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Nietzsche: A Contemporaneidade e a Fratura do Tempo, Notas de aula de Tradução

Este texto analisa as 'considerações intempestivas' de friedrich nietzsche, publicadas em 1874, onde o autor busca se posicionar em relação ao presente e a sua exigência de atualidade. Nietzsche define a contemporaneidade como uma relação complexa com o tempo, que adere a ele enquanto se distancia, mantendo fixo o olhar no tempo atual para perceber o escuro, a obscuridade que não é separável das luzes. O texto explora a ideia de contemporaneidade como uma questão de coragem, uma relação com o tempo que implica atividade e habilidade particular. Além disso, o autor compara a contemporaneidade com a moda e a arqueologia, enfatizando a necessidade de dividir o tempo e colocá-lo em relação consigo mesmo.

O que você vai aprender

  • Qual é a importância da contemporaneidade na compreensão da história?
  • Qual é a definição de Nietzsche da contemporaneidade?
  • Como Nietzsche descreve a relação entre o homem e o tempo?
  • Qual é a importância da contemporaneidade na moda?
  • Como Nietzsche compara a contemporaneidade à arqueologia?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Associação Brasileira
das Editoras Universitárias : 1
Giorgio Agamben
O que é o contemporâneo?
e outros ensaios
Tradução Vinícius Nicastro Honesko
editora
do
Unochapecó
Chapecó,
2009
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Baixe Nietzsche: A Contemporaneidade e a Fratura do Tempo e outras Notas de aula em PDF para Tradução, somente na Docsity!

das Editoras UniversitáriasAssociação Brasileira :^1

Giorgio Agamben

O que é o contemporâneo? e outros ensaios Tradução Vinícius Nicastro Honesko

editora do Unochapecó Chapecó, 2009

O que é o contemporâneo?

O texto retoma aquele da lição inaugural do curso de Filosofia Teorética 2006-2007 junto à Faculdade de Arte e Design do IUAV de Veneza.

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Uma primeira e provisória indicação para orien- tar a nossa procura por uma resposta nos vem de Nietzsche. Numa anotação dos seus cursos no College de France, Roland Barthes resume-a deste modo: "O contemporâneo é o intempestivo': Em 1874, Friedrich Nietzsche, um jovem filólogo que tinha trabalhado até então sobre textos gregos e, dois anos antes, havia atin- gido uma inesperada celebridade com O nascimento da tragédia, publica as Unzeitgemasse Betrachtungen, as "Considerações intempestivas'', com as quais quer acertar as contas com o seu tempo, tomar posição em relação ao presente. "Intempestiva esta consideração o é'', lê-se no início da segunda "Consideração'', "por- que procura compreender como um mal, um incon- veniente e um defeito algo do qual a época justamen- te se orgulha, isto é, a sua cultura histórica, porque eu penso que somos todos devorados pela febre da his- tória e deveremos ao menos disso nos dar conta': Nietzsche situa a sua exigência de "atualidade'', a sua "contemporaneidade" em relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeira- mente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamen- te através desse deslocamento e desse anacronismo,

ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apre- ender o seu tempo. Essa não-coincidência, essa discronia, não signi- fica, naturalmente, que contemporâneo seja aquele que vive num outro tempo, um nostálgico que se sente em casa mais na Atenas de Péricles, ou na Paris de Robespierre e do marquês de Sade do que na cidade e no tempo em que lhe foi dado viver. Um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe, em todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que não pode fugir ao seu tempo. A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamen- te, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em to- dos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não con- seguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.

Em 1923, Osip Mandel'stam escreve uma poesia que se intitula "O século" (mas a palavra russa vek significa também "época"). Essa contém não uma

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reflexão sobre o século, mas sobre a relação entre o poe- ta e o seu tempo, isto é, sobre a contemporaneidade. Não o "século': mas, segundo as palavras que abrem o primeiro verso, o "meu século" ( vek moí):

Meu século, minha fera, quem poderá olhar-te dentro dos olhos e soldar com o seu sangue as vértebras de dois séculos? 4

O poeta, que devia pagar a sua contemporaneidade com a vida, é aquele que deve manter fixo o olhar nos olhos do seu século-fera, soldar com o seu sangue o dorso quebrado do tempo. Os dois séculos, os dois tempos não são apenas, como foi sugerido, o século XIX e o XX, mas também, e antes de tudo, o tempo da vida do indivíduo (lembrem-se que o latim saeculum significa originalmente o tempo da vida) e o tempo histórico coletivo, que chamamos, nesse caso, o século XX, cujo dorso - compreendemos na

4 Essa tradução é feita diretamente do texto italiano apresentado por Agamben na edição italiana de Che cos'ê il contemporaneo?. Desse poema existe uma tradução para o português, sob o nome A Era, feita por Haroldo de Campos em Poesia Russa Moderna, Editora Brasiliense, 1987. N.doT.

última estrofe da poesia - está quebrado. O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra. O paralelismo entre o tempo - e as vértebras - da criatura e o tempo - e as vértebras - do século constitui um dos temas es- senciais da poesia:

Enquanto vive a criatura deve levar as próprias vértebras, os vagalhões brincam com a invisível coluna vertebral. Como delicada, infantil cartilagem é o século neonato da terra.

O outro grande tema - também este, como o pre- cedente, uma imagem da contemporaneidade - é o das vértebras quebradas do século e da sua sutura, que é obra do indivíduo (nesse caso, do poeta):

Para liberar o século em cadeias para dar início ao novo mundo é preciso com a flauta reunir os joelhos nodosos dos dias.

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nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade. Com isso, todavia, ainda não respondemos a nossa pergunta. Por que conseguir perceber as trevas que provêm da época deveria nos interessar? Não é talvez o escuro uma experiência anônima e, por definição, impenetrável, algo que não está direcionado para nós e não pode, por isso, nos dizer respeito? Ao contrá- rio, o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não ces- sa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, di- rige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo.

No firmamento que olhamos de noite, as estre- las resplandecem circundadas por uma densa treva. Uma vez que no universo há um número infinito de galáxias e de corpos luminosos, o escuro que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, necessita de uma explicação. É precisamente da explicação que a astrofísica contemporânea dá para esse escuro que gostaria agora de lhes falar. No universo em expan- são, as galáxias mais remotas se distanciam de nós a uma velocidade tão grande que sua luz não consegue

nos alcançar. Aquilo que percebemos como o escuro do céu é essa luz que viaja velocíssima até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais provém se distanciam a uma velocidade supe- rior àquela da luz. Perceber no escuro do presente essa luz que pro- cura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo. Por isso os contemporâneos são ra- ros. E por isso ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da épo- ca, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar. Por isso o presente que a contemporaneidade percebe tem as vértebras quebradas. O nosso tempo, o presente, não é, de fato, apenas o mais distante: não pode em nenhum caso nos alcançar. O seu dorso está fraturado, e nós nos mantemos exatamente no ponto da fratura. Por isso somos, apesar de tudo, contemporâneos a esse tempo. Compreendam bem que o compromis- so que está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente no tempo cronológico: é, no tem- po cronológico, algo que urge dentro deste e que o transforma. E essa urgência é a intempestividade, o

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anacronismo que nos permite apreender o nosso tem- po na forma de um "muito cedo" que é, também, um "muito tarde': de um "já" que é, também, um "ainda não': E, do mesmo modo, reconhecer nas trevas do pre- sente a luz que, sem nunca poder nos alcançar, está pe- renemente em viagem até nós.

Um bom exemplo dessa especial experiência do tempo que chamamos a contemporaneidade é a moda. Aquilo que define a moda é que ela introduz no tem- po uma peculiar descontinuidade, que o divide se- gundo a sua atualidade ou inatualidade, o seu estar ou o seu não-estar-mais-na-moda (na moda e não simplesmente da moda, que se refere somente às coi- sas). Essa cesura, ainda que sutil, é perspícua no senti- do em que aqueles que devem percebê-la a percebem impreterivelmente, e, exatamente desse modo, atestam o seu estar na moda; mas, se procuramos objetivá-la e fixá-la no tempo cronológico, ela se revela inapreensível. Antes de tudo, o "agora" da moda, o instante em que esta vem a ser, não é identificável através de nenhum cronómetro. Esse "agora" é talvez o momento em que o estilista concebe o traço, a nuance que definirá a nova maneira da veste? Ou aquele em que a confia ao

desenhista e em seguida à alfaiataria que confecciona o protótipo? Ou, ainda, o momento do desfile, em que a veste é usada pelas únicas pessoas que estão sempre e apenas na moda, as mannequins, que, no entanto, exa- tamente por isso, nela jamais estão verdadeiramente? Já que, em última instância, o estar na moda da "ma- neira" ou do "jeito" dependerá do fato de que pessoas de carne e osso, diferentes das mannequins - essas víti- mas sacrificiais de um deus sem rosto -, o reconheçam como tal e dela façam a própria veste. O tempo da moda está constitutivamente adianta- do a si mesmo e, exatamente por isso, também sempre atrasado, tem sempre a forma de um limiar inapreensível entre um "ainda não" e um "não mais". É provável que, como sugerem os teólogos, isso dependa do fato de que a moda, ao menos na nossa cultura, é uma assina- tura teológica da veste, que deriva do fato de que a primeira veste foi confeccionada por Adão e Eva de- pois do pecado original, na forma de um tapa-sexo entrelaçado com folhas de figo. (Para ser preciso, as vestes que nós usamos derivam não desse tapa-sexo vegetal, mas das tunicae pelliceae, das vestes feitas de pele de animal que Deus, segundo Gen. 3, 21, faz ves- tir, como símbolo tangível do pecado e da morte, nossos progenitores no momento em que os expulsa do paraíso.) Em todo caso, qualquer que seja a razão

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com a ruína que as imagens atemporais do 11 de se- tembro deixaram evidente para todos. Os historiadores da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o moderno há um compromisso secreto, e não tanto porque as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascínio par- ticular quanto porque a chave do moderno está es- condida no imemorial e no pré-histórico. Assim, o mundo antigo no seu fim se volta, para se reencon- trar, aos primórdios; a vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico. É nesse sen- tido que se pode dizer que a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no presente não podemos em ne- nhum caso viver e, restando não vivido, é incessante- mente relançado para a origem, sem jamais poder alcançá-la. Já que o presente não é outra coisa senão a parte de não-vivido em todo vivido, e aquilo que im- pede o acesso ao presente é precisamente a massa da- quilo que, por alguma razão (o seu caráter traumático, a sua extrema proximidade), neste não conseguimos viver. A atenção dirigida a esse não-vivido é a vida do contemporâneo. E ser contemporâneo significa, nesse sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos.

Aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade puderam fazê-lo apenas com a condição de cindi-la em mais tempos, de introduzir no tempo uma essen- cial desomogeneidade. Quem pode dizer: "o meu tem- po" divide o tempo, escreve neste uma cesura e uma descontinuidade; e, no entanto, exatamente através dessa cesura, dessa interpolação do presente na homogeneidade inerte do tempo linear, o contem- porâneo coloca em ação uma relação especial entre os tempos. Se, como vimos, é o contemporâneo que fraturou as vértebras de seu tempo (ou, ainda, quem percebeu a falha ou o ponto de quebra), ele faz dessa fratura o lugar de um compromisso e de um encon- tro entre os tempos e as gerações. Nada mais exem- plar, nesse sentido, que o gesto de Paulo, no ponto em que experimenta e anuncia aos seus irmãos aquela contemporaneidade por excelência que é o tempo messiânico, o ser contemporâneo do messias, que ele chama precisamente de "tempo-de-agora" (ho nyn kairos). Não apenas esse tempo é cronologicamente indeterminado (o retorno do Cristo, a parusia, que assinala o fim desse tempo, é certo e próximo, mas incalculável), mas ele tem a capacidade singular de co- locar em relação consigo mesmo todo instante do passado, de fazer de todo momento ou episódio da

história bíblica uma profecia ou uma prefiguração (typos, figura, é o termo que Paulo predica) do presen- te (assim, Adão, através de quem a humanidade rece- beu a morte e o pecado, é "tipo': ou figura, do messias, que leva aos homens a redenção e a vida). Isso significa que o contemporâneo não é ape- nas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, divi- dindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os ou- tros tempos, de nele ler de (^) modo inédito a história (^) ) de "citá-la" segundo uma necessidade que não pro- vém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, pro- jetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora. É algo do gênero que devia ter em mente Michel Foucault quando escrevia que as suas perquirições históricas sobre o passado são apenas a sobra trazida pela sua interrogação teó- rica do presente. E Walter Benjamin, quando escrevia que o índice histórico contido nas imagens do passa- do mostra que estas alcançarão sua legibilidade so- mente num determinado momento da sua história. É da nossa capacidade de dar ouvidos a essa exigência e

àquela sombra, de ser contemporâneo não apenas do nosso século e do "agora", mas também das suas figu- ras nos textos e nos documentos do passado, que de- penderão o êxito ou o insucesso do nosso seminário.

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