









Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Este documento reflete sobre a pedagogia construída pelo movimento sem terra (mst) e sua influência nas crianças envolvidas. O autor analisa as relações entre crianças e processos pedagógicos, a expressão das crianças sobre sua vida e a importância de incluir-as como protagonistas na construção do conhecimento sobre a infância e sua educação. O estudo se concentra na análise de três aspectos: a relação entre crianças e educação, a construção de uma relação de alteridade entre pesquisadora e sujeitos da pesquisa, e a produção da mística nas crianças.
Tipologia: Esquemas
1 / 17
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
ARENHART, Deise – UFSC GT: Educação da Criança de 0 a 6 anos / n. Agência Financiadora: CNPq
1. Introdução
É notável como a infância vem sendo alvo de grande preocupação nos tempos atuais. Destaque-se que as condições em que as crianças estão imersas em um sem- número de situações cada vez mais ameaçam a experiência da infância. Problemas como “adultização” precoce, confinamento espacial, estranhamento entre as gerações, trabalho infantil, maus-tratos, abuso sexual, etc, mobilizam a sociedade e têm sido destaque na agenda das políticas públicas de proteção, assistência e educação. Considerando que a ameaça ao direito à infância se radica no acirramento da crise social que caracteriza esse momento histórico, tornou-se importante buscar pistas para refletir sobre os problemas relacionados à infância e à sociedade, especialmente nos aspectos relativos à educação. Sabendo que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST - tem clara intencionalidade pedagógica de modo a acionar um processo de formação humana aos sujeitos sem-terra, considerei importante conhecer e refletir acerca da experiência de um movimento social que se propõe a fazer frente ao sistema de organização social capitalista: refletir sobre a Pedagogia que construíram, para quê e como educam, focalizando a relação que as crianças estabelecem com os processos pedagógicos que perpassam a experiência da infância nesse movimento social. A decisão de destacar a relação que as crianças estabelecem com esse processo educativo idealizado pelo MST se justifica pela necessidade de dar coerência a uma concepção que reconhece as crianças como atores sociais e, portanto, as mais capazes de nos fornecer informações no que concerne a elas próprias (SARMENTO e PINTO, 1997; LANSTED, 1991). Buscar oportunizar a expressão das crianças sobre o que vivem através da referência de um projeto educativo definido e orientado para elas, tem a ver com a tentativa de contribuir para a construção de uma cultura no campo científico da educação e, em especial, no MST, de inserção das crianças também como protagonistas na construção do conhecimento referente à infância e sua educação.
Dentre tantos elementos pedagógicos acionados no processo de luta do MST, escolhi destacar para o presente trabalho a análise sobre as relações que as crianças estabelecem com a luta, com a mística e com o trabalho. O estudo se concentrou na análise desses três aspectos por perceber que eles se mostraram extremamente reveladores do cotidiano das crianças pesquisadas. Para dar conta da discussão proposta nesse artigo, o texto está dividido de forma que, no primeiro tópico, contextualizo sucintamente o cenário onde foi realizado o estudo, o processo de construção dos recortes da pesquisa e coloco alguns dos pressupostos teórico-metodológicos que a orientaram. Realizo, em seguida, um breve retrato das crianças “Sem Terra”, no qual analiso a construção da infância na relação com a Pedagogia do MST. Finalizo no terceiro tópico com a análise e discussão da relação que as crianças estabelecem com a Pedagogia do MST, especialmente, com a mística, com a luta e com o trabalho.
2. O processo e o cenário da pesquisa Para analisar a relação que as crianças estabelecem com a Pedagogia do MST, parti de duas considerações básicas, sobre as quais foram definidos dois conceitos teórico-metodológicos para orientar o olhar. A primeira consideração refere-se à concepção de que as crianças são agentes ativos na construção da cultura. Assim, contradizendo a perspectiva que as toma como seres passivos, entendo que elas (re)produzem, (re)constroem e transformam a cultura, impregnando-a de seus modos, pensamentos, críticas e desejos. Não se trata, contudo, nem de mera assimilação passiva, nem de produção autêntica, advinda de uma essência infantil natural, mas de uma relação dialética entre sujeito e sociedade, em cujas estruturas está engendrado. Estas, ao mesmo tempo em que o formam, também são formadas por ele. A segunda consideração é que as crianças, levadas pelo fato de se reconhecerem como um grupo subordinado aos saberes e domínios dos adultos, geralmente não dizem aquilo que realmente pensam ou sentem, mas aquilo que elas pressupõem que queremos ouvir. Leite (1997, p.76) chama a atenção para esse fato, argumentando que Comumente em desigualdades de forças – pai/filho, patrão/empregado, aluno/professor – a pessoa facilmente age ou responde, não necessariamente o que pensa, mas o que imagina que deveria, o que imagina que querem que ela faça ou fale.
Conquista da Fronteira. Buscou-se apreender também as expectativas, conflitos, intencionalidades que eles têm para com a educação das crianças, fatos que, direta ou indiretamente, afetam as vidas das mesmas, a forma como sentem, pensam e se colocam diante da realidade. Realizei ainda uma entrevista com a coordenadora do setor de educação do MST em SC, bem como me vali de diversos materiais (livros, revistas, boletins, teses e dissertações) do e sobre o MST, incluindo uma vasta bibliografia nas áreas da Sociologia, Psicologia, História, Pedagogia e Antropologia, que se relacionam com a infância e com os recortes temáticos e metodológicos do estudo.
3. A(s) Infância(s) em movimento na luta pela terra Os últimos estudos construídos em torno da infância têm avançado no sentido de reconhecerem o caráter de heterogeneidade inerente a essa categoria. Ao mesmo tempo em que ela se define por congregar um grupo geracional, isso não é o que, concretamente, garante sua homogeneização, uma vez que a infância é uma experiência diversa, pois elementos como inserção social, cultura, etnia e gênero (Sarmento, 1997) vão construir diferentes modos de ser criança e viver a infância em cada formação social e em cada momento histórico. Embora haja diversidade dentro do próprio MST, é possível perceber alguns elementos comuns na constituição das experiências sócio-culturais das crianças que estão envolvidas na luta pela terra. Elementos como, a condição de viverem suas infâncias no contexto do mundo rural, pertencerem a classe trabalhadora e fazerem parte do MST. Considero que esse último elemento talvez seja o que mais as identifica enquanto coletividade e mais as diferencia em relação às outras crianças – que também vivem no meio rural e da mesma forma pertencem à classe trabalhadora. Os “Sem Terrinha”, como as próprias crianças se denominam para marcar sua identidade de ser criança sem-terra , são, sobretudo, crianças em movimento , portanto, estão inseridas na dinâmica de um movimento social que também elas, como crianças, ajudam a construir. Ao mesmo tempo, não estando fora do contexto de uma sociedade desigual e excludente, trazem as marcas do mundo do trabalho, da fome, do frio, das dificuldades de se viver embaixo da lona preta, do sacrifício da luta cotidiana pela sobrevivência; seus corpos expressam sua condição de classe.
Por outro lado, seus corpos retratam também uma identidade de luta, dignidade e confiança no presente e no futuro, resultados da inserção em um movimento social que produz essa força no interior dos seus processos educativos. As crianças Sem Terra vivem, crescem e se educam num contexto em que o próprio Movimento se coloca como o principal sujeito educativo (Caldart, 2000). A experiência das ocupações, da organização coletiva, da sobrevivência no acampamento, da participação nas assembléias, marchas, congressos, audiências com o poder público, mobilizações, o trabalho na perspectiva coletiva e cooperada, a produção na perspectiva agro-ecológica, o cultivo da memória e da história dos trabalhadores, a realização das místicas e o cultivo dos símbolos que identificam a organização coletiva, entre outras ações que perpassam a experiência de estar em movimento no Movimento têm a potencialidade pedagógica de construir essa identidade coletiva, forjada sob novos valores, capazes de sustentar um novo jeito de viver. As crianças convivem com essa Pedagogia e o MST reconhece que o espaço escolar é, por excelência, o lócus privilegiado de educação das novas gerações. Para tanto, busca fazer uma ocupação da escola. Parte do princípio de que a Pedagogia do Movimento não cabe na escola, mas a escola cabe na Pedagogia do Movimento. E cabe ainda mais quando se deixa ocupar por ela (Boletim da Educação nº 8, 2001:23). A Escola do assentamento investigado constitui-se como mais um espaço onde o MST se faz presente. Isso fica evidente na forma crítica de abordar os conteúdos, analisados numa perspectiva de classe ; na realização diária das místicas, pela qual as crianças vivenciam a história da luta de seus pais e precursores por meio da memória destes; na presença dos símbolos que retratam a luta; na articulação dos conteúdos escolares com a realidade da vida de seus sujeitos; na relação aberta e democrática entre escola e comunidade, na medida em que os pais reúnem-se bimestralmente para indicar os Temas Geradores significativos de serem estudados para aquela realidade; na combinação entre estudo e trabalho e no exercício da organização coletiva, pela qual as crianças formam a sua própria Cooperativa, o que, garante, em grande parte, a gestão da escola com a participação infantil.
4. Uma Pedagogia em movimento: a mística, a luta e o trabalho na vida das crianças
4.1 “A mística para nós é um modo de viver, né...”
A mística como produção cultural do MST também é valorizada pelas crianças e está relacionada à expressão. Por essa expressão cultural as crianças podem mostrar às outras pessoas que não conhecem o Movimento, ou que o conhecem de forma deturpada, como vivem o que conquistam, enfrentam, sonham para sua classe e para o Brasil.
Nós aprendemos com a mística a fazer teatro, daí quando a gente vai na cidade a gente pode até apresentar, pra mostrar para as pessoas que a gente consegue fazer alguma coisa, e a gente mostra como a gente vive, daí eles batem palmas. Outro dia nós fizemos mística com as bandeiras, daí tinha os sem-terra e a polícia veio prender os ricos porque eles estavam expulsando os pobres da terra (Clauber, 9 anos).
Percebi uma diferenciação na relação que as crianças têm com a mística entre aquilo que elas dizem (colocado no âmbito dos significados) e aquilo que elas fazem (colocado no âmbito das produções). Quando as crianças falam da história dos pais, de toda a luta e sofrimento que envolve esta história, elas expressam sentimentos de respeito, um certo pesar difundido com orgulho, mas quando elas passam a representar, parece encararem como um ato de brincadeira, não ficando concentradas em seu conteúdo. Essa percepção fica evidente n a descrição do episódio a seguir, tido como uma produção das crianças realizando uma mística na escola.
Surpresa!!! Vamos a festa? Diário de campo (12/08/02): Começa a mística: Entram na sala cinco crianças (meninos). Ficam bem juntinhos como se estivessem combinando algo. Logo em seguida fazem gesto de cortar cercas e ocupam uma área de terra. Mostram-se entusiasmados até que esse entusiasmo é cortado com a chegada de dois policiais (meninos) armados e o proprietário da fazenda (menino). Estes chegam já com gestos de quem veio para expulsá-los, espancando os sem-terra que caem feridos ao chão. Os policiais e os fazendeiros se retiram e logo chegam duas crianças (meninas) para solidarizarem-se com os sem-terra, parecendo ser enfermeiras. Elas cuidam dos feridos e os ajudam a levantar do chão, fazendo gestos e dizendo palavras de apoio. Os sem-terra continuam a resistir na terra, começam a plantar e vencem o próximo ataque realizado pela polícia com o fazendeiro. Em seguida, as duas enfermeiras promovem uma grande festa: a festa dos pais (era véspera do dia dos pais). Chegam perto dos sem-terra tampando seus olhos com as mãos e exclamam: Surpresa! Vamos a festa? Em seguida, vão ao encontro do fazendeiro e dos policiais, trazendo-os pelas mãos para festejarem juntos. Antes de dar início à festa, as enfermeiras reúnem todos (sem-terra,
policiais e fazendeiros) e pedem para não brigarem, dizendo que todos os pais mereciam uma festa bonita e com muita paz. Todos concordam e começam juntos a pular, dançar, bailar...
Provavelmente se fôssemos assistir às místicas organizadas por adultos do MST não veríamos esse final. Como as crianças ousam sair do “script” esperado? Relacionando as falas com a descrição da mística observada, veremos que, até certo ponto, as crianças reproduzem o que aprendem dos adultos – como acontecem as tensões produzidas em um ato de ocupação de terra. Porém, no desfecho final, parece que elas fazem vigorar os seus desejos de festa, alegria, surpresa, enfim, um final feliz para todos e todas. Corsaro (2002), pesquisando sobre a socialização infantil, estabelece a tese que denomina “reprodução interpretativa”, em oposição à perspectiva de reprodução passiva, presente nas teorias tradicionais de socialização. Sendo sujeitos e agentes ativos na construção da cultura, no lugar de assimilar passivamente conteúdos, crenças, valores, costumes, etc., as crianças os resignificam e os transformam, contribuindo assim para as mudanças das formas sociais. Assim, ao mesmo tempo em que as crianças se apropriam da cultura estabelecida em seu meio, elaboram também uma interpretação da mesma. Ainda na direção de buscar analisar o modo como as crianças (re)produziram a mística aprendida nas suas experiências educativas no MST, lanço mão das idéias de Iturra (2002). Esse autor, buscando características para entender a epistemologia infantil (2002, p.19), identifica diferenças em relação à forma de compreender e se relacionar com o real entre crianças e adultos. Se esses últimos realizam uma ação pensando nas causas e conseqüências que se vinculam a ela, as crianças, por sua vez, estarão mais motivadas pela satisfação imediata que a ação possibilita. Relacionando esse entendimento com a produção da mística das crianças, poderíamos ter a seguinte explicação: para os adultos, que conheciam a causa do surgimento dos sem-terra e a compreensão do que uma possível conciliação poderia acarretar para o desmantelamento da organização do Movimento, seria difícil acatar a hipótese apresentada pelas crianças para a finalização da mística. Já em relação às crianças, por mais que elas aprendam com os pais que essa é uma relação de oposição intrínseca na luta pela terra porque é uma luta de classes, quando passam a expressar em suas produções o seu jeito de fazer e ser, acabam manifestando outras soluções, no caso, o desejo de paz, de conciliação entre os opositores.
No âmbito das significações, ao mesmo tempo em que algumas crianças afirmaram que já estão lutando , elas também dizem que, como crianças, estão aprendendo a lutar. Para as crianças (convergindo com a perspectiva do MST), a prática de lutar adquire um sentido de formação, é por ela que vão aprendendo e se formando enquanto futuros lutadores do povo. Se o direito a participar das experiências que envolvem a luta do MST é importante para garantir estatuto de cidadania as crianças, o que vem a qualificar essa participação no sentido dela ser ativa e respeitosa em relação à condição infantil é justamente a forma como se dá essa participação. Como forma de evidenciar este aspecto abordo a seguir o que as crianças dizem sobre suas bandeiras de luta e formas de participação. Em relação às bandeiras de luta, as crianças pesquisadas citam a conquista de seus direitos: direito a ter terra, casa, comida, roupa, escola e poder brincar.
“É que nem assim: Se você fosse a minha mãe, você ia me ensinar a lutar pelos meus direitos de criança, por todas as coisas que a gente tem direito a gente deve lutar, por terra, casa, comida, roupa. Que nem as crianças aqui, a gente já sabe que tem o direito de aprender, de brincar, de lutar pela vida.”. (Andréa, 10 anos).
A questão dos direitos é bastante ensinada para as crianças, porque o MST é um Movimento que luta pelos direitos humanos , incluindo aí todas as idades. Contudo, as crianças não se remetem especialmente a seus direitos de crianças. Demonstram grande preocupação com as questões sociais , como a preservação da natureza e a situação de marginalização das populações pobres que não fazem parte do Movimento. Analisando alguns documentos do e sobre o MST e convivendo com as crianças “Sem Terra”, percebe-se que elas, com sua capacidade de estranhar as injustiças, de se sensibilizarem frente ao sofrimento alheio, ajudam os adultos a recuperar a capacidade de estranhar aquilo que se apresenta como reflexo de nossa desumanidade. As crianças são, assim, o espelho que retrata os sentimentos e as paixões que o ser humano vai perdendo (ou ganhando) no seu confronto com uma cultura que tende a naturalizar a miséria.
No caso das crianças “Sem Terra”, essa atitude é alimentada pela Pedagogia do MST, que trabalha também o poder da indignação, de modo que os sujeitos possam ter sensibilidade e força para se colocar em movimento para lutar.
“Nós lutamos para que as crianças que moram na rua podem ter mais esperança, que tenham casa para eles, comida e estudo para eles. Então nós trabalhamos par ajudar as outras pessoas também.”. (Volnei, 8 anos).
Grande parte das crianças relacionou a luta com o trabalho, levando a entender que neste último encontra-se uma das formas de lutar. Assim como estão aprendendo a trabalhar, também estão aprendendo a lutar. Uma outra forma de lutar, além do trabalho, é a participação nos eventos do Movimento. Por eles o MST mostra-se à sociedade como um Movimento que agrega várias gerações, incluindo aí os mais excluídos historicamente de seus direitos, como os velhos, as crianças, as mulheres, os analfabetos, os sem-estudo, sem-emprego, enfim, os(as) não cidadãos(ãs). O episódio que descrevo a seguir foi narrado pelas crianças como uma ação pela qual sentiram-se lutando, sentiram-se “Sem Terrinha”. Essa narrativa, porém, não trata de uma manifestação observável no tempo em que estive em campo, mas sim da memória viva das crianças, de uma memória que faz questão de não ser apagada.
O manifesto das crianças Teve um dia que eu nunca vou esquecer na minha vida. Foi quando nós fizemos o projeto do minhocário e daí nós precisava de mão-de-obra, nós não sabia bem como fazer. Então nós pedimos mão-de-obra da cooperativa e eles deram, daí nós fizemos um acordo que nós dava 50% da produção da terra do minhocário para a cooperativa. Quando a produção estava pronta as cigarras atacaram nas frutas e na horta da escola e nós precisava adubar, e daí nós achava que os 50% daria, mas não deu. Daí nós fomos pedir para eles se eles podiam liberar para nós usar todo adubo, que daí no ano que vem nós dava toda a produção. Eles não aceitaram porque eles já tinham tudo pronto esperando. Daí a professora pediu idéias do que fazer. Aí um piá deu a idéia de nós ir em passeata lá pressionar até conseguir. Todo mundo votou, nós era em 37 alunos e duas professoras e deu 37 votos para ir e dois para ficar, que eram os das professoras. Como nós era a grande maioria, não tinha como né, daí nos mandamos lá. Daí todo mundo veio de chapéu, boné do MST, camisa, fomos com faixas, bandeira, cantando, gritando gritos de ordem, fizemos um agito com gritos de ordem em frente do escritório sem parar. Aí fizemos uma equipe de negociação que entrou no escritório para discutir com eles, enquanto os outros ficavam na porta cantando, agitando, ajudando. Daí eu lembro que eles disseram: O que nós vamos fazer, nós vamos pegar uma vara ou vamos
3.3 “É porque eu gosto de trabalhar...” Surpreendendo-me nas minhas hipóteses, as crianças revelaram gostar de trabalhar. Buscando compreender os motivos aos quais se atrelam esse gosto, pude identificar que se relacionam a três significados que o trabalho^3 tem para as crianças pesquisadas: 1) O trabalho como estratégia de sobrevivência econômica; 2) O trabalho como estratégia de valorização e interação social e; 3) O trabalho como estratégia de manifestação lúdica. No primeiro caso, as crianças reproduzem o valor atribuído ao trabalho na sociedade capitalista, pelo qual garantimos o dinheiro necessário à sobrevivência, porém, também subvertem a ótica individualista relacionada a esse valor pela lógica do capital, o que indica a presença dos valores aprendidos no MST. “O que eu mais gosto é de ajudar os outros, trabalhar, carpir .”.
de ficar perto da minha família, acompanhar assim na roça.”. (Cleide, 11 anos).
Embora o intenso enclausuramento humano e o afastamento entre as gerações seja um problema que se origina pelo modo de vida industrial dos centros urbanos no meio rural isso também começa a ocorrer, ainda que de forma diferenciada. Por outro lado, o modo de vida do campo ainda consegue manter a aproximação entre as gerações, pois a mistura entre crianças e adultos permite as primeiras acompanhar os últimos em seus ofícios. Esse modo de organização social primitivo está sendo quase que totalmente abandonado pelo modo de vida da sociedade moderna. Esse afastamento tem produzido relações de estranhamento entre as gerações, em cujo contexto pais desconhecem e temem os próprios filhos e os filhos não respeitam e não aprendem com a experiência dos mais velhos, assim, também não se reconhecem como continuidade da história dos pais (Pereira e Souza, 1998, p. 38). As crianças sentem e resistem a esse afastamento, demonstrando o quanto nosso processo de humanização está atrelado às relações sociais, especialmente, o quanto o afeto é essencial á felicidade humana. A possibilidade de manifestação lúdica atribuída como a terceira significação dada pelas crianças ao trabalho está relacionada às várias interações vividas pelas crianças por meio desse: o contato com a natureza (terra, plantas, água, animais), a companhia dos adultos e dos pares. Assim, como crianças, indicam que a motivação dominante da atividade de trabalhar não está necessariamente na produção advinda do trabalho, como o é na lógica adulta, mas nas experiências, sensações, prazer imediato que podem obter através dele. Nessas interações, as crianças transgridem o sentido puramente produtivo do trabalho que o separa da possibilidade lúdica, e associam o caráter de brincar ao trabalhar. Explico o fato das crianças atribuírem ao trabalho a possibilidade dele ser também um espaço de manifestação lúdica, sob dois fatores que se complementam: um relacionado ao contexto e outro as características constitutivas do ser criança. Ao que cabe ao contexto, é preciso reconhecer que é o trabalho na perspectiva coletiva que permite relações menos individualizadas e mais lúdicas, inclusive para os adultos. Para as crianças, o trabalho nas equipes adquirem mais graça porque quando estão juntas, em pares, transformam a atividade do trabalhar em brincadeira e os instrumentos de trabalho, em brinquedo. “O trabalho coletivo é muito divertido , porque é junto com os outros e a gente vai brincando também. Que nem quando a gente vai levando o adubo
Valores como solidariedade, consciência de classe, participação infantil, valorização do coletivo, cultivo da memória social, respeito à natureza e reconhecimento do ser humano como sujeito histórico, são algumas práticas observadas no contexto estudado que, a meu ver, conseguem confrontar a cultura capitalista e produzir um clima sócio-cultural em que a infância pode ser construída também com mais respeito e humanidade. Por isso, o MST indica a importância de conceber a educação numa perspectiva mais ampla do que a transmissão dos ditos conteúdos escolares, lembrando que é preciso cuidar dos conteúdos dos sujeitos que são construídos pelo confronto do velho com os novos valores, numa correlação em que a experiência do novo possa prevalecer. Por fim, a presença das crianças “Sem Terra” no cenário das lutas sociais contemporâneas retrata a resistência de um grupo etário que esteve relegado ao “não lugar” (Souza e Pereira, 1988), ao silêncio, à espera e cujos membros passam a se colocar como atores sociais, protagonistas na construção de uma outra história para sua categoria e a sociedade. Assim, as crianças também nos ensinam quando indicam que são portadoras de capacidades culturalmente negadas na sociedade moderna. Surpreendendo os adultos ao mostrar grande capacidade de organização para suas causas, as crianças “Sem Terra” mostram que, para elas, o Movimento não é apenas uma escola de preparação para o futuro lutador, militante, trabalhador. Sendo o espelho do que andamos perdendo e ganhando no confronto com uma cultura de “desumanização”, as crianças ainda nos ensinam a recuperar a dimensão do afeto, a solidariedade, a capacidade de brincar e entregar-se ao presente, lembrando a todos nós que a vida merece ter sentido para todos e todas, em todas as idades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALDART, Roseli. Escola é mais do que escola na Pedagogia do Movimento Sem Terra. Petrópolis: Vozes, 2000. CORSARO, Willian A. A reprodução interpretativa no brincar ao “faz de conta” das crianças. Educação, Sociedade e Culturas , nº17 – p. 113-134, 2002. ITURRA, Raul. As culturas da cultura: infantil, adulta, erudita. In: Revista Educação, Sociedades e Culturas (p. 135–153). Ed. Afrontamento, nº 17, 2002. LANGSTED, Ole. Avaliando a qualidade do ponto de vista das crianças. Danish Social Science Recerch Council, 1991. Tradução livre de Débora Thomé Sayão, revisada por Edna Duck e Brian Duck (mimeo).
LEITE, Maria I. F. Pereira. O que falam de escola e saber as crianças da área rural? Um desafio da pesquisa de campo. In: Kramer, S. e Leite, M. I. F.P. Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas, SP : Papirus, 1997. MST (Movimento dos Trabalhadores Rurias Sem Terra). Pedagogia do Movimento Sem Terra: acompanhamento às escolas. Boletim da Educação nº 8. São Paulo, 2001. PEREIRA, Rita M. R. e SOUZA, Solange Jobim. Infância, conhecimento e contemporaneidade. In: Kramer, S. e Leite. M. I. Infância e produção cultural. Campinas / SP : Papirus, 1998. PINTO, Manuel e SARMENTO As crianças contextos e identidades. Coleção Infans. Centro de Estudos da Criança. Universidade do Minho, 1997.