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Direito Penal como Controlo de Violência Juvenil: Análise das Teorias Funcionalistas, Notas de estudo de Direito

Este documento discute a função do direito penal na redução da criminalidade juvenil, especificamente na questão da redução da maioridade penal. O autor analisa as teorias funcionalistas do direito penal e avalia a eficácia deste instrumento na prevenção especial positiva e na proteção de bens jurídicos. O texto também aborda a selecividade do direito penal e a importância de considerar a condição especial de pessoas em desenvolvimento.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Jorginho86
Jorginho86 🇧🇷

4.6

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R. Defensoria Públ. União Brasília, DF n. 7 p. 159-186 jan/dez. 2014
O DIREITO PENAL E O CONTROLE
DE VIOLÊNCIA JUVENIL: UMA
ANÁLISE A PARTIR DAS TEORIAS
FUNCIONALISTAS
Por Aruani Kindermann Lapolli e
Airto Chaves Junior
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R. Defensoria Públ. União Brasília, DF n. 7 p. 159-186 jan/dez. 2014^159

O DIREITO PENAL E O CONTROLE

DE VIOLÊNCIA JUVENIL: UMA

ANÁLISE A PARTIR DAS TEORIAS

FUNCIONALISTAS

Por Aruani Kindermann Lapolli e Airto Chaves Junior

(^160) DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO Escola Superior

(^162) DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO Escola Superior

Palavras-chaves : Direito Penal. Teorias Funcionalistas. Maioridade Penal.

ABSTRACT

This research aims to study the reduction of criminal majority as an instrument of containment to the advancement of youth crime. The research is justified to the extent that the "flag of lowering the criminal majority" is raised in the social mean as reflected in the media, everytime a violent offense is committed by teenagers. Its overall objective is to assess whether the criminal route is appropriate and legitimate to curb criminally relevant behavior practiced by adolescents. Specific objectives are: a) to study the functions of the criminal law from the Functionalist Theories; b) evaluate the function of the sentence from the perspective of positive special prevention, rooted in Brazilian law from what records the art. 1 of the Law of Penal Execution; c) analyze whether the goals of "subsidiary protection of legal goods and fragmentary" (Functionalism Moderate) and "social reintegration of the convict" (positive special prevention) are effectively pursued and consequently achieved. Regarding methodology, we highlight two distinct phases. The research phase denotes the use of the comparative method, in closing remarks, we highlight the use of inductive logic base.

Keywords : Criminal Law. Functionalist Theories. Legal Age.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO: JUSTIFICATIVAS PARA O DEBATE 2. AS FUNÇÕES DO DIREITO

PENAL. 2.1. Seleção de bens ou seleção de pessoas? Notas sobre o Funcionalismo Contencionista

  1. A FALSA UNIVERSALIDADE DO BEM JURÍDICO: O QUE (QUEM) SE PRETEN- DE PROTEGER? 4. CRISE DO DISCURSO DE JUSTIFICAÇÃO DO DIREITO PENAL QUANTO A SEUS OBJETIVOS DECLARADOS 5. A QUESTÃO DA PREVENÇÃO GE- RAL POSITIVA 6. A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL COMO INSTRUMENTO (I) LEGÍTIMO DE REDUÇÃO DA CRIMINALIDADE. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

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1. INTRODUÇÃO: JUSTIFICATIVAS PARA O DEBATE

A pesquisa que aqui se inicia tratará do Direito Penal como instrumento (i)legítimo para contenção da criminalidade juvenil, pelo que, o tema a ser abordado em sua centralidade será o da redução da maioridade penal.

Por disposição constitucional, no Brasil, a pessoa só passa a imputabilidade depois de completados 18 anos.^1 Assim, os menores de 18 anos são inimputáveis e essa presunção é absoluta, pois o critério aqui adotado é puramente biológico, de maneira que nenhuma outra circunstância de natureza psicológica altera a idade penal. A maior especulação em torno do tema é a (im)pos- sibilidade de redução de 18 (dezoito) para 16 (dezesseis) anos.

O tema “redução da maioridade penal” ressurge quando se tem um crime de grande repercussão nacional envolvendo, no polo ativo da infração, criança ou adolescente. A partir disso, a mídia clama por penas exemplares, encarceramentos e instrumentos que aparecem camuflados no perigoso discurso: “algo precisa ser feito”. Em miúdos, precisa-se de mais Direito Penal.

Sem adentrar aqui no plano midiático e na influência que os telejornais podem exercer sobre a opinião pública (pois, inegavelmente, um crime é tanto mais grave quanto mais atenção um programa policialesco de boa audiência dispensa sobre o caso), enraíza-se um macabro consenso por meio de um intenso bombardeio de justificativas, todas elas, extremamente propensas a se utilizar do sistema repressivo em um instrumento político promocional de bem estar social. A primeira dúvida que surge neste contexto é a seguinte: “bem estar de quem?”.

Acredita-se, num primeiro plano, que os problemas da criminalidade e segurança pública serão resolvidos com o encarceramento de alguém. Pesquisa da CNT2 (Confederação Nacional do Transporte), feita em parceria com o instituto MDA, divulgada em junho de 2013, revelou que a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos é aprovada por 92,7% dos brasileiros.

A peça publicitária sustentadora da redução da maioridade penal, muito bem desenhada, por sinal, se concentra em algumas premissas bastante divulgadas e incorporadas ao discurso: a) é cada vez maior o número de menores envolvidos em práticas criminosas; b) o Estatuto da Criança e do Adolescente não é eficaz, porque as respostas (“medidas socioeducativas”) nele previstas são muito brandas; c) os autores intelectuais dos crimes (maiores) se utilizam dos menores para sua

(^1) CRFB/88, Art. 228. “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.” Semelhante disposição é trazida no Código Penal Brasileiro, em seu art. 27. (^2) DOURADO, Kamilla. Portal R7 Notícias. Mais de 90% da população aprova a redução da maioridade penal. Matéria veiculada em 11/6/2013.

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2. AS FUNÇÕES DO DIREITO PENAL

Os estudos das concepções instrumentais do Direito Penal são fundamentais para com- preensão da (in)viabilidade da redução da maioridade penal, pois é no Sistema Penal que se pretende incluir o menor infrator a partir do descimento do fator cronológico de imputabilidade penal (de dezoito para dezesseis anos).

Entende-se por funcionalismo penal a concepção metodológica segundo a qual os conceitos e o sistema do Direito Penal devem ser construídos com base em considerações norma- tivas, referentes aos fins do Direito Penal e a seus pressupostos de legitimidade.^3

Essa concepção funcional ganhou força a partir da década de 1970 com o escrito sobre Política Criminal e Sistema Jurídico Penal de autoria do penalista alemão Claus Roxin 4. Desde então, a ideia de um Direito Penal instrumental e de protetor do “bem jurídico” é bastante difundida, sobretudo, após a sedimentação dos critérios de subsidiariedade e fragmentariedade tratados pelo jurista, que reunidos, buscam uma intervenção penal minimalista. Trata-se de uma das facetas do funcionalismo penal^5 : o Direito Penal como função tutelar, protetora de bens jurídicos.

Conforme Roxin 6 , o Direito Penal deve garantir os pressupostos de uma convivência pacífica, livre e igualitária entre os homens, na medida em que isso não seja possível através de outras medidas de controle sócio-políticas menos gravosas. Essa finalidade estaria condicionada a um pressuposto limitador: a pena só pode seria cominada quando for impossível obter esse fim através de outras medidas menos gravosas, de maneira que o Direito Penal seria desnecessário quando se poderia garantir a proteção desses bens através do Direito Civil, uma proibição administrativa ou medidas preventivas judiciais.

Essa teoria do bem jurídico se refere ao funcionalismo moderado , teleológico ou valorativo. A ideia de valor está bastante presente na construção funcionalista desenvolvida por Roxin, de maneira que cada conceito (conduta, tipicidade, ilicitude e culpabilidade) deve ser avaliado sob um prisma Político Criminal , ou seja, analisado sob uma orientação voltada aos

(^3) GRECO, Luiz Felipe. Funcionalismo Penal. Dicionário de Filosofia do Direito. Vicente de Paulo Barreto (Coord.). São Leopoldo/RS: Editora Unisinos; Rio de Janeiro: Editora Renovar. 2006, p. 369. (^4) Ver ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar,

(^5) Neste caso, refere-se ao Funcionalismo moderado, teleológico ou valorativo.

(^6) ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2ª ed. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 32-33.

(^166) DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO Escola Superior

direitos fundamentais e os valores do Estado Social e Democrático de Direito.

Não se recorre, então, a categorias ontológicas do ser. Leva-se em conta, por outro lado, o aspecto normativo , o fundamento, a função que cada conceito tem de cumprir no sistema da Teoria do Delito, especialmente no que se refere ao injusto penal , com a chamada teoria da imputação objetiva. Conforme essa teoria, o injusto não é apenas um acontecimento causal (causalismo), nem tampouco final (finalismo), mas primariamente a realização de um risco não permitido criado pelo autor da conduta.^7

Neste contexto, Roxin^8 explica que o ato de vender um punhal a uma pessoa de aparência suspeita, apesar de criar certo risco, não pode ser considerado risco proibido , pois uma vida ordenada em sociedade só é possível se o indivíduo, em princípio, puder confiar em que as pessoas com quem interage não cometerão crimes dolosos. Do contrário, além dos punhais, igualmente não se poderiam ser vendidos ou emprestados materiais inflamáveis, fósforos, machados, enxadas, etc.

E, sendo o Direito Penal instrumento de proteção dos bens jurídicos mais importantes, como é feita essa proteção pelo Estado? O Estado tipifica comportamentos e impõe sanções àqueles que violarem as regras (tipicidade e pena). Aliás, Rogério Greco 9 bem lembra que a censura vem corporificada por meio da pena. É ela que irá ditar a gravidade do mal praticado.

Assim, o primeiro limite imposto ao direito de punir do Estado é a mais estrita necessidade de recorrer à punição (pena ou medida de segurança), consubstanciado em dois princípios fundamentais: a) o da subsidiariedade na seleção dos bens jurídicos (que opera in abstrato), e b) a proteção de bens jurídicos deve suportar forma fragmentária, limitada a ataques mais perigosos (que ocorre in concreto). Conforme Santiago Mir Puig^10 , negligenciar esses critérios seria abandonar algumas das tarefas sócio-políticas que o Estado se propõe a cuidar.

A utilidade principal que cobre o estudo desse limite do poder punitivo do Estado é que ele deriva, especialmente, de uma operação funcional, de condições de justificação da punição e a sua necessidade de proteger a sociedade. O fundamento político (que anuncia uma abordagem impositiva de respeito ao Estado democrático de direito) ficaria num segundo plano.

(^7) GRECO, Luiz Felipe. Funcionalismo Penal. Dicionário de Filosofia do Direito. Vicente de Paulo Barreto (Coord.). São Leopoldo/RS: Editora Unisinos; Rio de Janeiro: Editora Renovar. 2006, p. 369.

(^8) ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2ª ed. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 105.

(^9) GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio : uma visão minimalista do Direito Penal. 4ª ed. Niterói: Impetus, 2009, p. 65. (^10) MIR PUIG, Santiago. Introducción las bases Del Derecho Penal. Montevideo: Julio César Faira Editor, 2003, p. 112.

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de direito (da doutrina penal como programadora de um exercício racional do poder jurídico) deve ser a redução e a contenção do poder punitivo dentro dos limites menos irracionais possíveis.

Neste caso, se o Direito Penal não consegue que o poder jurídico assuma esta função, lamentavelmente terá fracassado, pois é ele um apêndice indispensável do Direito Constitucional do Estado de Direito, o qual se encontra sempre em tensão dialética com o chamado “Estado de polícia”. Diante dessa perspectiva, a função do Direito Penal, como instrumento do Estado de Direito, seria reduzir a violência do Estado de polícia, bem como, a seletividade que lhe é intrínseca.

Paulo Cesar Busato 15 lembra que esta concepção é ancorada numa Criminologia Crítica, que preconiza que o Direito Penal possui o objetivo declarado pelo discurso jurídico oficial de proteção de bens jurídicos essenciais (Funcionalismo Moderado), mas, por outro lado, comporta objetivos reais ou latentes, ocultados pelo discurso jurídico oficial e proclamados pelo discurso jurídico crítico.

A seletividade de pessoas, notadamente aquelas mais vulneráveis do ponto de vista econômico é característica marcante do sistema. Isso acaba por colocar o Direito Penal como instrumento contendor de comportamentos praticáveis por grupos determinados, de forma que criminaliza certos padrões de conduta e imuniza outros comportamentos que, num plano material, são tão ou mais reprováveis que aqueles em que o Direito Penal realmente ataca. Neste sentido, Juarez Cirino do Santos^16 anota que crime é o que a lei, ou a justiça criminal, determina como crime, excluindo comportamentos não definidos legalmente como crimes, por mais danosos que sejam, tais como o imperialismo e a exploração do trabalho; ou comportamentos que, apesar de definidos como crimes, não são processados nem reprimidos como crimes, como a criminalidade de “colarinho branco”.

Zaffaroni 17 demonstra o critério seletivo do Direito Penal como forma de contenção da criminalidade. É que, historicamente, o poder punitivo sempre discriminou certos grupos de seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo sem correspondência à condição de pessoas.

Desde a era pré-moderna, o poder punitivo conferiu um tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoas a grupos mais vulneráveis e mais distantes aos centros de

(^15) BUSATO, Paulo César; BASSO, Stephan Nascimento. Funções e Missões do Direito Penal. In BUSATO, Paulo César (Org.). Fundamentos de Direito Penal (Direito Penal baseado em casos). Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 29.

(^16) SANTOS, Juarez Cirino. A criminologia radical. 2ª Ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006, p. 9.

(^17) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p.11.

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poder. Esses seres humanos são assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, o controle constante deve recair sobre eles.

Assim, desde sua própria origem, o poder punitivo mostrou uma formidável capacidade de perversão, montada – como sempre – sobre um preconceito que impõe medo , sempre admitida e ratificada abertamente pelos teóricos de seu tempo.^18

No século XV, o livro Malleus Maleficarum , também chamado O martelo das fei- ticeiras^19 foi escrito pelos inquisidores alemães Heinrich Kramer e James Sprenger a pedido do Papa Inocêncio VIII. O objetivo era enfrentar as conspirações demoníacas contra a Cristandade, praticada pelo inimigo da Igreja Católica, a mulher. Essa obra foi publicada pela primeira vez em 1486 e até o final do século XVIII foi o fundamento jurídico e teológico dos tribunais da Inqui- sição em diversos países.

Os autores afirmavam que as bruxas representavam as mulheres em estado natural. A obra foi considerada um verdadeiro Tratado de Criminologia que enviou milhares de mulheres às fogueiras da Inquisição. Aconselhava que todas as suspeitas de bruxaria fossem submetidas à tortura: se confessassem mereceriam o fogo; se não confessassem, também, pois só uma bruxa, for- talecida por influência do Demônio poderia resistir à semelhante suplício sem ceder à confissão. 20

Fora da Europa, o poder colonialista legitimado por estes discursos exerceu-se sob a for- ma de genocídio. Os índios ignoravam os dez mandamentos, os sete sacramentos e os sete pecados capitais; não conheciam a palavra pecado nem temiam o inferno ; não sabiam ler nem tinham nunca ouvido falar em direito de propriedade.^21 Essas características demarcavam a inferioridade dos índios e sua duvidosa humanidade, o que justificaria qualquer brutalidade contra eles.

Dessa forma, a conquista da América foi uma longa e difícil tarefa de exorcismo, elimi- nando a maior parte da população americana da época, desbaratando suas organizações sociais e políticas e reduzindo essas pessoas à condição de servidão e escravidão.^22

(^18) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 34. (^19) KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras****. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.

(^20) GALEANO, Eduardo. Espelhos : uma história quase universal. Tradução de Eric Nepomuceno. 2ª ed. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 115-116.

(^21) GALEANO, Eduardo. Espelhos : uma história quase universal. Tradução de Eric Nepomuceno. 2ª ed. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 118.

(^22) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 34-35.

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cerca de 40 estudos empíricos em uma dezena de sociedades capitalistas^28 , sabe-se que existe no nível societário uma estreita e positiva correlação entre a deteriorização do mercado de trabalho e o aumento da população carcerária, ao passo que não existe vínculo algum comprovado entre índice de criminalidade e índice de encarceramento.

Vera Malagutti Batista 29 , ao pesquisar processos do Juizado da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, e neles a posição dos juízes, promotores, psiquiatras, psicólogos e assistentes so- ciais, concluiu que “todos os lapsos, metáforas, metonímias, todas as representações da juventude pobre, como suja, imoral, vadia, perigosa, formam o sistema de controle social no Brasil de hoje e informam o imaginário social para as explicações da questão da violência urbana. E talvez por isso, um dos inimigos do estado hoje seja, efetivamente, aquele um grupo de adolescentes mais vulnerável ao alcance dos direitos que o esse mesmo estado declara proporcionar de forma certa igualitária.

Por isso, Zaffaroni^30 defende um funcionalismo redutor como única maneira de legitimar o poder punitivo seletivo como é o que se tem. Para tanto, importante aquilo registrado por Michel Foucault^31 que anota necessário abandonar a ilusão de que a penalidade é, antes de tudo, uma maneira de reprimir os delitos; estudar os sistemas punitivos concretos como fenômenos sociais que não podem ser explicados pela armadura jurídica da sociedade nem por suas opções éticas primordiais, mas recolocá-los em seu campo de funcionamento onde a sanção não é o único elemento, podendo-se dizer que a definição das infrações e suas repressões são feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos e suas funções.

Assim, conforme a concepção contencionista, a função do Direito Penal de todo Estado de Direito deve ser a redução e a contenção do poder punitivo dentro dos limites menos irracionais possíveis, de maneira que se o Direito Penal não consegue que o poder jurídico assuma esta função, terá lamentavelmente fracassado, perecendo o Estado de Direito e, por via de consequência, avançado o Estado de polícia. 32

O reducionismo penal pretende um Direito Penal mínimo, que no entender de Amilton

(^28) WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. (^29) BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p 120.

(^30) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 88.

(^31) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 39ª ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011, p. 27/28.

(^32) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 172.

(^172) DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO Escola Superior

Bueno de Carvalho, é um sonho dos criminalistas críticos, ao buscar uma real ultima ratio e não mero discurso de ultima ratio : “mínimo que seja mínimo mesmo e não mínimo com o discurso de mínimo para justificar o máximo, como se todo comportamento tido como ‘imoral’ merecesse ser alcançado pelas agências penais” 33.

3. A FALSA UNIVERSALIDADE DO BEM JURÍDICO: O QUE (M) SE PRETEN-

DE PROTEGER?

Uma das causas fundamentais da criminalização de grupos cada vez mais amplos de pessoas é, conforme Francisco Muñoz Conde 34 , encontrada nas próprias normas jurídicas, que manipuladas adequadamente por grupos de pressão minoritária e detentores do poder, dificultam a coexistência pacífica dos distintos sistemas de valores de uma mesma comunidade e aumentam a luta entre os sistemas dominantes e os que não o são.

Assim, ao invés de a norma penal funcionar como um instrumento motivador determinante dos comportamentos das pessoas e, diante disso, constituir um fator integrador dos diferentes grupos sociais, protegendo bens jurídicos fundamentais ao todo, possui um efeito invertido, favorecedora e até mesmo causadora da marginalização, já que, por vezes, é manipulada para proteger interesses minoritários.^35

E a norma penal é instrumento para implementação dessa manipulação? Também o é. Não se pode perder de vista que se está tratando da soma dos exercícios de poder de todas as agências que operam no processo de criminalização^36 , ou seja, do sistema penal. Isso não quer dizer, porém, que a palavra “sistema” indica uma operação homogênea e organizada das agências de controle penal. Por vezes, estas agências invariavelmente exercem seus respectivos papéis em descompasso uma com as outras e de forma fragmentada, fato que impede conceber o “sistema penal” no sentido de organização.

Desse modo, é fundamental a contribuição da legislação penal na seleção dos bens

(^33) CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 40. (^34) MUñOZ CONDE, Francisco. Função motivadora da norma penal e “marginalização”. Revista Justitia. São Paulo. 48 (135): 32-38, jul./set. 1986, p. 35. (^35) Muñoz Conde, Francisco. Função motivadora da norma penal e “marginalização”. Revista Justitia. São Paulo. 48 (135): 32-38, jul./set. 1986, p. 32-33.

(^36) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª ed. Tradu- ção de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 144.

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do paradigma funcionalista adotado. A concepção cunhada por Roxin, que trata de um funciona- lismo moderado tem prevalecido no plano doutrinário ocidental.

Porém, para que o Direito Penal atinja essas funções protetoras de bens jurídicos essen- ciais à coexistência, deve ele estar ancorado em algumas pilastras que lhe dão sustentação. Essas pilastras revelam-se por meio de princípios de Direito Penal, quais sejam: legitimidade, bem e mal, culpabilidade, finalidade ou prevenção, igualdade e interesse social.

Para Carvalho^41 , a pena está desacreditada como possibilidade recuperadora do cidadão e não atemoriza ninguém. E acrescenta: a retórica da impunidade como causa da criminalidade é discurso improvado e improvável.

Zaffaroni 42 destaca que o sistema penal é um verdadeiro embuste, ao pretender um poder que não possui e ocultando o verdadeiro poder que exerce, de modo que se torna óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para exercer seu poder com elevado grau de arbitrariedade seletiva dirigida, evidentemente, aos setores mais vulneráveis.

Conforme o autor referido 43 , é bastante claro que enquanto o discurso jurídico-penal racionaliza cada vez menos, justamente pelo esgotamento de seu arsenal de ficções gastas, os órgãos do sistema penal exercem seu poder para controlar um marco social cujo principal signo é a morte em massa. E acrescenta o autor que não é mais possível argumentar que tal momento crítico se trata de um momento de transitoriedade, enquanto se aguarda pelo desenvolvimento progressivo.

Até porque, a seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maio- res condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, enfim, são caracte- rísticas estruturais, e não conjunturais, do exercício de poder de todos os sistemas penais. 44

O princípio da legitimidade seria atingido justamente pela relação variável do processo de criminalização de acordo com a posição social do acusado e indica uma relatividade na prote-

(^41) CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p.82.

(^42) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª ed. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 27.

(^43) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas : a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª ed. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 13. (^44) Idem.

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ção penal dos bens jurídicos.^45

Já, a concepção maniqueísta dividindo a sociedade entre o bem e o mal, igualmente se desconstrói, justamente pela revisão crítica da criminologia de orientação biológica e caracteroló- gica, de modo que evidentemente as causas do desvio não devem ser pesquisadas nem em fatores bioantropológicos e naturais, nem em uma situação patológica da estrutura social.^46

A negação do princípio da culpabilidade, ou seja, da responsabilidade ética individual como base do sistema penal, tem a ver com o fato de que os mecanismos de aprendizagem e de interiorização de regras e modelos de comportamento, que estão na base da delinquência e, par- ticularmente, das carreiras criminosas, não diferem dos mecanismos de socialização através dos quais se explica o comportamento normal.^47

O princípio do fim ou da prevenção é colocado em dúvida, em particular a concepção educativa da pena, uma vez que a intervenção do sistema penal, especialmente a pena privativa de liberdade, antes de ter um efeito reeducativo sobre o delinquente determina, na maior parte dos casos, uma consolidação da identidade desviante do condenado e o seu ingresso em uma verda- deira carreira criminosa. 48

Já o princípio da igualdade se mostra igualmente desconstruído, uma vez que a crimi- nalidade é um status atribuído a alguns sujeitos por parte de outros sujeitos, aqueles que detêm o poder de criar e aplicar a lei penal, com base em critérios ligados à estratificação social e à estrutura antagônica da sociedade. 49

Igualmente deslegitimado o discurso ideológico do Direito Penal no que se refere ao princípio do interesse social ou delito natural, uma vez que a criminalidade, segundo o para- digma da reação social, é uma realidade criada através do processo de criminalização, orientado justamente por aqueles que têm interesse e poder e influir nesse processo. Enfim, os interesses protegidos pelo Direito Penal não são, evidentemente, interesses comuns a todos os cidadãos. 50

(^45) BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011, p.50. (^46) BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011, p.49. (^47) BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011, p.76. (^48) BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011, p.90. (^49) BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011, p.113. (^50) BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal.

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Carvalho^55 , ao falar da emergência da “criminalidade incontrolada”, afirma que o sis- tema jurídico-penal continua a acreditar que leis cruéis derrotarão a criminalidade. A crença no ideal “lei-prisão” como resposta à criminalidade carrega consequências agressivas, entre as quais: aumento acentuado das penas, criação irracional de novos tipos, penas mais severas e despropor- ção entre crime-castigo, endurecimento do sistema, de modo que a pena passa a ser mero castigo e retribuição. Sem contar a banalização da prisão provisória e da transformação constante de crimes em hediondos.

O autor 56 faz uma crítica à própria sociedade pelas condições animalescas dos cárceres, ao mencionar que ninguém se sente responsável: todos estão convencidos de que estão apenas a cumprir ordens, desde o acusador cumprindo seu dever de denunciar, passando pelo juiz, que ape- nas está cumprindo a lei, nada tendo ele com a execução, culminando no carcereiro e no próprio Estado, tido como mera abstração, acusado de não cumprir suas obrigações legais pelo próprio Estado.

Servir-se da prisão como um aspirador social para limpar as escórias produzidas pelas transformações econômicas em andamento, e remover os rejeitos da sociedade de mercado do espaço público, quais sejam, delinquentes ocasionais, desempregados e indigentes, pessoas sem- teto e imigrantes sem documentos, toxicômanos, deficientes e doentes mentais deixados de lado em razão da displicência da própria rede de saúde e assistência social, além de jovens de origem popular, condenados a uma vida de empregos marginais e de pequenos ilícitos, segundo Loïc Wa- cquant^57 , é uma aberração, no sentido estrito do termo, um erro de julgamento do sistema político e penal. Enfim, o recurso automático do encarceramento para debelar as desordens humanas é um remédio que, em muitos casos, só faz agravar o mal que supostamente curaria.

Luigi Ferrajoli 58 chega a propor a abolição da pena carcerária, ressaltando que a privação da liberdade já não parece idônea, para não dizer desnecessária, para satisfazer as razões que justi- ficam a sanção penal: nem a prevenção de delitos, considerado o caráter criminógeno das prisões, hoje destinadas a funcionar como escolas de delinquência e de recrutamento da criminalidade organizada; nem a prevenção da vingança privada, atualmente satisfeita bem mais pela rapidez dos processos e publicidade das condenações, que pela expiação da prisão.

(^55) CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 44. (^56) CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 125. (^57) WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 455. (^58) FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.330.

(^178) DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO Escola Superior

Ressalta-se, neste sentido, que a história penal mostra que em nenhum momento e em nenhuma sociedade, a prisão soube cumprir a sua suposta missão de recuperação e de reintegração sociais, numa perspectiva de redução da reincidência. Sem contar que o próprio sistema peniten- ciário, desde a arquitetura das instalações, passando pela indigência dos recursos institucionais e a falta de medidas concretas de ajuda no momento em que o preso é libertado se opõe a suposta função de reformar o detento. 59

Para Carvalho^60 , o discurso mais recorrente como justificador da existência do cárcere, é o de que ele que procura recuperar o humano que tenha sido condenado pela prática de um ato que, em certo momento histórico, é tipificado como crime, importando somente que esteja tipifi- cado. Neste caso, como bem registrou Nietzsche, “só se podem elevar os homens que não tratamos com desprezo; o desprezo moral é um aviltamento e um prejuízo maior do que qualquer crime”.

6. A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL COMO INSTRUMENTO (I)LEGÍ-

TIMO DE REDUÇÃO DA CRIMINALIDADE

Partindo da premissa de que o Direito Penal não atemoriza, pois sua existência não tem evitado crimes, além da promessa de ressocialização ou recuperação jamais ter se concretizado, urge sua desbanalização, com a redução do seu alcance drasticamente. 61

Na esfera dos direitos da criança e do adolescente, resguardados pela Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente 62 , pode-se por analogia dizer que permanece no senso comum o paradigma da criminologia positivista, que já deveria ter dado lugar a um genuíno Direito Infracional, baseado em garantias constitucionais.

Ocorre que, na prática, tem-se aplicado um verdadeiro “direito penal juvenil” baseado na cultura higienista e seletiva do revogado Código de Menores. Segundo Vera Malaguti Batista 63 ,

(^59) WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p.459. (^60) CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 107. (^61) CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p.46. (^62) BRASIL. Lei Federal 8.069, de 13/07/1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. (^63) BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 69.