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O mito de Sísifo - Albert Camus
Tipologia: Trabalhos
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Ovídio
As Metamorfoses
Florianópolis, UFSC, 2014
Dados para ficha catalográfica:
As Metamorfoses, de Ovídio
Edição bilíngue com apresentação, tradução e glossário
Organização : Zilma Gesser Nunes Mauri Furlan
Título original latino : Metamorphoses Autor : Ovídio (Publius Ovidius Naso, 43a.C.–17d.C.)
Texto latino: Ovid. Metamorphoses. Hugo Magnus (ed.). Gotha (Alemanha): Friedrich Andreas Perthes, 1892.
Tradução : As Metamorfoses Tradutores : Anderson Martins Esteves Antônio Martinez de Rezende Arlete José Mota Brunno Vieira Cláudio Aquati Fernando Coelho José Ernesto de Vargas Juvino Maia Jr. Leila T. Maraschin Luiz Henrique Queriquelli Matheus Trevizam Mauri Furlan Milton Marques Paulo Sergio de Vasconcellos Rodrigo Gonçalves Sandra Bianchet
De mudanças e de formas: para uma leitura de As metamorfoses de Ovídio, Zilma Gesser Nunes, 03 As metamorfoses d’ As metamorfoses, Mauri Furlan, 09 Livro I, por Cláudio Aquati, 19 Livro II, por Juvino Alves Maia Júnior, 43 Livro III, por Paulo Sérgio de Vasconcellos, 69 Livro IV, por Matheus Trevizam, 90 Livro V, por Luiz Henrique Queriquelli, 115 Livro VI, por Arlete José Mota, 135 Livro VII, por Rodrigo Gonçalves, 155 Livro VIII, por Mílton Marques Júnior, 182 Livro IX, por José Ernesto de Vargas & Fernando Coelho, 210 Livro X, por Sandra Braga Bianchet, 233 Livro XI, por Leila Teresinha Maraschin, 254 Livro XII, por Mauri Furlan, 278 Livro XIII, por Anderson Martins Esteves, 297 Livro XIV, por Antônio Martinez de Rezende, 324 Livro XV, por Brunno V. G. Vieira, 350 Um glossário para ler As metamorfoses, Thaís Fernandes, 377 Glossário, 380 Bibliografia, 434
lendas etiológicas^1 – que narram as origens dos mais diversos seres (mares, astros, fontes, plantas, animais) como produto de metamorfoses. As histórias são dispostas cronologicamente desde o caos até a apoteose de Júlio César. Nessa obra, Ovídio retoma a temática mitológica inspirada em poetas alexandrinos tais como Nicandro de Colofão, Antígono de Caristos, Calímaco e Partênio de Nicéia. As histórias são assim distribuídas: formação do mundo a partir do caos, criação do homem, regeneração do homem, do tempo primordial ao mítico: divindades, semi-deuses, heróis, e suas paixões, como nas histórias de Apolo e Dafne, Narciso e Eco, Dédalo e Ícaro; os trabalhos de Hércules; Orfeu e Eurídice; Peleu e Tetis, Aquiles; chegada à guerra de Troia, reunindo mito e história; e conclui a obra, na época do Divino Augusto. Atente-se para o fato de que o propósi- to da arte, nesse período, era mostrar “a grandeza de Roma e de Au- gusto” (Rostovtzeff, 1983, p. 191), cujos feitos grandiosos já tinham sido profetizados por Vênus. O governo de Augusto financiava mui- tos poetas como Horácio, Virgílio, Ovídio, que enalteciam direta- mente o Império e o Imperador correndo o risco, em caso contrário, de serem destinados ao exílio. A obra de Ovídio mereceu muitos estudos ao longo dos tem- pos. A fortuna crítica de As metamorfoses é imensa e presente em todas as línguas literárias modernas ocidentais. O leitor interessado pode buscar análises generalizantes e minuciosas, que abrangem as- pectos políticos, sociais, literários, históricos, dentre outros. Ao diri- girmo-nos agora ao público que adentra pela primeira vez este fan- tástico mundo de Ovídio, apresentamos algumas informações básicas e gerais sobre a obra, com o objetivo de apontar para vários aspectos que podem ser aprofundados, de indicar caminhos a serem trilhados e a atentar, durante a leitura, para o reconhecimento desse clássico, em textos de diferentes culturas. Segundo Cardoso, esse longo poema é de difícil classificação quanto ao gênero literário. Com lendas etiológicas, ao gosto alexandrino, não é um poema didático, pois não tem caráter
(^1) Cardoso (1989, p. 81) define aquilo que outros chamam de mitos, de histórias, de contos, como “lendas etiológicas”.
científico e o tratamento é irônico; não é uma epopeia, ainda que tenha um tom épico, com narração, diz a autora. Cardoso o considera como poema lírico pela caracterização pessoal, a expressão de sentimentalidade, com uma sucessão de quadros. A plasticidade desses quadros demonstra o poder de descrição e o cuidado com a construção de detalhes. A obra de Ovídio ressurge na Idade Média, a partir do século XI. No Renascimento, repercute a partir da obra de Spencer, Marlowe, Shakespeare. Também com Wordsworth, L.Bloom, Elliot. Contemporaneamente, o poeta inglês Ted Hughes (1930 – 1998) também fez renascer a obra de Ovídio ao publicar Tales from Ovid (1997), uma reescritura de 24 mitos d’ As metamorfoses, contados em versos. Na bela introdução ao seu livro, Hughes ressalta a importância da obra ovidiana para a poesia inglesa: Ovídio foi roubado abertamente por Chaucer que, por volta de 1300, contou, pela primeira vez em inglês, o mito de Pyramus and Thisbe. Mais tarde, deixou transparecer toda a influência que o poeta romano exerceu sobre ele em seu famoso The Canterbury tales. Mas talvez o par mais interessante de Ovídio seja o maior dos escritores ingleses: Shakespeare. É principalmente sobre essa relação que Hughes vai tratar em sua introdução, como que para traçar uma linha que viria do poeta romano, passaria pelo poeta nacional da Inglaterra e chegaria até ele, também um poeta inglês, que se apropria de toda essa tradição de mais de 2 mil anos. Para Hughes, o trabalho mais ovidiano de Shakespeare é a tragédia Titus Andronicus , embora ele também cite o poema Venus and Adonis e a peça Cymbeline como obras shakesperianas que possuem evidente inspiração em Ovídio. Apesar das coincidências de temas, de estilo e das alusões de Shakespeare a passagens de obras de Ovídio, o que mais aproxima os dois poetas, segundo Hughes, é seu interesse pela paixão. Aos dois importa aquilo que a pessoa sente quando está possuída por esse sentimento, “não apenas uma paixão comum, mas a paixão humana in extremis – paixão onde ela entra em combustão,
ou se eleva, ou se transforma em uma experiência do sobrenatural.”^2 O percurso seguido por Ovídio n’ As metamorfoses é o caminho da paixão humana, da paixão insuportável que se diviniza e mistifica através do ato da metamorfose. Se Ovídio foi o modelo de Shakespeare, o modelo de Ovídio é Hesíodo, mais precisamente a Teogonia , no que poderia ser definido como “collective poem”: uma série de histórias independentes ligadas, pelo tema da metamorfose, pelo contraste, pelas genealogias. Esse elo que liga as histórias foi observado também por Calvino (1993) que faz referência às Mil e uma noites quando comenta a questão dos relatos encadeados que aumentam, no texto de Ovídio, a impressão de densidade e aglomeração e de enredamento. A mudança dos temas é também a do tom e do estilo: do épico solene, ao elegíaco lírico, passagens dramáticas, atitudes bucólicas. No que diz respeito às cenas dramáticas, especialmente de metamorfoses,
Esse sofrimento excruciante, essa imagem aterradora de um ser humano sendo transmutado é associada à beleza da libertação formando um belíssimo quadro, mais do que belo é sublime. Es- sa união entre o belo e o feio ou grotesco, nos termos de Victor Hugo, é a própria manifestação do sublime, é o que provoca a catarse. Assim, todo esse martírio é necessário para a purificação, o personagem, na maioria das vezes, é transformado em algo que se eleva, que vai em direção a algo maior, ou aves que vão ao céu, ou o rio que corre para o mar, ou ainda plantas que crescem de baixo para cima, começando pela raiz e subindo até a copa de uma árvore ou uma flor desabrochada (Santos, 2011, p. 24).
Ovídio inicia sua narrativa anunciando:
Transmudadas em novos corpos meu espírito leva-me a cantar as formas. Ó deuses! Inspirai-me os planos — enfim: vós também
(^2) “Not just ordinary passion either, but human passion in extremis – passion where it combusts, or levitates, or mutates into an experience of the supernatural.” (Hughes, 1997, p. IX).
as transformaram — e conduzi um canto ininterrupto desde as origens do mundo até os meus dias. (Livro I, v. 1-4) 3
Com estilo descritivo, dispõe em sua obra personagens trabalhadas psicologicamente que, por motivo de dor e paixão, sofrem as mais diferentes mudanças de forma. Segundo Italo Calvino (1993), há, na obra de Ovídio, uma contiguidade universal: o mundo dos deuses celestes é aproximado ao mundo romano de todos os dias (divisão em classes, hábitos cotidianos, amores compulsivos). Contudo, os limites são imprecisos entre esses mundos diferentes: mas o céu está sempre sobre as terras e os mares, delimitando seu lugar acima, que é o da morada dos deuses superiores. Ainda para Calvino, As metamorfoses constituem um poema da multiplicidade de vozes, multiplicidade de deuses, da rapidez do ritmo acelerado, das imagens que se sobrepõem. É uma narrativa de histórias encaixadas, personagens que contam outras histórias: essa forma de exposição, que multiplica os níveis narrativos e de vozes, produz um efeito de labirinto: movendo-se sempre, em uma dimensão fora do tempo. Essa técnica permite adequar, adaptar o tom, o estilo e a cor da história ao personagem que narra, como e.g., o rapto de Proserpina, narrado por Calíope, musa da poesia épica. As minieides que se negam a participar das festividades em honra a Baco e se propoem à continuidade do trabalho, ocupando-se, também, em contar histórias
“Enquanto as outras param e celebram ritos falsos, também nós, que Palas, deusa melhor, ocupa, aliviemos o útil trabalho das mãos com matizada fala: alternadamente algo, que não deixe o tempo parecer longo, narremos em comum a desocupados ouvidos.” Aprovam as palavras e as irmãs mandam a primeira contar. Ela pensa no que narrar dentre muitas histórias (pois as conhecia em abundância) e hesita se conta de ti, Dércetis da Babilônia, que os palestinos creem, mudando-se a forma e recobrindo escamas os membros, ter revolvido lagos; ou antes
(^3) As citações do texto de As metamorfoses serão todas da presente edição e, portanto, dos tradutores dos respectivos Livros citados.
mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.” (1993, p. 09) A edição bilíngue que ora apresentamos baseou-se para a tradução na edição de Hugo Magnus (1914). Os quinze Livros que compõem As metamorfoses trazem duzentas e quarenta e seis lendas e foram aqui traduzidos por dezesseis diferentes tradutores brasileiros, caracterizando um jeito multiforme de reapresentar o texto de Ovídio. Os tradutores são:
Livro I: Cláudio Aquati (UNESP) Livro II: Juvino Maia Jr. (UFPB) Livro III: Paulo Sergio de Vasconcellos (UNICAMP) Livro IV: Matheus Trevizam (UFMG) Livro V: Luiz Henrique Queriquelli (UFSC/UNISUL) Livro VI: Arlete José Mota (UFRJ) Livro VII: Rodrigo Gonçalves (UFPR) Livro VIII: Milton Marques (UFPB) Livro IX: José Ernesto de Vargas e Fernando Coelho (UFSC) Livro X: Sandra Bianchet (UFMG) Livro XI: Leila Maraschin (UFSM) Livro XII: Mauri Furlan (UFSC) Livro XIII: Anderson Martins Esteves (UFRJ) Livro XIV: Antônio Martinez de Rezende (UFMG) Livro XV: Brunno Vieira (UNESP)
A elaboração do glossário para ler As metamorfoses , do índice remissivo e a pesquisa bibliográfica, bem como a coordenação do projeto ficaram a cargo da equipe de professores do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas (DLLV), com a parceria da profa. Thaís Fernandes (DLLV) e de alunas da graduação do Curso de Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa da UFSC na organização final do glossário: Lygia Barbachan de Albuquerque Schmitz e Juliana da Rosa. Além disso, tivemos a colaboração dos alunos que frequentaram a disciplina “Literatura Latina: tradução”, ministrada ao Curso de Letras - Língua Portuguesa e Literaturas de Língua
Portuguesa em 2012 pelas professoras Thaís Fernandes e Zilma Gesser Nunes. A disciplina apresentou como proposta a leitura de As metamorfoses e a organização de um glossário e de um índice, a partir daquilo que os próprios alunos consideraram importante figurar nessas relações. A proposta da disciplina foi ler a obra de Ovídio com olhar atento e anotar nomes de pessoas, de deuses, epítetos, lugares, ventos, seres mitológicos e algum vocabulário que precisasse de esclarecimento, a partir da visão do aluno. O trabalho elaborado por eles foi posteriormente assimilado na organização geral do glossário por Thaís Fernandes, Lygia Barbachan de Albuquerque Schmitz e Juliana da Rosa. Após o texto traduzido, o leitor desta edição contará com uma lista de mais de mil verbetes que explicam e ampliam a obra d’ As metamorfoses. O processo de elaboração do glossário e sua estrutura estão explicitados no texto, que o precede, Um glossário para ler As metamorfoses. Por fim, gostaríamos de fazer um agradecimento especial aos alunos Aline Oliveira Souza, Ana Luiza Leite Bado, Daniela Cristina da Silva, Gilmarina Signorini Subutzki, Giuseppe Freitas da Cunha Varaschin, Jacqueline Tonera Soares, Jair Stedile, Juliane Motta, Karine Schmidt, Lúcia Telexa, Luiza Andrade Wiggers, Márlio Aguiar, Matheus Rodrigues Lima Affonso Garcia, Meiry Peruchi Mezari, Mirela Bráz, Morgana Ferreira, Paula Regina Scoz Domingos Damázio, Rafael Reginato Moura, Richard Costa, Samanta Rosa Maia, Silvio Somer, Suzy Zaparoli, Tainá Fabrin de Castro, Vanessa Inácio, Viviane Lima Ferreira e Xênia Conrat.
Elisana De Carli elisanadc@yahoo.com.br Thaís Fernandes fernandes.tha@gmail.com Zilma Gesser Nunes zilmagn@gmail.com
Referências bibliográficas
CALVINO , Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. CARDOSO , Zélia de Almeida. A literatura latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989. CONTE , Gian B. Latin Literature: a history. Tradução de J.Solodow. London: The John Hopkins University Press, 1994. ELIADE , Mircea. Aspectos do mito , Lisboa: Edições 70, 1963. H UGHES , Ted. Tales from Ovid. New York: Farrar Straus Giroux,
OVID. Metamorphoses. Hugo Magnus, ed. Gotha: Friedrich Andreas Perthes, 1892. OVÍDIO. Poemas da carne e do exílio. Seleção, tradução, introdução e notas de José Paulo Paes, São Paulo, Cia das Letras, 1997. ______. Os remédios do Amor. Tradução de Antônio da Silveira Mendonça. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. ROSTOVTZEFF , M. História de Roma. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1983. SANTOS , Renata. A tecitura do sublime n’As metamorfoses de Ovídio. TCC apresentado como requisito ao Bacharelado do Curso de Letras-Português da UFSC. Orientação: Profa. Dra. Zilma Gesser Nunes, 2011.
traduz o quê e para quem é um princípio norteador para uma análise, uma crítica e uma prática de tradução. Na mesma linha de Meschonnic, em Pour une critique des traductions: John Donne (1995), Berman propõe um método de análise de traduções, que em nada tem a ver com ainda muitas críticas hodiernas presas ao preconceito caduco do traduttore traditore, “fidelidade” ao original, “invisibilidade” do tradutor, etc. A Crítica abordada por Berman implica análise rigorosa de uma tradução, de seus traços fundamentais, do projeto que lhe deu origem, do horizonte no qual ela surgiu, da posição do tradutor, da “apreensão da verdade de uma tradução” (1995, p. 13-14). Sucintamente, podemos apresentar o método bermaniano de análise de traduções como o que começa com leituras e releituras da tradução, e depois, separadas dessas, aquelas do original. As leituras da tradução levam à busca do autor do texto traduzido, não apenas quem é o tradutor, mas sobretudo sua posição tradutiva, seu projeto de tradução e seu horizonte tradutivo. Somente então, procede-se à análise comparativa da tradução e do original. Ler e reler a tradução, deixando completamente de lado o original e suspendendo qualquer julgamento precipitado, é a primeira etapa deste método analítico. Somente a leitura da tradução permite pressentir o texto traduzido como mantenedor de qualidade de escrito na língua receptora, e verdadeiro texto (sistematicidade e correlatividade, organicidade de todos seus constituintes). A releitura da tradução revela as zonas textuais problemáticas, onde se encontra sua defectividade, como quando o texto traduzido parece se enfraquecer, se contradizer, perder o ritmo; ou demasiado fácil, demasiado corrente; ou mostra brutalmente palavras, expressões, frases que chocam; ou remetem à língua do original e configuram uma espécie de contaminação linguística. Por outro lado, ela revela também zonas textuais felizes, que apresentam não apenas passagens acabadas, mas de uma escritura-de-tradução que nenhum autor nativo teria podido escrever, uma escritura estrangeira harmoniosa passada à língua receptora, escritura-estrangeira produzida pelo tradutor em sua língua nativa que cria uma língua nova (1995, p. 65- 66).
As leituras do original, por sua vez, também deixam de lado a tradução, mas não esquecem aquelas zonas textuais problemáticas e aquelas felizes, que atuarão na confrontação futura. A leitura do original rastreia os traços estilísticos que configuram a escritura e a língua do original e a tornam uma fonte de correlações sistemáticas. A leitura do original também deve recorrer a múltiplas leituras colaterais, de outras obras do autor, de obras diversas sobre este autor, sua época, etc. Traduzir exige leituras vastas e diversificadas. “Traduz-se com livros.” (1995, p. 68). A futura confrontação rigorosa do original com a tradução vai se apoiar em exemplos, e a seleção destes requer muito cuidado. A partir de uma interpretação da obra, são recortadas algumas passagens que são os lugares onde a obra se condensa, se representa, se significa ou se simboliza: são as zonas significantes (1995, p. 70). Depois de penetrar o texto traduzido, reconhecer suas zonas fracas e fortes, analisar e interpretar o original, e antes de se dirigir à confrontação final, é necessário compreender a lógica do texto traduzido. Porque cada tradutor tem sua sistematicidade, sua coerência própria, sua maneira de separar e espaçar, investiga-se o trabalho tradutivo e o tradutor. Diferentemente da questão sobre o autor, que busca os elementos biográficos, psicológicos, existenciais, etc, para iluminar sua obra, a questão de “quem é o tradutor” tem outra finalidade. Importa saber se ele é nativo ou estrangeiro, se é ‘apenas’ tradutor ou se exerce uma outra profissão significativa – como a de professor –, se também é autor e produziu obras, de qual(is) língua(s) traduz, qual sua relação com ela(s), se é bilíngue, que tipos de obras traduz comumente e que outras obras traduziu, se é politradutor ou monotradutor, quais são seus domínios linguísticos e literários, se escreveu artigos, estudos, teses, trabalhos sobre as obras que traduziu, e, enfim, se escreveu sobre sua prática de tradutor, sobre os princípios que a guiam, sobre suas traduções e a tradução em geral. Isso é bastante, mas pode não passar de pura “informação”. É preciso ir ainda além, e conhecer sua posição tradutiva, seu projeto de tradução e seu horizonte tradutivo (1995, p. 74).
A posição tradutiva do tradutor é a resultante de sua concepção do traduzir, do sentido desta tarefa, de suas finalidades, de suas formas e modos, e da maneira pela qual ele internalizou o discurso histórico, social, literário, ideológico sobre a tradução e a escritura literária. A posição tradutiva não é fácil de enunciar, mas ela é frequentemente manifestada em representações codificadas como os prefácios, onde o tradutor tende a se expressar mediante as opiniões gerais e os lugares-comuns sobre a tradução, e tais representações nem sempre expressam a verdade da posição tradutiva. É, contudo, ao elaborar uma posição tradutiva que a subjetividade do tradutor se constitui, mesmo se ameaçada por três grandes perigos: a informidade camaleônica, a liberdade caprichosa, e a tentação ao apagamento. Uma posição tradutiva pode ser reconstituída a partir da análise da tradução, que sempre revela a concepção do tradutor, e a partir de diversas enunciações feitas pelo tradutor sobre suas traduções, ou sobre o traduzir (1995, p. 75). O projeto de tradução é o responsável pela realização de toda tradução consequente, o qual é determinado ao mesmo tempo pela posição tradutiva e pelas exigências cada vez específicas colocadas pela obra a ser traduzida. O projeto define a maneira pela qual o tradutor realizará a tradução literária em geral, e escolherá um “modo” de tradução, uma “maneira de tradução” específica (1995, p. 76). A análise do projeto em si é feita a partir da leitura da tradução, que faz aparecer radiograficamente o projeto, e sobre o que o tradutor tenha dito em textos sobre a tradução. O trabalho comparativo comporta uma análise da tradução, do original e dos modos de realização do projeto. A verdade e a validade do projeto é medida nele mesmo e no seu produto (1995, p. 83). O horizonte do tradutor abarca a posição tradutiva e o projeto de tradução. Ele diz respeito ao conjunto dos parâmetros linguísticos, literários, culturais e históricos que “determinam” o sentir, o agir e o pensar do tradutor. A noção de horizonte possui uma dupla natureza, seja a que apresenta abertura e perspectivas, seja a que assinala limitação. O horizonte da tradução se especifica numa pluralidade de horizontes mais ou menos articulados entre si, nos quais há muitos fatores a se considerar, como, por exemplo, o
“estado” do gênero literário contemporâneo em questão na língua receptora, a realidade atual da tradução ou retradução de tal gênero e autor, a relação desse gênero literário contemporâneo com sua própria tradição, a totalidade de traduções do autor que está sendo traduzido, a escolha de o retradutor ler ou não a(s) tradução(ões) anterior(es), o estado de discussão no país da língua receptora sobre a tradução de tal gênero e autor, e da tradução em geral, etc. Esses e outros parâmetros compõem um horizonte de tradução (1995, p. 79- 80). O horizonte de uma retradução difere, de certo modo, daquele de uma primeira tradução quando se considerar um aspecto tríplice: as traduções anteriores, as traduções contemporâneas, e as traduções estrangeiras. Mas é também comum o tradutor de uma primeira tradução consultar traduções estrangeiras (1995, p. 84). Vale dizer que essas três etapas não se sucedem linearmente, nem são facilmente separadas (1995, p. 83). O método bermaniano de análise de traduções vai além dos elementos que apresentamos acima, os quais oferecem fundamento para a etapa concreta e decisiva da crítica de traduções: a confrontação do original e de sua tradução. Mas, por ora, eles nos bastam porque, ademais de se nos mostrarem constituidores da base de uma análise de tradução, também contribuem para a produção de um projeto de tradução, lato sensu, e de uma tradução consequente.
A tradução d’ As metamorfoses, de Ovídio, que ora temos em mãos, é fruto de um projeto, que reapresentamos aqui em linha gerais, as quais, mesmo se não explicitam abertamente as etapas propostas por Berman, indicam sua existência e, junto à tradução, podem levar o interessado e o estudioso dos Estudos da Tradução a reconstruí-las em detalhes. A ideia de traduzir esta obra de Ovídio surgiu de uma realidade concreta: a necessidade de disponibilizá-la em tradução aos estudantes de literatura clássica latina e sua falta no mercado brasileiro – carência, na verdade, de grande número de obras da literatura romana (pesquisas iniciais sobre a tradução de obras latinas no Brasil mostraram que em nosso país foram traduzidos apenas cerca de 20% dos autores latinos ‘legíveis’ (em torno de 144)
Livro I: Cláudio Aquati (UNESP) Livro II: Juvino Alves Maia Júnior (UFPB) Livro III: Paulo Sérgio de Vasconcellos (UNICAMP) Livro IV: Matheus Trevizam (UFMG) Livro V: Luis Henrique Milani Queriquelli (UFSC) Livro VI: Arlete José Mota (UFRJ) Livro VII: Rodrigo Tadeu Gonçalves (UFPR) Livro VIII: Mílton Marques Júnior (UFPB) Livro IX: José Ernesto de Vargas & Fernando Coelho (UFSC) Livro X: Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet (UFMG) Livro XI: Leila Teresinha Maraschin (UFSM) Livro XII: Mauri Furlan (UFSC) Livro XIII: Anderson de Araújo Martins Esteves (UFRJ) Livro XIV: Antônio Martinez de Rezende (UFMG) Livro XV: Brunno Vinicius Gonçalves Vieira (UNESP)
Retomando a reflexão bermaniana acima exposta, pode-se perguntar sobre como tratar a questão de “quem é o tradutor” numa obra com tantos tradutores. Obviamente, as singularidades de cada um só podem ser tomadas individualmente, e suas especificidades tradutivas, avaliadas no livro que cada um traduziu. No entanto, o corpo de tradutores também traz marcas em comum. Todos os tradutores são brasileiros, contemporâneos, trabalhadores ativos e pertencentes ao meio acadêmico. Em sua maioria, são professores universitários de língua latina, e não tradutores profissionais exclusivos. Como latinistas, leem em outras línguas estrangeiras, além da latina, e quase todos já traduziram anteriormente do latim. No grupo de tradutores, há três doutorandos, os demais são doutores. Todos possuem várias publicações em diversos gêneros, sobretudo acadêmicos. Quase todos já publicaram textos abordando e refletindo sobre questões de tradução, embora a maioria não enquadre sua linha de pesquisas no campo dos Estudos da Tradução. Todos os tradutores possuem seu curriculum uitae na plataforma
Lattes do CNPq, disponível online, e os principais dados em comum podem ser resumidos como seguem:
A NDERSON DE A RAÚJO MARTINS ESTEVES (martinsesteves@superig.com.br)
Possui Doutorado em Letras Clássicas (2010), Mestrado em Letras Clássicas (2004), e Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais (1998) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Letras Clássicas, com ênfase em língua e literatura latinas, historiografia antiga e estudos de gênero.
ANTÔNIO MARTINEZ DE R EZENDE (antoniomartinez.rezende@gmail.com)
Possui Doutorado em Estudos Linguísticos (2009), Mestrado em Estudos Linguísticos (1986), e Graduação em Letras (1977) pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é Professsor Associado da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Língua Latina, atuando principalmente nos seguintes temas: latim, gramática, ensino, tradução e literatura latina.
A RLETE JOSÉ MOTA (arletemota@yahoo.com.br)
Possui Doutorado em Letras Clássicas (1998) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura latina, cultura romana, língua latina, comportamento e história romana.
(brunnovgvieira@gmail.com)
Possui Doutorado em Estudos Literários (2007), Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa (2002), e Graduação em Letras (1997) pela UNESP, instituição onde atualmente leciona temas relacionados à Língua e Literatura Latinas. Desenvolve projetos na área de Letras Clássicas, com ênfase na recepção e tradução de textos greco-romanos em contexto lusófono.
C LÁUDIO A QUATI (aquati@ibilce.unesp.br)
Possui Doutorado em Letras Clássicas (1997), Mestrado em Letras Clássicas (1991), Graduação em Letras Clássicas (1985), e Graduação em Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (1985). Atualmente é Professor Assistente da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Câmpus de São José do Rio Preto. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em língua e literatura latinas. Atua principalmente nos seguintes temas: romance antigo, romance latino ( Satíricon , de Petrônio e O asno de ouro , de Apuleio) e sátira.
F ERNANDO C OELHO (zeffiretto@gmail.com)
Doutorando em Linguística na Universidade Federal de Santa Catarina, possui Mestrado em Estudos da Tradução (2009), Graduação em Letras - Francês (2008), e Graduação em Filosofia (2005) pela Universidade Federal de Santa Catarina.
J OSÉ ERNESTO DE V ARGAS (jedevargas@gmail.com)
Possui Doutorado em Literatura (2008) pela Universidade Federal de Santa Catarina, e Graduação em Letras Português e Latim (1992)
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é Professor de Língua e Literatura Latinas na Universidade Federal de Santa Catarina. Atua nas seguintes áreas: Linguística e Educação, Literatura Latina, Língua Latina, Poesia e performance literária.
J UVINO A LVES MAIA JÚNIOR (juvinojr@uol.com.br)
Possui Doutorado em Letras Clássicas (2002), Mestrado em Letras - Literaturas de Língua Portuguesa (1993), Graduação em Língua Latina (1996), e Graduação em Língua Portuguesa (1988) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Associado da Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Grego e Latim, atuando principalmente nos seguintes temas: grego, latim, ensino, tradução, drama, estilo, discurso.
LEILA TERESINHA MARASCHIN (leilamaraschin@gmail.com)
Doutoranda em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa Catarina, possui Mestrado em Letras (1998) e Graduação em Letras (1993) pela Universidade Federal de Santa Maria. É Professora Assistente na Universidade Federal de Santa Maria.
L UIZ HENRIQUE MILANI QUERIQUELLI (luizqueriquelli@gmail.com)
Doutorando em Linguística na Universidade Federal de Santa Catarina, possui Mestrado em Estudos da Tradução (2009) pela Universidade Federal de Santa Catarina, Graduação em Letras Português (2009) pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci, e Graduação em Ciências Sociais (2007) pela Universidade Federal de Santa Catarina. Tem pesquisas relativas ao ensino do latim na formação de professores de língua portuguesa e à crítica de tradução de literatura latina.
Línguas Clássicas, atuando principalmente nos seguintes temas: latim vulgar e romance latino.
Outra questão relevante a ser referida concerne à ‘forma’ textual, a que chamamos ‘prosa poética’ e aceitamos como adequada à tradução dos hexâmetros latinos de Ovídio. A discussão nos Estudos da Tradução sobre traduzir poesia é importante e tão antiga quanto a própria história da tradução ocidental. Há desde defensores de que traduzir poesia é mais fácil do que prosa exatamente pela possibilidade de repoetizar um texto, até os que a consideram impossível de ser traduzida, passando por escolas que propugnam a correspondência de versos x de uma língua com versos y de outra, etc., a pensamentos como os de Goethe e Hegel, de que a poesia pode ser traduzida em prosa. Parafraseando Berman, podemos afirmar que traduzir Ovídio em prosa não é obrigatoriamente “traí-lo”, mas submetê-lo a uma metamorfose, e isso, em si, é uma tradução. Toda tradução em prosa deve ser considerada como uma possibilidade da tradução de poesia para algumas obras (2012, p. 136). Sem entrarmos agora na reapresentação do pensamento de Berman sobre o que ele nomeia como tradução da letra (que não é em absoluto a tradução da palavra!) enquanto tradução que pode renovar a tarefa do tradutor e sua língua nativa e produzir verdadeiras obras literárias ao mesmo tempo que preserva o valor do texto original, podemos encontrar nessa concepção do traduzir um grande argumento em defesa do uso da prosa poética na tradução da poesia: o de que a prosa poética permite ao texto traduzido continuar o contato íntimo com o texto primeiro e a possibilidade de fazer reviver na língua receptora o estrangeiro, o Outro. Berman concebe a tradução como acolhida da letra estrangeira na língua materna, tradução como albergue, como lugar de abrigo ao forasteiro, que o faz sentir-se em casa sendo estrangeiro, lugar ao mesmo tempo próximo e distante. A tradução da letra considera importante o buscar-e-encontrar também o não-normatizado da língua de chegada para introduzir aí a língua estrangeira e seu dizer, porque aí,
paradoxalmente, é onde ela aceita o Outro, pois, na sua maternalidade, se permite ser o “albergue do longínquo” (2012, p. 175).
Às Metamorfoses!
Mauri Furlan maurizius@gmail.com
Florianópolis, jul 2014
Referências bibliográficas
BENJAMIN , Walter. “Die Aufgabe des Übersetzers” [1923] , in Gesammelte Schriften. Band IV-1. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1980. BERMAN , Antoine. La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain [1985/1999] / A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Trad. de Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan, Andréia Guerini. 2ª ed. Tubarão: Copiart, 2012. ______. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris: Gallimard, 1995. FURLAN , Mauri. “Literatura de língua latina traduzida no Brasil. O que conhecemos nós dos nossos avós, os romanos?”. Comunicação apresentada na Iª Jornada do Grupo de Pesquisa Literatura Traduzida. CCE, UFSC, 2004. Online: http://latim.paginas.ufsc.br/da-literatura-latina ______. “Retraduzir é preciso”, in Scientia Traductionis n. (2013). M ESCHONNIC , Henri. Pour la poétique II. Épistémologie de l’écriture - Poétique de la traduction. Paris: Gallimard, 1973.
In nova fert animus mutatas dicere formas corpora; di, coeptis (nam vos mutastis et illas) adspirate meis primaque ab origine mundi ad mea perpetuum deducite tempora carmen.
Mundi origo
5 Ante mare et terras et quod tegit omnia caelum unus erat toto naturae vultus in orbe, quem dixere chaos: rudis indigestaque moles nec quicquam nisi pondus iners congestaque eodem non bene iunctarum discordia semina rerum. 10 nullus adhuc mundo praebebat lumina Titan, nec nova crescendo reparabat cornua Phoebe, nec circumfuso pendebat in aere tellus ponderibus librata suis, nec bracchia longo margine terrarum porrexerat Amphitrite; 15 utque aer, tellus illic et pontus et aether. Sic erat instabilis tellus, innabilis unda, lucis egens aer: nulli sua forma manebat, obstabatque aliis aliud, quia corpore in uno frigida pugnabant calidis, umentia siccis, 20 mollia cum duris, sine pondere habentia pondus.
Hanc deus et melior litem natura diremit. Nam caelo terras et terris abscidit undas, et liquidum spisso secrevit ab aere caelum. Quae postquam evolvit caecoque exemit acervo, 25 dissociata locis concordi pace ligavit. Ignea convexi vis et sine pondere caeli emicuit summaque locum sibi fecit in arce:
Transmudadas em novos corpos meu espírito leva-me a cantar as formas. Ó deuses! Inspirai-me os planos — enfim: vós também as transformastes — e conduzi um canto ininterrupto desde as origens do mundo até os meus dias.
A origem do mundo
Antes da existência do mar e das terras e do céu que cobre tudo, tinha a natureza em todo o orbe uma única feição. Disseram-na caos, massa inculta e confusa, um peso inerte, nada mais e, amontoados num mesmo lugar, germes desajustados de elementos não bem ligados.
Titã algum até então luzes oferecia ao mundo. Febe, crescente, também não restaurava os cornos nascentes; tampouco a terra, equilibrando-se em seu peso, pendia no ar que a envolvia. E Anfitrite seus braços não estendera pelas longas margens das terras. Mas, assim como ali estava a terra e também o mar e também o ar, da mesma forma era a terra instável, incontrolável a onda, carente de luz o ar. Ser nenhum conservava a própria forma. E uma coisa se opunha às outras porque, em um único corpo, as frias combatiam as quentes; as úmidas, as secas; as moles, as duras; as sem peso, aquelas que tinham peso.
Um deus 5 , juntamente com uma natureza melhor, resolveu essa dissensão: a terra ele a separou do céu; das terras separou as águas e um céu fluido ele o apartou da espessa atmosfera. Esses elementos ele os tirou de uma grande mixórdia e dela os resguardou, depois do que, em paz e harmonia, atribuiu para cada qual um lugar diferente. A força da cúpula reluziu, ígnea e sem peso, e tomou seu lugar no ponto mais alto do firmamento. O ar está próximo dela em leveza e localização 6. A
5 Ovídio não revela qual seja esse deus. 6 Gregos e romanos consideravam duas camadas de ar: uma superior, fluida, é o éter, domínio dos astros e dos deuses; a outra está mais próxima da terra e é mais espessa e densa, onde se concentram as nuvens, os ventos, os pássaros.
proximus est aer illi levitate locoque: densior his tellus, elementaque grandia traxit 30 et pressa est gravitate sua: circumfluus umor ultima possedit solidumque coercuit orbem.
Sic ubi dispositam quisquis fuit ille deorum congeriem secuit sectamque in membra redegit, principio terram, ne non aequalis ab omni 35 parte foret, magni speciem glomeravit in orbis. Tum freta diffudit rapidisque tumescere ventis iussit et ambitae circumdare litora terrae. Addidit et fontes et stagna inmensa lacusque fluminaque obliquis cinxit declivia ripis, 40 quae, diversa locis, partim sorbentur ab ipsa, in mare perveniunt partim campoque recepta liberioris aquae pro ripis litora pulsant. Iussit et extendi campos, subsidere valles, fronde tegi silvas, lapidosos surgere montes. 45 Utque duae dextra caelum totidemque sinistra parte secant zonae, quinta est ardentior illis, sic onus inclusum numero distinxit eodem cura dei, totidemque plagae tellure premuntur. Quarum quae media est, non est habitabilis aestu: 50 nix tegit alta duas: totidem inter utrumque locavit temperiemque dedit mixta cum frigore flamma.
Inminet his aer. Qui quanto est pondere terrae, pondere aquae levior tanto est onerosior igni. Illic et nebulas, illic consistere nubes 55 iussit et humanas motura tonitrua mentes et cum fulminibus facientes fulgura ventos. His quoque non passim mundi fabricator habendum aera permisit: vix nunc obsistitur illis, cum sua quisque regant diverso flamina tractu, 60 quin lanient mundum: tanta est discordia fratrum. Eurus ad Auroram Nabataeaque regna recessit Persidaque et radiis iuga subdita matutinis; vesper et occiduo quae litora sole tepescunt, proxima sunt Zephyro: Scythiam septemque triones
terra, mais densa que esses elementos, puxou-os para si — os grandes — e sofreu a pressão de seu próprio peso. A água fluiu ocupando todo o resto e encintou a terra firme.
Dessa forma, qualquer fosse ele entre os deuses, logo repartiu a massa assim disposta e primeiro organizou a terra partilhada em glebas e reuniu tudo numa espécie de grande orbe — não fosse haver desigualdade em alguma parte! Então, mandou irromperem os mares e, pela ação de ventos impetuosos, intumescerem-se, formando os litorais em redor da terra envolvida. Reuniu não só fontes como também imensos pântanos e lagos. Os rios declivosos ele os conteve entre margens sinuosas. Esses, dependendo do local em que estivessem, em parte eram sorvidos pela própria terra e em parte chegavam ao mar onde, espraiando-se por uma planície líquida mais livre, em vez de margens batiam o litoral. Mandou ele estender as planícies, aplanar os vales, cobrir as florestas com a fronde das árvores, altearem-se lapidosos montes. E como, na parte direita do céu duas faixas o cortam e igualmente o mesmo o fazem duas faixas na parte esquerda e uma quinta faixa é mais quente que elas, assim o cuidado do deus definiu com a mesma quantidade a carga existente no orbe e outras tantas regiões são precisamente determinadas na terra. Dentre elas, por causa do calor, a faixa mediana não é habitável. Uma grossa camada de neve cobre duas delas, precisamente entre a quais o deus colocou outras, temperadas com o fogo misturado ao frio.
Premente sobre essas faixas, paira o ar, tanto mais leve que a terra quanto o peso da água é maior que o do fogo. Ali também o deus mandou formar névoas, também ali as nuvens, e os trovões, capazes de abalar as mentes humanas, e o ventos, com os raios, produtores de relâmpagos. O criador do mundo também não lhes permitiu, aos ventos, dispor aleatoriamente dos ares, e, agora com dificuldade, cria-lhes obstáculos, embora cada qual dirija suas correntes com um tratamento diverso para não destroçarem o mundo, tamanha é a discórdia dos irmãos. O Euro afastou-se para a Aurora e aos reinos nabateus e à Pérsia e aos locais montanhosos expostos aos raios matutinos. De Zéfiro estão próximos Vésper e os litorais amornados pelo sol poente. O horrendo Bóreas invadiu a Cítia e o Setentrião. A terra que lhe é oposta, graças às nuvens constantes e à chuva, se umedece pelo Austro. Sobre eles o deus colocou o éter, fluido e sem peso, sem traços de resíduos