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Limites da Normatividade na Teoria de Ernesto Laclau: Ideologia e Antagonismo, Resumos de Teoria Política

Uma análise teórica sobre a noção de normatividade na obra de ernesto laclau, particularmente após a publicação de 'hegemony and socialist strategy'. O texto explora as ideias de laclau sobre ideologia, antagonismo e deslocamento, e como essas concepções desempenham um papel central na teoria política de laclau. O autor defende que a noção de hegemonia é uma importante ferramenta de análise do social e também de prescrição normativa, pois supõe a constante instabilidade das relações políticas concretas. O documento também discute a influência da teoria althusseriana na teoria política de laclau.

Tipologia: Resumos

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Vinicius20
Vinicius20 🇧🇷

4.5

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Lua Nova, São Paulo, 91: 135-167, 2014
O LIMITE DA NORMATIVIDADE NA TEORIA POLÍTICA
DE ERNESTO LACLAU
Daniel de Mendonça
A obra de Ernesto Laclau, principalmente após o lançamen-
to de Hegemony and socialist strategy, em colaboração com
Chantal Mouffe, tem sido um esforço teórico no sentido
de apresentar uma interpretação acerca do político como
âmbito específico e explicativo das relações sociais (cf.
Laclau e Mouffe, 1985). Apesar de seu trabalho por vezes
ser “acusado” de abstrato, filosófico, numa palavra, “despre-
ocupado” com as práticas políticas cotidianas, não é esse em
absoluto o objetivo do autor. Pelo contrário, Laclau autode-
nomina-se um “teórico político”, no sentido de que todo o
seu esforço intelectual tenha uma aplicabilidade analítica e
normativa no campo da política.
O presente artigo resulta num exercício no sentido
de pensar o terreno da normatividade no âmbito da teoria
política, tendo como pressuposto a ontologia presente na
teoria do discurso laclauniana. Partimos da premissa, como
já afirmamos, de que o autor, na condição de teórico políti-
co (e não de filósofo político), visa a apresentar uma teoria
política que tenha aplicabilidade analítica, mas que tam-
bém seja útil no momento de se pensar normativamente.
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O LIMITE DA NORMATIVIDADE NA TEORIA POLÍTICA

DE ERNESTO LACLAU

Daniel de Mendonça

A obra de Ernesto Laclau, principalmente após o lançamen- to de Hegemony and socialist strategy , em colaboração com Chantal Mouffe, tem sido um esforço teórico no sentido de apresentar uma interpretação acerca do político como âmbito específico e explicativo das relações sociais (cf. Laclau e Mouffe, 1985). Apesar de seu trabalho por vezes ser “acusado” de abstrato, filosófico, numa palavra, “despre- ocupado” com as práticas políticas cotidianas, não é esse em absoluto o objetivo do autor. Pelo contrário, Laclau autode- nomina-se um “teórico político”, no sentido de que todo o seu esforço intelectual tenha uma aplicabilidade analítica e normativa no campo da política. O presente artigo resulta num exercício no sentido de pensar o terreno da normatividade no âmbito da teoria política, tendo como pressuposto a ontologia presente na teoria do discurso laclauniana. Partimos da premissa, como já afirmamos, de que o autor, na condição de teórico políti- co (e não de filósofo político), visa a apresentar uma teoria política que tenha aplicabilidade analítica, mas que tam- bém seja útil no momento de se pensar normativamente.

O limite da normatividade na teoria política de Ernesto Laclau Defendemos que o plano da normatividade, levando-se em conta essa perspectiva teórica, depende inexoravelmente da concepção de ontologia política elaborada pelo autor, a qual terá seus principais pressupostos e elementos explora- dos neste artigo. Para a consecução desse objetivo geral, primeiramente abordaremos a posição pós-fundacionalista defendida pelo autor. Na sequência, apresentaremos Laclau como um teó- rico e não como um filósofo político. A seguir, analisaremos as noções de ideologia e discurso, centrais para a ontologia política da teoria do discurso. Depois discorreremos sobre antagonismo e deslocamento, categorias explicativas da incompletude de sentidos sociais, conforme a visão do autor. Finalmente, tendo em vista os pressupostos ontológicos apre- sentados, buscaremos estabelecer as possibilidades e os limi- tes da normatividade tendo em vista a teoria do discurso.

Laclau e o pós-fundacionalismo

Um ponto de partida razoável para a compreensão da obra de Laclau, mas certamente não o único, reside na compre- ensão de que o seu esforço teórico está filiado a uma matriz pós-fundacionalista. O pós-fundacionalismo consiste numa constante interrogação crítica em direção aos projetos teó- ricos que visam se estruturar a partir de um fundamento último, como se tal fundamento fosse subjacente às pró- prias práticas políticas stricto sensu , como, por exemplo, o essencialismo econômico em última instância presente na tradição marxista (Laclau e Mouffe, 1985). Apesar de o pós- -fundacionalismo ser a crítica a um fundamento em última instância que explicaria e fecharia todos os sentidos numa totalidade chamada de sociedade, conforme Marchart (2007, p. 2), ele [...] não deve ser confundido com antifundacionalismo [...], uma vez que a abordagem pós-fundacional não visa a apagar

O limite da normatividade na teoria política de Ernesto Laclau Todo fundamento político estrutura-se discursivamente quando se hegemoniza, ou seja, quando determinada posi- ção política particular passa a representar os mais variados setores da sociedade. Assim, a hegemonia é o momento da decisão política, da sedimentação de determinado discurso. Contudo, dada a instabilidade ontológica do político, ou seja, a eterna contaminação do plano ôntico pelo ontoló- gico, toda hegemonia pressupõe uma contra-hegemonia e ambas só podem ser conhecidas no momento em que essas práticas políticas surgem como tais. Para Laclau, dessa forma, a instabilidade constante nas relações políticas reais não pode ser percebida como algo abstrato. O autor é absolutamente consciente de que o seu projeto teórico o é no sentido mais estrito do termo, ou seja, toda a estrutura do seu pensamento visa à aplicação, no mínimo, no plano da análise política. Dessa forma, enten- demos que, para Laclau, qualquer proposta normativa, que não leve em consideração os elementos pós-fundacionalis- tas apresentados, tem valor teórico-científico restrito.

Laclau: um teórico político

Laclau transita entre a teoria política e a política com um objetivo muito preciso: seu pensamento não está inscrito num campo eminentemente filosófico, visto que o mesmo tem uma preocupação de análise do social, de ser uma fer- ramenta teórica de aplicação. Essa impressão é compartilha- da por Oliver Marchart (2008, p. 77). No marco de uma conferência sobre desconstrução e pragmatismo, Ernesto Laclau iniciou sua intervenção recordando-nos que estava ali “como teórico político antes de filósofo no sentido estrito do termo” (Laclau, 1996, p. 47). Laclau não nos disse como seria um filósofo “no sentido estrito do termo”, mas presumimos que busca diferenciar seu projeto – que se ocupa exclusivamente de questões

Daniel de Mendonça de política e teoria política – da prática de fazer filosofia “pura”, ou seja, no sentido de uma disciplina acadêmica ou na flutuação livre do raciocínio metafísico sem nenhum campo de aplicação particular. Laclau, em entrevistas, percebe claramente que sua teoria política não pode ser desvinculada da sua própria prática como ativista social, ou seja, seu pensamento tem efetivamente um viés normativo de uma teoria política radi- cal. Citamos, a seguir, dois trechos extraídos de duas entre- vistas publicadas em Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo (doravante NR). O primeiro retrata claramen- te o ponto em que o autor destaca a leitura dos fenômenos sociopolíticos a partir de duas categorias centrais ao seu aporte teórico, articulação e hegemonia. A ideia da política como hegemonia e articulação, por exemplo, é algo que tem acompanhado a minha trajetória política. Recordo que, em 1984, depois de muitos anos, viajei a Buenos Aires com Chantal Mouffe e consultamos velhos trabalhos meus. Chantal se surpreendeu ao ler os meus editorais de Lucha Obrera (do qual eu havia sido diretor), de vinte anos antes, nos quais a luta socialista já se colocava em termos de hegemonização das tarefas democráticas por parte da classe operária (Laclau, 1993, p. 188). O segundo trecho revela de forma ainda mais evidente a relação íntima entre a sua teoria e os próprios fenômenos que ela propõe iluminar. Por isso é que eu não tive de esperar para ler os textos pós- estruturalistas para entender o que é uma “articulação” [...], um “significante flutuante” ou a metafísica da presença: aprendi através da minha experiência prática de ativista em Buenos Aires. Por isso, quando hoje leio Gramatologia , S/Z

Daniel de Mendonça indissociáveis para ele. Na introdução de uma coletânea de textos, cujos autores utilizam sua estrutura teórica em análises empíricas, Laclau, após estabelecer que a separa- ção entre teoria política e prática política é uma “operação artificial”, afirmou taxativamente que “como as categorias teórico-políticas não existem apenas nos livros, mas são tam- bém partes de discursos que de fato informam instituições e relações sociais, essas operações desconstrutivistas são parte integral do fazer da vida política” (Laclau, 1994, p. 2). Isso quer dizer que é papel da teoria política, pelo menos este é assim assumido por Laclau, que ela deva ser explicativa, mas que também aponte uma linha normativa, uma verdadeira tarefa de um ativista intelectual. Acreditamos ser ainda importante mencionar que o normativo da teoria do discurso depende da estrutura de explicação dos fenômenos sociopolíticos construída pelo autor. Nesse sentido, o normativo não é um normativo ideal, vinculado a uma situação hipotética, dificilmente rea- lizável ou ainda irrealizável. Trata-se de um normativo limi- tado por constraints estruturais, porém passível de ser deseja- do. Em um conhecido ensaio publicado com Chantal Mou- ffe, “Posmarxismo sin pedido de disculpas”, respondendo a um conjunto de críticas desferidas por parte de intelectuais marxistas contra a obra Hegemony and socialist strategy (dora- vante HSS), nesse caso em particular, Norman Geras, eles enfocam a possibilidade e o lugar do normativo: Estamos vivendo, pelo contrário, um dos momentos mais excitantes do século XX: o momento em que novas gerações, sem os prejuízos do passado, sem teorias que se apresentavam como “verdades absolutas” da história, estão construindo novos discursos emancipatórios, mais humanos, diversificados e democráticos. As ambições escatológicas são mais modestas, mas as aspirações de libertação são mais amplas e profundas (Laclau e Mouffe, 1993, p. 112).

O limite da normatividade na teoria política de Ernesto Laclau Efetivamente a crítica centra-se, nessa passagem, sobre- tudo em relação à teoria marxista, entendida por Laclau como essencialista e objetivista. Essencialista no sentido de que o determinismo econômico é entendido por essa tradi- ção, em última instância, como uma verdade a priori e uma característica necessária a todo tipo de formação social. Objetivista, no sentido de que, para Laclau, o marxismo não observa um elemento ontológico social fundamental: a impossibilidade de, em última instância, ser alcançada a objetividade. O “objetivo” é quando se acredita que o obje- to é passível de ser plenamente constituído. Para o autor, a essência e o objetivo são impossíveis de ser alcançados e toda a teoria política e social que postular tais buscas terá o seu conteúdo normativo prejudicado. O que queremos dizer por conteúdo normativo prejudicado tem a ver com o que há pouco chamamos de normativismo ideal, ou seja, praticamente ou mesmo impossível de ser realizado. Assim, pensar normativamente tendo como inspiração epistemoló- gica o pós-estruturalismo laclauniano é considerar a ocor- rência de acontecimentos políticos efetivos, movimentos políticos reais^2. É nesse sentido que as ambições escatológicas da teoria e da prática políticas devem ser vistas de forma mais modes- ta, uma vez que não há efetivamente uma humanidade a ser libertada no sentido da emancipação humana marxiana. No entanto, e paradoxalmente, as aspirações de libertação são mais amplas e profundas, pois que se abre um leque pratica- (^2) Essa é justamente a tarefa normativa empreendida por Aletta Norval (2007, pp. 61-62), em muito inspirada na obra de Ernesto Laclau: “o objetivo deste exercício, embora teórico, não é produzir uma abordagem do discurso democrático que esteja abstraída do ‘fluxo da vida’ e removida de todo e cada contexto. Não está aqui pressuposto que as gramáticas políticas em geral e as formas democráticas de argumentação em particular poderiam ou deveriam ser abstraídas de contextos ordinários e de interesses e de paixões que inspiram o engajamento na política democrática em primeira instância. Esse desejo de separar a política das preocu- pações do ordinário geralmente provém de uma negação platônica da retórica e de uma valorização excessiva das reivindicações da razão”.

O limite da normatividade na teoria política de Ernesto Laclau passa o conhecimento do discurso como categoria ontológica central. Entender como o discurso é articulado, como sua exis- tência é precária e contingente, ajuda-nos compreender o por- quê são inócuas as formulações normativas que visam congelar o fluxo inconstante da vida e das relações sociais.

Ideologia e discurso

Muito se fala sobre vivermos em uma era que marca o fim das ideologias e, nesse sentido, falar acerca do ideológi- co parece propor uma discussão um tanto fora de lugar. Contudo, isso depende de como definimos ideologia. Se acreditarmos que ideologia se constitui em falsa consciên- cia (ou consciência alienada), no sentido do marxismo clás- sico, certamente estaríamos tratando de uma noção ultra- passada. Se, por outro lado, partirmos de um topos próprio do século XX de que, no Ocidente, havia duas ideologias hegemônicas, a capitalista (direita) e a socialista (esquer- da), e acreditarmos que estamos diante de modelos políti- cos estanques ou, ainda mais grave, trans-históricos, tam- bém estaríamos fatalmente incorrendo num erro analítico. Sob tal perspectiva, o problema maior que identificamos nos estudos políticos, quando muitas vezes os autores estão diante da necessidade de definir o termo ideologia, é que eles o fazem não a partir de sua especificidade conceitual ou, como diria Max Weber, a partir de um tipo ideal, mas tendo em vista os casos concretos que analisam. Falham, muitas vezes, porque tomam o aspecto ôntico das ideolo- gias concretas no mesmo patamar ontológico da ideologia como noção, o que é um erro teórico importante. Impor- tante, tendo em vista que a prática de determinado grupo político, dotado de certa ideologia, não pode necessaria- mente ditar todos os comportamentos políticos futuros de outros grupos, pois cada experiência política ôntica tem a sua própria particularidade que depende de um contexto histórico, precário e contingente.

Daniel de Mendonça Os sujeitos assumem posições ideológicas que guiam suas condutas. Assim, quando consideramos grupos políti- cos com ideologias determinadas, estamos diante da ideolo- gia num nível ôntico. Contudo, o nível ôntico não determi- na em si o nível ontológico. Isso quer dizer que não pode- mos tomar uma ideologia concreta para definir a ideologia, que não podemos tomar o efeito pela causa, que não pode- mos tomar, por fim, o ôntico para definirmos o ontológico. Nosso esforço inicial está em dizer que, a exemplo de Althusser (1985), a ideologia não tem uma história, por ela própria ser onipresente e trans-histórica. Para Althusser, “a ideologia é eterna” (1985, p. 85). Assim, entendemos que a ideologia não tem propriamente um final. Somos seres ideológicos e simbólicos por natureza, o que nos permite admitir dois fatos: primeiro, em termos gerais (nível ontoló- gico), sempre haverá ideologia; e segundo, em termos con- cretos (nível ôntico), as ideologias nascem, sofrem variações e morrem. A noção de ideologia da teoria do discurso de Ernesto Laclau (Laclau e Mouffe, 1985; Laclau, 1993), arti- cula, ao mesmo tempo, os dois fatos acima apontados. Nas palavras de Laclau (1993, p. 106): O ideológico consistiria naquelas formas discursivas através das quais a sociedade trata de instituir-se sobre a base do fechamento, da fixação de sentido, do não reconhecimento do jogo infinito das diferenças. O ideológico seria a vontade de “totalidade” de todo discurso totalizante. E na medida em que o social é impossível sem certa fixação de sentido, sem o discurso do fechamento, o ideológico deve ser visto como constitutivo do social. O social só existe como o intento vão de instituir esse objeto impossível: a sociedade. A utopia é a essência de toda comunicação e de toda a prática social. O excerto acima nos leva diretamente à discussão esta- belecida na seção anterior, ou seja, sobre a impossibilidade

Daniel de Mendonça Dessa forma, ideologias, no plano ôntico, ou seja, liga- das à prática política cotidiana são sempre precárias e con- tingentes, ameaçadas por ideologias contrárias. Já, no plano ontológico, a ideologia, no sentido althusseriano, é omni- presente e trans-histórica, ou seja, numa palavra, eterna. Isso quer dizer que, se não podemos viver sem a presença da ideologia, toda e qualquer tentativa de eliminá-la será sempre vã, interpretando-se que isso não passará tão somen- te de apenas mais uma ideologia em particular. Em termos analíticos, conforme Laclau (1993, 2000), a noção de ideologia deve ser entendida a partir da ideia de falsa representação. No entanto, isso não significa que tal ideia marque um retorno ao marxismo, pois isso repre- sentaria uma contradictio in adjecto. Na concepção ideológica marxiana, a ideologia é necessariamente o oposto da ver- dade, uma inversão semântica acerca as relações realmente existentes num contexto societário^3. Tal concepção pressu- põe que a inversão de sentidos produzida pelo fenômeno ideológico oblitera o alcance da verdade, da transparência, da visão não invertida. Assim, para Laclau (1993, 2000), manter viva a ideia de falsa representação para explicar o fenômeno ideológico sig- nifica dizer que não há nada inverídico para se tornar verí- dico, pois o que deve ser abandonado, nesse particular, é a própria concepção de que há uma verdade absoluta a ser alcançada que seja contrária às inúmeras falsidades que a escondem. Não é a partir desse prisma que Laclau sugere o entendimento do enfoque ideológico. Essa renúncia do par verdade/inverdade é, no entanto, uma renúncia meramente analítica, ou seja, temos de admiti-la porque partimos do pres- (^3) Este trecho da ideologia exemplifica o ponto que estou discutindo: “e se em toda a ideologia os homens e as suas relações nos surgem invertidos tal como acontece numa câmera obscura , isto é apenas o resultado do seu processo de vida histórico, do mesmo modo que a imagem invertida dos objetos que se forma na retina é uma consequência do seu processo de vida diretamente físico” (Marx e Engels, s/d, pp. 25-26).

O limite da normatividade na teoria política de Ernesto Laclau suposto de que não existem sentidos que possam se tornar objetivos, ou seja, ossificados para a eternidade. Para o autor, vivemos numa eterna guerra de interpretações como um pressuposto ontológico do social. É com esse viés que a verda- de ou o sentido não distorcido não serão alcançados jamais. Dissemos que a referida renúncia se dá no plano ana- lítico, pois no plano da disputa política os sujeitos perce- bem e agem a partir de suas visões ideológicas (distorcidas) como se fossem verdades. É, nesse sentido, que a falsa cons- ciência não deve ser abandonada, uma vez que a distorção do mundo é constitutiva da objetividade social. Isso ocorre, pois há uma renúncia identitária em relação ao reconheci- mento do não fechamento de sentidos sociais, plasmados na impossível e, ao mesmo tempo, necessária tentativa de objetivação do mundo^4. Estamos diante de uma “distorção constitutiva”. O autor estabelece que: O que se trata, contudo, é de uma distorção constitutiva. Quer dizer que estamos postulando um sentido originário (porque este é requerido por toda a distorção) e negando-o (porque a distorção é constitutiva). Nesse caso, a única possibilidade lógica de manter essas duas dimensões aparentemente antinômicas é se o sentido original é ilusório e a operação distorcida consiste precisamente em criar essa ilusão – ou seja, projetar, em algo que é essencialmente dividido, a ilusão de uma plenitude e autotransparência que estão ausentes (Laclau, 2000, p. 17). (^4) A concepção de ideologia de Zizek (2005, pp. 46-47) é semelhante: “Esta é pro- vavelmente a dimensão fundamental da ‘ideologia’: a ideologia não é simplesmente uma ‘falsa consciência’, uma representação ilusória da realidade; é a própria realidade que deve ser concebida como ‘ideológica’ – ‘ideológica’ é uma realidade social cuja existência implica o não reconhecimento de seus participantes no que se refere à sua essência – ou seja, a efetividade social, cuja mesma reprodução implica que os indiví- duos ‘não separam o que estão fazendo’. ‘Ideológica não é a ‘falsa consciência’ de um ser (social) mas este ser na medida em que sustentado pela ‘falsa consciência’”.

O limite da normatividade na teoria política de Ernesto Laclau Sumariamente, apresentamos a natureza material e não ideal de um discurso^7. No entanto, para fins deste artigo, importa responder a seguinte questão: por que o discurso deve ser percebido a partir de uma dimensão ontológica?^8 Simplesmente porque ele nomeia o ser da existência, uma vez que a existência necessita necessariamente de uma série de relações simbólicas para alcançar o status de ser e isso somente é possível a partir de uma articulação discursiva. “O que se nega não é a existência dos objetos, externa ao pensa- mento, mas a afirmação diferente de que os mesmos possam se constituir como objetos à margem de toda condição dis- cursiva de emergência” (Laclau e Mouffe, 1985, p. 108). Detenhamo-nos um pouco mais nesse ponto para buscar esclarecer a diferença entre existência e ser no âmbito desta discussão. Tal distinção é crucial, pois indica que ao mesmo tempo que Laclau visa distanciar seu aporte teórico de uma dimensão idealista, como dissemos há pouco, ele busca tam- bém diferenciar seu pensamento de uma dimensão estrita- mente realista. Conforme essa visão filosófica, o realismo não é redutível à ideologia, sendo a “ realidade ‘o modo de ser das coi- sas enquanto existem fora da mente humana ou independen- temente desta’” (Portinaro, 2007, pp. 17-18; grifo no original )^9. O discurso tem efetivamente uma dimensão realista, mar- cada, na linguagem de Laclau, pela noção de existência. A existência indica a realidade material das coisas, dos objetos. (^7) Este ponto específico a respeito da materialidade discursiva já foi discutido em uma série de trabalhos. Do próprio autor, ver, por exemplo, o ensaio “Posmar- xismo sin pedido de disculpas”, escrito conjuntamente com Chantal Mouffe (La- clau e Mouffe, 1993). Trabalhos adicionais que discutem direta ou indiretamente o tema podem ser encontrados em duas coletâneas dedicadas ao pensamento do autor (Rodrigues e Mendonça, 2006; Mendonça e Rodrigues, 2008). (^8) Laclau é absolutamente claro sobre o caráter ontológico do discurso: “O discur- so é, a partir de nossa perspectiva, o campo de uma ontologia geral, quer dizer, de uma reflexão acerca do ser enquanto ser ” (Laclau, 2008a, p. 189; grifo no original ). (^9) A noção de realidade é enunciada para estabelecer a contraposição com a corrente idealista, ou seja, como se sabe, a discussão central do realismo é com a perspectiva filosófica do idealismo, debate ao qual não interessa para os propósitos deste texto.

Daniel de Mendonça Entretanto, a mera existência, por si só, não tem a capaci- dade de explicar o próprio ser; este, portanto, não se esgo- ta, não pode ser compreendido tão- somente a partir da sua dimensão realista. Assim, devemos entender que a existên- cia só tem um ser se a mesma estiver imersa numa dimensão simbólica, discursiva. E ela sempre está. Em termos políticos, a dimensão discursiva é polêmica, uma luta simbólica para estabelecer o ser da existência. Um exemplo simples dado por Laclau e Mouffe (1993, pp. 114-15), auxiliará na compre- ensão da relação existência/ser presente no discurso: Voltando agora ao termo “discurso”, o usamos para sublinhar o fato de que toda configuração social é uma configuração significativa. Se chuto um objeto esférico na rua ou se chuto uma bola numa partida de futebol, o fato físico é o mesmo, mas seu significado é diferente. O objeto é uma bola de futebol somente na medida em que ele estabelece um sistema de relações com outros objetos e essas relações não estão dadas pela mera referência material dos objetos, mas que são, pelo contrário, socialmente construídas. Esse conjunto sistemático de relações é o que chamamos discurso. Dessa forma, os objetos têm, além da dimensão real (existência), a dimensão significativa (ser) e ambas são par- tes constituintes e inseparáveis do discurso. O real não é realizável por si, mas prescinde de objetivações discursivas (tentativas de fechamento de sentidos, de fixações con- ceituais). Fora do contexto discursivo, os objetos não têm ser, somente existência (Laclau, 1993). No entanto, como vimos, ainda mais considerando a dimensão política, esses sentidos não são passíveis de ser fechados. A fixação com- pleta de sentidos constantemente nos escapa; está sempre além de nosso alcance. Duas razões fundamentais explicam a inconstância de sentidos, antagonismo e deslocamento. Passamos a analisá-las.

Daniel de Mendonça A mera existência de antagonismos confirma que não há leis necessárias na história e não há agentes políticos universais motivados por interesses e identidades pré- constituídas. Ao invés disso, os antagonismos introduzem experiências sociais, tais como “fracasso”, “negatividade” ou “falta”, as quais não podem ser explicadas por nenhuma lógica de sociedade positiva ou essencialista. Eles revelam também a contingência e a precariedade de toda identidade e objetividade social, uma vez que toda identidade está sempre ameaçada por alguma coisa externa a ela. Considerando que a teoria do discurso parte do pres- suposto de que discursos são constituídos antagonicamente, ou seja, a partir da ameaça real oriunda de outros discur- sos, vejamos mais detidamente ainda a forma como Laclau e Mouffe trabalham o conceito de antagonismo em HSS. Antagonismo é apresentado a partir da sua diferenciação teórico-analítica em relação às noções de “oposição real” ( real opposition ) e “contradição lógica” ( logical contradiction ), apresentadas por Lucio Colletti (1975), num esforço deste autor para iluminar tais categorias kantianas. Assim, segundo a leitura de Laclau e Mouffe (1985), “oposição real” indica que “A – B” são termos diferentes, cujas positividades existem independentemente da relação que porventura eles possam ter entre si. A “oposição real” ocorre no terreno dos objetos reais ( real objects ). Como exemplo, os autores apresentam uma hipotética batida entre dois veículos e afirmam: “é claro que um antagonis- mo não pode ser uma oposição real. Não há nada antagô- nico numa batida entre dois veículos: este é um fato mate- rial que obedece a leis físicas objetivas” (Laclau e Mouffe, 1985, p. 123). Já a ideia de “contradição lógica” é representada pela fórmula “A – não A”. Segundo essa noção, a relação entre dois termos esgota a realidade de ambos. A “contradição

O limite da normatividade na teoria política de Ernesto Laclau lógica” ocorre no terreno das proposições, dos conceitos. Contudo, contradição não redunda em antagonismo, pois “todos nós participamos de uma série de sistemas de crenças mutuamente contraditórios e nenhum antagonismo emer- ge dessas contradições” (Laclau e Mouffe, 1985, p. 124). Laclau e Mouffe, após apresentar a diferença entre “oposição real” e “contradição lógica”, passam a explicar o que tais categorias têm em comum e o que as faz serem completamente diferentes da noção de antagonismo. Nesse sentido, “oposição real” e “contradição lógica” “partilham algo, o fato de serem relações objetivas , entre objetos concei- tuais no segundo caso, e entre objetos reais no primeiro. Mas, em ambos os casos, isso é alguma coisa que os obje- tos já são , a qual faz a relação inteligível” (Laclau e Mouffe, 1985, p. 124; grifos no original ). Em outras palavras, os auto- res afirmam que seja num caso seja no outro, se está diante de positividades, de objetos plenamente construídos, abso- lutamente prontos e inteligíveis. Assim, estamos falando de “relações objetivas”, de “objetos já existentes”, de “identida- des completas” (cf. Laclau e Mouffe, 1985). No caso da relação de antagonismo, o que se propõe é algo completamente diferente. Aqui não se fala mais em “relações objetivas”, em “objetos já existentes”, em “identi- dades completas”, mas do oposto. Antagonismo indica que “a presença do ‘outro’ me impede de ser totalmente eu mes- mo” (Laclau e Mouffe, 1985, p. 125). Isso quer dizer que, quando se está diante de uma situação desse tipo, deve-se pressupor sempre uma relação entre identidades incomple- tas, justamente pelo fato de que a relação estabelecida entre ambas é antagônica. Enquanto que, como vimos, a “opo- sição real” e a “contradição lógica” têm de ser considera- das como sendo relações entre positividades, no antagonis- mo, os limites da própria objetividade são mostrados, pois o “outro” representa o limite dos sentidos alcançados por determinado discurso, o que quer dizer, em última análise,