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Este artigo aborda a nomenclatura de adaptação literária, onde um autor cria uma obra baseada em outra, que pode romper estruturas fundamentais da primeira. O texto discute a adaptação da história do cerco de lisboa para o inglês e a dificuldade de manter a palavra 'não' com a mesma forma em ambos os idiomas. Além disso, o artigo explora a transformação de obras literárias em peças de teatro e filmes, como a adaptação de romeu e julieta para o filme west side story e romeu + julieta. O texto também discute a importância de manter ou alterar determinados elementos da obra original para que a adaptação seja fiel e relevante.
Tipologia: Notas de aula
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ISSN 2176604- Estadual deMaringá
O KITSCH EM ROMEU E JULIETA : LUHRMAN E SHAKESPEARE
Marisa Corrêa Silva
"Adaptação" e "transcriação" são termos-chave para a compreensão da transposição de obras, seja na mesma modalidade, seja para outra. Os dois termos possuem significados diferentes mas, neste texto, referem-se ao mesmo processo artístico. A nomenclatura adaptação é utilizada quando, baseado numa obra original, um autor cria outra que tem liberdade para romper com certas estruturas fundamentais na primeira, independente dessa ruptura ser devida à liberdade criativa do adaptador ou a exigências da censura, como era comum no cinema americano durante a vigência do chamado “código Hays” (1934-1964). Este era uma série de normas de censura que proibia nudez, adultérios, assassinatos, consumo de drogas e outras coisas consideradas “moralmente repugnantes” de serem explícitas na tela. Essas situações poderiam ser discretamente insinuadas, mas jamais mostradas aos olhos do público. Outras eram completamente proibidas, mesmo em insinuações sutis, como miscigenação racial, homossexualismo ou qualquer tipo de ofensa à religião ou aos padres e pastores, que não poderiam ser vilões nem cômicos. O leitor pode imaginar os transtornos que esse código criava para os roteiristas e diretores. Um filme como Má Educação , de Pedro Almodóvar, jamais poderia existir. Mesmo após a extinção da censura, porém, o chamado “cinemão” norteamericano continua evitando mostrar situações passíveis de levar o público a uma rejeição baseada em princípios morais. Na adaptação do best-seller Hannibal , de Thomas Harris, houve uma mudança importante no final. Em vez de mostrar a agente do FBI Clarice Sterling vivendo maritalmente, feliz e apaixonada, com o assassino em série Hannibal “The Cannibal” Lecter, o filme optou por um final menos “escandaloso”, mantendo a situação em aberto, para possíveis e oportunistas continuações. Já a palavra transcriação foi utilizada pelos irmãos Campos e Décio Pignatari para significar o real esforço de traduzir uma obra literária de língua estrangeira. Como os recursos de expressão de duas línguas diferentes jamais coincidem, o tradutor estaria, na verdade, criando uma obra diferente, baseada na primeira e procurando ser fiel não à letra, mas ao espírito desta. Um tradutor do romance A História do Cerco de Lisboa , de José Saramago, para o inglês, precisou lidar com o problema de a palavra
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“não'” ter duas formas em inglês (not e no ), tornando impossível a Raimundo Silva orgulhar-se de não ter mentido quando o assessor vem buscar as provas e pergunta se houve alguma mudança importante. Raimundo responde “Não”, e foi exatamente a introdução do “não” que alterou o sentido do texto original. Em inglês, Raimundo altera para “not” e, indagado se houve mudança, responde “No”, fazendo com que o leitor anglófono fique sem compreender o que houve. Um tradutor que quisesse manter o sentido da passagem teria alterado o monossilábico “não/no” da resposta de Raimundo para algo como “There was not”, o que manteria o sentido do texto original mas soaria pedante ou estranho, ou incaracterístico do protagonista, homem de usar o mínimo possível de palavras. Tais problemas são extremamente comuns no ato da tradução, e ainda mais complexos quando se trata de poesia, cujo ritmo e sonoridade são fundamentais, para além da falta de correspondência de polissemia e de conotações entre vocábulos de cada língua. Imaginemos agora o que é trabalhar não mais dentro de um mesmo meio, utilizando apenas a linguagem, mas trocar de meio, tendo que lançar mão de recursos estranhos ao meio original. Qual era a cor dos olhos de Helena de Tróia? Ao transformar um romance realista em peça de teatro, vale a pena manter o narrador e as longas descrições, fundamentais para o romance? Ao musicar um poema de Carlos Drummond de Andrade, seria apropriado gravá-lo em ritmo de samba? É preciso tomar essas e inúmeras outras decisões ao longo do processo. Quando se transpõe uma obra de um meio para outro, é inevitável distorcer o original de alguma forma. Para os fins deste texto, a transcriação é uma forma de adaptação: afinal, é difícil, na prática, distinguir as fronteiras entre uma e outra. Por exemplo, o filme West Side Story, de Jerome Robbins, é claramente uma adaptação de Romeu e Julieta , mas o filme Romeu + Juliet de Baz Luhrman é uma adaptação ou uma transcriação? Ele mantém o texto original de Shakespeare, "traduzindo-o" para uma época mais contemporânea apenas através da imagem, do movimento de câmara e da trilha sonora. Portanto, para evitar maiores confusões, vamos utilizar o termo "adaptação" como forma genérica, ficando entendido que ele cobre os significados das duas palavras. A diferença entre uma simples representação artística inspirada num tema conhecido e uma adaptação é que a segunda exige um conhecimento mais amplo da obra original. Se Ofélia foi tema de diversos pintores, isso não quer dizer que nenhum deles tenha adaptado Hamlet. A representação da infeliz Ofélia seduz a imaginação criativa do pintor, e isso é tudo. Se o pintor quiser representar a moça com roupas
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transposição do original para cada um desses filmes envolveu processos semelhantes
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de geladeira. Não é o animal, mas uma peça de gesso ou de louça; não tem função nenhuma a desempenhar em cima do eletrodoméstico; não tem valor afetivo, simbólico, financeiro e seu valor estético é questionável: só se pode afirmar que é uma piada com a idéia de “frio”. Idem, um flamingo de louça espetado no meio de um jardim, imitando o flamingo verdadeiro que habitaria o jardim de um aristocrata. O kitsch pressupõe inadequação entre o objeto e seu formato, tamanho, finalidade, material. Assim, vários elementos que compõem o universo shakespeariano aparecerão deslocados, como o outdoor do uísque Próspero (remetendo à Tempestade ), ou as armas de que trataremos adiante. A sequência inicial do filme é antológica, com um aparelho de TV entrando em sintonia sobre um fundo preto e mostrando uma âncora recitando o prólogo, enquanto as imagens piscam atrás dela, imitando noticiários sensacionalistas. O aparelho de TV é vagamente antiquado: é a primeira indicação da estética do filme, que entre outras coisas, utiliza o kitsch de maneira a fazer o espectador atento questionar o deslocamento e o apagamento das origens do universo shakespeariano – e, por extensão, da chamada “alta cultura”. Acabado o prólogo, uma voz, cujo emissor não se vê, repete as primeiras linhas, enquanto tipos gráficos vão sendo projetados na tela, repetindo partes do mesmo texto. A velocidade das palavras projetadas é alta e tudo leva o espectador a uma sensação de vertigem, como se um encantamento estivesse sendo lançado. A seguir, principia a ação quando um grupo de jovens usando tatuagens e camisas berrantes desabotoadas, deixando ver os coldres das armas, chega num posto de gasolina, onde acontecerá o primeiro confronto entre Montéquios e Capuletos. A fala inicial " I'm a pretty piece of flesh " (sou um belo pedaço de carne) é acompanhada da imagem do ator lambendo o próprio mamilo, com a intenção de provocar e chocar os circunstantes. As espadas e floretes são transformadas em armas de fogo cujas marcas são " Sword ", " longsword ", " dagger " e " rapier " (espada, adaga, florete). Aliás, o fato das marcas dos revólveres serem mostradas nitidamente enquanto as vozes dos atores as pronunciam não é só recurso didático: juntamente com as palavras impressas que surgem na tela durante o prólogo, elas remetem ao universo da palavra impressa, ou mais simplesmente ainda ao universo da palavra, a palavra shakespeariana, mas de uma forma inegavelmente kitsch: para que batizar armas de fogo com o nome de armas brancas antigas? Mas o filme joga o tempo todo com o duplo código: a palavra ora como sublime, encantatória, instrumento da Poesia; ora como degradada, tranformada em
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Bardo eram apresentadas na Londres dos Tudors; e o duelo de Tebaldo e Mecúcio se dá nas ruínas de um teatro semi-enterrado na praia; Shakespeare é citado novamente, através do cenário. Essa onipresença é, ao mesmo tempo, uma homenagem à sua influência na cultura ocidental e uma ironia contra uma sociedade que se apropriou dos símbolos dessa cultura para transformá-los em objeto de consumo. Por isso, o teatro está em ruínas e os out-doors e anúncios de revistas estão em ótima forma. A árvore genealógica das famílias é mostrada numa página de revista, com a estátua do Cristo a separá-las na mesma posição em que separa os arranha-céus. Os pais dos jovens são fisicamente parecidos: é como se fossem equivalentes. Já as mães de ambos são notavelmente diferentes. Lady Montéquio, aristocrática e silenciosa, tem um olhar expressivo e sofrido, sugerindo ao espectador toda uma estória anterior de "pobre menina rica" que teria, inclusive, atingido seu único filho. Já Lady Capuleto é mostrada de forma tão caricata quanto a ama de Julieta: sempre aos berros e movendo-se o tempo todo, com o recurso da câmara rápida para acentuar isso. Sua própria beleza é vulgar; ela flerta abertamente com Tebaldo e Páris. Aliás, seu envolvimento com Tebaldo explica perfeitamente a histeria vingativa quando o sobrinho morre. O único momento em que ela surge lenta e grave é quando dá as costas a Julieta no momento em que esta desafia o pai, recusando o casamento com Páris. Trata-se de um simulacro de grande dama, enfeitada e coberta de jóias, mas incapaz de esconder a falta de “qualidades” (educação, refinamento, discrição – mesmo quando tinha casos extraconjugais, a dama devia ser discretíssima) que constituíam o modelo imitado. Frei Lourenço é mostrado como uma espécie de ponte entre o mundo dos tubarões da indústria, suas esposas entediadas, seus acordos políticos (Páris corteja mais Capuleto pai do que a filha) e o mundo dos jovens herdeiros, cheios de uma energia que precisa encontrar vazão; as drogas e a violência são opções naturais. Assim, Frei Lourenço tem uma enorme tatuagem representando uma cruz nas costas, sob a batina, mostrando seu lado anticonvencional; mas dedica-se a promover o casamento entre Romeu e Julieta na esperança de reconciliar as famílias, obtendo uma vitória não somente moral, mas política, como indicam as imagens que acompanham seu pensamento quando resolve casar os jovens. Fotos dos noivos e uma primeira página de jornal mostrando os pais de ambos apertando as mãos sugerem que Frei Lourenço, apesar de bem-intencionado e genuinamente interessado no destino do casal, não deixa de enxergar o quanto essa reconciliação pode significar para si em termos de prestígio. A mídia, como já dissemos, permeia a ação, desde os
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flashes de tele-reportagem, da primeira aparição de Páris (não pessoalmente, mas na capa de uma revista, com o subtítulo "O solteiro do ano"), até à própria sequência do helicóptero de Prince, mostrada como num seriado de TV. A festa a fantasia na mansão dos Capuleto permite uma série de ironias a partir das fantasias: Romeu de cavaleiro medieval estilizado, Julieta de anjo (os puros), sua mãe de Cleópatra, o pai de Marco Antônio (os devassos), Tebaldo de demônio, o pretensioso Páris de astronauta e Mercúcio de drag queen. Aliás, a sexualidade polimorfa de Mercúcio também foi sugerida, embora de forma mais ostensiva, no ballet coreografado por Rudolf Nureyev onde, após uma série de brincadeiras de cunho sexual com a ama de Julieta, Mercucio é beijado na boca por Romeu, que se coloca como viúva num enterro de brincadeira, no momento em que todos pensam que o ferimento mortal feito por Tebaldo era apenas um arranhão. Northrop Frye aborda a questão de forma diferente, colocando o problema no molde elizabetano da amizade masculina que deve se sobrepor ao amor no seu ensaio sobre Romeu e Julieta (1999: 37). Os meios de comunicação falham: a carta registrada urgente não alcança o destinatário, nem o telefone o alcança no parque de trailers, onde o exilado Romeu se refugia após o banimento. Uma versão um pouco mais atual teria que dar conta também das falhas do telefone celular e talvez no e-mail do laptop. Uma das passagens poéticas mais felizes do texto original, o belo trecho no qual Mercucio descreve a Romeu a Rainha Mab, é transformado numa apologia ao LSD, ou ao ecstasy que matiza a primeira visão que Romeu terá de Julieta. Isso dá o que pensar: o ecstasy é a droga que detona sensações descritas como “estar apaixonado”. O encontro de Romeu, sedento por estar sob efeito do ecstasy, com Julieta, insinua-se, também é um simulacro: o da paixão arrebatadora e pura tornada efeito de uma droga. O fecho, com a âncora repetindo as palavras finais e a TV saindo de sintonia, seguido pela sequência da retirada dos corpos, a reprovação de Prince e o encontro perplexo dos pais dos jovens à guisa de epílogo, alterando a ordem original da peça, também segue uma convenção utilizada principalmente em narrativas cinematográficas e televisivas, bem como na estratégia de certos comerciais de TV: após a apresentação da "mensagem principal", a diegese (ou a persuasão) encerrada, surgem mais fragmentos de ação como uma espécie de "brinde" ao espectador, assegurando o prosseguimento lógico da ação, sem maiores surpresas.