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Regulação de Serviços Públicos no Brasil: Agências Reguladoras e Conselhos, Notas de aula de Economia

Este documento discute o papel de agências reguladoras e conselhos no brasil, que representam um novo nível de ação governamental. Os autores examinam suas funções, objetivos e principais atribuições, além de sua estrutura organizacional e formação jurídica. O texto também aborda a preferência progressista pelos dados científicos, estruturas burocráticas especializadas, livre empresa e liberdades individuais, capacidade do estado e ligação entre a universidade e a administração pública.

O que você vai aprender

  • Como as agências reguladoras e conselhos afetam a relação entre o agente público e a sociedade?
  • Como as agências reguladoras e conselhos diferem da burocracia hierárquica do executivo?
  • Quais são as principais atribuições de agências reguladoras e conselhos em termos de governança e incentivos?
  • Qual é a preferência progressista e como ela influencia a administração pública?
  • Quais são as principais funções de agências reguladoras e conselhos no Brasil?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Pipoqueiro
Pipoqueiro 🇧🇷

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O Quarto Poder
Gênese, Contexto, Perspectivas e Controle das Agências Regulatórias
Edson Nunes
Paper submetido ao II Seminário Internacional sobre Agências Reguladoras de Serviços
Públicos. Instituto Hélio Beltrão, Brasília, 25 de Setembro de 2001
Versão em elaboração, para comentários e discussão.
Outubro 2001
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O Quarto Poder

Gênese, Contexto, Perspectivas e Controle das Agências Regulatórias

Edson Nunes

Paper submetido ao II Seminário Internacional sobre Agências Reguladoras de Serviços Públicos. Instituto Hélio Beltrão, Brasília, 25 de Setembro de 2001 Versão em elaboração, para comentários e discussão.

Outubro 2001

SUMÁRIO

SUMÁRIO DE TABELAS E GRÁFICOS

  • 1– Mudança versus Continuidade: Independência Regulatória ou Insulamento Burocrático?..
  • 2 – Gênese e Vicissitudes de um Poder Emergente
    • 1 – Regimes de Verdades
    • 2 – Agências Regulatórias, Novas Portadoras de Verdades................................................
    • 3 – Caveat: Trabalho, a Fronteira Inconquistada
  • 3 –Regime e Governança Regulatória no Contexto da Reforma do Estado
    • 1 – Regimes Regulatórios
    • 2 – Reforma do Estado
    • 3 – A Reforma e o Regime Regulatório Brasileiro
    • 4 – Governança do Regime Regulatório
  • 4 – Regimes Regulatórios: As Raízes Americanas e seu Contexto
    • 1– Regime de Mercado
    • 2– Regime Associativo/Corporativo
    • 3– Regime Societal...............................................................................................................
    • 4– Regime de Eficiência e Reforma Regulatória
  • 5 – Agências e Conselhos nos Anos 90: Nova Face da Relação Estado-Sociedade
    • 1 – Níveis de Governo e Entidades Intermediárias
    • 2 – Órgãos Colegiados na Administração Federal
    • 3- Agências Regulatórias
  • Próximos Passos? 6 – Controle via Desenho Institucional do Regime e da Governança Regulatória: Quais os
    • 1 – Regulando a regulação governamental antes mesmo de controlar as agências
    • 2 – Controlando o Controlador.............................................................................................
  • Anexo
  • Sobre o Autor - municipais - 1999 * Tabela 1 Nº de conselhos por faixas de população do município, segundo o tipo de conselhos
  • Tabela 2 Nº de conselhos por região, segundo o tipo de conselhos municipais - 1999 *
  • Tabela 3 Nº de órgãos colegiados, segundo a data de criação - 2001......................................
  • Tabela 4 Nº de órgãos colegiados, segundo o órgão superior -
  • Tabela 5 Nº de agências, segundo parâmetros consultados no SIORG -
  • Tabela 6 Nº de autarquias federais, segundo o ano de criação -
  • Tabela 7 Nº de autarquias federais, segundo o órgão superior -
  • Tabela 8 Nº de órgãos reguladores -
  • Tabela 9 Número de órgãos reguladores para o público ("para fora") -
  • Tabela 10 Nº de órgãos reguladores, por ano da informação, segundo o ano de criação
  • Quadro 1 Comparação dos regimes regulatórios americanos
  • Quadro 2 Dados gerais das agências reguladoras nacionais -
  • Quadro 3 Dados gerais das agências reguladoras estaduais e municipais-
  • Figura 1 Órgão regulador, por data de criação e dependência administrativa

barreira de entradas à competição, que os mantenham no mercado, que os protejam de demandas do público. Nem toda regulação, portanto, é a favor do público. Nem toda regulação é a favor do regulado. O mercado regulatório é um selvagem campo de lutas de interesses. Regula quem pode, não quem quer.^2

As agências podem assumir distintos estatutos jurídicos, desde sua participação na administração direta, até sua existência autárquica e independente^3. A elas competem funções do Executivo, tais como a concessão e fiscalização de atividades e direitos econômicos, e lhes são atribuídas funções do Legislativo, como criação de normas, regras, procedimentos, com força legal sob a área de sua jurisdição. Ademais, ao julgar, impor penalidades, interpretar contratos e obrigações, as agências desempenham funções judiciárias.^4

No Brasil, o regime regulatório, que se inaugura com as privatizações, constitui verdadeira reforma do Estado. Esse regime caracteriza-se pela redefinição do papel do Estado na economia. Através de delegação legislativa, sob o modelo de “autarquias especiais” cria-se um novo poder entre os poderes, exercido por novas agências regulatórias, que apontam para a existência de um “Estado dentro do Estado”.^5

(^2) Apesar do tom um tanto radical do texto, ele é reflexo de vasto debate sobre regulação e liberdade. Sua versão mais concisa,bem escrita, respeitada e controversa está em George Stigler , The Citizen and The State: Essays on 3 Regulation , University of Chicago Press, Esta múltipla personalidade não é específica do Brasil. “Regulatory agencies come in many sizes and forms. Some are headed by commissions – a group of coequal heads who make decisions by voting on formal proposals, much like a legislature—while others have a single administrative head. Some are independent agencies technically outside the President´s administrative control, while other are lodged in executive branch departments. Some are what amounts to the first court in the judicial system, with the power to fine regulated firms or even to ban them from markets, while others must achieve their ends by fighting regulated firms in the federal courts. Some have very narrow responsibilities.... Others, like the Occupational Health and Safety Administration, regulate every business in the nation.” Cf. Richard Noll (Ed.), Regulatory Policy and the Social Sciences 4 , U.C. Press, Berkeley, 1984, p. 10. “Considerando-se o grau de independência que deve ter a agência, é admissível conceber que possa, eventualmente, ter uma competência quase judicial”. “Considerando a importância estratégica das decisões dessa agências reguladoras, talvez se justificasse que as ações contra as suas decisões –e eventualmente contra outras autarquias de caráter especial com características análogas, como o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários –fossem de competência originária dos Tribunais Regionais Federais. É uma sugestão que se faz desde logo ao legislador, considerando os problemas que já surgiram no passado”. Arnoldo Wald e Luiza Rangel de Moraes, “Agências Reguladoras”, Revista de Informação Legislativa, a.36, n.141, jan./mar., 1999, pag. 159 e

  1. 5
- Desde a década de 30, nos EUA, chamou-se de **quarto poder** às atividades atribuídas às agências. O Comitê 

Brownlow (Committee on Administrative Management), no Governo Franklyn Roosevelt, dizia que eram, em verdade, miniaturas de governos independentes, que constituíam um “fourth branch of the government”, in Giandomenico Majone, Regulating Europe , Routledge, Londres, 1996, p.288. Confira, em adição, David M. Welborn, Regulation in the White House: The Johnson Presidency, University of Texas Press, 1993,

A relação deste ( mini, sub, supra ) Estado com o outro Estado que lhe dá origem, ainda demandará enorme trabalho de ajuste. Reparem, ao delegar-lhes funções assim complexas, o legislativo deu-lhes um mandato com contornos imprecisos. Não poderia ser diferente, tendo em vista a complexidade das atividades que regulam. Caberá, no modelo atual, às próprias agências fundar mais completamente os poderes decorrentes do mandato genérico, buscar formas práticas de reinforcement de seus comandos, gerar e manter a legitimidade de sua atuação, determinar e garantir suas fronteiras jurisdicionais.^6

Essa inevitável imprecisão do mandato gera procedente inquietude cívica. O usuário dos serviços e produtos regulados é, antes de ser usuário, eleitor daqueles que conferiram mandatos às agências. Estes, legisladores, não reservaram para si supervisão legislativa das atividades mandatárias. Não se reservou, portanto, ao mandante último, o eleitor, poder sobre aqueles que regularão áreas cruciais de sua vida.

Transformado apenas em consumidor, o cidadão eleitor carece de meios para inquirir e interpelar o ( mini , sub , supra ) Estado que governará a água que bebe, a eletricidade que consome, o telefone que usa, o rádio que ouve e a televisão que vê, o ensino que obtém, o transporte que utiliza, o remédio que dá a seu filho.

Não é a primeira vez, na história recente do país, que se retira do concerto das instituições tradicionais um naco institucional considerado estrategicamente fundamental, como as agências regulatórias. O deslanchar do processo de industrialização, em JK, utilizou-se, ainda que como escapismo transitório ao sistema

especialmente o capítulo 2, “The Fourth Branch”; a referência ao quarto poder é também corrente em J. Luis Guasch e Pablo Spiller, Managing the Regulatory Process: Design, Concepts, Issues, and the Latin America and Caribbean Story 6 , World Bank Latin American and Caribbean Studies, 1999 “Daí os americanos dizerem: ‘as agências reguladoras exercem atividade legislativas, jurisdicional e executiva’. “Os americanos…discutem os limites da possibilidade de delegação do poder legislativo às agências. “Nós, quando tratamos dessa questão, jamais admitimos que há delegação de poder legislativo. Usamos uma forma mais ‘francesa’: a administração pública tem também função normativa, que não se confunde com a função normativa legislativa’. “Os americanos são mais crus ao enfrentar essa realidade. Dizem: ‘é função legislativa sim, que poder legislativo delega, mas há um limite para a delegação’. “No fundo estão todos dizendo a mesma coisa; uns com honestidade chocante, outros, revestindo o fenômeno dentro de categorias que o tornam mais palatáveis, tendo em vista a idéia de separação de poderes que nos é tão cara”. Carlos Ari Sunfeld, “Agências Reguladoras do Serviço Público”, in 10 Anos de Constituição: Uma Análise, XIX Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional/Celso Bastos Editor, São Paulo, 1988, p.

  1. Registre-se que Carlos Ari Sunfeld é o autor da minuta do projeto de lei que criou a ANATEL e assessorou sua tramitação.

burocracia tradicional. As últimas notícias indicavam a criação – efetivamente materializada – de uma agência para resolver os problemas da indústria cinematográfica brasileira, território onde teve vida modesta a defunta Embrafilme.

Vivemos, pois, um período fértil à reprodução das agências. Sua existência, como entidades independentes, traz consigo um punhado de problemas relevantes, tais como o da delegação legislativa, e o da invasão de territorialidades institucionais, além de várias questões ligadas à legitimidade política, no que se refere à sua competência delegada, e de legitimidade substantiva, no que se refere a seus procedimentos internos, principalmente aqueles de natureza quase-judiciária.

No momento em que se fala no controle das agências, na regulação do regulador, dificilmente encontraremos soluções, se desejarmos que o modelo seja permanente, que prescindam da emergência de um novo direito administrativo, especificamente voltado para o território da regulação, no bojo do qual se garanta a supervisão política – e portanto a devida legitimidade frente ao soberano delegante, o eleitor – por parte de comissão especial do Congresso e que possa prever, explicita e cristalinamente, a obediência de princípios frente à agenda política vencedora, além de materializar certo grau de judiciarização dos processo internos às agências, garantindo sua transparência, publicidade e processo devido. Claro, a multiplicação de agências e seu espraiamento para novas áreas distantes das originais, as privatizadas, pode dilapidar a elegância e a parcimônia do modelo.

Grande parte da atividade estatal é atividade regulatória, existindo centenas de órgãos que a ela se dedicam.^8 Não parece natural que toda a atividade regulatória comece a transitar em direção ao modelo de agências independentes. Esta modalidade de regulação pode ser adequada a algumas instâncias intensivas em conhecimento técnico, mas nem sempre indicada para todo e qualquer aspecto da

(^8) Por economia de argumento, estarei usando, ao longo do texto, o termo regular em conformidade com o seguinte enunciado de Carlos Ari Sunfeld, “Agências Reguladoras de Serviço Público” in 10 Anos de Constituição : Uma Análise, IBDC, S.P., 1998, p. 134.: , “O que estamos entendendo por regular, produzir normas jurídicas gerais e abstratas sobre o desenvolvimento dessas atividades [desempenhadas por particulares], atribuir ou suprimir aos particulares o direito de desempenhar esssas atividades, é dizer, dar-lhes autorizações, concessões, permissões, licenças, ou outras formas de atos pelos quais os particulares são habilitados a desempenhar atividades, serviços públicos ou não, e estas agências reguladoras têm o poder de fiscalizar a prestação do serviço, aplicar sanções, e também – o que é um fenômeno interessante e que será fruto de muito debate entre nós – de dirimir conflitos entre particulares.

política regulatória. O modismo administrativo tende a ser atraente, com enorme capacidade de conversão de novos adeptos. Se vier a prevalecer sobre a criteriosa definição de áreas de atividade, de novo, pode ser dilapidada a unicidade do experimento recente, levando-o até a banalização. Claro, esta é hipótese radical, mas com bons antecedentes na memória institucional brasileira.

globalizado”, o “Estado gerencial”, o “neo-liberalismo”, a “qualidade total”, o “desenvolvimento sustentável”, “o novo Estado regulador”, “agências regulatórias”, termos cuja simples menção consagra um conteúdo indefinido, mas de compreensão pronta e compartilhada por todos.

Para os governantes, para os Estados, freqüentemente, pouco importa saber que se ignoram as conseqüências futuras de medidas hoje tomadas. Mais relevante é o acordo sobre a conseqüência que se deseja, mesmo na ausência de qualquer evidência sobre os prováveis resultados futuros. Na política, acordos sobre futuros desejados podem perfeitamente prescindir de exercícios referidos a contingências ou probabilidades decorrentes de interações futuras que serão causadas por decisões presentes.

Propostas legíveis e amplamente aceitas substituem a avaliação de suas insabidas conseqüências. São tomadas como soluções, quando em verdade não passam de consolidação presente de expectativas de futuros desejáveis. Leiam-se na imprensa do últimos anos as vezes em que a criação de uma “agência regulatória” foi tomada como definitiva solução para problemas tão distintos como a falsificação de remédios e as mazelas competitivas do cinema nacional. Pouco se sabe sobre as conseqüências futuras das alternativas institucionais hoje criadas. Constituem, entretanto, um “regime de verdade” impresso pelo Estado e absorvido, muitas vezes demandado, pela sociedade.

Nesse sentido, são acordos sobre “conhecimento temporariamente aceito”, através dos quais se empresta significado coletivo, sob a rubrica de “verdade aceita”, a enunciados sobre o futuro que não passam de expectativa bem intencionada. Prefiro tratar situações tais como a compulsiva criação de agências regulatórias, em todos os níveis de governo, como um “regime de verdades”, o que seguindo Foucault, é prática inerente à constituição dos significados dos processos sociais. 12

A verdade, assim entendida, é um “sistema de procedimentos ordenados para a produção, regulação, distribuição, circulação e operação de enunciados. A verdade

(^12) Michael Foucault, “Entretien avec Michael Foucault”, Dits et Écrits, V, III , Paris, Ëditions Gallimard, 1994 Ver, também, A Verdade e as Formas Jurídicas , Rio de Janeiro, Puc-Rio, 1996.

se liga, de maneira circular, com sistemas de poder que a produzem e sustentam e com efeitos de poder que a induzem e a sustentam. Estes regimes não são meramente ideológicos nem superestruturais: são condição de formação e desenvolvimento do capitalismo” 13.

O Estado organiza “regimes de verdades”. Apresenta-se de maneira harmônica e ordenada, pauta-se por regras uniformizadoras, tem funcionários que se encarregam por zelar pela ordem. O Estado, além de materializar a legibilidade, é a única entidade viva capaz de cobrar impostos, prender pessoas, oferecer presentes e mimos desagregados, pessoais e coletivos, à custa de terceiros, arbitrar o certo e o errado. Por isso, é sempre desejado, temido, capturado, ou uma coisa e outra.

2 – Agências Regulatórias, Novas Portadoras de Verdades

O Estado brasileiro agora está na fase do “agenciamento”. Seja por moto próprio, seja por resistência e pressão de segmentos de interesses econômicos, a legibilidade das relações entre o Estado e a economia no Brasil está delegada a agências, conselhos e comitês. Estas são entidades pré-destinadas a monitorar, arbitrar, solucionar problemas de complexidade vasta. Processos regulatórios, tais como os previstos pela existência das novas agências, constituem tanto um pacto de legibilidade que repousa num regime de verdade negociada, quanto, no caso brasileiro, uma tentativa inovação administrativa.

Agências são entidades híbridas. Meio Estado, meio Sociedade. São híbridos de funções legislativas, executivas e judiciárias, como se fossem um “quarto poder” emergente, que anuncia uma maneira nova de olhar a coexistência entre os poderes tradicionais, o legislativo, o executivo, o judiciário. As funções das agências, de fato, usurpam parte das funções típicas de cada um dos poderes tradicionais^14.

(^13) Paul Rabinow, “Representations are Social Facts: Modernity and Post-Modernity in Anthropology”, in Essays on the Anthropology of Reason, Princeton University Press, 1996, p. 35. Neste ensaio, Rabinow discute a epistemologia como um evento social datado, referenciado ao século dezessete na Europa. Em decorrência, com Foucault, vê a ideologia não como uma falsa verdade, ou escamoteamento da verdade que esconderia algo infraestrutural, da qual a ideologia seria um aspecto parasitário. Assim, acordos temporários tais como o que observo são de fato “regimes de verdades”, representações produzidas dentro de discursos que não são em sí falsos ou verdadeiros, mas elementos vitais da constituição de práticas sociais legitimadas. 14 “Just how to think of these agencies (whether as legislative, administrative or judicial, for they partook of all three), how to rationalize their anomalous place in the constitutional system, and how to order their relation with

responsável, deve fazer um anúncio público de sua intenção, inclusive com detalhes do procedimento a ser seguido 17.

A ausência de um direito administrativo próprio às agências regulatórias brasileiras, capaz de comportar a judiciarização de seus ritos tende a ampliar os recursos ao judiciário, enfraquecendo, portanto, a nova política implantada

A Inglaterra, outro exemplo a se observar, procurou evitar o “procedimentalismo” americano – até mesmo pela escassa prática inglesa com lei escrita. As discussões não têm sido menos intensas, embora o caso inglês tenha mostrado preocupação mais clara com o lado do consumidor e com questões de eqüidade e justiça na constituição, nas responsabilidades dos reguladores e nas responsabilidades dos entes privatizados. De todo modo, a própria Inglaterra, na área de telecomunicações, começou a tender para o “procedimentalismo” como forma mesmo de atribuir maior legitimidade ao poder regulatório 18.

A privatização era tema inexistente na constituição das agências americanas. Já na Inglaterra, como no Brasil, os novos entes reguladores, em geral indivíduos subordinados à supervisão ministerial, são produto do massivo processo de privatização. As questões de accountability e a preocupação com a função social e a obrigação pública das unidades privatizadas foi assunto relevante^19. Não é claro que

(^17) Sem exceção, todos os presidentes americanos, desde Nixon até Clinton, publicaram decretos ( Executive Orders ) detalhando os procedimentos necessários ao estabelecimento de novas regulações. Estes envolvem estudos de impacto ambiental (EIS, “ environmental impact statement ”), impacto sobre a inflação (IIS, inflation impact statment ). Em verdade, a precaução em torno das conseqüências das regulações americanas é uma “sopa de acronímicos”: COWPS (council of wage and price stability , responsável pelo IIS), RARG ( regulatory analysis group ), RIA ( regulatory impact analysis ), PRIA ( preliminary regulatory impact analysis ) e a FRIA ( final regulatory impact analysis ). Em geral, a supervisão e final revisão do processo está a cargo do OMB (Ministério da Administração e Orçamento). Ver detalhes do “roteiro regulatório” em Thomas McGarity, Reinventing Rationality: The Role of Regulatory Analysis in the Federal Bureaucracy , Cambridge University Press, 1991 e em Viscusi, Vernon e Harrington Jr., Economics of Regulation and Antitrust , MIT Press, 1997. 18 Cf. “Regulatory Reform in Higher Education in the U.K: incentives for efficiency and product quality ”, por Martin Cave, Ruth Dodsworth, David Thompson, in Mathew Bishop, John Kay, Colin Mayer , The Regulatory Challeng, Oxford University Press, 1996. “Registre-se que, no Reino Unido, existe uma clara separação de funções e de instrumentos regulatórios. Enquanto a Monopolies and Mergers Commission foi criada para exercer o papel de agência reguladora exclusiva para a arbitragem de conflitos em geral, outra entidade—National Audit Office—exerce a atividade de auditoria das agências setoriais, que são especializadas e específicas para cada setor (água, eletricidade, gás, saneamento básico, telecomunicações)”. Arnoldo Wald e Luiza Rangel de Moraes, opus cit., p. 159 19 Sumária descrição do processo de privatização na Inglaterra e de sua relação como o mundo político e parlamentar está em Daniel Yergin The Commanding Heights: The Battle Between Government and the Market Place that is Remaking the World, Simon & Schuster, New York, 1998 e em Carles Boix , Political

no Brasil tenha havido esta preocupação. De toda forma, em ambos os casos, nem sempre o objetivo de deixar as cortes fora do tema regulatório foi completamente bem sucedido.

Comparado com os EUA ou Inglaterra, o Brasil, em virtude mesmo de nossa raiz jurídica, é terra do direito positivo, muito mais do que de procedimentos “alegais” 20. Esta matriz jurídica, com certeza, fará da atividade das agências assunto de freqüentes disputas judiciais. O entrevero entre Aneel e Light, por conta dos apagões no Rio de Janeiro, bem contemporâneos à inauguração do novo regime regulatório, já deixava vislumbrar o eventual apetite da concessionária para discutir na justiça a interpretação que a Aneel tinha do contrato de concessão^21.

Visto que inexiste no direito administrativo brasileiro jurisprudência, ou normas, para lidar com esta nova face da relação entre setor público e sociedade, deve-se esperar turbulenta vida para a ação normativa e punitiva das agências, na sua interação com as empresas privatizadas. Por outro lado, a proteção dos direitos dos indivíduos possivelmente demandará ação das cortes, visto que as agências, no presente arcabouço, não são órgãos protetores dos consumidores. De fato, pode residir aqui, no papel do judiciário, um dos mais potentes e importantes desafios ao “agenciamento” contemporâneo, que caracteriza o governo FHC^22.

3 – Caveat: Trabalho, a Fronteira Inconquistada

A relação entre Estado e Economia, no Brasil, foi exaustivamente estudada e codificada, conhecendo-se a relevância do Estado na constituição do capitalismo brasileiro, através, inicialmente, de pesada regulação trabalhista, encravada na mais

Parties, Growth and Equality: Conservative and Social Democratic Economic Strategies in the World Economy 20 , Cambridge University Press, 1998. Sobre a relevância da “raiz jurídica” dos países, especialmente frente à enorme pressão americana para o estabelecimento de políticas formais “pró-competição” no imediato pós-guerra, ver, especialmente o sumário para o caso alemão, Michelle Cini e Lee McGowan, Competition Policy in the European Union , St. Maratin´s Press, New York, 1998. Para o Brasil, é obrigatória a leitura do conciso estudo de Lucia Helena Salgado, A Economia Política da Ação Antitruste 21 , Editora Singular, S.P., 1997 Neste primeiro “round”, embora tenha insinuado o recurso à justiça, a Light preferiu aceitar a penalidade imposta pela Aneel, mas deixou para pagar a multa, penalidade imposta pelos apagões fluminenses, no último dia permitido. 22 Comparação entre a versão inglesa e a versão americana de ente regulador, bem como referência ao zelo com as consequências públicas da privatização, deve ser buscada em Tony Prosses, Law and the Regulators, Oxford University Press, 1997. Prosses vê as agências como “governos em miniatura”, decorrendo daí a necessidade da cautela “procedural”, mesmo na Inglaterra.

Surpreende que ainda não se tenha sugerido uma agência para regular as relações entre capital e trabalho, em substituição à CLT. De toda forma, a nova relação do Estado com a economia e a sociedade, cada vez, mais se inscreve nos contornos de novas e diversas agências regulatórias, ao mesmo tempo em que se reabre a discussão sobre o papel do Estado no emergente contexto “pós-neoliberal”.

Com as reformas então aventadas para o trabalho, para a CLT, baseadas na extinção da memória de Vargas, atingir-se-ia o ápice do conjunto de reformas destinadas a flexibilizar o mercado brasileiro. Este mercado, desde o início dos tempos modernos, tem sido um mercado regulado, distorcido, parametrizado sob a mão estatal. O mercado brasileiro é filho do Estado. Nada é mais significativo disto do que o Estado getulista que fincou bases para o desenvolvimentismo de JK e a construção triunfante do período militar recente.

3 –Regime e Governança Regulatória no Contexto da Reforma

do Estado

1 – Regimes Regulatórios

Regimes regulatórios são arranjos político-institucionais, uma configuração historicamente específica de políticas e instituições que estruturam o relacionamento entre interesses sociais, Estado, e atores econômicos, tais como empresas, sindicatos e associações rurais, em múltiplos setores da economia^25. São, portanto, padrões de intervenção político-institucional, que estruturam as relações entre Estado e mercado.

Entendidos, sob uma perspectiva nacional, regimes regulatórios constituem uma específica constelação de idéias e instituições que definem a relação entre o Estado, as empresas ou as organizações reguladas. As idéias, ou a orientação impressa ao regime, dão direção e forma, são a essência do regime, mesmo que não plenamente realizadas nas instituições e nas políticas postas em prática. Essa dimensão refere-se à aderência, ou subordinação, dos atores de Estado a doutrinas, ou sua crença em métodos de intervenção governamental na economia.

Uma segunda dimensão refere-se às instituições, ou à organização e à articulação do regime, na sua relação com os agentes privados. As instituições se constituem pelas idéias somadas a contextos – incentivos e restrições – institucionais preexistentes, e acabam modificando, na prática, as idéias que as inspiraram^26.

A mudança formal do regime regulatório brasileiro ocorreu em paralelo ao processo global de reforma administrativa, tanto nas idéias que preconizava, quanto nas instituições que pretendia constituir. Houve estrita correlação, embora nem sempre aparente, entre uma e outra. 27

(^25) Marc Allen Eisner , Regulatory Politics in Transition , Johns Hopkins U. Press, 1993, p. (^26) Steven Vogel, Free Markets, More Rules: Regulatory Reform in Advanced Industrial Countries, Cornell U. Press, 1996, p.20. 27 “O governo pode não ser eficiente quanto a certos tópicos, mas tem sido extremamente eficiente em implantar, independentemente de reformas constitucionais, por meios de medidas provisórias e de medidas práticas, a execução daquilo que reputa como essencial, necessário e constitui sua meta...”, Marçal Justen Filho, in 10 Anos de Constituição: Uma Análise, opus cit. p. 130

ministro da pasta do início do governo até sua desincompatibilização do cargo. Em verdade, Bresser Pereira foi o mais prolífico estrategista-doutrinário – ideólogo, prefeririam alguns – do movimento de reforma, insistindo didaticamente na divulgação de sua concepção de administração gerencial, daí decorrendo um pensamento doutrinário organizado para o movimento de reforma administrativa do governo.

A Reforma do Estado do governo FHC pode ser condensada em quatro aspectos principais:

  • delimitação do tamanho do Estado;
  • redefinição do papel regulador do Estado;
  • recuperação da governança;
  • aumento da governabilidade.

Quanto à delimitação do tamanho do Estado, a intenção era reduzir seu porte, sobretudo no que condizia ao quadro de pessoal, através de processos de privatização, “publicização” – transferir para o setor público não-estatal serviços sociais e científicos que são potencialmente competitivos – e terceirização.

No tocante à redefinição do papel regulador do Estado, o objetivo era reduzir o grau de interferência estatal, aumentando o controle via mercado. O Estado seria responsável pela promoção da capacidade do país em competir no mercado globalizado, propósito inalcançando mas repetidamente enunciado, como na recente substituição do ministro da área.

O aumento da governança referiu-se à capacidade do Estado de tornar efetivas as decisões do governo. Envolvia, além do ajuste fiscal, mudança no padrão de administração pública. A administração, então burocrática, deveria tornar-se

Nobel, 1991; “Privatization Through Institutionalization, when it is Necessary to Create the Market and the State”. São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, Departamento de Economia, Texto para Discussão no. 23, dezembro de 1992; ”A Reforma do Aparelho de Estado e a Constituição de 1988”. Texto para Discussão ENAP no. 1, Brasília, 1995; Crise Econômica e Reforma do Estado no Brasil. São Paulo, Editora 34, 1996; ”Da Administração Pública Burocrática à Gerencial”. Revista do Serviço Público , 47(1), janeiro de 1996; ”Managerial Public Administration: Strategy and Structure for a New State”. Washington: Wilson Center, The Latin American Program, Working Paper Series no. 221, julho de 1996.

gerencial, ou seja, haveria controle dos resultados e não dos processos de execução de políticas públicas. Para isso, seria necessário separar o núcleo estratégico^34 do Estado, responsável pela formulação das políticas e que deveria manter o padrão burocrático, dos serviços monopolistas^35 , isto é, serviços que só o Estado poderia realizar, mas que podiam e deviam adotar o modelo gerencial de administração.

O aumento da governabilidade envolveria dois processos: o aperfeiçoamento da democracia representativa e maior abertura do Poder público ao controle social. Pretendia-se, ao mesmo tempo, garantir melhor intermediação de interesses, e aumentar o poder e a legitimidade do governo.

3 – A Reforma e o Regime Regulatório Brasileiro

A despeito do longo esforço de reforma, não existiu, até 31 de maio de 1996, nenhuma definição clara de como deveriam ser pensados e estruturados os órgãos responsáveis pelos serviços monopolistas, pela fiscalização e pela regulação dos serviços públicos. Naquele dia, o Conselho de Reforma do Estado recomendou uma série de princípios a serem seguidos na construção do Marco Legal dos Entes Reguladores^36. Com a recomendação, buscava-se “a formulação de uma política regulatória que (desse) consistência e coerência às propostas de governo”. Neste documento, o Conselho de Reforma do Estado diagnosticou o aparato regulatório brasileiro como “enorme, obsoleto, burocratizante e, em essência, intervencionista, sendo necessário primeiro desregular para, a seguir, regular por novos critérios e formatos mais democráticos, menos intervencionistas e burocratizados” 37.

Para tanto foram sugeridos cinco princípios básicos, que seriam os norteadores da constituição dos entes reguladores:

  • autonomia e independência decisória;

(^34) Plano Diretor da Reforma do Estado , Câmara da Reforma do Estado, Presidência da República, versão 9.8.95, Brasília, 1995, p. 22 35 36 ibdem_._ Na ocasião, compunham o Conselho de Reforma do Estado: Maílson Ferreira da Nóbrega (Presidente), Antônio Ermírio de Moraes, Antônio dos Santos Maciel Neto, Bolivar Lamounier, Celina Vargas do Amaral Peixoto, Gerald Dinu Reiss, Hélio Mattar, João Geraldo Piquet Carneiro, Joaquim Falcão, Jorge Wilheim, Luiz Carlos Mandelli, Sérgio Henrique Hudson de Abranches, e o Ministro do MARE, Luiz Carlos Bresser Pereira. 37 Construção do Marco Legal dos Entes Reguladores, Recomendação de 31 de maio de 1996, Conselho de Reforma do Estado.