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O POÇO E O PENDULO EDGAR ALLAN POE, Esquemas de Literatura Inglesa

LIVRO DE EDGAR ALLAN POE, O POÇO E O PÊNDULO

Tipologia: Esquemas

2023

Compartilhado em 14/03/2023

gleici-lica
gleici-lica 🇧🇷

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O POÇO E O PÊNDULO

Edgar Allan Poe

Edição especial para distribuição gratuita pela Internet, através da Virtualbooks.

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roda de um moinho. Durou isto breves instantes, porque eu já nada ouvia. Contudo, durante algum tempo pude ver; mas com que terrível exagero! Vi os lábios dos juizes de togas negras. Eram brancos - mais brancos do que a folha de papel onde escrevo estas palavras - e delgados até ao grotesco, adelgaçados pela expressão de firmeza, de imutável resolução, de severo desprezo pelo sofrimento humano. Vi que as ordens do que para mim era o destino continuavam a desprender-se daqueles lábios. Vi-os torcerem-se numa frase mortal. Vi-os formar as sílabas do meu nome; e estremeci, porque som algum se lhes seguiu. Vi também durante alguns minutos de delirante horror o ligeiro e quase imperceptível ondular das negras colgaduras que revestiam as paredes da sala. E então caiu-me a vista sobre sete círios que estavam sobre a mesa. A princípio tinham o aspecto da caridade e pareceram-me anjos brancos e esbeltos que me salvariam; mas logo e repentinamente me invadiu o espírito uma repugnância mortal, e senti todas as fibras do meu ser estremecerem como se as tocasse o condutor de uma bateria galvânica, pois que as formas angelicais se transformaram em espectros sem significação, com cabeças de chamas, e compreendi perfeitamente que não me viria deles nenhum socorro. Então insinuou-se-me na imaginação, como agradável nota de música, a ideia do delicioso descanso que devemos ter no túmulo. Acudiu-me esta ideia suave e furtivamente, e parece-me que decorreu muito tempo antes que pudesse apreciá-la plenamente: mas no próprio instante em que o meu espírito começava a senti-la e a afagá-la, as figuras dos juizes desvaneceram-se da minha vista, como por obra de magia; os altos círios ficaram reduzidos a nada; as suas chamas extinguiram-se completamente; sobreveio o negrume das trevas; todas as sensações pareceram tragadas no louco despenhar das almas no Hades. O Universo era apenas silêncio, imobilidade e trevas. Tinha desmaiado, mas não direi que tivesse perdido de todo a consciência. O pouco que me restava, não tentarei defini-lo, nem sequer descrevê-lo; ainda não estava porém tudo perdido. No sono mais profundo...não! No delírio...não! No desmaio...não! Na morte...não! Nem no próprio túmulo está tudo perdido. Doutro modo, não haveria imortalidade para o homem. Despertando do mais profundo sono, rompemos os fios da teia de algum sonho. Todavia, passado um segundo - tão frágil era aquela teia -, não nos lembramos de ter sonhado. Ao voltar à vida após um desmaio, há dois períodos: o primeiro é o do sentimento da existência moral ou espiritual; o segundo, o do sentimento da existência física. Julgo provável que se, depois de atingir o segundo período, pudermos relembrar as impressões do primeiro, achá-las-emos abundantes em recordações do abismo de além- mundo. E que abismo será este? Como havemos sequer de distinguir as suas sombras das sombras da morte? Mas se as impressões do que chamei primeiro período desobedecem à invocação da vontade, não aparecem elas

sem chamamento, após longo intervalo, enquanto perguntamos maravilhados de onde é que podem surgir? Aquele que nunca desmaiou não descobre decerto palácios exóticos e rostos extravagantes e familiares nos carvões incandescentes; não contempla, pairando no ar, as tristes visões que a maioria não descobre; não medita sobre o perfume de uma flor nova - nem o cérebro se lhe desvaira com o significado de alguma cadência musical que nunca dantes lhe prendera a atenção. No meio de esforços frequentes e concentrados para recordar, no meio da intensa luta para colher alguns indícios daquele nada aparente em que a minha alma mergulhara, houve momentos em que imaginei conseguir o que desejava; houve breves períodos, períodos brevíssimos em que evoquei recordações que, posteriormente, a razão lúcida me afirmou poderem apenas relacionar-se com aquele estado de inconsciência aparente. Estas sombras da memória falam-me indistintamente de grandes vultos que me erguiam e me mergulhavam silenciosamente para baixo, sempre para baixo, cada vez mais fundo, até que uma horrível vertigem me oprimiu à simples ideia da interminável descida. Falam-me também de um vago horror no meu coração, em virtude da sua desnaturada tranquilidade. Depois, um sentimento de repentina imobilidade em todas as coisas; como se aqueles que me transportavam (cortejo de fantasmas) tivessem ultrapassado, na descida, os limites do ilimitado, e parassem vencidos pelo cansaço. Mais tarde ainda, acode-me ao espírito certa insipidez e humidade; e depois, tudo é loucura - a loucura de uma memória que se intromete em coisas vedadas. De repente, voltam-me ao espírito um som e um movimento - o movimento tumultuoso do coração e, nos ouvidos, o ruído daquele pulsar. Sucede-se uma pausa em que tudo é vazio. Depois, outra vez o som, o movimento e o tacto - uma sensação que me abala e invade o corpo. Depois, a simples consciência da existência, sem pensamento - estado que durou muito. Depois, repentinamente, o pensamento, um terror que produzia calafrios e um esforço violento para compreender a minha verdadeira condição. Depois, um desejo intenso de recair na insensibilidade. Depois, um impetuoso renascimento da alma e uma tentativa feliz de mover-me. De seguida, a recordação completa do processo, dos juizes, das colgaduras negras, da sentença, da prostração e do desmaio. Depois, o completo esquecimento do que se seguira, e que só mais tarde, por um esforço enérgico da inteligência, pude recordar vagamente. Até ali, não tinha aberto os olhos. Sentia que estava deitado de costas e desamarrado. Estendi a mão, que caiu pesadamente sobre qualquer coisa dura e húmida. Deixei-a assim ficar por alguns minutos, fazendo esforços por imaginar onde me encontrava e o que tinha sido feito de mim. Ansiava mas não ousava servir-me da minha vista. Tinha medo do primeiro olhar que lançasse aos objectos que me cercavam. Não que receasse ver coisas horríveis, mas aterrava-me a ideia de que não teria nada para ver.

seguindo, mas caminhando sempre com a meticulosa desconfiança que certas histórias antigas me tinham inspirado. Este processo, porém, não me fornecia maneira de me certificar das dimensões do meu cárcere pois eu podia dar-lhe uma volta em redor e tornar ao sítio donde tinha partido, sem ter consciência do facto, tão perfeitamente uniforme se afigurava a parede. Por isso procurei a faca que tinha na algibeira quando me conduziram à sala de audiências; mas verifiquei que desaparecera com o fato que eu então levava, e que fora trocado por uma vestimenta de sarja grossa. Tinha pensado em cravar a lâmina da faca nalguma minúscula fenda de alvenaria, para assim deixar marcado o meu ponto de partida. Se a dificuldade, porém, era banal, na confusão em que eu tinha o espírito parecia-me insuperável. Rasguei uma tira de bainha da túnica e coloquei-a estendida a todo o comprimento, formando um ângulo recto com a parede. Ao dar a volta à cela, não deixaria de encontrar o pedaço de fazenda, quando fechasse o círculo. Foi pelo menos o que julguei, mas não contara com a extensão do cárcere nem com a fraqueza que se apoderara de mim. O chão estava húmido e escorregadio. Durante algum tempo caminhei para a frente, cambaleando, até que tropecei e caí. A extrema fadiga em que me encontrava levou-me a ficar deitado, e em breve adormeci na posição em que estava. Quando despertei e estendi um braço, achei ao pé de mim um pão e uma bilha de água. Estava tão exausto que não reflecti nesta circunstância e comi e bebi com avidez. Logo depois, retomei a volta à roda do cárcere e com muita dificuldade cheguei junto do pedaço de sarja. Até cair, tinha contado cinquenta e dois passos, e depois de continuar a andar contara mais quarenta e oito. Eram portanto, ao todo, cem passos, e admitindo que dois passos dão uma jarda, calculei que a masmorra tivesse cinquenta jardas de circuito. Porém, como havia encontrado muitos recantos na parede, não consegui fazer nenhuma conjectura sobre a forma da cripta, visto que não podia deixar de supor que de uma cripta se tratava. Tinha pouco interesse - esperança decerto nenhuma - nestas pesquisas, mas um vaga curiosidade impelia-me a continuá-las. Deixando a parede, resolvi atravessar a superfície por ela limitada. Avancei a princípio com o maior cuidado, porque o chão, parecendo embora de um material sólido, era traiçoeiro de viscoso. Por fim, recobrei ânimo e não hesitei em caminhar com firmeza, esforçando-me por seguir uma linha tão recta quanto possível. Teria dado assim uns dez ou doze passos, quando o resto da bainha rasgada se me prendeu nas pernas, tropecei e caí violentamente de bruços. Na confusão da queda, não notei imediatamente uma circunstância bastante assustadora, mas que me prendeu a atenção alguns minutos depois, enquanto continuava caído. Era a seguinte: tinha o queixo pousado no pavimento da masmorra, mas os lábios e a parte superior da cabeça, não obstante parecerem estar mais baixos do que o queixo, não tocavam em

coisa alguma. Ao mesmo tempo afigurou-se-me que me banhava a testa um vapor viscoso, e um cheiro peculiar de fungos podres subindo-me às narinas. Estendi o braço e estremeci ao descobrir que tinha caído mesmo ao pé da boca de um poço circular, cujas dimensões não tinha qualquer possibilidade de avaliar naquele momento. Apalpando a alvenaria, logo abaixo da borda, consegui deslocar um pequeno fragmento e deixei-o cair no abismo. Durante muitos segundos escutei com atenção os ricochetes que fez na descida, batendo de encontro às paredes do sorvedouro. Por fim mergulhou lugubremente na água e sucederam-se ecos retumbantes. Ao mesmo tempo senti um som, como que de uma porta situada por sobre a minha cabeça, que fora tão depressa aberta como fechada. Um ténue raio de luz atravessou a escuridão para logo se desvanecer. Vi claramente a sorte que me haviam preparado e alegrei-me com o oportuno acidente que me salvara. Um passo mais, e o mundo não me tornaria a ver. E a morte que acabava de evitar era exactamente da índole das que eu antes julgava fabulosas e absurdas nas histórias a respeito da Inquisição. Às vítimas da sua tirania deixava-se a escolha entre a morte com as mais cruciantes agonias físicas e a morte com os mais horríveis tormentos morais. Tinha sido reservado para esta última. O longo sofrimento distendera-me os nervos, de sorte que o som da minha própria voz me fazia estremecer, tornara-me, a todos os respeitos, um paciente perfeitamente indicado para a tortura que me esperava. Todo a tremer, voltei para junto da parede, antes resolvido a morrer ali que a afrontar os horrores dos poços, que a minha imaginação figurava em grande número pelos vários pontos do cárcere. Noutras disposições de espírito, teria tido a coragem de acabar de vez com as minhas misérias, precipitando-me num daqueles abismos; mas naquele momento eu era o mais completo dos cobardes. Nem pude tão-pouco esquecer o que lera a respeito daqueles poços: que a extinção repentina da vida não fazia parte dos seus mais horríveis planos. A agitação de espírito manteve-me acordado durante muitas horas, mas acabei finalmente por adormecer. Ao despertar, achei ao pé de mim, como antes, um pão e uma bilha com água. Cheio de sede ardente, esgotei a bilha de um trago. A água tinha forçosamente algum narcótico, porque, mal a bebi, senti um desejo irresistível de dormir. Um sono profundo se abateu sobre mim - um sono igual ao da morte. Claro que não sei quanto tempo durou; mas quando voltei a abrir os olhos, tinham-se tornado visíveis os objectos que me cercavam. Uma claridade singular, sulfúrea, cuja origem a princípio não pude descobrir, permitia-me ver o tamanho e o aspecto da masmorra. Tinha-me enganado muito acerca das suas dimensões. O perímetro total das paredes não excedia vinte e cinco jardas. Por alguns minutos, este facto confundiu-me em vão - muito em vão, realmente, pois que, nas terríveis

normalmente o representam, com a diferença, porém, de que em vez da foice tinha um objecto que à primeira vista julguei ser um grande pêndulo, idêntico aos que vemos nos relógios antigos. Havia contudo na aparência desta máquina alguma coisa que me levou a fitá-la com mais atenção. Enquanto a observava olhando para cima, pois estava precisamente por cima de mim, pareceu-me vê-la mover-se. Um instante depois confirmava- se a minha suspeita. O seu movimento era curto e naturalmente muito vagaroso. Observei-o durante alguns minutos com certo receio, mas principalmente com espanto. Cansado, por fim, de observar o seu oscilar fastidioso, voltei os olhos para os outros objectos do cárcere. Um ligeiro ruído atraiu-me a atenção e, olhando para o chão, vi muitos ratos enormes. Saíam do poço, que ficava dentro do meu campo de visão, à direita. Nesse mesmo instante, enquanto olhava para eles, subiam aos magotes, apressadamente, com olhos vorazes, atraídos pelo cheiro da carne. Foi-me então necessário um esforço enorme e muita atenção para conseguir afastá-los de mim. Ter-se-ia passado meia hora, talvez até uma hora (pois não me era possível ter perfeita noção do tempo), quando ergui novamente os olhos para o tecto. O que então vi deixou-me atónito e surpreso. A amplitude do movimento do pêndulo tinha aumentado cerca de uma jarda. Como consequência natural, a sua velocidade era também maior. Mas o que principalmente me perturbou foi a ideia de que o pêndulo tinha baixado visivelmente. Observei então - inútil será dizer com que horror - que a sua extremidade inferior era formada por uma meia-lua de aço brilhante com cerca de um pé de comprimento, de ponta a ponta, com as extremidades viradas para cima e o gume inferior afiado, evidentemente, como uma navalha de barba. Tal como uma navalha, parecia pesada e maciça, alargando-se a partir do gume, numa estrutura larga e sólida. Estava ligada a uma pesada vara de bronze e o todo sibilava balouçando-se no ar. Não pude duvidar por mais tempo da sorte que me preparara o engenho dos frades para quanto fosse tortura. Os agentes da Inquisição souberam que eu já conhecia o poço - o poço, cujos horrores tinham sido destinados a tão ousado herege como eu - o poço, símbolo do inferno e considerado pelo vulgo como a última Tule de todos os seus castigos. Tinha escapado de mergulhar no poço pelo mais simples dos acasos, e sabia que a surpresa ou o estratagema no tormento formava parte importante de quanto havia de grotesco naquelas execuções misteriosas. Não tendo caído, não entrava no plano diabólico lançarem-me no abismo; e assim (sem haver outra alternativa), esperava-me uma destruição diferente e mais suave. Mais suave! Esbocei um sorriso, na minha agonia, ao pensar na aplicação que dava a semelhante palavra. De que me servirá falar das longas horas de horror mais que mortal, durante as quais contei as oscilações precipitadas do aço! Polegada a polegada, linha

a linha, baixando imperceptivelmente, a intervalos que pareciam séculos, baixava cada vez mais, baixava sempre! Passaram-se dias - podem ter-se passado muitos dias - antes que o pêndulo viesse balouçar tão perto de mim que me bafejasse com o seu sopro acre. O cheiro do aço aguçado entrava- me pelas narinas. Roguei aos Céus, cansando-os com as minhas súplicas, para que fizessem com que o aço descesse mais depressa. Tornei-me freneticamente doido e forcejei por levantar-me e ir ao encontro da terrível cimitarra. E afinal caí repentinamente em sossego e quedei-me sorrindo para a morte brilhante, como uma criança para um brinquedo raro. Houve outro intervalo de perfeita insensibilidade; foi curto, porque quando voltei à vida o pêndulo não tinha descido quantidade apreciável. Mas podia também ter sido longo, porque sabia que havia demónios que, notando o meu desmaio, poderiam ter feito parar, a seu bel-prazer, a oscilação. Ao recuperar os sentidos achei-me tão doente e debilitado - nem posso exprimi- lo - como se tivesse sofrido uma longa inanição. Até na angústia daqueles instantes a natureza humana implorava alimento. Num esforço penoso estendi o braço esquerdo, tão longe quanto me permitiam as amarras, e apoderei-me dos restos insignificantes que os ratos me tinham deixado. Ao pô-los entre os lábios acorreu-me subitamente ao espírito um informe pensamento de alegria, de esperança. Contudo, que teria eu a ver com a esperança? Era, como disse, um pensamento informe, como tão frequentemente sucede, um daqueles pensamentos que nunca se completam. Sentia que era de alegria, de esperança, mas percebi também que morria ao formar-se. Debalde tentei completá-lo, recuperá-lo. Os sofrimentos por que passara tinham-me aniquilado quase por completo as faculdades usuais do espírito. Estava feito um imbecil, um idiota. O sentido de oscilação do pêndulo fazia um ângulo recto com o comprimento do meu corpo. Vi que tinham colocado a meia-lua por forma a interceptar a região do coração. Roçaria pela sarja da minha túnica, voltaria atrás para repetir esta operação mais uma vez, e outra ainda. Conquanto a oscilação fosse terrivelmente ampla (de uns trinta pés ou mais) e a sibilante energia da descida do pêndulo suficiente para cortar aquelas muralhas de ferro, ainda assim, tudo quanto ele poderia fazer durante alguns minutos seria roçar-me pela túnica. Detive-me neste pensamento, Não me atrevi a ir além desta reflexão. Demorei-me nela com uma atenção persistente, como se com isto pudesse deter então a descida do pêndulo. Forcei-me a mim próprio a imaginar o som que faria a meia-lua ao atravessar-me a roupa - a pensar na sensação particular e penetrante que a fricção do tecido produz sobre os nervos. Reflecti em todas estas banalidades até me rangerem os dentes. Mais baixo, cada vez mais baixo. Sentia um prazer frenético em estabelecer um contraste entre a velocidade com que descia e a sua velocidade lateral. Ora para a direita, ora para a esquerda, agora longe e logo perto, com o

lo. Havia muitas horas que a vizinhança do catre de pouca altura onde eu jazia pululava literalmente de ratos. Eram bravios, atrevidos, vorazes, e dardejavam contra mim os seus olhos vermelhos, como se esperassem apenas que eu estivesse imóvel para me tomarem sua presa. «A que alimento», pensei estremecendo de terror, «estarão eles acostumados dentro do poço?» Tinham devorado, não obstante os meus esforços para o impedir, todo o conteúdo da gamela, salvo um resto diminuto. A minha mão adquirira um movimento de vaivém até ao prato, e a uniformidade inconsciente do movimento acabou por torná-lo inútil. Na sua voracidade, aquela praga várias vezes me cravara os dentes agudos nos dedos. Com as migalhas da carne gordurenta e apimentada esfreguei vigorosamente as ataduras em todos os sítios onde pude chegar e, levantando a mão do chão, permaneci imóvel e sem respirar. A princípio, os vorazes animais ficaram espantados e receosos com a mudança - com a cessação do movimento. Retrocederam assustados; muitos procuraram o poço. Mas isto durou apenas um instante. Não contara debalde com a sua voracidade. Observando que eu permanecia imóvel, um ou dois dos mais atrevidos treparam para o catre e puseram-se a cheirar a correia. Dir-se-ia que foi o sinal para uma invasão geral. Do poço saíram em novo tropel. Agarraram-se à madeira, espalharam-se sobre ela e saltaram às centenas para cima de mim. O movimento compassado do pêndulo não os incomodava absolutamente nada. Evitando-o, ocupavam-se da correia. Apertavam-se, enxameavam constantemente sobre mim. Agitavam-se-me em cima da garganta; com os beiços frios procuravam os meus lábios; quase me sufocavam com o peso; uma repugnância sem nome fazia-me arfar o peito e gelava-me o coração, com uma pesada viscosidade. Um minuto mais, e sabia que a luta chegaria ao fim. Senti claramente a correia a dar de si. Sabia que devia estar cortada em mais de um lugar. Num esforço sobre-humano permaneci imóvel. Não me enganara nos meus cálculos, nem tinha padecido em vão. Senti finalmente que estava livre. A correia pendia-me do corpo, em pedaços. Mas já o pêndulo me atacava o peito; tinha-me cortado a sarja da túnica, chegado à camisa. Por mais duas vezes voltou a oscilar, e uma sensação de dor aguda percorreu-me todos os nervos. Porém, o instante de salvação chegara. A um aceno que fiz com a mão, os meus libertadores fugiram em tumulto. Com um movimento resoluto, cauteloso, lateral, contraído e demorado, escapei ao amplexo da correia e ao alcance da cimitarra. Por então, ao menos, estava livre. Livre!, e nas garras da lnquisição! Mal tinha saído daquele horrendo leito e dado alguns passos pelo chão da masmorra, deteve-se o movimento do maquinismo infernal, que vi arrastado para cima por efeito de alguma força

invisível, através do tecto. Com isto, o desespero invadiu-me o coração. Era evidente que espiavam todos os meus movimentos. Livre! Escapara à morte sob uma forma de agonia, para ser entregue a uma coisa pior do que a morte, sob outra forma. Com este pensamento relanceei convulsivamente os olhos para as muralhas de ferro que me cercavam. Obviamente, uma coisa extraordinária - uma mudança que a princípio não pude apreciar claramente

  • sucedia no cárcere. Durante alguns minutos de abstracção repassada de sonhos e estremecimentos, perdi-me em vãs e incoerentes conjecturas. E foi durante este período que notei pela primeira vez a origem da luz sulfurosa que alumiava a masmorra. Provinha ela de uma longa fissura, da largura de um centímetro, pouco mais ou menos, que se estendia a toda a volta da prisão, na base das paredes, que deste modo pareciam, e estavam, com efeito, separadas do chão. Procurei, como decerto se imagina, olhar através daquela abertura, mas nada pude ver. Quando me levantava desanimado, revelou-se-me de repente à inteligência o mistério da alteração do cárcere. Eu tinha notado que, embora os contornos das figuras murais fossem suficientemente distintos, as cores pareciam deterioradas e indecisas. Pois tais cores acabavam de tomar um brilho singular e intensíssimo, sempre crescente, que dava àquelas imagens espectrais e diabólicas um aspecto que faria estremecer nervos mais firmes do que os meus. Olhos de demónios, de uma vivacidade feroz e medonha, dardejavam sobre mim, vindos de mil direcções, nenhuma delas até então visível, e brilhavam com o lúgubre fulgor de um fogo que, por mais que forçasse a imaginação, não podia considerar irreal. Irreal! Bastava-me respirar para que me chegasse às narinas o vapor do ferro aquecido! Espalhou-se pela masmorra um cheiro sufocante! Um ardor cada vez mais profundo se reflectia naqueles olhos cravados na minha agonia. Um tom carmesim cada vez mais intenso se espalhava sobre aquelas horríveis pinturas de sangue! Eu arquejava! Respirava com dificuldade! Não havia que duvidar do plano dos meus algozes - oh!, os mais impiedosos, os mais diabólicos de todos os homens! Recuei para longe do metal candente, para o centro do cárcere. Em presença daquela destruição pelo fogo, a ideia da frescura do poço veio-me ao espírito como um bálsamo. Corri para a borda mortal. Lancei o olhar para o fundo. O brilho da abóbada inflamada iluminava-lhe os mais afastados recessos. Contudo, durante um instante de desvario, o meu espírito recusou-se a compreender o significado do que eu via. Por fim, entrou-me na alma à força, triunfantemente; imprimiu-se como fogo na minha trémula razão. Oh! Uma voz para falar - oh!, horror - oh!, todos os horrores menos aquele. Com um grito, afastei-me da borda do poço e, ocultando o rosto entre as mãos, chorei com amargura. O calor aumentava rapidamente, e uma vez mais levantei os olhos, tremendo como num acesso de febre. Houve segunda mudança no cárcere - e tratava-se desta vez de uma evidente mudança na forma. Como antes,