenvolver plenamente sua liberdade, é preciso que a ele seja dada igualdade não só perante a lei, mas também de oportunidade de participação em conjunto com os demais para desenvolver seus projetos individuais de vida. Igualdade, no caso, além de “igualdade perante a lei”, é cada vez mais interpretada como “igualdade de oportunidades”, no sentido de que ninguém deverá ser impedido de perseguir seus próprios objetivos por conta de obstáculos arbitrários que lhe são impostos.^32 “Não há qualquer conflito da igualdade de oportuni- dade com a liberdade para conduzir a própria vida. Exatamente o contrário. Igualdade e liberdade são duas faces do mesmo valor básico – o de que cada indivíduo deveria ser considerando um fim em si mesmo”.^33 O mesmo é dito por John Rawls, que afirma haver duas ques- tões fundamentais para o pensamento liberal: a primeira é a de que “todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente 32 FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose. Livre Para Escolher: uma reflexão sobre a relação entre liberdade e economia. Tradução de Ligia Filgueiras. Rio de Janeiro: Record, 2015. E-book. passim. 33 FRIEDMAN, Milton; FRIEDMAN, Rose, loc. cit.
ESCOLA JUDICIÁRIA ELEITORAL DA BAHIA satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos”;^34 e a segunda é de que as desigualdades sociais e econômicas so- mente poderão se justificar se tais diferenças estiverem “vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades”.^35 Desse modo, a disparidade econô- mico-social em razão da oferta de melhores condições de trabalho e remuneração somente podem ser toleradas se há cargos e funções (na iniciativa privada e no serviço público, por exemplo) que estejam abertas e disponíveis a todas as pessoas que, em igualdade de oportunidade, poderão concorrer para ocupá-las (independente de raça, sexo, ideologia, religião, origem social, etc.). Se houver um empecilho arbitrariamente imposta contra o indivíduo e que o impeça de concorrer por tais oportunidades, então o Estado deve atuar para combater tal entrave. Vê-se, pois, que a igualdade de oportunidades é tão impor- tante para a corrente do pensamento liberal quando a própria liberdade em si. Isso porque, sem a oportunidade, o indivíduo não gozará do direito de efetivamente ditar os rumos de sua vida a partir de suas escolhas e convicções. Não é admissível, como Rose e Milton Friedman afirmaram acima, que ao indivíduo seja impostos obstáculos arbitrários de usar sua capacidade para perseguir seus objetivos individuais. Pode-se comparar a ideia do liberalismo à competição de natação. Todos os competidores devem partir do mesmo ponto para dar o tiro de largada e assim, ao se lançarem na piscina, em igualdade de oportunidades, utilizarem de sua destreza esportiva para chegar o mais rápido possível ao ponto final. Se alguém, antes de a competição começar, estiver muito atrás (começar a 10 metros de distância atrás dos demais concorrentes, por exemplo), então obviamente a competição estará viciada e não se estará facultado ao retardatário a chance de competir com os demais em igualdade de oportunidade. O que o liberalismo é contra é a chamada “igualdade de re- sultados”. Essa é a ideia de que, mesmo facultado a oportunidade de o indivíduo lutar para conquistar seus objetivos, o Estado, de algum modo, deve também garantir que todos obtenham os mesmos 34 RAWLS, John. O Liberalismo Político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. 2. ed. Brasília, DF: Editora Ática, 2000. p. 47. 35 Ibidem, p 47-48.
ESCOLA JUDICIÁRIA ELEITORAL DA BAHIA satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos”.^36 Se esse projeto envolve se relacionar afetivamente com pessoas do mesmo sexo ou de sexo distinto, isso pouco importa para o pensamento liberal. Não é de se espantar, pois, que na década de 60, Friedrich August von Hayek, no livro “The Constitution of Liberty”,^37 tenha afirmado que práticas que não afetam ninguém senão os adultos nelas envolvidos não podem ser causa de coerção estatal, ainda que elas não sejam aprovadas pela maioria das pessoas – tendo citado expressamente as relações homossexuais como o caso mais nítido de não intervenção estatal, uma vez que é algo que diz respeito tão somente aos adultos que assim afetivamente se relacionam. 2.1.2 O CONSERVADORISMO Imediatamente, ao se falar de conservadorismo, as primeiras coisas que vêm à mente da maioria das pessoas são palavras como: “xenófobo”, “racista”, “machista”, “sexista”, “retrógrado”, “homofóbico”, etc. É o tal do “senso comum”. Se tal pensamento fosse correto, então como Luiz Felipe Pondé teria declarado que, sendo conservador, é a favor do ca- samento gay e contra a tal da “cura gay”? Seria um caso de dupla personalidade que o filósofo estaria acometido? Óbvio que não. Em verdade, assim como é com o liberalismo, há um equívoco acerca do que é o pensamento conservador. Desde já, cumpre esclarecer o que o conservadorismo não é: o conservadorismo não é uma mentalidade reacionária. Aliás, como bem salienta Mark Lilla: Os reacionários não são conservadores. É a primeira coisa que se deve entender a seu respeito. À sua maneira, são tão radicais quanto os revolucionários e não menos firmemente presos nas garras da imaginação histórica. As expectativas milenaristas de uma nova ordem social redentora e de seres humanos rejuvenescidos inspiram os revolucionários; os re- 36 RAWLS, John, loc. cit. 37 HAYEK, F. A.. The Constitution Of Liberty. Chicago: The University Of Chicago Press, 2011. p.
ARTIGOS INEDITOS acionários são obcecados pelo medo apocalíptico de entrar numa nova era de escuridão.^38 O reacionário é aquele que tem a convicção (ou fé) de um passado glorioso que se perdeu com a mudança do tempo, e que o retorno a tal passado se faz necessário para resgatar aquilo que foi perdido. O pensamento reacionário funciona mais ou menos da se- guinte forma: Sua história começa com um Estado feliz ordenado no qual as pessoas que conhecem seu devido lugar vivem em har- monia, submissas à tradição e a seu Deus. Vêm então ideias alienígenas promovidas por intelectuais — escritores, jorna- listas, professores — questionar essa harmonia, e a vontade de preservar a ordem é debilitada no topo da pirâmide. (A traição das elites é o esteio de toda narrativa reacionária.) Uma falsa consciência logo se abate sobre a sociedade como um todo, à medida que ela caminha deliberada e mesmo alegremente para a destruição. Só aqueles que guardaram lembrança das velhas práticas são capazes de ver o que está acontecendo. Depende exclusivamente da sua resistência se a sociedade será capaz de inverter esse direcionamento ou se precipitará na própria ruína.^39 O espírito reacionário tem muito mais em comum com a men- talidade revolucionária do que com o conservadorismo propriamente dito. É que ambos (reacionário e revolucionário) estão insatisfeitos com o atual estado das coisas, e acreditam que mudanças precisam ser feitas para se atingir determinadas melhorias. O revolucionário busca a ruptura com o statu quo para atingir um futuro que considera melhor. O reacionário também busca romper com o statu quo , mas ao invés de mirar no futuro, mira em um passado que considera melhor. Ele fica preso “às garras de uma imaginação histórica”, conforme dito acima por Mark Lilla. Ao contrário, o conservador acredita sim em mudanças e que reformas devem ser implementadas. Como afirmou Edmund Burke,^40 um dos maiores expoentes do pensamento conservador, às vezes, é preciso reformar para poder conservar. Entretanto, a 38 LILLA, Mark. A mente naufragada : sobre o espírito reacionário. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2018. p. 8. 39 LILLA, Mark, loc. cit. 40 BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. Tradução de José Miguel Nanni Soares. São Paulo: Edipro. 2019. E-book. n. p.
ARTIGOS INEDITOS conservar a comunidade que temos — não em todas as suas particularidades, uma vez que, como afirmou Edmund Burke, ‘precisamos reformar a fim de conservar’, mas em todos os aspectos que asseguram a sobrevivência de longo prazo de nossa comunidade.^45 Entende o conservadorismo, assim como o liberalismo, que o ser humano não apenas colabora com o próximo, mas também com ele compete. Não tem aquela visão romântica do “bom sel- vagem”, mas antes guarda certa cautela acerca do agir humano. Crê, portanto, que a competição é algo natural, mas que instituições são necessárias para assegurar que ela ocorra de forma pacífica e que eventuais conflitos sejam solucionados – o que diferencia das ideologias utópicas que acreditam que, uma vez derrubado o “sistema”, as pessoas passariam somente a cooperar entre si, não mais competindo umas com as outras. Crê o conservadorismo que, desde o seu nascimento, o indiví- duo já é inserido em comunidade e imerso em diversas instituições que o ensinam a regular o seu comportamento e a enxergar não só o “eu”, mas também o “nós” e o “outro”. É assim com a família, escola, religião, clubes, etc. Todas essas formas de relação humana trazem em si regras estabelecidas pelos seus próprios membros acerca do que pode ser feito, do que é tolerado, do que é proibido e, acima de tudo, quais são as obrigações de cada indivíduo para com o próximo. No caso, a concepção é a de que os “seres humanos chegam ao mundo com várias obrigações e sujeitos a instituições e tradições que contêm em si uma preciosa herança de sabedoria, sem a qual o exercício da liberdade tem tanto a probabilidade de destruir os benefícios e direitos humanos quanto de melhorá-los”^46. Portanto, essas instituições são preciosas e não podem ser abolidas ou tomadas pelo Estado. Isso porque é a sociedade civil
ESCOLA JUDICIÁRIA ELEITORAL DA BAHIA baixo” (ou seja, por meio de um grupo de pessoas que detém o monopólio de poder do Estado), mas sim “de baixo para cima” (as próprias pessoas no seu cotidiano vão criando as regras de boa convivência). Isto posto, pode-se concluir que “o conservadorismo defende a liberdade, sim. Mas também as instituições e atitudes que mol- dam o cidadão responsável e asseguram que essa liberdade seja benéfica para todos. O conservadorismo também defende, portanto, limites à liberdade”.^47 Além disso, também o conservadorismo defende as tradições e costumes como formas de sabedoria popular que foram testadas e aprovadas pelo tempo. “Elas contêm os resíduos de muitas ten- tativas e erros e as soluções herdadas para muitos dos problemas que encontramos”.^48 Outrossim, “ao discutir tradições, não estamos discutindo regras e convenções arbitrárias. Estamos discutindo as respostas encontradas para perguntas persistentes”.^49 Percebe-se, pois, que o pensamento conservador vai no senti- do de que as tradições e costumes que são passados pelas diversas formas de relações sociais e que são herdadas dos antepassados carregam uma sabedoria acerca de como o ser humano deve se comportar em sociedade. Não é contra as mudanças sociais (estas sempre ocorrerão), mas é contra as tentativas de total e abrupta ruptura dos costumes e tradições que fazem com que a pessoa “se sinta em casa”, isto é, contra medidas que repentinamente retirem da pessoa o seu sentimento de pertença social. Como adepto da política do ceticismo, o conservador fica “com o pé atrás” em relação à ideia de que a razão – algo puramente abstrato e não comprovado pelos testes do tempo e persistência