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O que é educação, Notas de estudo de Pedagogia

A educação existe onde não há a escola e por toda parte podem haver redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra, onde ainda não foi sequer criada a sombra de al- gum modelo de ensino formal e centralizado. Porque a educação a- prende com o homem a continuar o trabalho da vida. A vida que transporta de uma espécie para a outra, dentro da história da na- tureza, e de uma geração a outra de viventes, dentro da história da espécie, os princíp

Tipologia: Notas de estudo

2015

Compartilhado em 30/11/2015

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Carlos Rodrigues Brandão
O Que é Educação
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Carlos Rodrigues Brandão

O Que é Educação

ÍNDICE

Educação? Educações: aprender com o índio

Quando a escola é a aldeia

Então, surge a escola

Pedagogos, mestres-escola e sofistas

A educação que Roma fez, e o que ela ensina

Educação: isto e aquilo, e o contrário de tudo

Pessoas versus sociedade: um dilema que oculta outros

Sociedade contra Estado: classe e educação

A esperança na educação

Indicações para leitura

questões entre as mais importantes estão escritas nesta carta de índios. Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante. Em mundos diversos a educação existe diferente: em pequenas sociedades tribais de povos caçadores, agricultores ou pastores nômades; em sociedades camponesas, em países desenvolvidos e in- dustrializados; em mundos sociais sem classes, de classes, com es- te ou aquele tipo de conflito entre as suas classes; em tipos de sociedades e culturas sem Estado, com um Estado em formação ou com ele consolidado entre e sobre as pessoas. Existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo; ela existe em cada povo, ou entre povos que se encontram. Existe entre povos que submetem e dominam outros povos, usando a educação como um recurso a mais de sua dominância. Da família à comunidade, a educação existe difusa em todos os mundos sociais, entre as in- contáveis práticas dos mistérios do aprender; primeiro, sem clas- ses de alunos, sem livros e sem professores especialistas; mais adiante com escolas, salas, professores e métodos pedagógicos. A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como idéia, como crença, aquilo que é comunitário como bem, como traba- lho ou como vida. Ela pode existir imposta por um sistema centra- lizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos. A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos gru- pos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam- e-aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo pre- cisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda a explicar — às vezes a ocultar, às vezes a inculcar — de geração em geração, a necessi- dade da existência de sua ordem. Por isso mesmo — e os índios sabiam — a educação do coloniza- dor, que contém o saber de seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente legalidade de seus atos de domínio, na verdade não serve para ser a educação do colonizado. Não serve e existe contra uma educação que ele, não obstante dominado, também possui como um dos seus recursos, em seu mundo, dentro de sua cultura. Assim, quando são necessários guerreiros ou burocratas, a edu- cação é um dos meios de que os homens lançam mão para criar guer- reiros ou burocratas. Ela ajuda a pensar tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda a criá-los, através de passar de uns para os outros o saber que os constitui e legitima. Mais ainda, a educação participa do processo de produção de crenças e idéias, de qualifi- cações e especialidades que envolvem as trocas de símbolos, bens e

poderes que, em conjunto, constróem tipos de sociedades. E esta é a sua força. No entanto, pensando às vezes que age por si próprio, livre e em nome de todos, o educador imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na verdade, ele pode estar servindo a quem o constitu- iu professor, a fim de usá-lo, e ao seu trabalho, para os usos es- cusos que ocultam também na educação — nas suas agências, suas práticas e nas idéias que ela professa — interesses políticos im- postos sobre ela e, através de seu exercício, à sociedade que ha- bita. E esta é a sua fraqueza. Aqui e ali será preciso voltar a estas idéias, e elas podem ser como que um roteiro daqui para a frente. A educação existe no imaginário das pessoas e na ideologia dos grupos sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se diz. para fora, que a sua missão é transformar sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, de acordo com as imagens que se tem de uns e outros: "...e deles faremos homens". Mas, na prática, a mesma educação que ensina pode deseducar, e pode correr o risco de fazer o contrário do que pensa que faz, ou do que inventa que pode fazer: "...eles eram, portan- to, totalmente inúteis".

regras de prática, tipos de profissionais e categorias de educan- dos envolvidos nos exercícios de maneiras cada vez menos corri- queiras e menos comunitárias do ato, afinal tão simples, de ensi- nar-e-aprender. No entanto, muito antes que isso aconteça, em qualquer lugar e a qualquer tempo — entre dez índios remanescentes de alguma tribo do Brasil Central, no centro da cidade de São Paulo — a educação existe sob tantas formas e é praticada em situações tão diferen- tes, que algumas vezes parece ser invisível, a não ser nos lugares onde pendura alguma placa na porta com o seu nome. Quando os antropólogos do começo do século saíram pelo mundo pesquisando "culturas primitivas" de sociedades tribais das Améri- cas, da Ásia, da África e da Oceania, eles aprenderam a descrever com rigor praticamente todos os recantos da vida destas sociedades e culturas. No entanto, quase nenhum deles usa a palavra educação, embora quase todos, de uma forma ou de outra, descrevam relações cotidianas ou cerimônias rituais em que crianças aprendem e jovens são solenemente admitidos no mundo dos adultos. De vez em quando, aparece, perdido num mar de outros concei- tos, o de educação, como quando Radcliffe-Brown - um antropólogo inglês que participa da criação da moderna Antropologia Social - lembra que, entre os andamaneses, um grupo tribal de ilhéus entre Burma e Sumatra, para se ajustar a criança à sua comunidade "é preciso que ela seja educada". Parte deste processo consiste em a criança e o adolescente aprenderem aos poucos a caçar, a fabricar o arco e flecha e assim por diante. Outra parte envolve. a aqui- sição de "sentimentos e disposições emocionais" que regulam a con- duta dos membros da tribo e constituem o corpo de suas regras so- ciais de moralidade. Quando os antropólogos pouco falam em educação, eles pouco querem falar de processos formalizados de ensino. Porque, onde os andamaneses, os maori, os apaches ou os xavantes praticam, e os antropólogos identificam processos sociais de aprendizagem, não existe ainda nenhuma situação propriamente escolar de transferên- cia do saber tribal que vai do fabrico do arco e flecha à recita- ção das rezas sagradas aos deuses da tribo. Ali, a sabedoria acu- mulada do grupo social não "dá aulas" e os alunos, que são todos os que aprendem, "não aprendem na escola". Tudo o que se sabe aos poucos se adquire por viver muitas e diferentes situações de tro- cas entre pessoas, com o corpo, com a consciência, com o corpo-e- a-consciência. As pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos atos de quem sabe-e-faz , para quem não-sabe-e-aprende. Mesmo quando os adultos encorajam e guiam os momentos e situações de aprender de crianças e adolescentes, são raros os tempos espe- cialmente reservados apenas para o ato de ensinar. Nas aldeias dos grupos tribais mais simples, todas as relações entre a criança e a natureza, guiadas de mais longe ou mais perto pela presença de "adultos conhecedores, são situações de apren- dizagem. A criança vê, entende, imita e aprende com a sabedoria que existe no próprio gesto de fazer a coisa. São também situações de aprendizagem aquelas em que as pessoas do grupo trocam bens ma- teriais entre si ou trocam serviços e significados: a turma de ca- çada, no barco de pesca, no canto da cozinha da palhoça, na lavou-

ra familiar ou comunitária de mandioca, nos grupos de brincadeiras de meninos e meninas, nas cerimônias religiosas. Émile Durkheim, um dos principais sociólogos da educação, ex- plica isto da seguinte maneira:

"Sob regime tribal, a característica essencial da educação re- side no fato de ser difusa e administrada indistintamente por to- dos os elementos o clã. Não há mestres determinados, nem inspe- tores especiais para a formação da juventude: esses papéis são de- sempenhados por todos os anciãos e pelo conjunto das gerações an- teriores."

As meninas aprendem com as companheiras de idade, com as mães, as avós, as irmãs mais velhas, as velhas sábias da tribo, com esta ou aquela especialista em algum tipo de magia ou artesanato. Os meninos aprendem entre os jogos e brincadeiras de seus grupos de idade, aprendem com os pais, os irmãos-da-mãe, os avós, os guer- reiros, com algum xamã (mago, feiticeiro), com os velhos em volta das fogueiras. Todos os agentes desta educação de aldeia criam de parte a parte as situações que, direta ou indiretamente, forçam iniciativas de aprendizagem e treinamento. Elas existem misturadas com a vida em momentos de trabalho, de lazer, de camaradagem ou de mor. Quase sempre não são impostas e não é raro que sejam os a- prendizes os que tomam a seu cargo procurar pessoas e situações de troca que lhes possam trazer algum aprendizado. Assim, entre os Wogeo, da Nova Guiné, de acordo com o depoimento de um antropólo- go:

"Onde é necessário aprender habilidades especiais as crianças estão, em regra geral, ansiosas por saber o que os seus pais co- nhecem. O orgulho do trabalhador e o prestígio do bom artesão omi- nam sua vida e elas necessitam de muito pouco estímulo para procu- rá-los por si mesmas."

O saber da comunidade, aquilo que todos conhecem de algum mo- do; o saber próprio dos homens e das mulheres, de crianças, ado- lescentes, jovens, adultos e velhos; o saber de guerreiros e espo- sas; o saber que faz o artesão, o sacerdote, o feiticeiro, o nave- gador e outros tantos especialistas, envolve portanto situações pedagógicas interpessoais, familiares e comunitárias, onde ainda não surgiram técnicas pedagógicas escolares, acompanhadas de seus profissionais de aplicação exclusiva. Os que sabem: fazem, ensi- nam, vigiam, incentivam, demonstram, corrigem, punem e premiam. Os que não sabem espiam, na vida que há no cotidiano, o saber que ali existe, vêem fazer e imitam, são instruídos com o exemplo, incen- tivados, treinados, corrigidos, punidos, premiados e, enfim, aos poucos aceitos entre os que sabem fazer e ensinar, com o próprio exercício vivo do fazer. Esparramadas pelos cantos do cotidiano, todas as situações entre pessoas, e entre pessoas e a natureza — situações sempre mediadas pelas regras, símbolos e valores da cul- tura do grupo — têm, em menor ou maior escala a sua dimensão peda- gógica. Ali, todos os que convivem aprendem, aprendem, da sabedo- ria do grupo social e da força da norma dos costumes da tribo, o

e aprendem ao acaso. O que vimos acontecer até aqui, formas vivas e comunitárias de ensinar-e-aprender, tem sido chamado com vários nomes. Ao processo global que tudo envolve, é comum que se dê o nome de socialização. Através dela, ao longo da vida, cada um de nós passa por etapas sucessivas de inculcação de tipos de categorias gerais, parciais ou especializadas de saber-e-habilidade. Elas fazem, em conjunto, o contorno da identidade, da ideologia e do modo de vida de um grupo social. Elas fazem, também, do ponto de vista de cada um de nós, aquilo que aos poucos somos, sabemos, fazemos e amamos. A so- cialização realiza em sua esfera as necessidades e projetos da so- ciedade, e realiza, em cada um de seus membros, grande parte da- quilo que eles precisam para serem reconhecidos como "seus" e para existirem dentro dela. Ora, no interior de todos os contextos sociais coletivos de formação do adulto, o processo de aquisição pessoal de saber- crença-e-hábito de uma cultura, que funciona sobre educandos como uma situação pedagógica total, pode ser chamado (com algum susto) de endoculturação. Dentro de sua cultura, em sua sociedade, apren- der de maneira mais ou menos intencional (alguns dirão: "mais ou menos consciente"), através do envolvimento direto do corpo, da mente e da afetividade, entre as incontáveis situações de relação com a natureza e de trocas entre os homens, é parte do processo pessoal de endoculturação , e é também parte da aventura humana do "tornar-se pessoa". Vista em seu vôo mais livre, a educação é uma fração da expe- riência endoculturativa. Ela aparece sempre que há relações entre pessoas e intenções de ensinar-e-aprender. Intenções, por exemplo, de aos poucos "modelar" a criança, para conduzi-la a ser o "mode- lo" social de adolescente e, ao adolescente, para torná-lo mais adiante um jovem e, depois, um adulto. Todos os povos sempre tra- duzem de alguma maneira esta lenta transformação que a aquisição do saber deve operar. Ajudar a crescer, orientar a maturação, transformar em, tornar capaz, trabalhar sobre, domar, polir, cri- ar, como um sujeito social, a obra, de que o homem natural é a ma- téria-prima. Não é nada raro que tanto na cabeça de um índio quanto na de um de nossos educadores ocidentais, a melhor imagem de como a edu- cação se idealiza seja a do oleiro que toma o barro e faz o pote. O trabalho cuidadoso do artesão que age com tempo e sabedoria so- bre a argila viva que é o educando. A argila que resiste às mãos do oleiro, mas que se deixa conduzir por elas a se transformar na obra feita: o adulto educado. Quando o educador pensa a educação, ele acredita que, entre homens, ela é o que dá a forma e o poli- mento. Mas ao fazer isso na prática, tanto pode ser a mão do ar- tista que guia e ajuda o barro a que se transforme, quanto a forma que iguala e deforma. É bom separar agora algumas palavras usadas até aqui e que se- rão ainda trabalhadas mais adiante. Tudo o que existe transformado da natureza pelo trabalho do homem e significado pela sua cons- ciência é uma parte de sua cultura: o pote de barro, as palavras da tribo, a tecnologia da agricultura, da caça ou da pesca, o es- tilo dos gestos do corpo nos atos do amor, o sistema de crenças

religiosas, as estórias da história que explica quem aquela gente é e de onde veio, as técnicas e situações de transmissão do saber. Tudo o que existe disponível e criado em uma cultura como conheci- mento que se adquire através da experiência pessoal com o mundo ou com o outro; tudo o que se aprende de um modo ou de outro faz par- te do processo de endoculturação, através do qual um grupo social aos poucos socializa, em sua cultura, os seus membros, como tipos de sujeitos sociais. Ora, a educação é o território mais motivado deste mapa. Ela existe quando a mãe corrige o filho para que ele fale direito a língua do grupo, ou quando fala à filha sobre as normas sociais do modo de "ser mulher" ali. Existe também quando o pai ensina ao fi- lho a polir a ponta da flecha, ou quando os guerreiros saem com os jovens para ensiná-los a caçar. A educação aparece sempre que sur- gem formas sociais de condução e controle da aventura de ensinar- e-aprender. O ensino formal é o momento em que a educação se su- jeita à pedagogia (a teoria da educação), cria situações próprias para o seu exercício, produz os seus métodos, estabelece suas re- gras e tempos, e constitui executores especializados. É quando a- parecem a escola, o aluno e o professor de quem começo a falar da- qui para frente.

tribui e pelo saber que lhes reconhece, como homens e mulheres ap- tos e legítimos para a vida do adulto da tribo. Outras vezes este período de aprendizagem separada é muito mais longo, muito mais diversificado e, por certo, muito mais pró- ximo dos modelos de agências e procedimentos de ensino que temos na cabeça quando pensamos em educação. Em sociedades tribais da Libéria e de Serra Leoa, na África, há tipos de escolas para os meninos (as escolas "Poro") e para as meninas (as escolas "San- de"). De tribo para tribo os meninos estudam por períodos que vão de ano e meio a oito anos. Estudam, convivem entre si e com seus mestres, e treinam. Divididos de acordo com seus grupos de idade (como em nossas "séries"), eles aprendem as crenças, as tradições e os costumes culturais da tribo, além do saber dos ofícios de guerra e paz. A escola Poro leva em conta diferenças individuais e, com o trabalho docente de diferentes professores-especialistas, forma novos especialistas. Se um menino demonstra talentos para o trabalho do fabrico de tecidos, de couro, para o exercício da dan- ça, ou para os ofícios da medicina tribal, ele acrescenta estes treinos e estudos ao corpo comum do programa por que passa com to- dos os outros companheiros de idade. Entre grupos de pescadores da Nova Zelândia e do Arquipélago da Sociedade, existem "casas de ensino", verdadeiras universidades em escala indígena, onde toda a sabedoria da cultura é ensinada aos jovens de ambos os sexos por professores-sacerdotes. Durante a metade do ano estas "casas" permanecem abertas e, por todo o dia, oferecem cursos com alguma teoria e muita prática sobre pelo menos os seguintes assuntos: genealogia, tradições e história, princí- pios de crença e cultos religiosos, magia, artes da navegação, a- gricultura, dança, literatura. O programa de ensino divide a "Man- díbula Superior", onde os jovens aprendem com os sacerdotes os se- gredos do sagrado, da "Mandíbula Inferior", relacionada com os as- suntos terrenos. Em um segundo plano, mais restrito e mais marcadamente políti- co, diferentes categorias de meninos e meninas recebem o saber es- pecializado que há em uma "educação de minorias privilegiadas", destinadas por herança aos cargos de chefia. Assim acontece, por exemplo, entre quase todos os grupos originais do Havaí, onde os nobres e outros jovens selecionados de antemão para postos futuros de poder sobre os outros passavam por verdadeiros cursos superio- res de estudos que lhes tomavam quase todo o tempo da adolescência e da juventude. A tribo que mais adiante submeterá a eles a chefia comunitária — o trabalho social de dirigir — atribuirá a eles como um direito, e exigirá deles como um dever, o saber especializado do chefe. E o próprio tempo prolongado de estudo, treino e teste, muito mais do que o de todos os outros meninos, vale como um ates- tado social de diferenças entre o chefe e os outros, dado pela e- ducação. Mesmo os grupos que, como os nossos, dividem e hierarquizam tipos de saber, de alunos e de usos do saber, não podem abandonar por inteiro as formas livres, familiares e/ou comunitárias de edu- cação. Em todos os cantos do mundo, primeiro a educação existe co- mo um inventário amplo de relações interpessoais diretas no âmbito familiar: mãe-filha, pai-filho, sobrinho-irmão-da-mãe, irmão-mais-

velho-irmão-caçula e assim por diante. Esta é a rede de trocas de saber mais universal e mais persistente na sociedade humana. De- pois, a educação pode existir entre educadores-educandos não pa- rentes — mas habitantes de uma mesma aldeia, de uma mesma cidade, gente de uma mesma linguagem — semi-especializados ou especialis- tas do saber de algum ofício mais amplo ou mais restrito: artesão- aprendiz, sacerdote-iniciado, cavaleiro-escudeiro, e tantos ou- tros. Até aqui o espaço educacional não é escolar. Ele é o lugar da vida e do trabalho: a casa, o templo, a oficina, o barco, o mato, o quintal. Espaço que apenas reúne pessoas e tipos de atividade e onde viver o fazer faz o saber. Em todo o tipo de comunidade humana onde ainda não há uma ri- gorosa divisão social do trabalho entre classes desiguais, e onde o exercício social do poder ainda não foi centralizado por uma classe como um Estado, existe a educação sem haver a escola e e- xiste a aprendizagem sem haver o ensino especializado e formal, como um tipo de prática social separada das outras. E da vida. Mesmo nas grandes sociedades civilizadas do passado — como na Grécia e em Roma, com que vamos nos encontrar um pouco mais adian- te — um sistema pedagógico controlado por um poder externo a ele, atribuído de fora para dentro a uma hierarquia de especialistas do ensino, e destinado a reproduzir a desigualdade através da oferta desigual do saber, é uma conquista tardia na história da cultura. Em nome de quem os constitui educadores, estes especialistas do ensino aos poucos tomam a seu cargo a tarefa de assumir, con- trolar e recodificar domínios, sistemas, modos e usos do saber e das situações coletivas de distribuição do saber. Onde quer que apareça e em nome de quem venha, todo o corpo profissional de es- pecialistas do ensino tende a dividir e a legitimar divisões do conhecimento comunitário, reservando para o seu próprio domínio tanto alguns tipos e graus do saber da cultura, quanto algumas formas e recursos próprios de sua difusão. Assim, aos poucos acontece com a educação o que acontece com todas as outras práticas sociais (a medicina, a religião, o bem- estar, o lazer) sobre as quais um dia surge um interesse político de controle. Também no seu interior, sistemas antes comunitários de trocas de bens, de serviços e de significados são em parte con- trolados por confrarias de especialistas, mediadores entre o poder e o saber. Os estudos mais recentes da História têm indicado que a pala- vra escrita parece ter surgido em sociedades-estado enriquecidas e com um poder muito centralizado, como entre os egípcios ou entre os astecas. Ela teria aparecido primeiro sendo usada pelos escri- bas, para fazer a contabilidade dos bens dos reis e faraós. Só mais tarde é que foi usada também pelos poetas para cantarem as coisas da aldeia e de sua gente. Assim também a educação. Por toda a parte onde ela deixa de ser totalmente livre e comunitária (não escrita) e é presa na escola, entre as mãos de educadores a servi- ço de senhores, ela tende a inverter as utilizações dos seus fru- tos: o saber é a repartição do saber. A educação da comunidade de iguais que reproduzia em um momento anterior a igualdade, ou a complementariedade social, por sobre diferenças naturais, começa a

PEDAGOGOS, MESTRES-ESCOLA E SOFISTAS

Todas as grandes sociedades ocidentais que, como Atenas e Ro- ma, emergiram de seus bandos errantes, de suas primeiras tribos de clãs de pastores ou camponeses, aprenderam a lidar com a educação do mesmo modo como qualquer outro grupo humano, em qualquer outro tempo. Tal como entre os índios das Seis Nações, os primeiros as- suntos e problemas da educação grega foram os dos ofícios simples dos tempos de paz e de guerra. O que se ensina e aprende entre os primeiros pastores, mesmo quando eles começaram rusticamente a e- nobrecer, envolve o saber da agricultura e do pastoreio, do arte- sanato de subsistência cotidiana e da arte. Tudo isso misturado, sem muitos mistérios, com os princípios de honra, de solidariedade e, mais do que tudo, de fidelidade à polis, a cidade grega onde começa e acaba a vida do cidadão livre e educado. Esta educação grega é, portanto, dupla, e carrega dentro dela a oposição que até hoje a nossa educação não resolveu. Ali estão normas de trabalho que, quando reproduzidas como um saber que se ensina para que se faça, os gregos acabaram chamando de tecne e que, nas suas formas mais rústicas e menos enobrecidas, ficam relegadas aos trabalhado- res manuais, livres ou escravos. Ali estão normas de vida que, quando reproduzidas como um saber que se ensina para que se viva e seja um tipo de homem livre e, se possível, nobre, os gregos aca- baram chamando de teoria. Este saber que busca no homem livre o seu mais pleno desenvolvimento e uma plena participação na vida da polis é o próprio ideal da cultura grega e é o que ali se tinha em mente quando se pensava na educação. De tudo o que pode ser feito e transformado, nada é para o grego uma obra de arte tão perfeita quanto o homem educado. A pri- meira educação que houve em Atenas e Esparta foi praticada entre todos, nos exercícios coletivos da vida, em todos os cantos onde as pessoas conviviam na comunidade. Quando a riqueza da polis gre- ga criou na sociedade estruturas de oposição entre livres e escra- vos, entre nobres e plebeus, aos meninos nobres da elite guerreira e, mais tarde, da elite togada é que a educação foi dirigida. Por alguns séculos, mesmo para eles, ainda não havia a escola. Das relações familiares diretas até a convivência entre jo- vens, segundo os seus grupos de idade, ou entre grupos de meninos educandos e um velho educador, entre os gregos sempre se conservou a idéia de que todo o saber que se transfere pela educação circula através de trocas interpessoais, de relações física e simbolica- mente afetivas entre as pessoas. Assim, a pederastia acaba sendo considerada em Esparta como a forma mais pura e mais completa de educação entre homens livres e iguais. Em toda a Grécia a formação do nobre guerreiro apenas desenrola ao longo dos anos uma seqüên- cia de trocas entre um mestre e seus discípulos. Aquilo que a cultura grega chama com pleno efeito de educação — paideia — dando à palavra o sentido de formação harmônica do ho- mem para a vida da polis, através do desenvolvimento de todo o corpo e toda a consciência, começa de fato fora de casa, depois dos sete anos. Até lá a criança convive com a sua criação, convi-

vendo com a mãe e escravos domésticos. Para além ainda do que entre os sete e os catorze anos aprende com o mestre-escola, a verdadeira educação do jovem aristocrata é o fruto do lento trabalho de um ou de poucos mestres que acom- panham o educando por muitos anos. Em Atenas, por volta do VI século A.C., a educação deixa de ser uma prática coletiva, de estilo militar, destinada apenas à formação do cidadão nobre. Até então, mesmo no apogeu da demo- cracia grega, a propriedade é restritamente comunal; pertence aos cidadãos ativos do Estado. O poder pertence aos estratos mais no- bres destes cidadãos ativos, e a vida e o trabalho colocam de um lado os homens livres, senhores e, de outro, os escravos ou outros tipos de trabalhadores manuais expulsos do direito do saber que existe na paideia. Durante muitos séculos os "pobres" da Grécia aprenderam desde criança fora das escolas: nas oficinas e nos campos de lavoura e pastoreio. Os meninos "ricos" inicialmente aprenderam também fora da escola, em acampamentos ou ao redor de velhos mestres. Além das agências estatais de educação, como a Efebia de Esparta, que edu- cava o jovem nobre-guerreiro, toda a educação fora do lar e da o- ficina é uma empresa particular, mesmo quando não é paga. Particu- lar e restrita a muito pouca gente. Apenas quando a democratização da cultura e da participação na vida pública colocam a necessidade da democratização do saber, é que surge a escola aberta a qualquer menino livre da cidade- estado. A escola primária surge em Atenas por volta do ano 600 A.C. Antes dela havia locais de ensino de metecos e rapsodistas que aos interessados ensinavam "a fixar em símbolos os negócios e os cantos". Só depois da invenção da escola de primeiras letras é que o seu estudo é pouco a pouco incorporado à educação dos meni- nos nobres. Assim, surgem em Atenas escolas de bairro, não raro "lojas de ensinar", abertas entre as outras no mercado. Ali um hu- milde mestre-escola, "reduzido pela miséria a ensinar", leciona as primeiras letras e contas. O menino escravo, que aprende com o trabalho a que o obrigam, não chega sequer a esta escola. O menino livre e plebeu em geral pára nela. O menino livre e nobre passa por ela depressa em direção aos lugares e aos graus onde a educa- ção grega forma de fato o seu modelo de "adulto educado". Citação de Sólon, legislador grego:

"As crianças devem, antes de tudo, aprender a nadar e a ler; em seguida, os pobres devem exercitar-se na agricultura ou em uma indústria qualquer, ao passo que os ricos devem se preocupar com a música e a equitação, e entregar-se à filosofia, à caça e à fre- qüência aos ginásios."

Esta concepção Xenofonte, historiador, poeta, filósofo e mili- tar grego, criticaria quase dois séculos depois:

"Só os que podem criar os seus filhos para não fazerem nada é que os enviam à escola; os que não podem, não enviam."

A educação do jovem livre vai em direção à teoria , que é o sa- ber do nobre para compreender e comandar , não para fazer , curar ou construir. Durante toda a antigüidade a única disciplina técnica (entendida como a de uma formação que aponta para um ofício deter- minado) é a medicina. Não há outras escolas coletivas de ensino técnico para o preparo de arquitetos, engenheiros ou agrimensores, por exemplo. Tal como ferreiros ou tecelões, eles aprendem de ma- neira simples e direta, na oficina e no trabalho, através do con- vívio com algum velho artífice. Diferenças de saber de classe dos educandos produziram dife- renças curiosas entre os tipos de educadores da Grécia antiga. De um lado, desprezíveis mestres-escola e artesãos-professores; de outro, escravos pedagogos e educadores nobres, ou de nobres. De um lado, a prática de instruir para o trabalho; de outro, a de educar para a vida e o poder que determina a vida social. De todos estes adultos transmissores de saber vale a pena fa- lar do pedagogo. Pequenas estatuetas de terracota guardam a memó- ria dele. Artistas gregos representaram esses velhos escravos — quase sempre cativos estrangeiros — conduzindo crianças a caminho da escola de primeiras letras. E por que eles e não os mestres que nas escolas ensinavam? Porque os escravos pedagogos — condutores de crianças — eram afinal seus educadores, muito mais do que os mestres-escola. Eles conviviam com a criança e o adolescente e, mais do que os pais, faziam a educação dos preceitos e das crenças da cultura da polis. O pedagogo era o educador por cujas mãos a criança grega atravessava os anos a caminho da escola, por cami- nhos da vida. Nos primeiros tempos, mais do que filósofos ou matemáticos, os gregos foram guerreiros, músicos e ginastas. Assim, mais do que jurídica ou científica, a educação do cidadão livre era ética e artística (no pleno sentido que estas duas palavras possuíam na paideia grega), dentro de uma cultura pouco acostumada a separar a verdade da beleza. Mais tarde, sob a influência de Sócrates e Epi- curo (um sujeito feio e outro doentio) é que a educação começa a ser pensada como formadora do espírito. Por muitos e muitos sécu- los ela aponta para a harmonia que existe na beleza do corpo (e a destreza para a luta) ao lado da clareza da mente (e a fidelidade à polis dos cidadãos livres). Mesmo no nível da cultura letrada dos nobres, a civilização clássica não conservou sempre um único modelo ou estilo de saber, logo, de educação. Ela oscilou entre duas formas de algum modo antagônicas: a filosófica, cujo tipo do- minante pode ser Platão, e a oratória (retórica), cujo tipo domi- nante pode ser Isócrates. Depois de constituídas as classes de homens livres que regem a democracia dos gregos sobre a divisão do trabalho e a instituição do regime escravagista, para os seus adolescentes a educação cole- tiva não é uma atividade voluntária ou um direito de berço. É um dever imposto pela polis ao livre. Porque o seu exercício modela não um homem abstrato, sonho de poetas, mas o cidadão maduro para o serviço à comunidade, projeto do político. A "obra de arte" da paideia é a pessoa plenamente madura — como cidadão, como militar, como político — posta a serviço dos interesses da cidade-

comunidade. Assim, o ideal da educação é reproduzir uma ordem so- cial idealmente concebida como perfeita e necessária, através da transmissão, de geração a geração, das crenças, valores e habili- dades que tornavam um homem tão mais perfeito quanto mais prepara- do para viver a cidade a que servia. E nada poderia haver de mais precioso, a um homem livre e educado, do que o próprio saber e a identidade de sábio que ele atribui ao homem. Depois de haver conquistado a cidade onde vivia o filósofo Es- tilpão, Demétrio Poliorceto pretendeu indenizá-lo pelos prejuízos materiais que sofrera por causa da pilhagem. Quando pediu que fi- zesse o inventário do que lhe pertencera e fora destruído, Estil- pão respondeu que nada havia perdido do que era seu, porque não lhe haviam roubado a sua cultura — — dado que ainda conser- vava a eloqüência e o saber. O formador de jovens, o educador, o filósofo-mestre como Só- crates, Platão e Aristóteles, reúnem à sua volta os seus alunos, em suas escolas superiores. A escola filosófico-iniciática de Pi- tágoras, que interna educandos, cria regras próprias de conduta e lhes absorve boa parte do tempo da juventude, antecede a Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles e a Escola de Epicuro. Mas são os filósofos sofistas os que democratizam o ensino superior, tor- nando-o remunerado e, portanto, aberto a todos os que podem pagar. Após a longa crise de tirania por volta do VI século A.C., a vida social de Atenas possibilita a participação de todos os cidadãos livres, e isto recoloca a questão do preparo do homem para o exer- cício da cidadania, a questão de aprender para legislar e para es- tar de algum modo presente nas assembléias de representação polí- tica. Os sofistas transformam a educação superior em um tempo de formação do orador, onde a qualidade da retórica tem mais valor do que a busca desinteressada da verdade, exercício dos nobres dos períodos anteriores. Aos poucos até Aristóteles e Alexandre Magno, muito depressa durante a Civilização Helenística, a educação clássica passa por algumas mudanças:

  1. ela vai do cultivo aristocrático do corpo e da mente, com vistas à formação do nobre guerreiro e dirigente, à habilitação do cidadão livre, comum, para a carreira política; 2) ela vai de um domínio do "saber desinteressado", de fundo artístico-musical, pa- ra o literário, daí para o retórico, o livresco e o escolar (de aprender a sabedoria para aprender a informação); 3) ela vai das agências de reprodução restrita do saber de nobres, entre nobres, para o saber disponível, à venda em escolas pagas que educam da criança ao adulto.

Com o tempo a educação clássica deixa de ser um assunto priva- do, posse e questão da comunidade dos nobres dirigentes, e passa a ser questão de Estado, pública. Aristóteles exige do Imperador leis que regulem direitos e controlem o exercício da educação. A- trás das tropas de conquista de Alexandre Magno, os gregos levam as suas escolas por todo o mundo. Elas são, mais do que tudo, o meio de impedir que a distância da Pátria de origem ameace perder- se a cultura do vencedor entre os costumes e o saber dos vencidos.