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Este texto investiga como a imagem fotográfica de orlando sabino, um homem acusado de assassinatos em série no brasil dos anos 1970, foi utilizada para construir a monstruosidade. O autor apresenta como a imagem através de sua polissemia conjuga discursos jornalísticos, ficções e estética na construção de uma simbologia chamada de iconografia do monstro abatido. Além disso, discute as possibilidades dessa imagem se comportarem como uma corporização de práticas de expurgo e remissão.
Tipologia: Resumos
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1054 I SEMINARIO INTERNACIONAL DE INVESTIGACIÓN EN ARTE Y CULTURA VISUAL
João Paulo de Freitas Doutorando no PPGACV – FAV/UFG, Brasil profjpfreitas@gmail.com RESUMO A partir de dois retratos do “O Monstro de Capinópolis”, alcunha dada a Orlando Sabino, homem acusado de assassinatos em série no Brasil dos anos 1970, investigo alguns aspectos da construção da monstruosidade por meio da imagem fotográfica. Após uma breve apresentação do caso, discutindo como este indivíduo desviante foi designado como monstro humano elejo a imagem fotográfica como lugar de reflexão. Apresento a forma como a imagem através de sua polissemia conjuga cruzamen- tos entre discursos jornalísticos, ficções e estética na construção de uma simbologia que designo como iconografia do mons- tro abatido. Ao final ensaio uma reflexão sobre as possiblidades desse tipo de imagem se comportarem como a corporizarão de práticas de expurgo e da remissão. Palavras-chave: Monstruosidade; Retratos de criminosos; Outsiders ; ABSTRACT From two portraits of “The Monster of Capinópolis”, an alias given to Orlando Sabino, a man accused of many murders in Brazil in the 1970s, I investigated some aspects of the construction of monstrosity through photographic images. After a brief pre- sentation of the case, I discuss how this deviant individual was designated as a human monster by showing the photographic image as a place of reflection. I present how the image through its polysemy conjugates crosses between journalistic discours- es, fictions and aesthetics in the construction of a symbology that I designate as iconography of the dejected monster. At the end I try to reflect on the possibilities of this type of image to behave as the embodiment of practices of purging and remission. Keywords: Monstrosity; Portraits of murderers; Outsiders;
1. INTRODUÇÃO Figura 1 - Orlando Sabino, o “Monstro de Capinópolis”, preso após perseguição. Imagem de arquivo. Autoria desconhecida. Fonte: POPÓ, 2012. p. A imagem acima ( Figura 1 ) representa “o próprio diabo”^1. Um monstro que “[…] desaparecia misteriosamente, reaparecia ao mesmo tempo em lugares diferentes e mudava de feição com espantosa facilidade”^2. O dito monstro na verdade é Orlando Sa- bino, um andarilho do estado do Paraná, que no início dos anos 1970 percorreu algumas cidades do Triângulo Mineiro e sul de Goiás. Nesse período, uma série de assassinatos com armas de fogo, facadas e relatos de bezerros degolados, criaram terror
CULTURAS DE LA IMAGEN Y PROCESOS DE MEDIACIÓN 1055 entre os moradores da região, sobretudo nas áreas rurais das cidades. Suspeito dos crimes, o homem franzino e assustado da imagem foi descrito como o “Monstro de Capinópolis”. Tal descrição, criada pela imprensa e alimentada pela própria polícia, ajudou a dar os contornos daquele que seria um dos primeiros, e mais famosos, casos de um Serial Killer no interior do Brasil. Depois de preso e exibido ao público, Orlando Sabino, o suposto monstro, continuava causando espanto. Desta vez, pela fra- gilidade física e mental que não coadunava com a figura fantástica criada pela narrativa oral e jornalística. Que imagem de monstro as pessoas esperavam encontrar? As fotografias do caso permitem visualizar estas projeções ou apontam em outra direção? Como a representação de Orlando Sabino dialoga com outras imagens do gênero? Essas são algumas das questões que discorro a seguir a partir de duas imagens encontradas na internet sobre o caso. São imagens digitais de reproduções fotográficas de jornais da época, mas que circulam ainda hoje na internet para mitigar os curiosos ou rememorar aqueles que viveram no período. Eu mesmo me coloco neste contexto, uma vez que sendo natural e morador da região do Triangulo Mineiro, tive acesso a história de Olando Sabino ainda na infância, por volta dos anos de 1990, em uma época pré-internet quando os mais velhos se reuniam para contar histórias assutadoras para as crianças. Posteriormente com a popularização da internet eu podia final- mente conhecer o rosto do “monstro” que durante muito tempo assombou meu imaginário. Para essa reflexão traço inicialmente alguns apontamentos sobre a abordagem escolhida no campo de pesquisa da cultura visual. Explorando a imagem em suas múltiplas possibilidades em seu processo de circulação e de construção de sentido ao se constituírem como um lugar de encontro entre realidades e ficções. Em seguida discorro brevemente sobre o caso de Orlando Sabino, mostrando a forma como, no interior do Brasil na época da ditadura militar, sua figura foi sendo moldada como um monstro sobrenatural. Apresentando como a imprensa articulava um discurso que transita entre o factual e o ficcional na representação da realidade, criando um imaginário que perdura até hoje, como atesta a matéria do jornal Correio da cidade de Uberlândia (MG): “Se estivéssemos nos Estados Unidos, tenho certeza de que o cinema não perderia um enredo desses, ainda mais se tratando de uma história real.” (HENRY, Jornal Correio de Uberlân- dia , 14 de dezembro de 2011). Especifico o tipo de monstruosidade destacada para Orlando Sabino, enquanto indivíduo desviante das normas sociais. Realo- co, assim, a ideia de monstro mitológico para o campo social, no qual a imagem do monstro será atribuída àqueles passíveis de caracterização patológica ou criminal. Neste contexto, destaco a fotografia como um lugar de cruzamento e polissemia em que discursos normativos sobre padrões de comportamento e elementos imaginários e ficcionais se cruzam desenvolviento um tipo de imagem que chamo provisó- riamente de imagem do monstro abatido. Imagens em que o suposto monstro, enquanto indivíduo e corpo desviante aparece capturado por seus algozes, quase sempre carecteizados pelo representantes da lei. Um tipo de representação que encarna e incorpora práticas e representações de uma cultura do expurgo e da remissão que, em países de formação religiosa cristã poderia ter suas origens em práticas tradicionais e folclóricas.
2. APONTAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS DE ENTRADA Inicialmente é importante destacar alguns apontamentos epistemológicos de partida, visando situar de que forma compreen- do e abordo as imagens nesta reflexão. Situada no campo da cultura visual as fotografias e representações elegidas para este estudo são abordadas a partir de sua polissemia e intertextualidade caminhando no sentido de perceber “como pensam as imagens, como contêm e indicam ideias e emoções”, como destacado por Català Domènech (2011, p. 17). Compreendendo as imagens como caminhos de acesso ao imaginário e os processos de interação entre discursividade e fic- ção, tais fotografias colocam em diálogo aspectos políticos, técnicos, estéticos no entrelaçamento entre práticas e discursos. Nesse sentido, se ancoram numa experiência social do visual, definida por Hernandez (2005, p. 18-20) como aquilo que é sensível aos nossos hábitos e normas de ver e olhar em diferentes períodos e lugares. Cabe ressaltar ainda que o tipo de imagem que me propus investigar são imagens coletadas da internet. Digitalizações de reproduções fotográficas veiculadas na mídia do passado. Formadas por uma nova materialidade, intangível e mutá - vel que, em grande medida, ainda encontra resistência como objeto de pesquisa. São imagens, cuja autoria e o aspecto “original” podem ter sido há muito apagadas, mas que ganham em complexidade uma vez que passam a circular sem fronteiras pela web. Buscando a diversidade e o diálogo ao invés do reducionismo e da categorização, busco uma compreensão sobre os efeitos da imagem como artefatos poderosos e sedutores que dão corpo a experiências subjetivas, memórias e ficções.
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Tradicionalmente a figura do monstro pode ser descrita como a criatura que, contrariando as regras da natureza, apresenta aspectos corporais humanos ou animalescos, híbridos e disformes. Neste sentido, o monstro evidencia um desvio ou inade- quação corporal. Sua corporeidade excessiva, fragmentária ou deformada seria uma espécie de atentado contra a ordem da natureza e do divino. Nos relatos mitológicos quase sempre é um antagonista perverso e assombroso que deve ser combatido por seus atos bes- tiais. A “estética do desmesurado” destacada por Eco (2014, p. 125) descreve a forma como os “portentos ou prodígios” eram vistos como anomalias relacionados a acontecimentos extraordinários da natureza. Neste sentido, além de monstro devemos falar também da “monstruosidade” como conduta hedionda relacionada às ações de um monstro. Com o advento da literatura moderna a figura do monstro passa a apresentar mais complexidade, ganhando subjetividade, exprimindo desejos, questionando a si mesmo e até sentindo medo. Seu papel como antagonista passa a ser relativizado podendo até gerar empatia e identificação pois como ressalta Eco (2014, p. 125) “[…] o gosto pelo maravilhoso legendário dará lugar à curiosidade pelo interesse [grifo do autor] científico” formando um novo tipo de bestiário e outras coleções modernas levando os monstros modernos e contemporâneos a serem representados sob formas mais próximas da ideia de monstro trabalhada nesta reflexão. Demarcadas tais particularidades mitológico-ficcionais sobre a monstruosidade, desloco a discussão para o campo social, onde algumas destas construções se cruzam com discursos e ideologias que passam a caracterizar também os tipos humanos. O “monstro humano” analisado por Foucault (2010, p.47) seria formado não somente por aqueles indivíduos desviantes das “leis da natureza”, mas também por aqueles que fogem das leis da sociedade. Para o autor, o binômio normal/anormal ao ser inserido no cotidiano por meio de uma discursividade médica – como patologia – e jurídica – como crime – estabelecem normatizações com vias a governabilidade. O desviante ao passar pelo crivo de um grupo teria suas diferenças estigmatizadas. Desta forma, o monstro humano ou social seria aquele destacado como outsider. É nesse sentido que Becker (2012, p. 21-23), ao buscar delimitar as características dos outsiders (ou desviantes) defende a ausência de elementos designadores comuns. Para o autor os outsiders são representados por certas culturas ou indivíduos rotulados como tal, tendo em comum apenas o compartilhamento do rótulo e da experiência de desvio. Na ausência de uma característica comum que permita destacar uma imagem dos desviantes, a noção de estereótipo parece fun- damental. Funcionando como um elemento de equalização entre o monstro (enquanto aparência) e a monstruosidade (como ação), o estereótipo seria uma tentativa de mapear na representação do outro as ações e comportamentos possivelmente desviantes. Como destaca Burke (2004, p. 156-158), o olhar é carregado de juízo de valor, muitas vezes até inconscientes, e que por meio do estereótipo filtramos na relação com o outro, o estranho aquilo que julgamos aceitável. Nas palavras do historiador: Talvez seja por essa razão que os estereótipos muitas vezes tomam a forma de inversão da auto-imagem do espectador. Os estereótipos mais grosseiros estão baseados na simples pressuposição de que “nós” somos humanos ou civilizados, ao passo que “eles” [os outros] são pouco diferentes de animais como cães e porcos, aos quais eles são frequentemente com- parados. Dessa forma, os outros são transformados no “Outro”. Eles são transformados em exóticos e distanciados do eu e podem mesmo ser transformados em monstros. A digressão sobre desviantes, monstros e monstruosidades traçadas até aqui é importante para demarcar a complexidade envolvida na representação fotográfica do monstro humano. Neste sentido, as imagens fotográficas de Orlando Sabino podem ser vistas como um lugar de encontro, uma rede de negociações e atravessamentos. A imagem do homem negro, assustado e imobilizado por cordas apresentada na introdução é um composto de múltiplas cama- das que entrelaçam ficções, relações de poder e estereótipos socialmente compartilhados sobre os desviantes. São algumas destas camadas que serão expostas a seguir.
5. AS FOTOGRAFIAS DE ORLANDO SABINO E O MOSTRO ATRAVÉS DA IMAGEM A imagem fotográfica é o lugar escolhido para discutir as questões sobre monstros e monstruosidades humanas que aqui pro- curei delimitar. Como lugar de polifonias e atravessamentos, as imagens incorporam discursos, ideologias, realidades, ficções exposição e ocultamento em uma trama de construção de sentido. Munidas de um poder de memória e rememoração as imagens parecem sempre dispostas a se reanimar no contato com o observador. Como destaca Didi-Huberman (1998, p. 148-149) diante da imagem o olhar passa a dialetizar, conservar algo dos
1058 I SEMINARIO INTERNACIONAL DE INVESTIGACIÓN EN ARTE Y CULTURA VISUAL olhos que as observam estabelecendo relações com a memória, com o onírico, com a imaginação ao mesmo tempo que se lançam num porvir. Neste enlace entre o olhante e o olhado se desdobra um anacronismo que foge as localizações temporais rígidas e lineares. Sobre este prisma retomo outra imagem de Orlando Sabino ( Figura 2 ) dentre aquelas divulgadas pela imprensa na época de sua prisão^3. Nela o suspeito aparece com as mesmas calças sujas e manchadas, sem camisa, com os pulsos amarrados, cabisbaixo e fragilizado. Desta vez o homem encontra-se ladeado por seus captores, policiais que sorriem e agem de forma intimidadora diante do “monstro” que não oferece mais perigo. Figura 2 - Orlando Sabino exibido ao lado de seus captores. Fonte: https://www.tudoemdia.com/2010/03/orlando-sabino-o-monstro- de-capinopolis-saiba-as-verdades-e-mitos. Acessado em: 07 de julho de 2017. Permeando esta fotografia, percebo ecos de outras representações semelhantes, como em uma iconografia do monstro abati- do. Imagens em que o monstro não constitui mais uma ameaça e por isso é exibido como troféu, símbolo de justiça, da lei ou de feitos notáveis. Figura 3 - The “mad Dog” whines - like a dog. Fotógrafo: Weegee. New York Daily News, 15 de janeiro de 1941. Disponível em: https://weegeeweegeeweegee.net/ Um exemplo icônico de exibição de um criminoso capturado pelas autoridades são as fotografias da prisão do siciliano-a- mericano Anthony Esposito ( Figura 3 ). Conhecido como “ mad dog ” o suspeito de diversos crimes na cidade de Nova York, foi perseguido, capturado e preso tudo isso registrado pelo fotógrafo Weegee^4 conhecido por retratar o submundo do crime na cidade de Nova York entre os anos 30 e 40.
1060 I SEMINARIO INTERNACIONAL DE INVESTIGACIÓN EN ARTE Y CULTURA VISUAL Entre realidades e ficções a fotografia opera a construção de um imaginário sobre a monstruosidade e neste processo incor- pora também os discursos e estereótipos do outro como monstro desviante. Como lembra Berger (2014, p. 16), “toda imagem encarna um modo de ver”. Inclusive as fotografias, pois estas não são como se supõem a princípio, um registro mecânico desprovido de escolhas, preconceitos e imaginação. A noção de que a fotografia serve como um registro direto e objetivo de um fato muitas vezes prevalece ocultando as constru- ções, escolhas e omissões da feitura da imagem. E no caso desta concepção ainda não ficar absolutamente clara na imagem, sempre é possível dar uma “corrigida” na realidade. Naquela que talvez seja a imagem mais célebre da prisão de Anthony Esposito realizada por Weegee, o criminoso aparece mais humanizado, cabisbaixo e ladeado por policiais. Nesta imagem a presença instigante da mão e da câmera do fotógrafo realizando a ficha criminal do suspeito ao mesmo tempo que constrói uma narrativa sugere como a imagem está presente em um evento. Contudo, posteriormente, a reprodução da imagem cortada (Figura 5) em formato retrato acabou se tornando mais co - nhecido que o original^7. Nela, a mão e a câmera do fotógrafo de polícia desapareceram. Esta ausência reverte o foco exclusivamente para a figura do criminoso personalizando a imagem de Esposito machucado. Um monstro abatido entre seus captores. Figura 5 - Anthony Esposito, acusado de “matador de policial”. 1941. Weegee. Prata/ gelatina 23, 5 x 30, 5 cm. International Center of Photography. (A esquerda original e a direita versão editada). Fonte: HACKING, 2012, p. 274-275. Se a fotografia serve como fonte histórica por seu caráter documental, ela também deve ser analisada como o resultado de um complexo jogo de tensões, negociações e ajustamentos. Como destaca Mauad (2004, p.22-27), todo documento é também um monumento, e se a fotografia informa, ela também age conformando uma determinada visão de mundo e veiculando com- portamentos, valores e representações ideológicas num verdadeiro processo de controle social através da educação do olhar. Ao expor a figura dos criminosos subjugados, além de documentar as feições do suspeito, “confortar” a população temerosa e aplacar “a sede de justiça” dos cidadãos, estas imagens – sobretudo na mídia impressa – também agem renovando o medo e a monstruosidade ao designar o desviante. O fenômeno que Fabris (2004, p. 40) identifica – ainda nas origens da fotografia do século XIX – como “recenseamento gene- ralizado” na intersecção das esferas judicial e médica. A exaltação de alguns indivíduos na mesma medida que se demarca as patologias e desvios em outros. Aliados ao poder de trânsito entre realidade e ficção na fotografia e o poder de inserção destas imagens nas mentalidades e no imaginário. Mesmo hoje ciente das infinitas possibilidades de manipulação de imagens, ainda é percebemos o poder designa- dor da fotografia inserida no cotidiano.
6. O DESVIANTE ABATIDO: PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES CORPORIFICADAS NA IMAGEM A malhação do Judas é uma prática realizada na Semana Santa em países de tradição religiosa cristã. Neste ritual, um boneco é confeccionado para representar Judas Iscariotes, o traidor de Cristo. Geralmente a meia-noite ou meio-dia no sábado de Aleluia, pessoas de todas as idades se reúnem para “malhar” ou imolar o boneco ( Figura 6 ). O ritual pode ser uma “transfiguração” de práticas rituais mais antigas como destaca Mendes (2007, p. 16), que também lembra que a malhação do Judas se configura enquanto rito liminar punitivo pois Judas é visto como um traidor. Ainda assim, a autora destaca que a prática pode ser interpretada como um rito sacrifical de caráter expiatório.
CULTURAS DE LA IMAGEN Y PROCESOS DE MEDIACIÓN 1061 Figura 6 - Queima de Judas em Juiz de Fora, Brasil (1909). Fonte: Imagens antigas de Juiz de Fora. Disponível em: http://www. mariadoresguardo.com.br/2010/12/queima-do-judas-academia-de-comercio.html No Brasil é comum enfeitar o boneco com máscaras de políticos, jogadores e técnicos de futebol bem como personalidades mal vistas pela opinião pública. Como se o ato simbólico de destruição do corpo do boneco de alguma forma resgatasse o ato real de justiça infringindo contra o desviante. Se concordamos com Belting (2014, p.10) que: Devemos encarar a imagem não só como um produto de um dado meio, seja ele a fotografia, a pintura ou o vídeo, mas tam- bém como um produto de nós próprios, porque geramos imagens nossas (sonhos, imaginação, percepções pessoais) que confrontamos com outras imagens no mundo visível. A interação, estreita e fundamental, entre imagem, corpo e meio como componentes de toda e qualquer tentativa de figuração, proposta pelo autor poderia ser um caminho para compreender a representação do monstro abatido como a corporificação de uma imagem de monstruosidade atrelada a nossa necessidade de reanimar a imagem. Se corpo e meio estão implicados no significado das imagens fúnebres, já que tais imagens estão instaladas no lugar do corpo perdido do defunto, a recriação de corpos de apóstolos ou a caracterização do outro como monstro poderia ser uma tentativa de reificação da expiação. Contradição das imagens que o próprio Belting (Idem, p. 15) destaca ao dizer que “Elas tornam visível uma ausência física de um corpo, transformando-a em presença icônica. A medialidade das imagens está assim enraizada na analogia com o corpo.”. Uma forma de domesticar o terror que temos em nós mesmos. Neste sentido seria pertinente retomar Sontag (2004, p. 169-196), quando esta localiza certa posição de usurpadora da rea- lidade na fotografia. Para além de aspectos indiciários ou de traço de realidade, a autora destaca a fotografia como forma de aquisição, algo que estabelece uma relação dos consumidores com o evento. Uma tentativa de controle do mundo e sobre a coisa fotografada, atribuir as coisas o predicado da imagem. Um vestígio da magia que perdura e que vê a realidade a partir da imagem que ao ser consumida precisa novamente ser reabastecida continuamente. Figura 7 - A Flagelação de Cristo. Belmiro de Almeida. Óleo sobre tela. (88 × 115 cm). Localização: Museu de Arte Sacra da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. Fonte: Escola de Belas Artes da UFRJ.
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