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o CORPO, O COMER E A COMIDA, Notas de estudo de Nutrição

Tese de LIGIA AMPARO DA SILVA SANTOS

Tipologia: Notas de estudo

2014

Compartilhado em 26/06/2014

camila-rodrigues-a5m
camila-rodrigues-a5m 🇧🇷

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LIGIA AMPARO DA SILVA SANTOS
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Um estudo sobre as práticas corporais e alimentares cotidianas a
partir da cidade de Salvador – Bahia.
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2006
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LIGIA AMPARO DA SILVA SANTOS

O C O COORRPPOO,, OO CCOOMMEERR EE AA CCOOMMIIDDAA

Um estudo sobre as práticas corporais e alimentares cotidianas a

partir da cidade de Salvador – Bahia.

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

SÃO PAULO 2006

LIGIA AMPARO DA SILVA SANTOS

O C O COORRPPOO,, OO CCOOMMEERR EE AA CCOOMMIIDDAA

Um estudo sobre as práticas corporais e alimentares cotidianas a

partir da cidade de Salvador – Bahia.

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais com concentração em Antropologia sob a orientação da Profa. Doutora Maria Helena Vilas Boas Concone.

SÃO PAULO 2006

AGAGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS

  • À minha orientadora, a Profa. Dra Maria Helena Vilas Boas Concone, pela sua acolhida, estímulo e, acima de tudo, a confiança que depositou neste projeto.
  • Ao Prof. Dr. Claude Fischler, por ter me recepcionado e possibilitado a minha estadia no CETSAH/ EHESS - França onde ampliei meus horizontes para este estudo.
  • À comunidade acadêmica de Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia, pelo apoio e solidariedade, em especial, a Profa. Maria do Carmo Soares Freitas, colega e amiga, que estimulou intensamente esta empreitada; e ainda a Profa. Sandra Maria Chaves dos Santos, e a Profa. Edileuza Nunes Gaudenzi que, de longe ou de perto, sempre estiveram presentes nos meus caminhos apostando e confiando nas trajetórias por mim percorridas.
  • À comunidade acadêmica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pelas possibilidades que me ofereceu para mergulhar neste campo do saber.
  • À CAPES pela concessão da bolsa de estudos que possibilitou a realização deste Curso de Doutoramento, assim como, através do Programa de Estágio no Exterior, uma valiosa experiência junto ao CETSAH/EHESS – Paris, França.
  • Aos meus familiares, em especial, a minha irmã Ana Luzia que, dentre outras coisas, trabalhou neste projeto nas transcrições das entrevistas e nas revisões finais; e minha mãe que sempre esteve ao lado apoiando e confiando no meu trabalho, além de ceder inúmeras informações valiosas sobre as práticas culinárias e alimentares desenvolvidas na cidade de Salvador nas décadas anteriores.
  • Aos entrevistados e entrevistadas que disponibilizaram o seu tempo e a confiança para conceder parte das histórias de suas vidas que compuseram este trabalho.
  • Aos meus amigos, amigas e colegas, os já existentes e os que eu encontrei neste caminho que, de algum modo, fizeram parte desta história.

“Não existe dietética inocente. Ela informa sobre a vontade de ser e de se tornar, sobre as categorias arquetípicas de uma vida, de um pensamento, de um sistema, de uma obra”.

Michel Onfray

2 AS MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS NAS FORMAS DE PREPARAÇÃO DOS ALIMENTOS ~

OO CCOORRPPOO,, OO CCOOMMEERR EE AA CCOOMMIIDDAA.

Um estudo sobre as práticas corporais e alimentares cotidianas a

partir da cidade de Salvador – Bahia.

RE RESSUUMMOO

O presente estudo investigou como mulheres e homens experimentam, sentem e agem em relação aos fenômenos vinculados às práticas corporais e às práticas alimentares, assim como as suas relações com o espaço urbano. O estudo teve como primeiro cenário a cidade de Salvador da Bahia e utilizou como recurso metodológico entrevistas semi- estruturadas como 24 mulheres e homens pertencentes às camadas médias e populares, aliado à análises documentais. Discute também as transformações e permanências destes fenômenos que têm ocorrido na cidade de Salvador nas últimas décadas. Parte do pressuposto de que está em curso na cidade a idéia da construção de novos corpos sob a édige do discurso do corpo contemporâneo – magro, saudável e light – e ainda de novas disciplinas alimentares – o comer light –, como ainda uma transformação nas práticas culinárias e do uso e interpretação dos gêneros alimentícios utilizados na construção de um gosto light. A partir destes processos, o corpo, o comer e a comida são reinterpretados pelos sujeitos com o intuito de se adequarem a esta nova ordem corporal e alimentar em construção. Trata-se de um processo de ‘ lightização da existência’ que não necessariamente excluem outras formas: as tradições alimentares são também reinventadas fazendo parte ativamente deste cenário alimentar e corporal. Ressalta-se ainda que estes movimentos estão em consonância não só com as tendências mundiais relacionadas aos fenômenos abordados, mas também com os processos modernizantes pelos quais passa a cidade de Salvador, iniciados nos meados dos anos 1950 e intensificados nas duas últimas décadas. Desta maneira, concebe-se que a modernização citadina não se traduz apenas na modernização dos seus espaços, conjuntos arquitetônicos e parques industriais, se traduz também na modernização dos corpos, de suas práticas corporais e alimentares. Deste modo, o estudo procura compreender tais fenômenos no cotidiano ordinário dos sujeitos dentro da cidade inter-relacionando o local, o nacional e o mundial bem como o jogo entre tradição, diversidade e modernidade.

BOBODDYY,, TTHHEE EEAATTIINNGG AANNDD TTHHEE FFOOOODD

A study about the body and eating practices at the Salvador City,

Bahia, Brazil.

ABABSSTTRRAACCTT

This study investigates how women and men experiment, feel and act on the phenomena related to the body and eating practices as well as the relation of these with the urban space. The first scenario of this study was Salvador City in Bahia, Brazil. Semi- structured interviews with 24 women and men from different social classes, and documental analysis were used as methodological resources. The transformation and permanence of these phenomena which have taken place in the Salvador city in the last decades will be also approached. The starting point is the idea of the construction of ‘new bodies’ under the discourse about the contemporary body – slim, healthy and light - and the news disciplines of eating, as well as the transformation of the culinary practices and the use and interpretation of the supplies used to the construction of the ‘ light taste’ is taking place in the Salvador city. From these processes, the body, the eating and the food are reinterpreted by the individuals with the aim of promote a novel adaptation to these new corporal and eating orders in construction. It is related to a process of ‘ lightização of the existence’ that it does not necessary exclude others processes: the food traditions are reinvented and it is important part of the corporal and food scenario. It also discusses about how these movements are in consonance to the international trends related to these phenomena and also to the modernization processes which takes place in Salvador city, which started in 1950s and increased in the last two decades. In this way, it considers that the modernization in the space of the city it is not only the modernization of the architectural complexes or the industrial enterprises, for example, but also the modernization of the bodies, their corporal and alimentary practices. Therefore, this study discusses these phenomena in the ordinary quotidian of the individuals in the city relating the local, national and the global processes as well as the tradition, diversity and modernity trends.

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vem tomando novos contornos e direções. Percebi que o mesmo incorporava no seu cerne as ciências sociais e humanas não mais que o empréstimo das suas ferramentas metodológicas que se convencionou em chamar, dentro da área de saúde particularmente, do campo das ‘pesquisas qualitativas’. Com o transcorrer desta caminhada pelas searas das ciências sociais e humanas, tenho assim descoberto que pensar neste objeto de uma maneira sócio-antropológica, não seria uma questão de ‘agregar’ conteúdos novos - o componente social, por exemplo -, e sim seria reorganizar a forma de fazer ciência e de pensar a relação dos seres humanos com a sociedade dentro do seu contexto histórico e social. Um outro marco importante nesta trajetória foi a experiência do Programa de Estágio de Doutorado no Exterior – PDEE, com apoio da CAPES, no Centre des Études Transdisciplinaires Sociologie, Anthropologie, Histoire na École des Hautes Études en Sciences Sociales

  • CETSAH/ EHESS – que também contribuiu para aprimorar as reflexões sobre os temas envoltos no projeto, aproximando-o de outras vertentes de discussão e ainda enriquecendo a literatura utilizada na pesquisa. Além disso, as vivências pessoais na cidade
  • não só em Paris, como também em São Paulo-, a interação com os corpos circulantes e as paisagens alimentares também funcionaram como fontes para frutíferas reflexões sobre o tema em estudo. Esta experiência também contribuiu para ampliar a discussão do corpo e do comer na cidade de Salvador pensando nos processos globais que por ela passa interagindo com as suas tradições. A idéia de inserir no subtítulo ‘a partir’ de Salvador vem deste processo reflexivo com uma intenção particular. Ao apurar as lentes do estudo sobre cidade de Salvador, tal escolha não significou desenvolver um trabalho ‘regionalizado’. O intuito foi também analisar o contexto nacional a partir deste espaço, inter-relacionando ‘baianidades’ e ‘brasilidades’ e os ‘cidadãos do mundo’. Ou seja, como os soteropolitanos pensam os seus corpos e as suas práticas alimentares modernas, como traduzem para as suas vidas, considerando o arcabouço histórico cravado nestes corpos e nestas comidas. Desta maneira, este projeto se propõe a vasculhar as especialidades desta problemática no contexto soteropolitano e que sejam, ao mesmo tempo, local, nacional e mundial. Este trabalho está dividido em seis capítulos. O primeiro é dedicado a uma reflexão sobre a problemática de estudo no campo das ciências sociais no mundo

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contemporâneo. Procura entrecruzar os universos temáticos do corpo e do comer e, em menor grau, algumas questões de gênero. No capítulo II, serão consideradas as questões do estudo em si, os seus desafios metodológicos, os múltiplos recortes do objeto, e os percursos metodológicos desenvolvidos. É incluído neste capítulo um panorama da cidade de Salvador, a velha cidade da Bahia, trazendo elementos sobre a cidade, seus corpos e a comida considerados relevantes para o estudo. O capítulo III descreve os itinerários percorridos pelos entrevistados nas suas tentativas de promover mudanças nas práticas corporais e alimentares. O objetivo foi fornecer um panorama mais ampliado do universo empírico no qual os contextos das práticas se conformaram. O capítulo IV trata sobre as práticas corporais e a atividade física e está subdivido em duas partes: a primeira refere-se ao corpo e a corporalidade, suas representações, sentidos e significados, bem como as formas de classificar o corpo morfologicamente, que serão discutidos a partir dos discursos dos sujeitos. A segunda parte está consagrada ao corpo em movimento que explorará alguns aspectos sobre as mudanças e permanências das práticas de atividade física dos sujeitos. Terá, como pano de fundo, elementos sobre o trabalho, lazer e atividade física no contexto soteropolitano no bojo desta sociedade lipofóbica que proclama uma espécie de ‘política’ de emagrecimento dos corpos. O capítulo V é dedicado às mudanças e permanências das práticas alimentares expressas pelos sujeitos, tendo em vista que tais processos estão em consonância com os processos de modernização da cidade de Salvador. O capítulo contempla três momentos: o primeiro discute quatro perspectivas de lidar com o comer, construídas a partir de um processo de categorização dos discursos dos entrevistados. Foi uma difícil tentativa de aproximar as singularidades alimentares dos sujeitos, que não significou uma homogeneização das práticas discutidas. Em seguida, aborda alguns aspectos fundamentais que estão relacionados com o processo de mudanças das práticas alimentares: a noção de reflexividade alimentar, a cacofonia alimentar, processo de reaprendizagem alimentar, o controle da fome e dos desejos, bem como a reconstrução do gosto e das sensibilidades alimentares em direção do que aqui é caracterizado de gosto light. O gosto light se instala na cidade inter-relacionando com o gosto alimentar ‘baiano’ com suas marcas afro-barrocas e o gosto do fast food , um gosto mundializado. Por fim,

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CA CAPPÍÍTTUULLOO II

REFLEXÕES SOBRE A PROBLEMÁTICA DO ESTUDO

1 O CORPO E O COMER NO CAMPO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

No início do século XXI, já é possível afirmar que o corpo se constitui em uma temática relevante no campo das ciências sociais, tema que começou a se conformar enquanto objeto de estudo a partir dos meados do século XX. O explosivo número de publicações sobre o tema relacionando com as mais diversas temáticas: corpo e conhecimento, corpo e gênero, corpo e arte, corpo e história, corpo e tecnologia, dentre inúmeros outros; são evidências que constatam tal processo. No entanto, dentre estas inúmeras maneiras contemporâneas de se aproximar do corpo, a relação corpo e práticas alimentares não tem tido muita relevância. Pode-se encontrá-la, por exemplo, nas discussões sobre o culto ao corpo, nas quais a dieta se apresenta como um aspecto importante, ou ainda nas discussões sobre o fenômeno da anorexia/obesidade. Todavia, trata-se de uma relação ainda muito incipiente, não aprofundando as suas especificidades. É importante ressaltar que a comida participa da construção do corpo não só do ponto de vista da sua materialidade como também nos aspectos culturais e simbólicos. Ela exerce uma função biológica ao mesmo tempo social. Como afirma Fischler (2001), ‘nós nos tornamos o que nós comemos’. Trata-se de uma relação profundamente íntima, realizada cotidianamente, um exercício que implica em risco e confiança (Korsmeyer, 2002). O alimento se diferencia de outras formas de consumo porque ele é literalmente incorporado, atravessando as fronteiras do self. As elaborações atuais sobre o comer compreendem que esta ação tem deixado de ser vista apenas como formas de expressão e

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afirmação de identidades sociais para se inscrever no centro do processo de construção da própria identidade (Poulain, 2003). Em um breve percurso pela literatura internacional, pode-se observar que a ‘sociologia e/ou antropologia da alimentação’ é um campo que vem se conformando em alguns países. Na França, a partir dos anos 1970, alguns sociólogos e antropólogos começaram a pensar sobre o tema como objeto central de seus trabalhos a exemplo de Igor de Garine, Claude Fischler, Annie Hubert e Jean-Pierre Poulain dentre outros^1. Para esses autores, a relação entre os seres humanos e os alimentos é complexa e vai além do domínio puramente biológico. Assim, as práticas alimentares são, sobretudo, práticas socialmente construídas e que possuem uma marca identitária da cultura de uma sociedade. Estes autores têm como uma das questões centrais as transformações e permanências das práticas alimentares no mundo contemporâneo, focando as influências da mundialização, da industrialização e os novos modos de vida sobre estas práticas. Interessa também como interiorizamos as normas e regras alimentares. Uma questão mais recente que também preocupa os franceses é questão do risco alimentar. Trata-se de um paradoxo: no momento em que as sociedades ocidentais conquistaram uma situação de segurança alimentar jamais vista na história, observa-se uma exacerbação do risco em relação ao comer. Eventos como a crise da ‘vaca louca’ e mais recentemente os alimentos transgênicos, mais recente ainda, a crise que vem sendo provocada pela gripe aviária parecem estar suscitando mais fortemente esta reflexão 2. Na França, um país em que a gastronomia é uma importante marca da identidade nacional, o seu contraponto nos estudos é a cultura alimentar americana. A relevância dos problemas da obesidade nos Estados Unidos, como, ainda em menor grau, a anorexia e bulimia, juntamente com as relações que a epidemiologia têm feito destes problemas com as práticas alimentares, têm sido elementos centrais para o desenvolvimento do campo das ciências sociais e alimentação. As relações entre comida e corporalidade como

(^1) É importante marcar que, obviamente, o tema alimentação tem sido historicamente trabalhado por inúmeros estudiosos. No entanto, aqui se trata de uma perspectiva nova que compreende o comer como um objeto em si e essencialmente transdisciplinar - que deve prevalecer ao pluridisciplinar 2. O enfoque dos franceses parece se assemelhar bastante com o dos espanhóis a exemplo dos trabalhos de Mabel Gracia Arnaiz.

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as classes sociais no Brasil tem posto em cheque a forma de discutir a questão alimentar muito centrada na questão do acesso insuficiente aos alimentos. Assim, a questão alimentar contemporânea começa a despontar como um problema científico no Brasil, o que se constitui em um grande desafio: tem-se uma grande parcela da população ainda afetada pelos problemas da privação alimentar e que vivencia simultaneamente os problemas alimentares contemporâneos, pois estes estratos sociais não estão excluídos das influências do mundo moderno. Relacionando com a questão corporal, um segundo desafio aparece: diz respeito à pluralidade étnico-racial dos corpos que coabitam o espaço brasileiro que geram uma pluralidade de padrões corporais, e a sua interação com os fenômenos modernos de culto ao corpo que afunilam para um padrão particular: o corpo magro. Em suma, a complexa relação entre o corpo e a alimentação continua sendo um desafio para a ciência. Tendo em mente este contexto, a problemática deste estudo entrecruza, em primeira instância, dois universos temáticos essenciais: o corpo, a dieta - e, em menor grau, gênero -, considerando também as diferenças das classes sociais como pano de fundo. Seguem algumas considerações sobre cada um destes temas que compõem o cenário da problemática.

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CORPO NA CONTEMPORANEIDADE

Conforme já mencionado anteriormente, as reflexões sobre as questões do corpo ganham terreno ao longo do século XX, intensificada no seu final, e alcançam o século XXI de uma forma talvez jamais vista em outros momentos da história. No entanto, é sempre importante destacar que as preocupações do homem em relação ao seu corpo não é um fenômeno recente. O corpo tem sido pensado, representado e objeto de ação ao longo da história da humanidade de alguma maneira. O que aqui interessa é pontuar as especificidades destas questões no mundo contemporâneo. Por exemplo, as novas formas de representar o corpo considerando o papel da mídia e da tecnociência. A intimidade do corpo nunca tinha sido tão exposta e explorada,

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seja em relação à sexualidade seja em relação ao seu interior^5. Partindo das dissecações do corpo que marcaram a emergência da anatomia moderna por volta do século XVI, as suas imagens internas estão sendo reveladas com o apoio de um aparato tecno-científico que as produzem - radiografias, ultra-sonografias, ressonâncias magnéticas, dentre outros. Definitivamente, tais tecnologias mudam as formas de ver o corpo muitas vezes até confundindo o mundo virtual e o mundo real 6. Nada em relação ao corpo pode ficar escondido do olhar. A biotecnologia também tem oferecido suporte para as novas formas de manipulação do corpo. Cirurgias plásticas, implantes, transplantes, cirurgias para mudanças de sexo, enfim, multiplicam-se as possibilidades de intervenções que se pode fazer no corpo. A anatomia não já é mais o destino, lembra Le Breton (2003). Estamos diante de uma antropomorfia, reconstrução completa da corporalidade em que há exibição contínua da transformação, quanto mais transformado, mais válido é (Couto, 2003). Acrescem-se ainda as evoluções no campo da engenharia genética e das técnicas de reprodução artificial que trazem múltiplas questões éticas sobre a vida confundindo até onde ela começa e onde termina.

2.1 O CORPO NO MUNDO MODERNO

Diferentes autores discutem os sentidos do corpo no mundo contemporâneo relacionando com os valores atuais tais como Anthony Giddens, Christopher Lasch, Richard Sennett, Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky, dentre outros. Longe de partilharem as mesmas posições sobre o tema^7 , pode-se afirmar que os autores convergem na idéia do corpo enquanto um objeto privilegiado da reflexão sobre a vida social e a condição humana no mundo contemporâneo. Compartilham também da discussão do corpo como algo em construção permanente do próprio ser. O corpo então não está

(^5) Sant'Anna (2003) se refere a um ‘totalitarismo fotogênico banalizado’ no qual se exige que tudo no corpo seja preparado para ser visto e exposto. 6 Em contraste, por volta de 10 anos atrás, em um trabalho de educação e saúde desenvolvido no semi- árido baiano, as mulheres ficaram surpresas ao ver um desenho do útero, imagem jamais vista ou imaginada por elas. Revelaram não ter idéia que seria assim por dentro. 7 Ressalta-se aqui como um dos aspectos de grande debate é se estamos vivenciando uma intensificação ou uma superação da modernidade.