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Guias e Dicas
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A Natureza dos Tiranos, Notas de estudo de Direito

Este texto discute as características e consequências de ter um tirano no poder, utilizando a metáfora do fogo para descrever a maneira como eles acumulam poder e destruem as coisas ao seu redor. O autor também discute os diferentes tipos de tiranos e os efeitos que eles têm sobre as pessoas e as sociedades. Além disso, ele reflete sobre a natureza humana e a forma como as pessoas se relacionam umas com as outras.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Rafael86
Rafael86 🇧🇷

4.6

(197)

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O Discurso da Servidão Voluntária ou O Contra Um
Etienne de la Boétie
Em ter vários senhores nenhum bem sei, Que um seja o senhor, e que um só seja o rei.
Dizia Ulisses em Homero, falando em público. Se nada mais tivesse dito, senão: Em ter
vários senhores nenhum bem sei, estaria tão bem dito que bastaria; mas se para raciocinar
precisava dizer que a dominação de vários não podia ser boa, pois o poderio de um só é duro
e insensato tão logo tome o título de senhor, em vez disso foi acrescentar a contrário:
Que um só seja o senhor, e que um só seja o rei.
Talvez fosse preciso desculpar Ulisses, que possivelmente precisava então de usar essa
linguagem para acalmar a revolta do exército, conformando, creio eu, suas palavras mais ao
tempo do à verdade. Mas para falar com conhecimento de causa, é um extremo infortúnio
estar-se sujeito a um senhor, o qual nunca se pode se certificar de que seja bom, pois sempre
está em seu poderio ser mau quando quiser; e em ter vários senhores, quantos se tiver quantas
vezes se é extremamente infeliz. Se por hora não quero debater essa questão tão tormentosa –
se as outras formas de república são melhores do que a monarquia - gostaria ainda de saber
antes de pôr em dúvida a posição que a monarquia deve ter entre as repúblicas, se ela deve ter
alguma, pois é difícil acreditar que haja algo público nesse governo onde tudo é de um. Mas
tal questão está reservada para um outro tempo e exigiria um tratado à parte, ou melhor,
acarretaria por si mesma todas as disputas políticas.
Por hora gostaria apenas de entender como pode ser que tantos homens, tantos burgos,
tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que
eles lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto têm vontade de suportá-lo,
que não poderia fazer-lhes mal algum senão quando preferem tolerá-lo a contradize-lo. Coisa
extraordinária, por certo; e porém tão comum que se deve mais lastimar-se do que espantar-se
ao ver um milhão de homens servir miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não obrigados
por uma força maior, mas de algum modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados apenas
pelo nome de um, de quem não devem temer o poderio pois ele é só, nem amar as qualidades
pois é desumano e feroz para com eles. Entre nós, homens, a fraqueza é tal que
freqüentemente precisamos obedecer à força; há necessidade de contemporizar, nem sempre
podemos ser os mais fortes. Portanto, se uma nação é obrigada pela força da guerra a servir a
um, como a cidade de Atenas aos trinta tiranos, não é de se espantar que ela sirva, mas de se
lamentar o acidente; ou melhor, nem espantar-se nem lamentar-se e sim carregar o mal
pacientemente e reservar-se para melhor fortuna no futuro.
Nossa natureza é de tal modo feita que os deveres comuns da amizade levam uma boa
parte do curso de nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o
bem de onde o recebemos, e muitas vezes diminuir nosso bem-estar para aumentar a honra e a
vantagem daquele que se ama e que o merece. Em conseqüência, se os habitantes de um país
encontraram algum grande personagem que lhes tenha dado provas de grande previdência
para protegê-los, grande audácia para defendê-los, grande cuidado para governá-los, se
doravante cativam-se em obedecê-lo e se fiam tanto nisso a ponto de lhe dar algumas
vantagens, não sei se seria sábio tirá-lo de onde fazia o bem para colocá-lo num lugar onde
poderá malfazer; mas certamente não poderia .deixar de haver bondade em não temer o mal
de quem só se recebeu o bem.
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O Discurso da Servidão Voluntária ou O Contra Um

Etienne de la Boétie Em ter vários senhores nenhum bem sei, Que um seja o senhor, e que um só seja o rei. Dizia Ulisses em Homero, falando em público. Se nada mais tivesse dito, senão: Em ter vários senhores nenhum bem sei, estaria tão bem dito que bastaria; mas se para raciocinar precisava dizer que a dominação de vários não podia ser boa, pois o poderio de um só é duro e insensato tão logo tome o título de senhor, em vez disso foi acrescentar a contrário: Que um só seja o senhor, e que um só seja o rei. Talvez fosse preciso desculpar Ulisses, que possivelmente precisava então de usar essa linguagem para acalmar a revolta do exército, conformando, creio eu, suas palavras mais ao tempo do à verdade. Mas para falar com conhecimento de causa, é um extremo infortúnio estar se sujeito a um senhor, o qual nunca se pode se certificar de que seja bom, pois sempre está em seu poderio ser mau quando quiser; e em ter vários senhores, quantos se tiver quantas vezes se é extremamente infeliz. Se por hora não quero debater essa questão tão tormentosa – se as outras formas de república são melhores do que a monarquia gostaria ainda de saber antes de pôr em dúvida a posição que a monarquia deve ter entre as repúblicas, se ela deve ter alguma, pois é difícil acreditar que haja algo público nesse governo onde tudo é de um. Mas tal questão está reservada para um outro tempo e exigiria um tratado à parte, ou melhor, acarretaria por si mesma todas as disputas políticas. Por hora gostaria apenas de entender como pode ser que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, que não tem o poder de prejudicá los senão enquanto têm vontade de suportá lo, que não poderia fazer lhes mal algum senão quando preferem tolerá lo a contradize lo. Coisa extraordinária, por certo; e porém tão comum que se deve mais lastimar se do que espantar se ao ver um milhão de homens servir miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não obrigados por uma força maior, mas de algum modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um, de quem não devem temer o poderio pois ele é só, nem amar as qualidades pois é desumano e feroz para com eles. Entre nós, homens, a fraqueza é tal que freqüentemente precisamos obedecer à força; há necessidade de contemporizar, nem sempre podemos ser os mais fortes. Portanto, se uma nação é obrigada pela força da guerra a servir a um, como a cidade de Atenas aos trinta tiranos, não é de se espantar que ela sirva, mas de se lamentar o acidente; ou melhor, nem espantar se nem lamentar se e sim carregar o mal pacientemente e reservar se para melhor fortuna no futuro. Nossa natureza é de tal modo feita que os deveres comuns da amizade levam uma boa parte do curso de nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o bem de onde o recebemos, e muitas vezes diminuir nosso bem estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que o merece. Em conseqüência, se os habitantes de um país encontraram algum grande personagem que lhes tenha dado provas de grande previdência para protegê los, grande audácia para defendê los, grande cuidado para governá los, se doravante cativam se em obedecê lo e se fiam tanto nisso a ponto de lhe dar algumas vantagens, não sei se seria sábio tirá lo de onde fazia o bem para colocá lo num lugar onde poderá malfazer; mas certamente não poderia .deixar de haver bondade em não temer o mal de quem só se recebeu o bem.

Mas, ó Deus, o que pode ser isso? Como diremos que isso se chama? Que infortúnio é esse? Que vício, ou antes, que vício infeliz ver um número infinito de pessoas não obedecer mas servir, não serem governadas mas tiranizadas, não tendo nem bens, nem parentes, mulheres nem crianças, nem sua própria vida que lhes pertença; aturando os roubos, os deboches, as crueldades, não de um exército, de um campo bárbaro contra o qual seria preciso despender seu sangue e sua vida futura, mas de um só; não de um Hércules nem de um Sansão, mas de um só homenzinho, no mais das vezes o mais covarde e feminino da nação, não acostumado à pólvora das batalhas mas com muito custo à areia dos torneios, incapaz de comandar os homens pela força mas acanhado para servir vilmente à menor mulherzinha. Chamaremos isso de covardia? Diremos que os que servem são covardes é moídos? É estranho, porém possível, que dois, três, quatro não se defendam de um; poder se á então dizer, com razão, que é falta de fibra. Mas se cem, mil homens agüentam um só, não se diria que não querem, que não ousam atacá lo, e que não se trata de covardia e sim de desprezo ou desdém? Se não vemos cem, mil homens, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens não atacarem um só, de quem o mais bem tratado de todos recebe esse mal de ser servo e escravo , como poderemos nomear isso? Será covardia? Ora, naturalmente em todos os vícios há algum limite além do qual não podem passar; dois podem temer um e talvez dez; mas mil, um milhão, mil cidades, se não se defendem de um, não é covardia, que não chega a isso, assim como a valentia não chega a que um só escale uma fortaleza, ataque um exército, conquiste um reino. Então, que monstro de vício é esse que ainda não merece o título de covardia, que não encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega se ter feito, e á língua se recusa nomear? Que se ponham cinqüenta mil homens em armas de um lado, outro tanto de outro, que sejam alinhados em posição de combate, que acabem encontrando se, uns livres combatendo por sua franquia, os outros para tirá la deles: a quem por conjectura será prometida a vitória, quem se pensará que vai mais galhardamente à luta, os que esperam como recompensa de suas penas a manutenção de sua liberdade ou os que não podem esperar outro salário dos golpes que dão ou que recebem senão a servidão de outrem? Uns têm sempre diante dos olhos a felicidade da vida passada, a espera de alegria semelhante no futuro; não se lembram tanto desse pouco que suportam enquanto dura uma batalha, mas do que lhes será conveniente suportar para sempre, eles, seus filhos e toda a posteridade; os outros nada têm que os encoraje senão uma pontinha de cupidez, que de repente some diante do perigo e que ao que parece não pode ser tão ardente a ponto de apagar se à menor gota de sangue que saia de suas feridas. Nas tão famosas batalhas de Milcíades, de Leônidas, de Temístocles, que ocorreram há dois mil anos e que ainda hoje estão tão frescas na memória dos livros e dos homens como se fosse ontem, que ocorreram na Grécia para o bem dos Gregos e exemplo para o mundo inteiro o que pensar que deu a tão pouca gente, como eram os Gregos, não o poder, mas a fibra para sustentar a força de tantos navios que o próprio mar estava carregado, para derrotar tantas e tão numerosas nações que o esquadrão dos Gregos não teria bastado se fossem precisos capitães aos exércitos dos inimigos, senão que, ao que parece, naqueles dias gloriosos, não se tratava da batalha dos Gregos contra os Persas mas da vitória da liberdade sobre a dominação, da franquia sobre a cobiça? É estranho ouvir falar da bravura que a liberdade põe no coração daqueles que a defendem; mas o que, em todos os países, em todos os homens, todos os dias, faz com que um homem trate cem mil como cachorros e os prive de sua liberdade? Quem acreditaria nisso se em vez de ver apenas ouvisse dizer? E se se dissesse que isso só ocorria em países estranhos e terras longínquas, quem não pensaria que era inventado e achado e não verdadeiro? No entanto, não é preciso combater esse único tirano, não é preciso anulá lo; ele se anula por si mesmo, contanto que o país não consinta a sua servidão; não se deve tirar Ihe coisa alguma, e sim nada lhe dar; não é preciso que o país se esforce a fazer algo para si, contanto que nada faça contra si. Portanto são os próprios povos que se fazem dominar, pois cessando de servir estariam quites; é o povo que se sujeita, que se degola, que, tendo a escolha entre ser servo ou ser livre, abandona sua franquia e aceita o jugo; que consente seu mal melhor dizendo, persegue o. Eu não o exortaria se recobrar sua liberdade lhe custasse alguma coisa; como o homem pode ter algo mais caro e restabelecer se em seu direito natural e, por assim dizer, de bicho voltar a ser homem? Mas ainda não desejo nele tamanha audácia, permito lhe que prefira não sei que segurança de viver miseravelmente a uma duvidosa esperança de viver à sua vontade. Que! Se para ter liberdade basta desejá la, se basta um simples querer, haverá nação no mundo que ainda a estime cara demais, podendo ganhá la com uma única aspiração, e que lastime sua vontade para recobrar o bem que deveria resgatar com seu sangue o qual, uma vez perdido, toda a gente honrada, deve estimar a vida desprezível e a morte salutar? Como o fogo de uma pequena chama torna se grande e sempre cresce, e quanto mais lenha encontra mais está disposto a queimar; e sem que se jogue água para apagá lo, é só não pôr mais lenha que ele, não tendo mais o que consumir, consome se a si mesmo e vem sem força alguma, e não mais fogo assim também, por certo, os tiranos quanto mais pilham mais exigem, quanto mais arruinam e destroem, mais se lhes dá, quanto mais são servidos, mais se fortalecem, e se tornam cada vez mais fortes e dispostos a tudo aniquilar e destruir; e se nada se lhes dá, se não se lhes obedece, sem lutar, sem golpear, ficam nus e desfeitos, e não são mais nada, como o galho se torna seco e morto quando a raiz não tem mais humor ou alimento. Para adquirir o bem que querem, os audaciosos não temem o perigo, os avisados não rejeitam a dor; os covardes e embotados não sabem suportar o mal nem recobrar a bem, limitam se a aspirá los, e a virtude de sua pretensão lhes é tirada por sua covardia; por natureza fica lhes o desejo de obtê lo. Esse desejo, essa vontade de aspirar a todas as coisas que, uma vez adquiridas, os tornariam felizes e contentes, é comum aos sensatos e aos indiscretos, aos corajosos e aos covardes. Resta dizer uma única coisa, a qual não sei como falece natureza aos homens para desejá la. É a liberdade, todavia um bem tão grande e tão aprazível que, uma vez perdido, todos as males seguem de enfiada; e os próprios bens que ficam depois dela perdem inteiramente seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão. Só a liberdade os homens não desejam; ao que parece não há outra razão senão que, se a desejassem, tê la iam; como se se recusassem a fazer essa; bela aquisição porque ela é demasiado fácil. Pobres e miseráveis povos insensatos, nações obstinadas em vosso mal e cegas ao vosso bem! Deixais levar, à vossa frente, o mais belo e o mais claro de vossa renda, pilhar vossos campos, roubar vossas casas e despojá las dos móveis antigos e paternos; viveis de tal modo que não podeis vos gabar de que algo seja vosso; e pareceria ser agora uma grande fortuna para vós conservar a meias vossos bens, vossas famílias e vossas vidas vis; e todo esse estrago, esse infortúnio, essa ruína vos advém não dos inimigos mas sim, por certo, do inimigo, e daquele que engrandeceis, por quem ides tão valorosamente à guerra, para a grandeza de quem não vos recusais a apresentar vossas pessoas à morte. Aquele que vos

da tirania sugam a natureza do tirano com o leite, e agem com os povos a eles submetidos coma com seus servos hereditários; e segundo a compleição a que estão mais inclinados, são avaros ou pródigos, tratando o reino como à sua herança. Parece me que aquele a quem o povo deu o estado deveria ser mais suportável e creio que o seria; mas assim que se vê elevado acima dos outros, lisonjeado como um não sei quê que chamam de grandeza, decide não sair mais comumente ele age para passar a seus filhos o poderio que o povo lhe outorgou; e desde que adotaram essa opinião, é estranho ramo superam os outros tiranos em vícios de todo tipo e até em crueldade, não vendo outro meio de garantir a nova tirania senão estreitando bastante a servidão e afastando tanto seus súditos da liberdade que, embora sua lembrança seja fresca, possam fazer com que a percam. Assim, para dizer a verdade, vejo que existe entre eles alguma diferença; mas escolha nenhuma vejo; pois se diversos são as meios de aos reinados chegar, quase sempre semelhante é maneira de reinar. Os eleitos as tratam como se tivessem pegado touros para domar; os conquistadores os consideram presa sua; os sucessores pensam tratá los como seus escravos naturais. A propósito, se porventura nascesse hoje alguma gente novinha, nem acostumada à sujeição nem atraída pela liberdade, que de uma e de outra nem mesmo o nome soubesse, se lhes propusessem ser servos ou viver livres, com que leis concordaria? Não há dúvida de que prefeririam somente à razão obedecer do que a um homem servir; a menos que fosse coma a de Israel que, sem coerção e nenhuma precisão, deu a si mesma um tirano. Povo cuja história nunca leio sem enorme indignação, a ponto de quase tornar me desumano, por rejubilar me com tantos males que lhe sucederam. Mas certamente para que todos os homens, enquanto têm algo de homem, deixem se sujeitar, é preciso um dos dois: que sejam forçados ou iludidos. Forçados pelas armas estrangeiras, como Esparta ou Atenas pelas forças de Alexandre; ou pelas facções, como havia se tornado a Senhoria de Atenas nas mãos de Pisístrato. Por ilusão, eles muitas vezes perdem a liberdade; mas nisso não são enganados por outrem com a freqüência com que são iludidos por si mesmos. Como o povo de Siracusa, principal cidade da Sicília (dizem me que hoje se chama Saragoça), que, na iminência de guerras, reparando irrefletidamente apenas no perigo presente, elevou a tirano Dionísio Primeiro e encarregou o de conduzir o exército; e não atinou que o havia engrandecido tanto que quando esse patife voltou vitorioso, fez se de capitão rei, e de rei tirano, como se não tivesse vencido seus inimigos mas seus cidadãos. É incrível como o povo, quando se sujeita, de repente cai no esquecimento da franquia tanto e tão profundamente que não lhe é possível acordar para recobrá la, servindo tão francamente e de tão bom grado que ao considerá lo dir se ia que não perdeu sua liberdade e sim ganhou sua servidão. É verdade que no início serve se obrigado e vencido pela força; mas os que vêm depois servem sem pesar e fazem de bom grado o que seus antecessores haviam feito por imposição. Desse modo os homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam se em viver como nasceram; e como não pensam ter outro bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural a condição de seu nascimento. E no entanto não há herdeiro tão pródigo e despreocupado que às vezes não corra os olhos nos registros de seu pai para ver se goza de todos os direitos de sua herança ou se não o usurparam ou a seu predecessor. Mas o costume, que por certo tem em todas as coisas um grande poder sobre nós, não possui em lugar nenhum virtude tão grande quanto a seguinte: ensinar nos a servir e como se diz de Mitridates que se habituou a tomar veneno para que aprendamos a engolir e não achar amarga a peçonha da servidão. Não se pode negar que a natureza tem em nós parte bastante para puxar nos para onde quer e nos reconhecer bem ou mal nascidos; porém, maldita seja a natureza se se deve confessar que ela tem em nós menos poder do que o costume pois por melhor que seja, o natural se perde se não é cultivado e que o alimento sempre nos conforma à sua maneira. As sementes do bem que a natureza põe em nós são tão miúdas e escorregadias que não podem suportar o menor choque do alimento contrário: abastardam se mais facilmente do que se mantêm, dissolvem se e se anulam tanto quanto as árvores frutíferas que têm um natural próprio que conservam se as deixam crescer, mas logo abandonam para dar outros frutos estranhos e não os seus próprios se as enxertam. Cada erva tem sua propriedade, seu natural e singularidade; todavia o gelo, o tempo, a terra ou a mão do jardineiro nela aumentam ou diminuem muito de sua virtude: a planta que se viu num lugar, noutros não se consegue reconhecer. Quem visse os Venezianos punhado de gente vivendo tão livremente que o pior deles não almejaria ser o rei de todos, nascidos e criados de tal modo que não reconhecem nenhuma ambição senão a de serem os melhores para vigiar e mais cuidadosamente tomar conta do mantimento da liberdade; de tal modo ensinados e formados desde o berço que não aceitariam todas as outras alegrias da terra para perder a menor parcela de sua franquia quem tivesse visto, digo, esses personagens e de lá fosse para as terras daquele que chamamos grão senhor, ao ver ali gente que só quer ter nascido para servi lo e que para manter seu poderio abandona a vida, pensaria que estes e os outros têm um mesmo natural ou, em vez, estimaria que, tendo saído de uma cidade de homens, entrara num parque de bichos? Dizem que Licurgo, o governante de Esparta, criara dois cães irmãos, ambos amamentados com o mesmo leite, um engordado na cozinha, o outro acostumado pelos campos ao som da trompa e do cornetim, querendo mostrar ao povo lacedemônio que os homens são como a criação os faz, pôs os dois cães no meio do mercado e entre eles uma sopa e uma lebre; um correu para o prato e o outro para a lebre embora, diz ele, fossem irmãos. Portanto, com suas leis e seu governo, ele criou e formou tão bem os Lacedemônios que cada um deles preferiria morrer mil mortes a reconhecer outro senhor que a lei e a razão. Tenho prazer ao relembrar as palavras que outrora disseram um dos favoritos de Xemes, o grande rei dos Persas, e dois Lacedemônios. Quando Xerxes aparelhava seu grande exército para conquistar a Grécia, enviou seus embaixadores às cidades gregas pedindo água e terra: era a maneira que os Persas tinham de intimar as cidades à rendição. Não enviou a Atenas nem a Esparta porque os que seu pai Dario enviara, os Atenienses e Espartanos haviam lançado nos fossos uns, nos poços os outros, dizendo lhes que valentemente pegassem ali água e terra para levar a seu príncipe; essa gente não podia suportar que sequer através da fala se tocasse em sua liberdade. Por terem agido assim, os Espartanos souberam que haviam incorrido na ira dos deuses, até de Taltibio, o deus dos arautos; e para apaziguá los ousaram enviar a Xemes dois de seus cidadãos para que a ele se apresentassem e que fizesse deles o que quisesse, sendo assim recompensado pelos embaixadores de seu pai que haviam matado. Dois Espartanos, um chamado Espértias e o outro Búlis, ofereceram se para ir fazer tal pagamento; de fato foram e, a caminho, chegaram ao palácio de um Persa que se chamava Hidames e era administrador do rei para todas as cidades da Ásia que se encontram à beira mar. Este os recebeu com honrarias e grande amabilidade; e após várias palavras, uma puxando a outra, perguntou lhes por que recusavam tanto a amizade do rei. Vede, Espartanos, disse ele, e através de. mim reconhecei como o rei sabe honrar os que o defendem e pensai que se dele dependêsseis faria o mesmo convosco; se dele dependêsseis e se ele vos tivesse conhecido, não há dentre vós quem não seria senhor de uma cidade da Grécia. Quanto a isso, Hidarnes, não poderias dar nos bom conselho, disseram os Lacedemônios, pois tentaste o bem que nos prometes; mas aquele que gozamos, não sabes o que é; conheceste o Lavor do rei;

mas da uberdade nada sabes que gosto tem, como é doce. Ora, se dela tivesses provado, tu mesmo nos aconselharias a defendê la, não com a lança e o escudo mas com unhas e dentes. Só o Espartano dizia o que era preciso dizer; mas certamente ambos falavam como haviam sido criados. Pois não era possível que o Persa lamentasse a liberdade, não a tendo tido nunca, nem que o Lacedemônio suportasse a sujeição, tendo provado da franquia. Quando Catão, o uticano, ainda criança e debaixo de vara, com freqüência ia e vinha em casa do ditador Sila, jamais lhe fechavam a porta, em razão do lugar e da casa de onde procedia, como também porque eram parentes próximos. Seu mestre sempre o acompanhava quando lá ia, como estão acostumadas as crianças de família ilustre. Observou que em casa de Sila, em sua presença ou por ordem sua, prendiam se uns, condenavam se outros, um era banido, outro estrangulado, um pedia o confisco de um cidadão, outro a cabeça: em suma, tudo se passava ali como se fosse não a casa de um oficial de cidade, mas de um tirano de povo; .e não era um tribunal de justiça, mas uma oficina de tirania. Disse então a seu mestre o jovem rapaz: por que não me dais um punhal? Eu o esconderei sob minha toga; entro com freqüência no quarto de Sila antes dele se levantar; tenho o braço bastante forte para livrar a cidade dele. Eis aí com certeza uma fala de Catão: era o começo desse personagem digno de sua morte. E, no entanto, que não se diga seu nome nem seu país, que se conte apenas o fato como é a coisa falará por si; e se adivinhará que era Romano, nascido em Roma, quando esta era livre. Por que tudo isto? Por certo não porque eu estime que o país e a terra queiram dizer alguma coisa; pois em todas as regiões, em todos os ares, amarga é a sujeição e aprazível ser livre; mas porque em meu entender deve se ter piedade daqueles que ao nascer viram se com o jugo no pescoço; ou então que sejam desculpados, que sejam perdoados, pois não tendo visto da liberdade sequer a sombra e dela não estando avisados, não percebem que ser escravos lhes é um mal. Como diz Homero dos Cimérios, se houvesse algum país onde o sol se mostrasse de outro modo que a nós e depois de tê los iluminado por seis meses seguidos os deixasse dormentes na escuridão sem vir revê los o outro meio ano seria de se espantar se os que tivessem nascido durante a longa noite não tivessem ouvido falar da claridade, se não tendo visto dias se acostumassem às trevas em que nasceram sem desejar a luz? Nunca se lamenta o que nunca se teve e o pesar só vem depois do prazer; e com o conhecimento do mal sempre está a lembrança da alegria que passou. A natureza do homem é mesmo de ser franco e querer sê lo; mas, também sua natureza é tal que naturalmente ele conserva a feição que a educação lhe dá. Portanto, digamos então que ao homem todas as coisas lhe são como que naturais; nelas se cria e acostuma; mas só ele é ingênuo a isso a que o chama sua natureza simples e inalterada; assim, a primeira razão da servidão voluntária é o costume como os mais bravos courtaus (*)^ que no início mordem o freio e depois descuram; e onde outrora escoiceavam contra a sela, agora se ostentam nos arreios e soberbos pavoneiam se sob a barda. Eles dizem que sempre foram súditos, que seus pais viveram assim; pensam que são obrigados a suportar o mal, convencem se com exemplos e ao longo do tempo eles mesmos fundam a posse dos que os tiranizam; mas como em verdade os anos nunca dão o direito de malfazer, aumentam a injúria. Sempre se encontra alguns mais bem nascidos que sentem o pesa do jugo, e não podem se impedir de sacudi lo, que jamais se acostumam com a sujeição e que sempre, carro Ulisses que por mar e terra sempre procurava ver a fumaça de sua casa não podem se impedir se atentar para seus privilégios naturais e de se lembrar de seus predecessores bem como de seu primeiro ser. De bom grado são estes que, tendo entendimento nítido e espírito clarividente, não se contentam, como a grande populaça, em olhar o que está diante dos pés se não divisam atrás e na frente e só rememoram ainda as coisas passadas para julgar as do tempo vindouro e para medir as presentes; são estes que, tenda a cabeça por si mesmos bem feita, ainda a poliram com o estudo e o saber. Estes, mesmo que a liberdade estivesse inteiramente perdida e de todo fora do mundo, a imaginam e a sentem em seu espírito, e ainda a saboreiam; e a servidão não é de seu gosto por mais que esteja vestida. O grão turco percebeu bem isto: que os livros e a doutrina dão aos homens, mais que qualquer outra coisa, o sentido e o entendimento para se reconhecerem e odiar a tirania; averiguo que em suas terras ele não tem sábios, nem os quer. Ora, comumente, ficam sem efeito a bom zelo e afeição dos que apesar do tampa conservaram a devoção à franquia, por mais numerosos que sejam, porque não se conhecem; sob o tirano, é lhes tirada toda a liberdade de fazer, de falar, e quase de pensar: todos se tornam singulares em suas fantasias. Portanto, Momo, o deus zombeteiro, não zombou demais quando censurou o homem que Vulcano fizera por não ter lhe posto uma janelinha no coração para que por aí se pudesse ver seus pensamentos. Fizeram questão de dizer que Bruto, Cássia e Casco, quando empreenderam a libertação de Roma, ou melhor, de todo o mundo, não quiseram que Cícero esse grande defensor do bem público, se já houve algum tomasse parte e estimaram seu coração fraco demais para um feito tão elevado; confiavam muito em sua vontade mas não estavam certos de sua coragem. E, todavia, quem quiser percorrer os feitas do passado e os anais antigos encontrará poucos ou nenhum dos que, vendo seu país maltratado e em más mãos, tendo decidido com boa intenção, íntegra e não dissimulada, libertá lo, não tenham conseguido; e a quem a própria liberdade, para se tornar visível, não tenha ombreado. Como Harmódio, Aristogitão, Trasíbulo, Bruto, o velho, Valério e Dion porque pensaram virtuosamente, afortunadamente executaram; nesses casos, a bom querer fortuna quase nunca falha. Bruto, o jovem, e Cássia eliminaram, com muito êxito a servidão; mas reconduzindo a liberdade, morreram não miseravelmente (pois que blasfêmia dizer que houve algo miserável nessa gente, em sua vida e em sua morte!) mas com certeza para grande prejuízo perpétuo infortúnio e total ruína da república que, ao que parece, foi enterrada com eles. As outras empresas que mais tarde foram feitas contra os imperadores romanos não passavam de conjuraçõesde gente ambiciosa, à qual não se deve lamentar os inconvenientes que lhe sucederam, pois salta aos alhos que desejavam não eliminar mas mudar a coroa, que pretendiam banir o tirano e reter a tirania. Estes, eu mesmo não gostaria que fossem bem sucedidos e estou contente de que, através de seu exemplo, tenham mostrado que não se deve abusar do santo nome da liberdade para má empresa.Mas voltando às nossas palavras, das quais quase me perdera: a primeira razão por que os homens servem de bom grado é que nascem servos e são criados como tais. Desta decorre uma outra: que sob os tiranos as pessoas facilmente se tornam covardes e efeminadas. Disso sei maravilhosamente graças a Hipócrates, o avô da medicina, que esteve atento e assim. o disse erre um dos livros que estabelece das doenças. Esse pesonagem. certamente tinha um coração de todo bom e a demonstrou bem quando o grande rei quis atraí lo para junto de si à força de ofertas e grandes presentes: respondeu lhe francamente que teria escrúpulos em meter se a curar os bárbaros que queriam matar os Gregos e bem servir com sua arte àquele que da Grécia queria se servir. A carta que lhe enviou pode ser vista ainda hoje entre suas outras obras e testemunhará para sempre seu bom coração e sua nobre natureza. Ora, é certo, portanto, que com a liberdade se perde de uma só vez a valentia. A gente subjugada não tem júbilo nem furor no combate: parte para o perigo quase como que amarrada, toda por demais embotada, e não sente ferver em seu

não saberem que senhor tinham nem a muito custo se tinham, e todos temiam acreditando em um que ninguém jamais vira. Os primeiros reis da Egito só se mostravam portando ora um gato, ora um ramo, ora fogo sobre a cabeça, e desse modo mascaravam se e fingiam se de mágicos. E assim, pela estranheza da coisa, suscitavam em seus súditos alguma reverência e admiração; mas, no meu entender, teriam apenas se prestado ao passatempo e à troça na gente que não tivesse sido tola ou sujeita demais. Dá pena ouvir falar de quantas coisas os tiranos do passado utilizavam para fundar sua tirania, de quantas mesquinharias se serviam, encontrando essa populaça sempre às ordens, e que vinha cair na rede mesmo quando mal soubessem armá la; que sempre enganaram tão facilmente, a ponto de nunca tê la sujeitado tanto como quando mais zombavam dela. O que direi de um outro belo conto em que caíram os povos antigos? Acreditaram piamente que a dedão de Pirro, rei dos Epirotas, fazia milagres e curava os doentes das vísceras; enriqueceram ainda mais o conto: que depois de terem queimado o corpo morto todo o dedo achava se entre as cinzas, salvo apesar do fogo. O próprio povo tolo sempre faz as mentiras para depois acreditar nelas; muita gente assim escreveu, mas salta aos alhos que reuniu isso a partir dos rumores de cidade e do falatório da populaça. Vespasiano fez maravilhas ao voltar da Assíria e passar por Alexandria para ir a Roma apoderar se da império: endireitava os coxos, tornava clarividentes as cegos e muitas outras belezas cujo logro quem não conseguia enxergar era, em meu entender, mais cego que aqueles a quem curava. Os próprios tiranos achavam bem estranho que os homens pudessem suportar um homem fazendo lhes mal; queriam muito pôr a religião na frente, como anteparo, e se possível, tomar emprestada alguma amostra da divindade para o mantimento de sua miserável vida. Entre eles Salmoneu se se acredita na sibila de Virgílio em seu inferno que, por ter zombado assim das pessoas e por ter querido fazer se de Júpiter, agora presta contas e ela o vê no fundo do inferno: Vi Salmoneu que sofreu cruel castigo, .enquanto imitava as chamas de Júpiter e o ruído do Olimpo. Levado por quatro cavalos e agitando o archote, atravessava, em triunfo, os povos gregos e a cidade de Elide, reclamando honras divinas. Louco! Acreditava que com o tropear dos cascos dos cavalos conseguiria imitar a tempestade e o raio inimitável. O Pai onipotente, porém, atirou lhe, de dentre as nuvens espessas, não um archote, não um facho, mas um raio e o precipitou em um horrendo turbilhão. (*) Se este que apenas se fazia de tolo está sendo agora tão bem tratado lá embaixo, creio que os que abusaram da religião para serem maus achar se ão em situação ainda melhor. Os nossos semearam na França algo parecido: sapos, flores de lis, a âmbula e a auriflama; o que de minha parte, como sói acontecer, não quero descrer, pois até agora nem nós nem nossos antepassados tivemos ocasião para suspeitar, pois sempre tivemos reis tão bons na paz e tão intrépidos na guerra que, embora nasçam reis, parece que não foram feitos como os outros pela natureza mas escolhidos antes do nascer pelo deus todo poderoso para o governo e proteção do reino. E ainda que assim não fosse, não gostaria de entrar na liça por causa disso para discutir a verdade de nossas histórias nem descascá las tão intimamente, para não tolher esse belo jogo onde nossa poesia francesa poderá esgrimir se bem, agora não mais costurada mas, ao que parece, renovada por nosso Ronsard, nosso Baif, nosso du Bellay, adiantando tanto a nossa língua que, ouso esperar, em breve diante de nós os Gregos e os Latinos talvez só tenham o direito de primogenitura. E com certeza eu prejudicaria muito nossa rima (com prazer uso essa palavra e ela não me desagrada; pois, embora vários a tivessem tornado mecânica, vejo contudo bastante gente capaz de enobrecê la novamente e restituir lhe sua glória primeira), digo: eu a prejudicaria muito se agora dela suprimisse as belos contos do rei Clóvis, nos quais parece me que já vejo quão prazerosamente, quão à vontade alegrar se á a veia de nosso Ronsard em sua Franciade. Sou atento ao seu alcance, conheço o espírito agudo, sei da graça do homem; ele usará a auriflama como os Romanos suas ancilas. E os escudos atirados do céu, diz Virgílio. Cuidará tão bem de nossa Âmbula como os Atenienses do cesto de Erictônio. Fará falar de nossas armas como eles de sua oliva, que afirmam encontrar se ainda na torre deMinerva. Eu seria por certo ultrajante em querer desmentir nossos livros e correr tanto nos cursos de nossos Poetas. Mas voltando aonde não sei coma tinha desviado o fio de minhas palavras: nunca houve como os tiranos que, a fim de se manterem, se esforçam para acostumar o povo a eles não só por obediência e servidão, mas também por devoção. 0 que eu disse até aqui quanto ao que ensina a gente a servir mais voluntariamente só serve então aos tiranos para o povo miúdo e grosseiro. Mas agora chego a um ponto que em meu entender é a força e o segredo da dominação, a apoio e fundamento da tirania. No meu juízo, muito se engana quem pensa que as alabardas, os guardas e a disposição das sentinelas protegem as tiranos. Creio que a eles recorrem mais como formalidade e espantalho do que por confiança. Os arqueiros proíbem a entrada do palácio aos mal vestidos que não têm meios, não aos bem armados que podem fazer alguma empresa. Certamente é fácil contar que entre as imperadores romanos não foram tantos os que conseguiram escapar de algum perigo graças a seus guardas quanto os que foram mortos por seus próprias arqueiros. Não são os bandos de gente a cavalo, não são as companhias de gente a pé, não são as armas que defendem o tirano; de imediato, não se acreditará nisso, mas com certeza é verdade. São sempre quatro ou cinco que mantém o tirano; de imediato, não se acreditará nisto, mas com certeza é verdade. São sempre quatro ou cinco que mantêm o tirano: quatro ou cinco que lhe conservam o país inteiro em servidão. Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do tirano e por si mesmos dele se aproximaram; ou então por ele foram chamados para serem os cúmplices de suas crueldades, os companheiros de seus prazeres , os proxenetas de suas volúpias, e sócios dos bens de suas pilhagens. Tão bem esses seis domam seu chefe, que ele deve ser mau para a sociedade não só com suas próprias maldades, mas também com as deles. Esses seis têm seiscentos que crescem debaixo deles e fazem de seus seiscentos o que os seis fazem ao tirano. Esses seiscentos conservam debaixo deles seis províncias ou o manejo dos dinheiros para que tenham na mão sua avareza e crueldade e que as exerçam no momento oportuno; e, aliás, façam tantos males que só possam durar à sua sombra e isentar se das leis e da pena por seu intermédio. Grande é o séquito que vem depois e quem quiser divertir se esvaziando essa rede não verá os seis mil mas os cem mil, os milhões que por essa corda agarram se ao tirano servindo se dela como Júpiter em Homero, que se gaba de trazer a si todos os deuses ao puxar a corrente. Daí se originava o crescimento do Senado sob Júlio, o estabelecimento de novas posições, o surgimento de ofícios; considerando bem, certamente não uma reforma da justiça

mas novos sustentáculos da tirania. Em suma: que se chegue lá por favores ou subfavores, os ganhos ou restolhos que se tem com os tiranos, ocorre que afinal há quase tanta gente para quem a tirania parece ser proveitosa quanto aqueles para quem a liberdade seria agradável. Como dizem os médicos, se há em nosso corpo alguma coisa estragada, logo um outro lugar onde nada está acontecendo rapidamente se dirige para a parte bichada; do mesmo modo, logo que um rei declarou se tirano, tudo que é ruim, toda a escória do reino não falo de um monte de gatunos e desorelhados que numa república não podem fazer muito mal nem bem, mas dos que são manchados por ambição ardente e notável avareza reúnem se à sua volta e o apóiam para participarem da presa e serem eles mesmos tiranetes sob o grande tirano, Os grandes ladrões e os famosos corsários fazem assim: uns desnudam o pais, os outros perseguem os viajantes, uns armam emboscadas, os outros estão à espreita, os outros massacram, os outros esfolam; e embora existam primazias entre eles e uns sejam apenas criados e os outros chefes do bando, no final não há um que não se sinta parte, senão do espólio principal, ao menos da busca. Contam que os piratas Cilicianos não só reuniram se em tal número que foi preciso enviar Pompeu, o grande, contra eles, mas também que atraíram para uma aliança várias belas cidades e grandes centros em cujos portos punham se a salvo ao voltarem das incursões, dando lhes como recompensa algum proveito da receptação da pilhagem. Assim o tirano subjuga os súditos uns através dos outros e é guardado por aqueles de quem deveria se guardar, se valessem alguma coisa; mas, como se diz, para rachar lenha é preciso cunhas da própria lenha. Eis aí seus arqueiros, seus guardas, seus alabardeiros; não que eles mesmos às vezes não sofram por causa dele; mas esses perdidos e abandonados por deus e pelos homens ficam contentes de suportar o mal para fazê lo, não àquele que lhes malfez, mas àqueles que suportam como eles e que nada podem fazer. Vendo porém essa gente que gera o tirano para se encarregar de sua tirania e da servidão do povo, com freqüência sou tomado de espanto por sua maldade e às vezes de piedade por sua tolice. Pois, em verdade, o que é aproximar se do tirano senão recuar mais de sua liberdade e, por assim dizer, apertar com as duas mão e abraçar a servidão? Que ponham um pouco de lado sua ambição e que se livrem um pouco de sua avareza, e depois, que olhem se a si mesmos e se reconheçam; e verão claramente que os aldeães, os camponeses que espezinham o quanto podem e os tratam pior do que a forçados ou escravos verão que esses, assim maltratados, são no entanto felizes e mais livres do que eles. O lavrador e o artesão, ainda que subjugados, ficam quites ao fazer o que lhes dizem; mas o tirano vê os outros que lhe são próximos trapaceando e mendigando seu favor; não só é preciso que façam o que diz mas que pensem o que quer e amiúde para satisfazê lo, que ainda antecipem seus pensamentos Para eles não basta obedecê lo, também é preciso agradá lo, é preciso que se arrebentem; que se atormentem, que se matem de trabalhar nos negócios dele; e já que se aprazem com o prazer dele, que deixam seu gosto pelo dele, que forçam sua compleição, que despem o seu natural, é preciso que estejam atentos às palavras dele, à voz dele, aos sinais dele, e aos olhos dele; que não tenham olho, pé, mão, que tudo esteja alerta para espiar as vontades dele e descobrir seus pensamentos. Isso é viver feliz? Chama se a isso, viver? Há no mundo algo menos suportável do que isso, não digo para um homem de coração, não digo para um bem nascido, mas apenas para um que tenha o senso comuna ou nada mais que a face de homem? Que condição é mais miserável que viver assim, nada tendo de seu, recebendo de outrem sua satisfação, sua liber dade, seu corpo e sua vida? Mas eles querem servir para ter bens, como se não pudessem gerar nada que fosse deles, pois não podem dizer de si que sejam de si mesmos; e como se alguém pudesse ter algo de seu sob um tirano, querem fazer com que os bens sejam deles e não se lembram que são eles que lhe dão a força para tirar tudo de todos e não deixar nada de que se possa dizer que seja de alguém. Vêem que nada senão os bens torna os homens sujeitos à crueldade dele, que para ele só a riqueza é crime digno de morte. Ama só as riquezas e só despoja os ricos, que ainda assim vêm se apresentar como que diante do açougueiro, gordos e fortes, para se oferecerem e despertarem seu apetite. Esses favoritos não devem se lembrar tanto dos que em torno dos tiranos receberam muitos bens, mas sim dos que tendo acumulado durante algum tempo ali perderam depois os bens e as vidas. Não deve passar lhes tanto pela cabeça quantos ali receberam riquezas, mas quão poucos as conservaram. Que se percorram todas as histórias antigas, que se considerem as de nossa lembrança, e ver se á plenamente como é grande o número dos que, tendo ganho por meios espúrios a confiança dos príncipes, tendo usado de sua maldade ou abusado de sua simplicidade, finalmente foram por eles mesmos aniquilados; e assim como neles tinham achado um meio para elevá los, mais tarde neles também encontraram a inconstância que os destruiu. Com certeza, entre as muitas pessoas que já se acharam próximas de tantos reis maus, poucas ou quase nenhuma foram as que alguma vez não experimentaram em si mesmas a crueldade do tirano, que antes haviam atiçado contra os outros: tendo enriquecido com os despojos de outrem à sombra de seu favoritismo, no mais das vezes elas acabam enriquecendo o com seus despojos. As próprias pessoas de bem se é que às vezes existe alguma amada pelo tirano , por mais que sejam os primeiros em sua graça, por mais que nelas brilhem a virtude e a integridade que impõem algum respeito até aos mais malvados quando vistas de perto, as pessoas de bem, digo, aí não poderiam durar; é preciso que compartilhem do mal comum e que sintam a tirania em seus propósitos. Um Sêneca, um Burrus, um Traséas, esse terno de pessoas de bem, as quais aliás, o infortúnio das duas primeiras aproximou do tirano e lhes pôs nas mãos a condução de suas coisas, ambos por ele estimados, queridos ambos, e um deles ainda o havia criado e tinha como garantia de sua amizade a educação de sua infância pois esses três bastam para testemunhar com sua morte cruel como há pouca segurança no favor de um mau senhor. E, na verdade, que amizade se pode esperar daquele que tem mesmo o coração tão duro para odiar seu reino, o qual só faz obedecê lo, é que ainda por se saber incapaz de amar empobrece a si mesmo e destrói seu império? Ora, se se quer dizer que eles enfrentaram esses inconvenientes por serem gente de bem, que se olhe francamente em torno do próprio, e ver se á que não duraram mais os que caíram em suas graças e se mantiveram por meios espúrios. Quem já ouviu falar de amor mais desenfreado, de afeição mais persistente, quem já leu sobre um homem mais obstinadamente encarnado numa mulher do ele em Popéa? Ora, mais tarde ela foi envenenada por ele próprio. Sua mãe, Agripina, tinha matado o marido, Cláudio, para lhe dar lugar no império; para obsequiá lo, ela nunca criara dificuldade de espécie alguma, nem sofrimento. Então seu próprio filho, sua cria, o Imperador feito por sua mão, depois de lhe faltar muitas vezes, afinal tirou lhe a vida; e na ocasião não houve quem não dissesse que ela bem merecera essa punição, se tivesse sido pelas mãos de qualquer um que não aquele a quem ela havia dado a vida. Quem já foi mais fácil de manipular, mais simples, melhor dizendo, mais verdadeiramente parvo que o imperador Cláudio? Quem já foi mais traído pela mulher do que ele por Messalina? Finalmente a pôs nas mãos do carrasco. Quando a têm, a simplorice